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O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
COLEÇÃO TERRITÓRIO, AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS
Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita
Uma retirada insólita
Ana Luiza Martins Costa
COLEÇÃO TERRITÓRIO AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS n.4
IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
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O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
COLEÇÃO TERRITÓRIO, AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS
Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
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Ana Luiza Martins Costa
COLEÇÃO TERRITÓRIO AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS n.4
IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
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O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
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Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
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IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
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“Folha 3”
“Folha 1”
“Folha 2”
Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
15mm
L. = Lagoa
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Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
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Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
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Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
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Copyright © Ana Luiza Martins Costa, 2013 Coordenação editorial: Henri Acselrad Projeto gráfico e editoração: Florencia Grassi Fotografias da capa e interiores: Jayme Moraes Aranha Fo Impressão e acabamento: Armazém das Letras Gráfica e Editora Ltda. ETTERN/IPPUR/UFRJ Prédio da Reitoria, sala 543 Cidade Universitária, Ilha do Fundão CEP 21.941-590 Rio de Janeiro, RJ
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
M386r
Martins Costa, Ana Luiza.
Uma retirada insólita : rio São Francisco : barragem de Sobradinho / Ana Luiza Martins Costa. – Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2013. 272 p. : il. ; 18 cm. – (Coleção território, ambiente e conflitos sociais ; n. 4) Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-86136-10-8 1. Antropologia. 2. Camponeses – Aspectos sociais – São Francisco, Rio. 3. Barragens e açudes – Sobradinho (BA). 4. Assentamentos humanos – Sobradinho (BA). 5. Representações sociais. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. II. Título. III. Série. CDD: 301
Apoio:
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Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
IPPUR/UFRJ Rio de Janeiro, 2013
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“Agora, o mundo quer ficar sem sertão.” Grande sertão: veredas
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Sumário Introdução (p. 9) A pesquisa e seus dados (p. ) Principais interlocutores (p. ) Poder de Estado (p. ) A retirada (p. ) Uma retirada insólita (p. )
O modelo da retirada Capítulo I
(p. 33)
1. O deslocamento para a borda do lago como uma retirada (p. ) 2. Retirada e enchente alta (p. ) 3. O caráter coletivo e provisório das retiradas tradicionais (p. ) 4. As retiradas e a organização do espaço (p. ) 5. O princípio da beira (p. ) 6. O modelo da retirada (p. )
As enchentes altas como marcos espaciais: área da vazante e área da caatinga Capítulo II
(p. 55)
1. O desenho da Itapera velha e a percepção do espaço 2. Focos de irradiação do Desenho velho: o rio e o lugar das casas 3. Itinerários organizadores do Desenho velho 4. Desenho velho x Desenho hoje: localização da Itapera Nova 5. Área da vazante, área da caatinga e área de Itapera 6. A construção social do espaço
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As enchentes como marcos temporais: ciclo anual e ciclo excepcional Capítulo III
(p. 109)
1. Ciclo anual de atividades 2. Morfologia social dos camponeses de Itapera 3. Ciclo excepcional de abundância generalizada: anos de enchente alta 4. Medidores do tempo: o rio e a chuva
Uma retirada insólita: “a enchente que o rio encheu pela barragem” Capítulo IV
(p. 167)
1. Descompasso cultural entre camponeses e técnicos do Estado 2. Atuação da CHESF e de seus técnicos 3. Implicações do modelo da retirada (p. ) .p( 4. Precisão no sertão: a cheia excepcional da penúria generalizada 5. Mediação cultural e política
O mundo às avessas Epílogo
(p. 227) (p. )
E o São Francisco passo a passo vai cumprindo a profecia
Gráficos (p. 232) Desenhos e mapas (p. 236) Bibliografia (p. 260)
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Vista da barragem de Sobradinho
