ORFEU ~ EURテ好ICE
O MITO poesia ~ pintura ~ mテコsica
Altina Martins, O Sテュmbolo e o Mito (pormenor), 2002
Quando era garoto, comecei por ler histórias baseadas em mitos gregos e a mitologia grega sempre me seduziu muito. Com o decorrer do tempo, apercebime
de
que
na
mitologia
grega
estão
quase
todos
os
paradigmas de
comportamento real e de comportamento imaginário das pessoas.
David Mourão-Ferreira, ―É Que Eu Gosto de Muita Coisa, Sabe?!” in Revista Colóquio/ Letras, Lisboa, nºs 145/146
Óperas baseadas em Orfeu
Stuttgart Psalter. Orpheus (?). c. 830
Francisco Vieira de Matos (Vieira Lusitano). Orfeu tocando lira perante Plutão e Proserpina – Museu de Évora
Orfeu foi um mito consagrado de simbolismo. Desenvolveu-se até criar uma teologia em torno da qual existia abundante literatura esotérica. Exerceu influência no Cristianismo primitivo, sobretudo na iconografia cristã. Filho de Eaco e de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as musas. Sua origem é da Trácia. É representado cantando, vestido com trajos trácios. É considerado por alguns como rei dessa região. É cantor por excelência, músico e poeta. Toca lira e cítara (sua invenção). Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direção, e os homens mais rudes o aclamavam. O mito diz respeito à descida aos infernos por amor à esposa Eurídice. Ela é uma ninfa (Dríade) ou uma filha de Apolo. Um dia, quando passeava nas margens de uma ribeira da Trácia, foi perseguida por Aristeu, que a pretendia violentar. Na fuga, pisou numa serpente escondida na relva, que a mordeu causando-lhe a morte. Orfeu inconsolável, desceu aos Infernos a fim de procurá-la. Com a sua lira, encanta os monstros e os deuses que aí habitam. Hades e Perséfone consentem em devolver Eurídice a um esposo que dá uma tal prova de amor. Mas, impõem uma condição: Orfeu atingirá de novo a luz do dia, seguido da mulher, sem se voltar para trás para ver, antes de ter deixado o reino das trevas. Orfeu aceita e põe-se a caminho. Estava quase a ver a luz do dia, quando uma dúvida terrível lhe veio ao espírito; Perséfone não o teria enganado? Logo se volta para trás, vendo Eurídice desaparecer e morrer pela segunda vez. Em vão, tenta voltar aos Infernos para a procurar, mas Caronte está cada vez mais inflexível e é- lhe recusada a entrada no mundo subterrâneo. É então obrigado a voltar para junto dos humanos, desconsolado. Acabou sendo morto pelas mulheres da Trácia que não admitiam a sua fidelidade à memória de Eurídice. Dizem outros que passou a menosprezar o sexo feminino e a preferir a companhia dos mancebos, inventado a pederastia. Conta-se que ao regressar dos Infernos, instituiu uns mistérios, fundados nas suas experiências no outro mundo, aos quais era interdita a presença das mulheres. Conta-se que os pedaços de seu corpo chegaram a Lesbos onde lhe deram um túmulo de onde saem sons da lira. Foi levado para o Olimpo e transformado em constelação.
Pierre Grimmal, Dicionário de Mitologia. Lisboa. Difel Editora, 1993.
Música da Grécia Antiga uma melodia com mais de 2000 anos encontrada num papiro antigo.
John William Waterhouse, The Charmer. 1911
Vem, lira divina! Fala-me e encontra a tua voz.
Safo
Jules Elie Delaunay, Sapho embrassant sa lyre
―Orfeu de nome famoso‖ Íbico – fragmentos de Íbico – finais do século VI a.C.
Egisto dirigindo-se a Corifeu: Mais lágrimas farão brotar tuas palavras! A voz de Orfeu não era em nada igual à tua: enquanto ele subjugava os seres todos com o encanto de uma fala irresistível, a tua vociferação te perderá. Logo hás-de ver-te dominado pela força! Ésquilo, Agamennon, Tradução de Mário da Gama Cury. 1964 – séc. V a.C.
Henry Ryland. The Young Orpheus. c. 1901
Siluestris homines sacer interpresque deorum Caedibus et uictu foedo deterruit Orpheus. Dictus ob hoc lenire tigris rabidosque leones […]
Quinto Horácio Flaco, Arte Poética
Foi Orfeu, o sagrado intérprete dos deuses, quem afastou os homens selvagens do assassínio e do nefando pasto; por isso se dizia que amansara tigres e ferozes leões.
Orfeu com a lira rodeado por animais
Roelandt Savery, Orfeu. 1628
Te maeste volucres, Orpheu, te turba ferarum, Te rigide sĂlices, tua carmina saepe secutae Fleverunt silvae.
OvĂdio, Metamorfoses, XI, 44/46
Orpheus Charms the Beasts. Engraving by Regius for Ovid's Metamorphoses Book X, 143-144.
Nicolas Poussin, Orfeu e EurĂdice, 1650
Giovani Bellini. Orpheus and Eurydice. c.1515
Eugene Delacroix, EurĂdice colhendo flores ĂŠ mordida por uma serpente
Eurydice mordue par un serpent. Gravure de Regius pour les MĂŠtamorphoses d'Ovide, livre X, 1-10.
Art Lecture VII: Woodcuts and Engravings of Ovid's Metamorphoses (from UVM Rare Book Collection, continued from Art Lecture III)
Brueghel, Orfeu no Mundo Inferior. 1594
[A descida de Orfeu aos Infernos e a perda inconsolável de Eurídice]
Já vinha desandando o lôbrego caminho,
Força estranha me empuxa! A negridão me cerca!
redivivo ao prazer, e salvo dos azares
tendo-te embalde as mãos! É força que te perca!‖
Restituída a seus ais, volvia aos puros ares
Disse, e desapareceu, qual fumo na atmosfera;
trás ele, e não olhada, Eurídice. Tal era
sem nunca mais o ver, a ele, que inda espera
a cláusula que ao dom Prosérpina impusera.
co’as frenéticas mãos nas sombras apanhá-la,
Alucina-se o amante (insânia perdoável,
mil cousas quer dizer-lhe, e não atina fala!
se couberam perdões no abismo inexorável!)
Do Orco o velho arrais nunca dess’hora avante
pára, já quasi à luz…sucumbe…esquece…oh!luto!
consentiu mais regresso à malograda amante.
sua Eurídice encara, e esvai-se à lida o fruto!...
Duas vezes viúvo, onde é que há-de ir-se agora,
Do Averno o cru tirano o pacto rescindido,
que há-de fazer Orfeu? Pranteia, clama, implora,
e três vezes sai do Orco um lúgubre estampido,
e todo o inferno é surdo, e nenhum deus o atende!
co’a voz dela per meio:‖Orfeu, que amor foi este?