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Introdução Entre os anos de 1976 e 1978, cerca de cinquenta mil camponeses que moravam nas ilhas e margens do rio São Francisco foram obrigados a deixar suas casas e terras para dar lugar ao reservatório da hidrelétrica de Sobradinho. A partir de uma pesquisa de campo na área, centrada no povoado de Itapera, do município de Sento Sé (Bahia), descrevo os eventos inéditos provocados pela barragem, do ponto de vista dos próprios camponeses.1 Localizada a montante das cidades de Juazeiro (Bahia) e Petrolina (Pernambuco), 40 km rio acima, a barragem de Sobradinho foi construída pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), uma das subsidiárias da Eletrobrás (Ministério das Minas e Energia), com o objetivo de regularizar a vazão do rio e gerar energia. Como parte do projeto, o Estado, através da CHESF, promoveu a formação de um reservatório de 4.214 km², um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 320 km de extensão e de 10 a 40 km de largura, que inundou terras de sete municípios baianos (Sento Sé, Juazeiro e Xique-Xique, na margem direita do rio; Remanso, Casa Nova e Pilão Arcado, na margem esquerda), as sedes municipais (exceto Juazeiro e Xique-Xique) e dezenas de pequenos povoados (ver Mapa VI, “Área do reservatório de Sobradinho”, p. 254). Construída a partir de junho de 1973, a Usina Hidrelétrica de Sobradinho entrou em operação em novembro de 1979, com uma potência de 1.050 megawatts. Cerca de setenta mil pessoas foram retiradas da área de inundação, 70% das quais eram camponeses que abasteciam o mercado regional.2 Ao contrário de muitas outras barragens construídas no Brasil, nas quais não há terra disponível ao redor das áreas alagadas, em Sobradinho foi possível reassentar na borda do lago a maior parte da população desalojada. Nesta região do Médio São Francisco, a população distribuía-se pelas imediações do rio, que concentrava as atividades produtivas ao longo de seu curso pelo semiárido. Localizada fora de alcance das águas do rio, a chamada “área de caatinga” era deserta ou fracamente povoada. Com a formação do lago, desapareceram as melhores terras para o exercício da agricultura: os “lameiros” (terras aluvionais) das margens e ilhas do rio São Francisco. A maior parte dos camponeses ribeirinhos foi reasUma retirada insólita
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sentada na borda do lago, distante vários quilômetros da antiga beira do rio, em plena caatinga, com seus solos secos e arenosos. A retomada do processo produtivo na área passa por um processo de modernização compulsória, com modificações nos parâmetros do cálculo econômico. A introdução de lavouras comerciais subordinadas à irrigação, sobretudo a de cebola, desencadeou novas modalidades de inserção no mercado e toda uma rede de obtenção de insumos e financiamento bancário. Com a formação do lago, os camponeses foram expropriados das condições sociais de produção e reprodução até então vigentes na área e de todo um modo de vida tradicional a elas associado.3 A barragem de Sobradinho não é um caso único e isolado de intervenção violenta do Estado brasileiro sobre o espaço físico para a construção de usinas hidrelétricas. Com o apoio financeiro do Banco Mundial, muitas barragens de grande porte foram construídas em áreas rurais, como Itaipu, no rio Paraná (Paraná, 1984/1a. unidade); Tucuruí, no rio Tocantins (Pará, 1984); Itaparica, no rio São Francisco (Pernambuco/Bahia, 1988); Itá, no rio Uruguai (Santa Catarina/Rio Grande do Sul, 2000); Balbina, no rio Uatumã (Amazonas, 1989); dentre muitas outras. Para viabilizá-las, o Estado promove a inundação de grandes extensões de terra, deslocando milhares de pessoas, principalmente grupos camponeses e indígenas.4 Se o Estado tende a enfatizar a grandiosidade de tais obras e a energia por elas gerada, outros setores da sociedade denunciam seus efeitos sociais e ambientais extremamente negativos, como as entidades representativas dos atingidos por barragens e grupos de defesa do meio ambiente; a imprensa, a Igreja Católica e parlamentares comprometidos com causas sociais. No caso específico de Sobradinho, além de não prevenir as grandes enchentes do rio São Francisco, a barragem destruiu o modo de vida tradicional da população, provocando o seu empobrecimento.5 Tais críticas são também veiculadas por pesquisadores de diversas áreas, que analisam seus impactos socioambientais, sobretudo as novas condições de produção e acesso à terra na borda do lago.6 Não é minha intenção prosseguir nesta mesma linha de abordagem, em que os efeitos sociais da construção de uma barragem são vistos a partir de alguns indicadores quantificáveis, como a miséria da população. Meu objetivo é apreender o ponto de vista dos camponeses. Pretendo demonstrar que o modo como eles conceberam os eventos da barragem incidiu de forma imprevista e decisiva no rumo dos aconteci-