Gelada ao longe a esposa a veia stigia fende.
Misera! A mim, e a ti, co’ o teu furor perdeste! O fado me revoca! Ai! Sinto os olhos meus
Virgílio, Geórgicas, Livro IV, versos 485-506.
Outra vez nadar no sono eterno… Adeus!...
Tradução de António Feliciano Castilho
Bauer, Orpheus looks back at Eurydice
Jean Restout, OrphĂŠe descendu aux enfers pour demander Eurydice ou La musique. 1763
Henryk Siemiradzki, Orpheus no Inferno. 1880
Jean-Baptiste Camille Corot, Orfeu conduzindo EurĂdice . 1861
Peter Paul Rubens, Orpheu e Eurydice
Orpheus […] pulsisque ad carmina nervis, Sic ait:‖ O positi sub terra numina mundi […] Causa viae est coniux in quam calcata venenum Vipera diffudit crescentesque abstulit annos.
Eurydices, oro, properata retexite fata!
Haec quoque, cum iustos natura peregerit annos, Iuris erit vestri: pró munere poscimus usum. Talia dicentem nervosque ad verba moventem Exsangues flebant animae… Tunc primum lacrimis victarum carmine fama est Eumenidum maduisse genas, Nec regia coniux Sustinete oranti Nec, qui regit imã, negare;
Antonio Canova, Orpheus
Orfeu […] tocadas as cordas para o canto, Disse assim: ―O deuses do mundo subterrâneo […] o motivo da viagem é a minha esposa contra quem a víbora, pisada, lançou o veneno, tirando-lhe a vida na flor dos anos… Peço que renoveis o fio da vida de Eurídice, prematuramente cortado… Ela também, tendo concluído os anos devidos, vos pertencerá; mas pedimos, como dom, o convívio‖. Enquanto isto dizia e acompanhava as palavras com as cordas […] as almas inermes choravam […] Diz-se que então, pela primeira vez, as faces das Euménides, vencidas pelo canto, cobriram-se de lágrimas e nem a real esposa resiste ao suplicante nem o que rege o inferno recusa o pedido […] Antonio Canova, Eurydice, 1775-1776
Eurydicem vocant […] Hanc simul e t legem Rhodopeius accipit Orpheus, Nec flectat retro sua lumina, donec Avernas Exierit valles; aut irrita dona futura. Nec procul afuerant telluris margine summae; Hic ne deficeret, metuens avidusque videndi Flexit amans óculos; et protinus illa relapsa est Bracchaque intendens prendi et prendere certans Nil nisi cedentes infelix adripit auras…
P. Ovídio Nasão, Metamorfoses, Livro X, 16…70
Luc-Olivier Merson , Orphée. 1889 ~ cor editada
Chamam Eurídice […] Recebe-a Orfeu de Trácia, com a condição de não voltar para trás os olhos até que não tenha saído dos vales do Inferno, doutro modo, o concedido seria revogado. […] E já não estavam longe da crosta terrestre; ele, temendo que ela se perdesse e desejoso de vê-la, voltou para trás o olhar amoroso, e logo ela caiu; estendendo os braços tentava agarrá-la e ser agarrada, mas a infeliz nada apanhou a não ser brisas fugazes…
P. Ovídio Nasão, Metamorfoses.
Luc-Olivier Merson , Eurydice. 1889 ~ cor editada
Federico Cervelli, Orfeo ed Euridice
Watts George Frederic, Orpheu ed Eurydice (pormenor)
Orphée, Eurydice et Hermès ~ Musée du Louvre
Dos deuses vem todo o engenho Que dá as qualidades aos mortais Eles nos criam artistas, fortes de braços ou eloquentes
Píndaro, 1ª Ode Pítica
Arno Brecker, Eurydice and Orpheus. 1944
Em pouco tempo aprendi com os poetas que não é por meio da sabedoria que eles fazem o que fazem, mas por uma espécie de dom natural e em estado de inspiração, como se dá com os adivinhos e os profetas.
Platão, Apologia de Sócrates
Frederic Leighton, Orfeo ed Euridice. 1864
ORFEO: Vi ricorda ò boschi ombrosi ~ Monteverdi - L'Orfeo - Savall
Cecilia Bartoli – Haydn – Orfeo ed Eurydice Anne Sophie von Otter – Gluck – Orphée et Eurydice
Graรงa Morais, Orpheu, 1990
ORPHEU
Orpheu seu canto alto e grave O canto de oiro o êxtase da lira Orpheu A palidez sagrada de seu rosto Que de clarões e sombras se ilumina Ante seus pés se deitam mansas feras Vencidas pela música divina Sophia de Mello Breyner Andresen, em Musa
A minha Lyra? Oh! sim; a minha lyra ĂŠ quem me escuta as magoas, quem procura inutilmente a dor amaciar-me
Meu triste canto deve ser ouvido Richard Macdonald, Eurydice
Francisca Possolo
15 Homens e deuses! Que triste Ser um poeta moderno! Um Orfeu que não resiste A uma descida ao Inferno! E o coração partisse, Nem por amor de Eurídice, Homens e deuses! É triste. [...] Afonso Duarte,"Canto de Babilónia‖, Redondilhas
Donald de Lue, Orpheus
Alexandre Seon, Orpheus Laments, 1896
Canto de Orfeu
Foi punido por Anjos ciosos da sua ciência da Origem, enquanto outros Anjos doces coroavam aquele Filho que também levara na memória dos olhos a figura da Mãe, que todos os filhos levam em si.
Foi punido por Anjos ciosos
Um terrível canto de lamento humano
da sua ciência da Origem,
Depois soou: "Che farò senza Uridice?",
enquanto outros Anjos doces coroavam
com o som das vogais mais dolorosas.
aquele Filho que também levara
Mas o sábio Orfeu deixou a lira
na memória dos olhos a figura
somente ser tocada pelo vento
da Mãe, que todos os filhos levam em si.
quando o canto perseguia a imagem.
Um terrível canto de lamento humano
Depois da morte ela ainda vivia pronta para o prender em espelhos dúplices e ele que amava nela o corpo, a alma, o suor, o aroma, a linha dos dedos,
Depois soou: "Che farò senza Euridice?", com o som das vogais mais dolorosas. Mas o sábio Orfeu deixou a lira somente ser tocada pelo vento quando o canto perseguia a imagem.
levou-a para sempre escendida ao Tempo do Espaço depois do futuro.
Fiama Hasse Pais Brandão, Cantos do Canto
Ary Scheffer, La mort d'Eurydice. 1795-1858
Gustave Moreau, OrphĂŠe sur la tombe d'Eurydice
ORFEU REBELDE
Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento.
Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa,
Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Canto como quem usa
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Os versos em legítima defesa.
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Canto, sem perguntar à Musa
Do moinho cruel que me tritura,
Se o canto é de terror ou de beleza.
Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura.
Miguel Torga, Orfeu Rebelde
―Cada som um grito‖ – Orfeu Rebelde
William Blake Richmond, Orpheus returning from the Shades. 1885.
Orfeu
Deixem-me a pedra fresca à face quente, Condão da noite, íntegra em seu corpúsculo, E lá deite a cabeça de repente Como a bolha do Sol cai no crepúsculo.
Asa de ave sem canto é aquele ramúsculo Que me caiu na testa. - E tanta gente Vê nossa alma coroada! Oh! triste músculo O coração do poeta que o não sente!
Um cansaço de morte gela o ousado Domador de palavras como feras. Orfeu sem Orco, ínvio ladrão de lume,
Quando, afinal, doméstico e roubado Foi ele na paz da pedra, - e a outras quimeras Sua coroa de rosas se resume.
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte
Rodin, OrphĂŠe et Eurydice, 1883
Ricardo Morais, Eurídice. 2010 ~ [11º ano - António Arroio]
Eurydice O teu rosto era mais antigo do que todos os navios No gesto branco das tuas m達os de pedra Ondas erguiam seu quebrar de pulso Em ti eu celebrei minha uni達o com a terra
Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual
Bergamo, Eurydice recedes into the Underworld
A sombra de Eurídice
Canção divina as cousas comovia, E de ternura as árvores choravam... E lembrava o luar a luz do dia E os ribeiros, extáticos, paravam.
Era Orfeu, de inspirado, que descia Às entranhas da terra! E se afundavam Os seus olhos na noite, muda e fria, Onde as pálidas sombras vagueavam.
Eurídice, o seu morto e triste amor, Ouvindo-o, tomou forma e viva cor, Íntima luz à face lhe subiu...
Mas Orfeu, pobre amante enlouquecido, Quis ver aquele corpo estremecido... E, outra vez sombra, Eurídice fugiu...
Teixeira de Pascoaes
Emile Fabry, Orpheo
Toda a noite acompanhei a tua viagem, Orfeu, de fogo em fogo, de melodia em melodia, até o centro da Construção das Trevas.
Ah! E com que volúpia te vi de novo estrangular a tua Eurídice calada para sempre, morta para sempre - melodia que só oculta no silêncio
E agora, Orfeu, raiz do avesso, vejo-te regressar lentamente à superfície da Terra, com as mãos desfeitas em flor de orvalho no fogo consumido.
atravessa as pedras... Amanhece. O planeta é de vidro.
José Gomes Ferreira, Encruzilhadas
Foi contigo, Orfeu – com a tua boca de acordar pedras – Que aprendi a procurar a melodia da morte Não no céu, Mas no fundo mais cego De só haver Terra – calor de casulo.
(Morte, Bicho que corta as próprias asas Para não aumentar o azul.)
José Gomes Ferreira, Encruzilhadas
Jean Delville,. Orpheus. 1893
Alexandre Seon, la Lyre d’Orphée, 1898
Ars Poetica Roubado à natureza o dossier secreto Patente a analogia entre o fundo do poço o rosto de Narciso o sangue do incesto há-de tudo prender-se aereamente solto Que o verbo seja um espelho Ao mesmo tempo um véu Que não baste no lago a pureza do rosto A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu Mas é a mão direita a que revolve o lodo
David Mourão-Ferreira. Obra Poética
Soneto de Eurydice Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu: Ausência que povoa terra e céu E cobre de silêncio o mundo inteiro.
Assim bebi manhãs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era o meu O meu rosto secreto e verdadeiro.
Porém nem nas marés, nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem.
E devagar tornei-me transparente Como morta nascida à tua imagem E no mundo perdida esterilmente.
Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido
Graรงa Morais, Soneto de Eurydice. 1990
Carta de Orfeu a Eurídice
[…] E não fosses tu a única razão desta viagem a que dei o nome de vida, sabendo que a sua única verdade é esse amor. Porém, os nossos lábios não se encontravam na certeza do tempo.
Quis arrancar-te, assim, ao destino – e
O futuro instalou a sua distância naquilo
libertar-me, eu próprio, da sua sujeição. Quantos
que é o presente, com a sua duração inscrita
rostos se fixaram no teu, para que em ti
no destino dos que conheceram uma
eu visse cada uma das imagens por onde passei,
coincidência de um e outro, o olhar uníssono
restituindo-lhes uma respiração humana. Procurei-te
dos amantes, o brusco repouso de uma
enquanto imaginei que me procuravas – e
ânsia de espaço. Aqui, a distância é o que não
cada passo que dava, na minha descida, afastava
separa; o medo da mudança dissipa-se;
tudo o que eu perdia enquanto descia […]
e a recordação é o que está depois do que foi vivido, como se fosse a memória a construir o dia de amanhã.
Nuno Júdice , em Pedro lembrando Inês
Ricardo Morais, O Mito de Orfeu. 2010 ~ [ 11º ano – António Arroio]
ORFEU DO AVESSO
De pé sobre o abismo e não morri: Canto gregoriano muito limpo não me chegou: o fim Catedral sobre o risco, sobre um azul tão grande que afundar-me podia Ao fundo do mais fundo mergulhei e não morri: amei
Ana Luísa Amaral, de Epopeias
Hans Hofmann, Orpheus, 1962-64
carlos peres feio, Orfeu e EurĂdice. 2010
surjo na noite das noites ávido de respostas ocultas
Orfeu e Eurídice
percorrendo caminhos que acredito me tenham sido sussurrados pela amarga dor de perda não imaginável quando serpentes guiadas por poderes maiores
abate-se sobre mim o espanto de saber
me tiraram Eurídice me tiraram a vida
que a amada Eurídice
o meu caminho leva-me às trevas numa viagem incerta
me é entregue sob condição
o resultado de missão negra é duvidoso
transportá-la mas sem a olhar
pois vou perturbado por ânsia enorme
acreditar que mais a frente voltarei a respirar
e o regresso só me pode contemplar
será o mel o ouro o azul
se o sucesso do meu rogo for atingido
que antes conheci quando a vida me sorria
confronto-me com forças que sei poderosas
resistir à tentação de ver seu rosto
ensaio súplicas ampliadas pelos sons dolorosos da lira
acreditar que isso ia conseguir
ao meu choro soma-se o desta companheira de cordas
foi meu erro maior
que neste querer atinge o implorar elevado
minha perda total
de quem a dor transforma nos momentos críticos
eu Orfeu sem Eurídice
e nos sons que dos infernos chegam à Terra
e a grandeza do meu mito
nos momentos últimos da prece já sem lágrimas e com os dedos em sangue
Carlos Peres Feio, (inédito). 2010
Orfeu e Eurídice
Nas ânsias de rever a morta amada Devera Orfeu estimar-se um pouco mais Sairia dos Ínferos confortado Abafando, de mais parca, a sua lira Confrontada com alguma sensatez
Aprenderia que em vez de olhar para trás Ao amor basta às vezes um soslaio E não seria apedrejado até à morte De quem pelo desprezo lhe desprezou até a sorte
E de Eurídice Que pela víbora se fez matar Ninguém sabe o que fez para o guardar.
Jorge Castro
K. X. Roussel, Orfeu volta-se para ver EurĂdice. 1924
Uma vez o órfico ovo com fé fecundado, afastados todos os rumores, canta Orfeu. Procura uma vez só ainda, o colo de Calíope aquela em cujo regaço aprendeste a cantar musas e ninfas e… efebos… dizem as vozes… Jean Delville, Underworld
Esquece agora as vozes e o rumor, ó tu de universal amor. Entre ardentes chamas te chama a filha de Apolo. Mesmo triste, não desiste. Leva contigo agora a confiança não olhes para trás em busca do medo. Leva nos lábios um credo e na lira um mantra fiel. Apaga do teu canto o futuro e volta desce à que te chama entre as chamas
Quanto novamente sobre a erva segura e fresca sentires teus pés, uma outra sombra desenhará a luz no chão contigo. Poderás então vê-la sem medo. Envolvê-la no teu segredo e soprar baixinho como quem aprende a soletrar: Eu Ri Di Ce…
mostra-lhe o caminho na certeza de que te seguirá.
Risoleta C. Pinto Pedro
Marc Chagall, O Mito de Orfeu. 1977
CLAMOR
Só o osso ou a pedra subsistem, depois de ter ouvido o vento sinuoso descer pelos rios sonhados, depois de respirar a crispação dos charcos, depois de acender a dor da música no equilíbrio dos lábios. Devagar me movi e ninguém iluminou o mar, rompeu os limites ou foi resto de substância na lonjura dos dias. Em que boca respira o que é idade e chora, o que é voz e finge, o que é ave e dorme? A que sabor de areia retorno, eternamente límpido, se, outrora, vivi
Hoje apenas me penso. Ou nasço quando desejo. Ou me ergo se, do fundo das águas, ressoa a escassa nudez do que não sinto. Já é ideia a noite mas nela ainda o sol começa e se abre, quente, sobre a ferrugem colada à pele, primeira oca sombra dos mortos. Esplende, definitivamente solitária, para sempre contida no que andei e cri. Em breve há que atingir o vazio da memória e nele persistir. Até que, livre das máscaras que nos corpos fui, venha, última, a surdez das vozes.
no coração dos olhos, no hímen das flores? Orlando Neves, Regresso de Orfeu
Valentin Gospodinov, Orpheus and Eurydice
Se não é viva, nem sequer solene, nem ao menos intacta, se não é exacta, nem sequer perene, nem ao menos cativa, porque emerge, táctil e lisa, uma tão clara música, na treva dúbia onde me ferem e querem?
Orlando Neves, Regresso de Orfeu
Sylvia Nicolas, Orpheus
EURÍDICE, SETE DA MANHÃ
Vejo-a ao longe, a entrar para a estação do metropolitano: mala Gucci, casaco de peles, mini-saia. Na mão, ainda um copo de plástico com beatas e rodelas de laranja. Orfeu espera em Sete Rios, duas pastilhas de ecstasy no bolso, aflito com a ideia de que não pode olhar para trás como da última vez.
José Mário Silva, Nuvens & Labirintos
Hermann Weyer, Eurydice in Hell
Eurídice
Traíram-te os deuses quando adormeceste entre urzes e ciclames cor-de-malva. Era teu sono mais profundo que o mar, esse tranquilo e luminoso mar Egeu que olhavas abandonada e frágil enquanto ouvias a música de Orfeu. Levaram-te em segredo na barca de Caronte para um mundo de sombras e de silêncio. Doce ilusão a tua quando ouviste o som da lira e um íntimo rumor de passos conhecidos. Como sombra impaciente teu amor seguiste de regresso à luz da pátria estremecida. Mas no Estige, nesse rio de névoa e solidão, esqueceu Orfeu o que a Perséfone prometera: para trás olhou, e a sombra que já eras entre sombras para sempre se perdeu.
António José Queirós
Francois Perrier, OrphĂŠe devant Pluton et Proserpine
CANTO DE ORFEU
A poesia, que incendeia a água, não nasce a inspiração. Vou buscá-la ao inferno, atravessando essa porta para lá da qual os astros se apagam. Sei, no entanto, que o caminho do regresso me está aberto: um rasto de versos indica-me a saída, e trago-te comigo, ó viva Eurídice, de cabelos desalinhados pelo vento da amnésia, e roupas presas ao corpo pelo suor dos vendavais. «Espera por mim», dizes, num cansaço de sombra. E
essa porta não se abre duas vezes. Deste-me os versos
ficas para trás, esperando não sei o quê,
que me guiaram até à vista das estrelas; e ficaste –
para que eu te perca de vista. Ó
para que outro volte a seguir esse caminho, e
amada: presa nesses túneis de uma vaga
também ele regresse de mãos vazias,
antiguidade! A que demónios perguntas
sem o amor que secou no teu sexo.
onde estou? Que pão dás a comer ao guarda Cerbero, para que feche os olhos à tua passagem? Mas
Nuno Júdice, O Estado dos Campos
Sofres? Respira. Não há outra lira.
José Gomes Ferreira, Elementos
Pascal Adolphe Jean Dagnan-Bouveret, The Lament of Orpheus, 1876
Che faro senza Euridice
Brigitte Fassbaender
Janet Baker
Luciano Pavarotti
Marylin Horne
Teresa Berganza
j’ai perdu mon Eurydice
Maria Callas
Juan Diego Florez
Opus Art Faveo
Vesselina Kasarova
G. Kratzenstein-Stub, Orpheus and Eurydice. 1793-1860
Orpheu Revista Literária
fundada por Fernando Pessoa,
Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Luís de Orpheu nº1 . capa e direcção gráfica de José Pacheco
Montalvor – 2 números publicados Orpheu Nº1 by José de Almada Negreiros Orpheu Nº2 by Álvaro de Campos
Anselm Feuerbach, Orpheus und Eurydike, 1869
Friedrich Rehberg, Eurydike and Orpheus. 1810
Michael Putz-Richard, Orpheus and Eurydice. 1868
Repara. Se uma manada selvagem e desorganizada, Ou uma corrida de potros jovens e selvagens, Dando saltos loucos, gemendo e relinchando Que é a condição quente do seu sangue, Por acaso, ouvirem o som de uma trombeta, Ou qualquer música lhes tocar os ouvidos, Perceberás que param todos em conjunto, Os olhos selvagens mudando-se-lhes em modéstia Pelo doce poder da música. Por isso o poeta Fingiu que Orfeu fez moverem-se as árvores, pedras e rios; Dado que nada há de mais insensível, duro e cheio de fúria A que a música lhe não mude a natureza.