10 Introdução
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mentos. Se meu enfoque pode parecer estranho aos autores que se dedicam a identificar impactos sociais, no entanto, ele se alinha com toda uma tradição de estudos antropológicos e históricos que consideram o “sentido vivido” de uma experiência como ponto de partida para qualquer análise de processos de mudança sociocultural.7 Estou interessada em descrever o modo como os camponeses ribeirinhos articularam culturalmente uma experiência insólita: a subida excepcional e definitiva das águas do rio (transformado em lago), e o deslocamento compulsório para suas margens, localizada em plena área da caatinga, para onde se dirigiam apenas em ocasiões especiais e em caráter necessariamente provisório. A partir da identificação das categorias nativas utilizadas para apreender tal situação inédita, procuro circunscrever os momentos em que aparecem e seu modo de funcionamento. Dentro de uma abordagem comparativa, veremos que a lógica do sistema tradicional, anterior à intervenção do Estado na área, é a via de acesso para os novos contextos em que tais categorias são acionadas. Defendo a tese de que a formação do lago, ao ser anunciada como uma subida excepcional das águas, foi assimilada a um determinado esquema conceitual associado aos movimentos do rio São Francisco, particularmente de suas enchentes excepcionais, denominadas de “enchentes altas” (ou “cheias altas”/ “grandes”). O represamento do rio e a transferência para a borda do reservatório incidiram sobre um conjunto articulado de categorias de espaço e tempo – beira; alto/baixo, seco/molhado, caatinga/vazante, enchente alta/enchente baixa –, configurando o que defino como o “modelo da retirada”. Foi guiando-se por este modelo que os camponeses deixaram seus locais de moradia e fizeram suas escolhas: comportaram-se como se fosse uma “retirada”, ou seja, um deslocamento provisório em direção à caatinga, deixando para trás o povoado inundado por uma enchente alta. É em função desse modelo, consagrado pela tradição mas ignorado pela CHESF e suas equipes de relocação, que podemos compreender a insistência dos camponeses em não deixar os povoados até o rio atingir as casas, sua “teimosia” (aos olhos dos agentes do Estado) em não sair de locais considerados “altos” e “secos”, porque o rio ali jamais chegara. Opções que, no entender dos técnicos, eram fruto de uma população “ignorante” e “atrasada”. Pelos equívocos e situações extraordinárias que provocou, a barragem de Sobradinho é um campo fértil para refletirmos sobre o modo como duas ordens culturais distintas podem interagir, ainda que atriUma retirada insólita
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buindo valores significantes diversos a um mesmo acontecimento, e sobre os processos culturais desencadeados a partir dos mal-entendidos gerados neste encontro (Sahlins, 1981). Veremos que a percepção e conduta dos camponeses diante da formação do lago remetem a uma lógica cultural bastante específica, que não foi levada em conta pela CHESF e seus técnicos de campo. A análise aqui desenvolvida tem como referencial empírico basicamente o novo povoado de Itapera, um dos “núcleos de reassentamento” (ou “núcleo rural”) da CHESF, localizado no município de Sento Sé, na margem direita do lago, onde realizei dois trabalhos de campo, em 1985 e 1987. A partir dos dados reunidos em Itapera e, de modo mais esparso, em vários outros povoados ribeirinhos, procuro descrever uma determinada forma de organização social, cuja base física havía sido recentemente destruída (1977-8). Quando fiz a pesquisa com os camponeses, não se haviam passado nem dez anos desde que seu velho mundo desaparecera sob as águas da barragem. Em Sobradinho, não há profundidade histórica para falarmos de uma redefinição de categorias culturais. Trata-se de um momento de ruptura com o antigo modo de vida, com muitas mudanças em curso. Ao favorecer a percepção de modelos até então naturalizados, tais momentos são propícios para apreendermos a condição camponesa em sua forma tradicional (Bourdieu & Sayad, 1964). Como não se encontram mais naquele espaço e naquele tempo, seu olhar envolve um afastamento e um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem, na beira do antigo rio. Se a ruptura é também um momento de idealização do passado, podemos balizá-la com os dados disponíveis numa rica bibliografia sobre o modo de vida tradicional das populações ribeirinhas. Há toda uma tradição de estudos sobre o Vale do rio São Francisco, de relatos de viajantes do século XIX a livros de memórias da elite local, estudos linguísticos e de folclore, de música, geografia e levantamentos socioeconômicos para o aproveitamento do Vale, além dos mais variados mapas.8 Merece destaque o monumental trabalho de Donald Pierson (1972, 3 volumes), que coordenou uma série de pesquisas de campo sobre “O homem no Vale do rio São Francisco”, realizadas na década de 1950.9 No caso específico da barragem de Sobradinho, há todo um conjunto de documentos oficiais e trabalhos acadêmicos,10 notícias veiculadas na imprensa, publicações da Comissão Pastoral da Terra, do movimento de trabalhadores rurais e Anais da CPI das Enchentes do rio São Francisco após Sobradinho (1979/80).11