O homem que não tem música em si, Nem se comove pela harmonia de doces sons Está pronto para traições, estratagemas e roubos, Os movimentos do seu espírito são sombrios como a noite E os seus afectos escuros como Érebo Que não se confie num homem assim. Ouve música.
W. Shakespeare, O Mercador de Veneza Tradução de Helena Barbas
Rosรกrio Andrade, Orfeu chorando a morte de Euridice, 2006
Qualquer que seja a chuva desses campos devemos esperar pelos estios; e ao chegar os serões e os fiéis enganos amar os sonhos que restarem frios. Porém se não surgir o que sonhamos e os ninhos imortais forem vazios, há de haver pelo menos por ali os pássaros que nós idealizamos. Feliz de quem com cânticos se esconde e julga tê-los em seus próprios bicos, e ao bico alheio em cânticos responde. E vendo em torno as mais terríveis cenas, possa mirar-se as asas depenadas e contentar-se com as secretas penas. Jorge de Lima. Invenção de Orfeu - Canto I - XXVI
Edmar Santy, Orfeu. 2010 - [11º ano – António Arroio]
Sarah Chang – Gluck – ―Melody‖ from Orfeo ed Euridice
Nelson Freire plays Rachmaninoff transcription of Gluck Sgambati melody
Evgeny Kissin plays Melody from Orfeo (Gluck and Sgambati)
Jacques Offenbach - Orpheus in the Underworld Overture
A MORTE DE ORFEU
Em vão as bacantes da Trácia procuram consolá-lo. Mas Orfeu, fiel ao amor de Eurídice, encarcerada no Averno, repeliu o amor de todas as outras mulheres. E estas, despeitadas, esquartejaram-no. Houve gemidos no Ebro e no arvoredo, Horror nas feras, pranto no rochedo; E fugiras as Mênadas, de medo, Espantadas da própria maldição. Luz da Grécia, pontífice de Apolo, Orfeu, despedaçada a lira ao colo,
A boca ansiosa em nome disse, um grito, Rolando em beijos pelo nome dito; "Eurídice", e expirou... Assim Orfeu, No último canto, no supremo brado, Pelo ódio das mulheres trucidado, Chorando o amor de uma mulher, morreu...
A carne rota ensangüentando o solo, Tombou... E abriu-se em músicas o chão...
Olav Bilac
Gustave Moreau, OrphĂŠe. 1865
Odilon Redon, Head of Orpheus 1905?
John William Waterhouse, Nymphs finding the Head of Orpheus
Soneto XX
Eu te procuro em toda parte: nos búzios, nas areias ou nas luas, nas ilhas que inventei, nalguma estrela, ou no sonho perdido de um marujo.
emerge dos meus olhos a lembrança e sei que viverás em meu desejo. Continua o mistério do teu corpo, dançarina de luz, de mar e de vento.
Eu te procuro sempre em toda parte, ó velocino de ouro que não tive! Um crepe descerá no sol de outono,
mas o amor velará o nosso sono. Eu, Orfeu, e tu, ninfa, viveremos. E num mar de domingo voltaremos.
Oliveiros Litrento, em Orfeu e a Ninfa
Tiago Ferreira, O Mito de Orfeu. 2010 ~ [ 11º ano – António Arroio]
Catando os cacos do caos […] Como o arqueólogo reunir os fragmentos, como se ao vento se pudessem pedir as flores despetaladas no tempo. Catar os cacos de Dionisio e Baco, no mosaico antigo e no copo seco erguido beber o vinho ou sangue vertido. Catar os cacos de Orfeu partido pela paixão das bacantes e com Prometeu refazer o fígado ............ — como era antes. Catar palavras cortantes no rio do escuro instante e descobrir nessas pedras o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça? ............ Então de cabeça quebrada vamos sobre a parede do nada deixar gravada a emoção ......Cacos de mim ......Cacos do não ......Cacos do sim ......Cacos do antes ......Cacos do fim Não é dentro ............ nem fora embora seja dentro e fora ..... no nunca e a toda a hora que violento .....o sentido nos deflora. Catar os cacos do presente e outrora e enfrentar a noite com o vitral da aurora Affonso Romano de Sant'Anna
Émile Lévy , Death of Orpheus. 1866
Nikolaus Kn端pfer, Death of Orpheus (pormenor)
Sarah Chang – Gluck – ―Melody‖ from Orfeo ed Euridice Nelson Freire plays Rachmaninoff transcription of Gluck Sgambati melody Evgeny Kissin plays Melody from Orfeo (Gluck and Sgambati) Sergey Rachmaninov plays Gluck "Melody" David Oistrakh plays Gluck ―Melody‖ from Orfeo ed Eurydice
Soneto do Corifeu São demais os perigos dessa vida Para quem tem paixão, principalmente Quando uma lua surge de repente E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado Vem se unir uma música qualquer Aí então é preciso ter cuidado Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita De música, luar e sentimento E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua: Tão linda que só espalha sofrimento Tão cheia de pudor que vive nua.
Vinicius de Morais, Orfeu da Conceição
Edmond Dulac, Orfeu e EurĂdice, 1934
Monólogo de Orfeu
Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços Te enrustiste em minha vida, e cada hora que passa É mais por que te amar a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.
E sabes de uma coisa? Cada vez que o sofrimento vem, essa vontade de estar perto, se longe ou estar mais perto se perto Que é que eu sei? Este sentir-se fraco, o peito extravasado o mel correndo, essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu; Tudo isso que é bem capaz de confundir o espírito de um homem. carlos peres feio, Eurídice, 2010. [cor editada]
Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada Nada disso tem importância Quando tu chegas com essa charla antiga, esse contentamento, esse corpo E me dizes essas coisas que me dão essa força, esse orgulho de rei.
Milhões amada! Ah! Criatura! Quem poderia pensar que Orfeu, Orfeu cujo violão é a vida da cidade E cuja fala, como o vento à flor Despetala as mulheres que ele, Orfeu,
Ah, minha Eurídice Meu verso, meu silêncio, minha música.
Ficasse assim rendido aos teus encantos?
Nunca fujas de mim. Sem ti, sou nada.
Mulata, pele escura, dente branco
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.