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Por fim, cabe ressaltar a importância da leitura de duas grandes obras de referência, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa (1956), e Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), sem as quais o mundo do sertão perderia em riqueza e encanto. Durante toda a pesquisa, contei com o privilégio de trabalhar numa área bem documentada com estudos de qualidade, produzidos a partir de um quadro teórico diferente do meu, mas com um nível de detalhamento muito grande. Apresentada ao longo deste livro, a reconstituição do modo de vida tradicional dos camponeses ribeirinhos baseiase na memória oral (via trabalho de campo) e nas fontes bibliográficas. Os dados convergentes são devidamente evidenciados, seja para relativizar o alcance de alguma proposição, seja para demonstrar sua abrangência – quando não se restringe ao povoado de Itapera, onde centrei minha pesquisa. São os dados bibliográficos, junto com os dados obtidos em outros povoados da borda do lago, percorrendo a área rural, e nas novas sedes municipais de Remanso e Sento Sé, que permitem a generalização da análise, realizada a partir de um estudo aprofundado em Itapera.
A pesquisa e seus dados Como o desaparecimento da base física de uma organização social incide sobre os conceitos de tempo e espaço que lhe são solidários? Foi esta questão mais geral, elaborada em meu projeto de Mestrado12 (Martins Costa, 1985a), que conduziu minha investigação na área da barragem de Sobradinho. Quando lá cheguei, já dispunha de uma visão do problema, construído a partir dos dados da bibliografia: os camponeses que tradicionalmente habitavam as ilhas e margens do rio São Francisco praticavam uma agricultura de vazante, vinculada ao seu regime de águas. As principais atividades sociais articulavam-se ao ritmo do rio, a respeito do qual possuíam um saber acumulado há gerações. Com a formação do lago, em troca das “roças de lameiro” (terras aluvionais), receberam terras na caatinga, que dependem de irrigação ou de chuvas (sempre incertas) para produzir. E o ritmo do rio, seu principal parâmetro de percepção social, havia sido completamente alterado. Somente através de pesquisa aprofundada em algum povoado da borda do lago eu teria condições de comparar o modo de vida camponês tradicional, anterior à barragem, com o modo de vida no novo habitat. Uma retirada insólita
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A análise do calendário de trabalhos e festas, articulada à análise da organização do espaço, permitiria avaliar em que medida os ritmos temporais e espaciais haviam sido rompidos, afetando as concepções de tempo e espaço. A escolha de Itapera como o povoado que melhor se adequava aos objetivos de minha pesquisa levou em consideração os seguintes aspectos: (1) O novo povoado reproduz, em termos demográficos, quase que integralmente a Itapera velha da beira do rio: não houve dispersão de seus moradores, nem junção de mais de um lugar, como em outros casos registrados. Em 1978, 151 das 165 famílias cadastradas pela CHESF na Itapera velha haviam se mudado para a Itapera nova. Com a manutenção do perfil do grupo, os camponeses teriam melhores condições de reproduzir o antigo modo de vida, e a desorganização/reorganização dos ritmos espaciais e temporais que orquestravam sua vida social poderia ser melhor dimensionada.13 (2) Na velha Itapera, plantavam nas ilhas e margens do São Francisco, com “roças de chuva” e “de vazante”, seguindo um calendário agrícola e de festas articulado aos ritmos do rio.14 (3) Localizada na margem esquerda do rio, a velha cidade de Remanso era o centro urbano de referência dos camponeses de Itapera (na outra margem, 18 km rio abaixo), que lá faziam feira e vendiam os produtos da roça, participavam de festas religiosas, consultavam médicos, visitavam amigos e compadres (Mapa VII, p. 258). Com a sede do próprio município, a cidade de Sento Sé, localizada na mesma margem direita, mas bem mais distante, cerca de 100 km rio abaixo, os contatos eram esporádicos (Barros, 1983). Esta situação foi totalmente invertida com a barragem: a nova Remanso foi afastada, distando agora cerca de quatro horas de barco, numa travessia perigosa que exige embarcações maiores, devido às altas ondas do lago; a nova Sento Sé, ao contrário, localizada quase ao lado da nova Itapera (apenas 6 km de distância), tornou-se o novo referencial urbano, configurando uma situação privilegiada para qualquer estudo de reorientação espacial. Quando cheguei na região do lago de Sobradinho, além de Itapera, havia selecionado os povoados de Riacho dos Paes e Aldeia-PascoalLimoeiro como locais possíveis para a minha pesquisa de campo, porque apresentavam as mesmas características evidenciadas acima.15 A escolha final só foi possível depois de um survey pela borda do lago, realizado em junho de 1985, ao lado de Lygia Sigaud e Ana Maria Daou.16
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A CHESF havia reassentado precariamente os camponeses em terras secas da caatinga, deixando-os sem condições de produzir. Cerca de quatro anos depois desta atuação desastrosa do Estado na área, houve uma segunda intervenção, visando “reestruturar o processo produtivo na borda do lago”, através da pesca e da agricultura irrigada: o Projeto Sobradinho (1982), que reunia técnicos da Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia (SEPLANTEC) e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia (EMATERBA), trabalhando dentro de uma filosofia de “planejamento participativo” (Machado, 1987). Além de incentivar a criação de Associações de Moradores nos núcleos rurais da CHESF, realizaram “obras comunitárias” extremamente necessárias, como postos médicos e sistemas de abastecimento de água, com verbas a fundo perdido do Banco Mundial. O survey pela borda do lago nos forneceu um panorama geral dos novos povoados e cidades. Inicialmente, em Juazeiro, conversamos com o bispo diocesano Dom José Rodrigues, e com Seu João, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) e antigo morador do povoado ribeirinho de Correnteza, que nos descreveram a situação precária dos núcleos de reassentamento na borda do lago. Entrevistamos técnicos da SEPLANTEC e da EMATERBA (em Sento Sé); membros da diretoria do STR, agentes da Comissão Pastoral da Terra e da Pesca, e mais alguns técnicos da SEPLANTEC (em Remanso); funcionários do Banco do Brasil (responsável pelo crédito rural, para a compra de motores de irrigação e insumos necessários ao cultivo dos lotes agrícolas), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria(INCRA) e do Instituto de Terras da Bahia, responsáveis pela regularização fundiária na borda do lago (titulação dos lotes distribuídos pela CHESF); e os prefeitos de Remanso e Sento Sé. Na margem esquerda do lago, conhecemos os novos povoados de Bem-Bom, Barra da Cruz e Pau-a-Pique (município de Casa Nova), Iguarapé e Pimenteira (Remanso); na margem direita, Algodões, Brejo de Dentro, Brejo de Fora, Piçarrão, Piri, Bazuá, Quixaba, Riacho dos Paes e Itapera, todos em Sento Sé (Mapa VI, p. 254-56). De cada um, disponho de dados de entrevistas com camponeses, membros da diretoria das Associações de Moradores, donos de algum estabelecimento comercial (venda ou bar), beatas, etc. Em geral, várias pessoas acabavam participando das entrevistas, atraídas pela oportunidade de falar com gente de fora para reclamar dos prejuízos causados pela barragem. Uma retirada insólita
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Eram recorrentes os relatos da “vida de antes, na beira do rio”, sempre descrita como muito melhor. (4) Em Itapera, por indicação de uma técnica da SEPLANTEC em Sento Sé, nosso primeiro contato foi com Mano (Domingos Moreira dos Santos) presidente da Associação de Moradores, que nos recebeu em sua casa. Conversamos longamente sobre as novas condições de vida depois da barragem, diante de um público bastante animado de amigos, vizinhos e curiosos, que não se limitava apenas a escutar. Fiquei particularmente interessada pelo relato das grandes enchentes do rio São Francisco, que inundavam os povoados ribeirinhos: a Itapera velha inteira era obrigada a se mudar para um local mais alto, bem afastado da beira do rio (cerca de 6 km), onde permaneciam até as águas recuarem, o que podia durar até quatro meses, dependendo do tamanho da cheia. Com a formação do lago, este local seguro virou uma ilha, situada não mais atrás do povoado, mas bem na sua frente. Localizada em plena “área de caatinga”, a nova Itapera dista cerca de 18 km da antiga beira do rio. As quatro características levantadas – manutenção do perfil anterior; calendário agrícola e de festas articulado ao ritmo do rio; mudança do centro de referência urbano (de Remanso para Sento Sé); nas grandes enchentes que inundavam o povoado, deslocamentos provisórios para um local seguro, na caatinga – tornavam Itapera um locus privilegiado para a realização de minha pesquisa. Sua proximidade com a sede do município, a nova Sento Sé, que dispõe de uma série de serviços (hotel, restaurantes, lojas, supermercados, agências estatais, etc.) também influenciou na escolha. Um fator decisivo foi a hospitalidade de Mano e Diana (Ana Francisco dos Santos), sua esposa, a acolhida gentil de seus familiares e vizinhos, e o aspecto geral do povoado.