Vai teu caminho
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
que eu vou te seguindo no pensamento
A existência sem ti é como olhar para um relógio
e aqui me deixo rente quando voltares,
Só com o ponteiro dos minutos.
pela lua cheia
Tu és a hora, és o que dá sentido
Para os braços sem fim do teu amigo
E direção ao tempo, minha amiga mais querida!
Vai tua vida, pássaro contente Vai tua vida que estarei contigo.
Vinicius de Moraes Composição: Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim
Vinicius de Moraes ~ Orfeu da Conceição : tragédia carioca ~ nova etapa na história do teatro brasileiro ~ 1956
Orfeu da Conceição ~ Texto da capa do disco ~ Vinicius de Moraes Manhã de Carnaval : ~ Maysa ~ Clara Nunes ~ Maria Bethânia e Hanna Schygulla ~ Baden Powel
Monólogo de Orfeu: ~ Maria Bethânia ~ Vinícius de Moraes
Orphée – 1950 ~ Jean Cocteau Orfeu Negro – 1959 ~ Black Orpheus (trailer)
Cocteau, Le testament d’Orphée
Aí, o zumbido da fatalidade
―Orfeu , o negro do carnaval‖
Que atinge a cidade Traz mais uma desilusão Orfeu caiu No abismo da saudade
Lá, onde a vida faz a prece
E voa para eternidade
E o Sol brilhante desce para ouvir
Levado pela ira da paixão
Acordes geniais de um violão É o reino de Orfeu, rei das cabrochas Seduzidas pela sua inspiração Eurídice, o verdadeiro amor Do vencedor por aclamação geral Da escola de samba do morro Que vai decantar nos seus versos A história do carnaval
Tem no seu talento reconhecimento Num desfile magistral O Grêmio do Morro venceu E o samba do negro Orfeu Tem um retorno triunfal (o amor está no ar...) Hoje o amor está no ar Vai conquistar seu coração
É na magia do sonho que eu vou Mitologia no samba amor
Tristeza não tem fim, felicidade sim Sou Viradouro, sou paixão
A Viradouro levou ―Orfeu , o negro do carnaval‖ à avenida em 1998.
Luc Archambault, Eurydice au lac bleu, La Montagne. 1995
Violet Brunton, Orpheus and Eurydice.1910
Legado
Que lembrança darei ao país que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu minha incerta medalha, e a meu nome se ri. E mereço esperar mais do que os outros, eu? Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. Não deixarei de mim nenhum canto radioso, uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque de alguém seu mais secreto espinho. De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia no meio do caminho.
Carlos Drummond de Andrade, Poesia Completa
Canto Órfico
A dança já não soa, a música deixou de ser palavra, o cântico se alongou do movimento.
Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,
Orfeu, dividido, anda à procura
braços do não-saber. Ó fabuloso
dessa unidade áurea, que perdemos.
mudo paralítico surdo nato incógnito na raiz da manhã que tarda, e tarde,
Mundo desintegrado, tua essência
quando a linha do céu em nós se esfuma,
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.
desaprendidos de ver; e sob a pele, que turva imporosidade nos limita?
No duelo das horas tua imagem
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
atravessa membranas sem que a sorte
de uma prístina ciência, agora exangue.
se decida a escolher. As artes pétreas recolhem-se a seus tardos movimentos.
Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
Em vão: elas não podem.
dera poder de penetrar. Erra o mistério
Amplo,
em torno de seu núcleo. E restam poucos
vazio
encantamentos válidos. Talvez
um espaço estelar espreita os signos
um só e grave: tua ausência
que se farão doçura, convivência,
ainda retumba em nós, e estremecemos
espanto de existir, e mão completa
que uma perda se forma desses ganhos.
caminhando surpresa noutro corpo.
Orfeu, dá-nos teu número de ouro, entre aparências A música se embala no possível, no finito redondo, em que se crispa uma agonia moderna. O canto é branco, foge a si mesmo, vôos! palmas lentas sobre o oceano estático: balanço de anca terrestre, certa de morrer. Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos e comovidos membros naturais, e límpido reinaugura o ritmo suficiente, que, nostálgico, na nervura das folhas se limita, quando não compõe no ar, que é todo frêmito, uma espera de fustes, assombrada.
que vão do vão granito à linfa irônica. Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa atmosfera do verso antes do canto, do verso universo, latejante, no primeiro silêncio, promessa de homem, contorno ainda improvável de deuses a nascer, clara suspeita de luz no céu sem pássaros, vazio musical a ser povoado pelo olhar da sibila, circunspecto. Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo e escuta: só de ousar-se teu nome, já respira a rosa trimegista, aberta ao mundo.
Carlos Drummond de Andrade, Poesia Completa
A lira flui na cascata Divina aura de Orfeu Cabeça flutua exacta Música maga de ser Eco do rio Oceano esperado
[…]
Mito mistério
Cascatas de Orfeu na serra
Concerto esperado
Ecoam arpejo da voz
[…]
Vibração de espaços celestes Florestas de imagens e enigmas
Helena Langrouva, Arpejos de uma viandante/Arpèges
Marc Chagall, OrphĂŠe. 1913-1914
Mariana Cruz, Eurídice. 2010 ~ 11º ano – António Arroio
Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia e os homens com suas redes esperando Orfandades arrastadas sobre a areia era assim que vinham os peixes era assim que as palavras vinham, sem ar, com olhos vitrificados Havia os cabelos de Eurídice soltos como velames cortando os ventos semeando bichos que se alastravam Eram quase mãos, os cabelos de Eurídice, tentando agarrar alguma coisa buscando alcançar uma alegria, um êxtase, uma dor que fosse qualquer coisa quebrada, algum resto, um destroço ou algas e conchas dentro das ondas Iracema Macedo, em Invenção de Eurídice
VĂtor Miranda, EurĂdice. 2010
EURÍDICE
Lançaste-me então para trás, eu que poderia ter caminhado com as almas vivas sobre a terra, eu que poderia ter dormido entre flores vivas por fim;
então pela tua arrogância pela tua truculência fui lançada para trás para onde o líquen morto escorre escórias mortas sobre musgo de cinza;
se me tivesses deixado esperar teria crescido da indiferença
então pela tua arrogância estou
para a paz,
por fim despedaçada,
se me tivesses deixado repousar com os mortos,
eu que vivi inconsciente, que fui quase esquecida;
ter-me-ia esquecido de ti e do passado.
Hilda Doolitlle [a mítica H.D., pupila de Ezra Pound] ~Tradução de Filipe Jarro
Richard MacDonald, Orpheo & Euridice. 2003
ORFEU
Qual a esperança do canto? E das mãos que se movem levemente Ao largo das aves, do tímido, de tanto encanto? Desconcertar-se e ser feliz Ou quase toda a ciência da vida?