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Principais interlocutores “Vóismecê, Senhor Jayme, O Senhor e Dona Ana, Uns aboio ’cês vai gravar. Quando chegar no rio grande, Do sertão ’cês vão lembrar. Eeeê-hêeê! boi, ó boi, eeeê boi, hêeê! Uuuh boi, hôoô boi, ô boi, oooô.” Aboio do vaqueiro Nelito Meu primeiro trabalho de campo transcorreu no tempo da seca, nos meses de junho, julho e agosto de 1985; o segundo, um ano e meio depois, no tempo das chuvas, em fevereiro de 1987. No início da pesquisa, fiquei hospedada em Sento Sé, aguardando uma oportunidade para permanecer em Itapera, para onde me dirigia todos os dias. Foi somente com a chegada de Jayme, meu marido, que Mano e Diana gentilmente se ofereceram para nos hospedar. Em sociedades onde a divisão de tarefas por gênero é fortemente marcada, uma mulher desacompanhada enfrenta uma série de dificuldades para ser aceita pelo grupo: seu lugar é em casa, e não andando sozinha, solta pelo mundo (Meyer, 1979: 17). Acompanhada de meu marido, ficou bem mais fácil ser aceita no povoado. Jayme tinha acesso às atividades estritamente masculinas, e pôde reunir dados preciosos, que estavam fora do meu alcance. Também antropólogo, participou ativamente da pesquisa, numa interlocução extremamente criativa. O fato de eu estar grávida de cinco meses facilitou meu entrosamento com as mulheres, principalmente com Diana (29 anos), que tinha quase a minha idade (26 anos) e três filhos pequenos (meninos). Sempre que possível, eu participava das atividades femininas cotidianas, como apanhar lenha no mato ou tomar banho no lago à tarde, depois de lavar roupas, louças e panelas. A relação com os donos da casa foi sempre muito agradável e divertida. À noite, ficávamos conversando e rindo à vontade, jogando dominó com os vizinhos (irmãos e pais de Diana). Eles vinham nos visitar quase todos os dias, transformando as noitadas em verdadeiros eventos sociais, com muitas estórias e cantorias. Mano e Diana não pareciam em nada incomodados com nossa invasão, assistindo, de bom grado, sua casa tornar-se um centro de sociabilidade da Família. Uma retirada insólita
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Como veremos no Capítulo III, a unidade social pertinente nesta região do Médio São Francisco é a Família: a articulação de vários grupos domésticos, ligados por laços de sangue e afinidade, que possuem interesses e objetivos comuns, liderados por um chefe. Em Itapera, trabalhei basicamente com a Família de Seu Domingos Francisco dos Santos (casado com Dona Isaura, de 68 anos): fiquei hospedada na casa de uma de suas filhas (Diana), entrevistei cinco de seus nove filhos (Diana, Nelito, Chicada, Nely e Marisa), e dois de seus genros (Mano e João Augusto). Com exceção de Nelito (casado com Toinha) e João Augusto (casado com Nely) os demais moram na mesma rua de Itapera, em casas vizinhas. Via de regra, os camponeses de Itapera apenas indicavam chefes de Família para serem entrevistados, como Seu Domingos (71 anos), Seu Manoel Melquides (64 anos), Seu Brás (60 anos) e Seu João Grande (65 anos). Com mais de 50 anos, filhos, netos e bisnetos, eram considerados as pessoas mais autorizadas para falar dos tempos do velho rio, em contraste com a vida no novo lugar. À exceção de Seu Domingos, os demais eram “maianos velhos”: lideravam grupos de pesca, de 15 a 20 homens com uma rede de arrasto, nas maiores lagoas da “área da vazante” do rio, hoje submersas. Como veremos no Capítulo III, os acampamentos na beira das lagoas (as “rancharias”) eram momentos culminantes de sociabilidade, onde intensificavam-se as relações entre as diferentes Famílias de Itapera. Seus chefes ocupam posições de destaque, são respeitados por todos e sabem exercer sua autoridade. Bem articulados, ricos e abrangentes, seus relatos serão muitas vezes aqui evocados. O vaqueiro Nelito Francisco da Silva (44 anos) e Mano (35 anos), meu anfitrião e presidente da Associação de Moradores, também merecem destaque. Como veremos no Capítulo II, os vaqueiros eram as pessoas mais autorizadas para falar da caatinga ou para ali entrar. Na Itapera velha, percorriam constantemente a região em busca de rês desgarrada, descobrindo lugares desconhecidos de todos. Apenas eles se atreviam a entrar na “área da caatinga”, que se estendia sem limites por detrás do povoado, bem depois da “área da vazante” do rio. Como já foi dito, é em plena caatinga que se encontra hoje a nova Itapera, na borda do lago, num local que Nelito (ao contrário dos demais) conhecia muito bem. Além de vaqueiro, poeta: numa sociedade desprovida de escrita, Nelito ocupa também o lugar de “especialista da memória” (Le Goff, 1984): é um exímio contador de estórias e “tirador” de aboio, o canto característico dos vaqueiros do sertão.17 Assim como os chefes de Família
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asseguram a coesão dos grupos, ele cumpre um papel importante na sua manutenção. Nas duas vezes que estive em Itapera, a Família de Seu Domingos se reunia à noite na casa de Mano e Diana, para juntos ouvirmos Nelito contar estórias de vaqueiros, bichos e jagunços, entremeadas com suas “tiradas” de aboios, que compõe e canta.18 Ele será muitas vezes evocado para falar da caatinga e da “enchente que o rio encheu pela barragem”. Sempre curioso e muito ativo, Mano é um dos poucos que dominam a escrita, demonstrando forte interesse pelo mundo dos livros. Estava sempre às voltas com os documentos da Associação, que carregava numa pasta, fazendo contas, lendo cartas e ofícios. Já havia saído de Itapera, quando foi morar em São Paulo, logo após a formação do lago. Trabalhou cinco anos numa fábrica, sempre enviando dinheiro para a esposa, que havia permanecido na Itapera nova com os filhos, sob a proteção da Família, para construir a casa e cercar o lote agrícola que haviam recebido da CHESF. Como “representante de Itapera”, Mano conhecia muito bem a dinâmica do povoado, os problemas enfrentados por todos para garantir a subsistência e as estratégias adotadas. Ninguém melhor nem mais interessado do que ele para desenhar o mapa do antigo território de Itapera, por ele denominado de “desenho velho”, com todas as ilhas e lagoas, roças e caminhos que desapareceram para sempre, engolidos pelas águas da barragem (Mapa II, p. 238 e interior da capa). Ninguém mais capacitado para fazer um desenho minucioso do antigo povoado, lembrando o nome de cada morador, situando casas e ruas, becos e barrancos, a igreja, os currais e as casas de farinha (Mapa I, p. 236). Mano é figura central no Capítulo II: é a partir de seu mapa que descrevo o território e as formas tradicionais de apropriação do espaço dos camponeses de Itapera. Chefes de Famílias, maianos, Nelito, Mano e vários outros moradores de Itapera, homens e mulheres, jovens e velhos. Procurei entrevistar camponeses que já tivessem constituído família na Itapera velha, pois assim teriam melhores condições de avaliar as mudanças no modo de vida tradicional. Nada posso dizer, portanto, acerca da geração mais nova, que estava iniciando a vida na Itapera nova, às voltas com casamento, obtenção de casa e terra de trabalho. Além deles, entrevistei também um velho comerciante do rio São Francisco, que comprava e vendia nos povoados ribeirinhos, entre Pirapora e Juazeiro; um velho barqueiro, que costumava levar o padre de ReUma retirada insólita
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manso para fazer a “desobriga” mensal (realizar casamentos e batizados, rezar missa e arrancar dentes), num circuito de localidades que incluía Itapera; antigos “fiscais” de Remanso e de Sento Sé (funcionários da Prefeitura que arrendavam as terras das ilhas para os camponeses); um velho fazendeiro de Remanso, dono de uma grande fazenda de gado na beira do rio, que desapareceu sob as águas; um atual pescador do lago de Sobradinho, membro da Colônia de Pesca de Sento Sé; um pequeno comerciante da Itapera nova; o presidente do STR de Juazeiro e de Remanso; membros da diretoria da Associação de Moradores de Itapera (um deles candidato à Presidência da chapa de oposição do STR de Sento Sé); dentre outros. As entrevistas eram realizadas com o chefe do grupo doméstico, geralmente acompanhado da esposa, que participava ativamente da conversa, além de algum vizinho ou amigo que estivesse ali presente ou fosse atraído pela situação, o que era muito comum.