Mas os belos contentam-se com as agudas notas do ar; O calor basta. Ó se o inverno realmente Se opuser, se o frágil floco de neve, que fará O desejo, que fará a dança?
W. H. Auden, Outro tempo, parte I pessoas e lugares. Tradução de Margarida Vale de Gato
Odilon Redon, Le Désespoir d'Orphée. 1885-1890
Hora grave Quem chora agora em algum lugar do mundo, sem razão chora no mundo, chora por mim.
Quem ri agora em algum lugar da noite, sem razão se ri na noite, ri-se de mim.
Quem anda agora em algum lugar do mundo, sem razão anda no mundo, vem para mim.
Quem morre agora em algum lugar do mundo, sem razão morre no mundo, olha para mim.
Rainer Maria Rilke Tradução de José Paulo Paes
Barbara kerstetter, Song of Orpheus, 1997
DOS SONETOS A ORFEU Um deus pode. Mas como erguer do sol, na estreita lira, o canto de uma vida? Sentir é dois; no beco sem saída dos corações não há templos de Apolo. Como ensinas, cantar não é a vaidade de ir ao fim da meta cobiçada. Cantar é ser. Aos deuses, quase nada. Mas nós, quando é que somos? Em que idade nos devolvem a terra e as estrelas? Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam as palavras nos lábios, ao dizê-las, esquece os teus cantares. Já não soam. Cantar é mais. Cantar é um outro alento. Ar para nada. Arfar em deus. Um vento. Rainer Maria Rilke , Orfeu. Eurídice. Hermes. Tradução de Augusto de Campos
Charles De Sousy Ricketts, Orpheus, Eurydice and Hermes. 1922
DIZER TREVAS Como Orfeu, toco a morte nas cordas da vida e à beleza do mundo e dos teus olhos que regem o céu só sei dizer trevas. Não te esqueças que também tu, subitamente, naquela manhã, quando o teu leito estava ainda húmido de orvalho e o cravo dormia no teu coração, viste o rio negro passar por ti.
Com a corda do silêncio
Mas, como Orfeu, sei
tensa sobre a onda de sangue,
a vida ao lado da morte,
dedilhei o teu coração vibrante.
e revejo-me no azul
A tua madeixa transformou-se
dos teus olhos fechados para sempre.
na cabeleira de sombras da noite, os flocos negros da escuridão
Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado
nevavam sobre o teu rosto.
Tradução de João Barrento
Tânia Santos, O mito de Orfeu.. 2010 . ~[ 11º ano – António Arroio]
Claudio Monteverdi, Orfeo, em 1607 Luigi Rossi, Lamento di Euridice, em 1647 Joseph Haydn, Orfeo ed Euridice, ―al tuo seno fortunate‖ em 1790 (inacabado) Jacques Offenbach, ―Orphée aux Infers‖- GALOP INFERNAL (can Can) em 1858
O NOVO ORFEU Eterno permanece para nós o destino Orfeu
Eurídice:
Músico de profissão
A mulher a vida incompreendida
Ébrio de mosto estelar
Todos são Orfeu
Ouves a rotação da Terra
Orfeu: quem o não conhece?
Ranger hoje mais fortemente do que é hábito?
1 m 78 de altura
O eixo do mundo enferrujou
68 quilos
À tardinha e pela manhã cotovias disparam
Olhos: castanhos
para o céu
Testa: estreita
Procuram em vão o infinito
Chapéu entretelado
Leões enchem-se de tédio riachos envelhecem
Certidão de nascimento no bolso do casaco
E os miosótis pensam em suicídio
Católico Sentimental
Está cansada a boa Natureza Rarefeito o oxigénio de eternas florestas
Pela democracia E músico de profissão.
Sufoca-se no ozono dos cumes Nuvem chove e sente a nostalgia da lama
A Grécia esqueceu-a
Homem acaba sempre por voltar aos Homens
E o canto matutino do alcíone
O casamento das flores E tanta amizade de riachos menineiros
De que lhe servem hoje gengiana e camurça? Os homens estão na miséria Prisioneiros nas profundezas de um submundo Em cidades de argamassa De lata e de papel São estes que ele tem de libertar Os pobres de lua de vento e de pássaros […] Gramofones Pianolas Órgãos Espalham a música de Orfeu
Na torre Eiffel O 11 de Setembro Dá um concerto pela telefonia Orfeu torna-se um génio: A sombria tristeza dos cedros
Chris Gollon, Orpheus and Eurydice. 2009
Viaja de país para país Sempre em carruagem-cama
A sua assinatura Em fac-símile para álbuns de poesia Custa vinte marcos E Orfeu volta-se para trás E de Atenas viaja para Berlim Através da aurora alemã Lá está à espera na estação da Silésia Eurídice! Eurídice! Lá está a amada da saudade Com o seu velho chapéu de chuva E luvas amarrotadas Tule sobre o chapéu de inverno E bâton a mais nos lábios
Volta-se para trás – e já quer abraçá-la Libertá-la definitivamente do seu Orco: Estende a mão Levanta a voz Em vão! A multidão já não o ouve Regressa ao submundo ao quotidiano e à dor! Orfeu só na sala de espera Estoira o coração com uma bala.
Como outrora Sem música Pobre de alma Eurídice: a humanidade não libertada!
Yvan Goll, i.e. Isaac Lang, ―O novo Orfeu‖, (excerto) Tradução de João Barrento
Giorgio de Chirico, Orfeo solitario. 1973
Uma pessoa tem um corpo, Um só, sozinho. A alma já está farta De ficar confinada dentro De uma caixa, com orelhas e olhos Do tamanho de moedas, Feita de pele só cicatrizes Cobrindo um esqueleto. Pela córnea ela voa Para a cúpula do céu, Sobre um raio gélido,
Uma charada sem solução: Quem vai voltar Ao salão depois do baile, Quando não há ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente Vestida com outras roupas: Que se inflama enquanto corre Da timidez à esperança; Pura e sem sombra, Como fogo, ela percorre a Terra, Deixa lilases sobre a mesa Para que se lembrem dela.
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
Então continua a correr, criança, não te aflige
E ouve pelas grades
Por causa da pobre Eurídice;
Da sua prisão viva
Continua a rodar teu aro de cobre,
O crepitar de floretas e milharais,
Corre com ele mundo afora,
O troar de sete mares.
Enquanto, em notas firmes
Uma alma sem corpo é pecaminosa
De tom alegre e frio,
Como um corpo sem camisa
Em resposta a cada passo que deres,
Nenhuma intenção, nem um verso.
A Terra soar em seus ouvidos
Arseni Tarkovski, ―Eurídice‖ ~ poema em O Espelho de Andrei Tarkovski
W. Bradley Elsberry, Orpheus and Eurydice
Parte II 13 Adianta-te ao adeus, como se ele assim ficasse para trás, como o inverno agora. Pois entre os invernos inverna tão sem fim, que acima do invernar teu coração demora.
Em Eurídice morras – e subas a cantar,
Sê – sabe ao mesmo tempo os termos do não ser,
regressa aonde uma pura relação vos uniu.
causa sem fim da tua íntima vibração.
Aqui, entre os que passam num reino a declinar,
Por esta única vez a venhas perfazer.
sê cristal tilintante que o tilintar partiu. Às reservas usadas da natureza aponta, às surdas, às sem voz, indizível adição, e acrescenta-te em júbilo e apaga logo a conta.
Rainer Maria Rilke, Elegias do Duíno. Os Sonetos a Orfeu. Tradução de Vasco Graça Moura
Mina Anguelova, Orfeu. 2010 ~ [eis aluna da Ant贸nio Arroio] ~ blogue gr谩fico
André Muralhas, O Mito de Orfeu. 2010 ~ [ 12º ano – António Arroio]
28 Oh, vem e vai. Tu, quase uma criança, torna a figura de dança, um só instante, pura constelação de alguma dança, em que, efémeros, a surda e ordenante
natureza excedemos. Ela só se moveu de todo, ouvindo, pois Orfeu cantava. Tu foste a que, movida, desde antes apareceu, numa leve estranheza, quando a árvore hesitava
muito tempo, de ouvido a acompanhar-te.
E por ela ensaiaste passos da tua arte
Sabias inda o lugar da lira erguida, esse
na esperança de que um dia, à festa plena, dentro,
onde ela ressoa - ; o inaudito centro.
a face e o andar do amigo se volvesse.
Rainer Maria Rilke, Elegias do Duíno. Os Sonetos a Orfeu. Tradução de Vasco Graça Moura
Pierre-Auguste Renoir, Eurydice. 1895-1900
[…] Não, não foi como disseram, que se voltou por demasiado amor, incapaz de paciência e de ficar à espera, e portanto por falta de amor. E nem sequer porque, se eu voltasse com ele, para casa dele, já não poderia cantar aquelas canções melodiosas e comoventes que falavam da dor da minha perda […]
[...] Assim, decerto o Senhor vai entender, senhor Presidente, porque é que quando já estávamos próximo das portas, o chamei com voz forte e segura [...] , e ele – eu sabia que ele não iria resistir – se voltou […]
Claudio Magris, E Então Vai Entender Tradução de José Colaço Barreiros
João Bernardo, Orfeu e Eurídice. 2010 ~[11º ano – António Arroio]
Mito de Orfeu e de Eurídice – em lego
An art school Project to tell the story of Orpheus and Eurydice Orphée et Eurydice à l’école primaire
Ricardo Morais, O Mito de Orfeu. 2010 ~ [11º ano – António Arroio]
Lira de Orfeo COMPLETO + Lira de Mime Saint Seiya requiem de Orfeo de lyra arpa mime zodiaco music Orfeu olha para trás - Cena hilária de Cavaleiros do Zodíaco
Clipa Theater ~ Orpheus (Eurydice in hell)
[…] ao voltar-se para Eurídice, Orfeu arruina a obra, a obra desfaz-se imediatamente, e Eurídice retorna à sombra; a essência da noite, sob o seu olhar, revela-se como não essencial. Assim traiu a obra, Eurídice e a noite. Mas não se voltar para Eurídice não seria menor traição, infidelidade a força sem medida e sem prudência do seu movimento, que não quer Eurídice em verdade diurna e em seu acordo quotidiano, que a quer em sua obscuridade nocturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, que quer vê-la, não quando ela está visível mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida familiar para fazê-la viver mas ter viva a plenitude de sua morte. Foi somente isso o que Orfeu foi procurar no inferno. Toda a glória de sua obra, toda a potência de sua arte e o próprio desejo de uma vida feliz sob a bela claridade do dia são sacrificados a essa única preocupação. Olhar na noite o que a noite dissimula, a outra noite, a dissimulação que aparece. O erro de Orfeu parece estar, então, no desejo que o leva a ver e a possuir Eurídice, ele, cujo único destino é o de cantá-la. Ele só, e Orfeu no canto, só pode ter relações com Eurídice no seio do hino, só tem vida e verdade após o poema e por este, e Eurídice não representa outra coisa senão essa dependência mágica que, fora do canto, faz Orfeu uma sombra e não o liberta, vive e soberano, senão no espaço da medida órfica. Sim, isso é verdade: somente o canto de Orfeu tem poder sobre Eurídice, mas também no canto, Eurídice já está perdida e o próprio Orfeu é o Orfeu disperso, o ―infinitamente morto‖ que a força do canto faz dele, desde agora. Ele perde Eurídice e perde-se a si mesmo, mas esse desejo e Eurídice perdida e Orfeu disperso são necessários ao canto, tal como é necessária à obra a prova da ociosidade eterna. Orfeu é culpado de impaciência. Seu erro é ter querido esgotar o infinito, pôr um termo ao interminável, não sustentar sem fim o próprio movimento do seu erro. A impaciência é a falta de quem quer subtrair-se à ausência de tempo, a paciência é o artificio que procura dominar essa ausência de tempo fazendo dela um outro tempo, medido de outro modo. Mas a verdadeira paciência não exclui a impaciência, está na sua intimidade, é a impaciência sofrida e suportada sem fim. A impaciência de Orfeu também é, portanto, um movimento correto: nela começa o que virá a ser a sua própria paixão, sua mais alta paciência, sua morada infinita na morte. Maurice Blanchot, O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro. 1987
Uma noite, após os últimos acordes, sentiu-se nas paredes à volta um tão ruidoso
silêncio,
que
todos
vieram
espreitar às janelas. No sítio da casa ouvia-se um imenso vazio. Olhando para cima, apenas nuvens. Faziam lembrar vagamente a imagem de um som muitas vezes
multiplicado,
cordas
de
lira
dançando ao vento como fitas de um divino ADN, mas sabe-se como as nuvens são
seres
com
vocação
para
a
transfiguração. Em mitos. E Orfeu é atento. Ao vento.
Risoleta C. Pinto Pedro
Achilles Painter, playing a lyre, 450-440 aC
Mariana Cruz, Orfeu e Eurídice. 2010 ~ 11º ano – António Arroio
Dance of the blessed spirits ~ Pina Bausch Orpheus and Eurydice ~ modern dance Orpheus and Eurydice ~ Compagnie Marie Chouinard
E de novo surgirei qual ave do sol, para ser cinza, eclipse e fatalidade Albrecht D端rer, The Death of Orpheus
Orlando Neves, Regresso de Orfeu
maio ~ 2010 ~ eli