Poder de Estado “Vai ter outr’arretirada? Eu não quero arretirar de novo!” Meu primeiro dia em Itapera incidiu sobre os rumos da pesquisa. Durante uma caminhada pelas ruas do povoado, ao lado de Jayme e Diana, nossa anfitriã, fomos interpelados por uma velha senhora, que repetia sem parar: “Vai ter outr’arretirada? Eu não quero arretirar de novo!”. Fiquei confusa, sem entender direito o que ela estava querendo dizer, e com a sensação desagradável de que me confundiam com outra pessoa. Rapidamente me apresentei, procurando acalmá-la com explicações sobre minha pesquisa, mas ela permaneceu irredutível em sua certeza, e foi nos seguindo, sempre um pouco mais atrás. Alerta e desconfiada, acompanhou todo o nosso percurso, ouvindo nossas conversas, atenta a tudo o que fazíamos. No final, quando tomamos o rumo de casa, ela ainda persistia firme, repetindo que “não vou sair daqui, de jeito nenhum!”. “A velha senhora que nos persegue tão aflita certamente pensa que somos da CHESF!” Esta me parecia a única explicação viável para o seu comportamento tão reativo. Durante o survey pela borda do lago, sempre nos deparamos com uma insatisfação muito grande com a CHESF e
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seus técnicos, pelo valor das indenizações e o próprio modo como ocorreu a mudança para os novos locais de moradia.19 Porém, transcorridos oito anos desde a formação do lago, esperava que a situação já estivesse mais calma ou contornada. Sempre que chegávamos em algum povoado, a conduta era procurar primeiro alguma autoridade local para explicitar os objetivos da pesquisa e os motivos de estarmos ali. Em Barra da Cruz, no entanto, onde não procedemos desta forma, acabamos provocando um alvoroço. Assim que saímos do carro, fomos rodeadas por um grupo de moradores, que foi aumentando progressivamente. No final, já era quase o lugar inteiro reunido, fazendo perguntas e exigindo respostas, desconfiados e agressivos, querendo saber por que estávamos ali, reclamando contra a CHESF sem cessar. Em todos os novos povoados a tensão com a CHESF era visível, independentemente de estarmos ou não acompanhados de alguém do lugar. Mesmo em Itapera, a companhia de Diana, esposa do presidente da Associação de Moradores, não evitou nosso constrangimento diante da velha senhora. Só mais tarde percebi que também a CHESF procurava as autoridades locais em primeiro lugar, e que havia muitas mulheres em suas equipes de campo, cujo comportamento destoava do papel que os camponeses lhes atribuíam: andavam “sozinhas pelo mundo” ou no meio de homens. Eu estava, portanto, perfeitamente encaixada no lugar de técnica da CHESF. O encontro do primeiro dia em Itapera começava a ficar mais claro: pelo menos já sabia quem eu era. Só não entendia ainda o significado daquelas palavras: “outr’arretirada”? Passados oito anos, eles temiam ser novamente expulsos de seus locais de moradia e trabalho? Esperavam qualquer coisa da CHESF? Um lago maior e mais abrangente? O mundo, pouco a pouco, engolido pelas águas... Efeitos da profecia do conselheiro de Canudos? O tom agressivo da velha senhora encobria um temor muito grande: a impotência diante de algo tão poderoso e destrutivo como a CHESF. Posição incômoda a minha: de que adiantava explicar que eu era uma professora do Rio de Janeiro interessada em conhecê-los, em saber como viviam e o que pensavam... Só para escrever um livro? Por outro lado, também era bem possível que estivessem me associando à SEPLANTEC e sua equipe técnica, sempre em contato com a Associação de Moradores de Itapera (AMI), principalmente com Mano, seu presidente, para avaliar os projetos em andamento. Desde sua formação, em 1982, a Associação vinha realizando obras importantes no Uma retirada insólita
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povoado, como o sistema de abastecimento de água e a instalação de um posto médico, além da construção de sua própria sede. Em 1987, estava fiscalizando a construção de um imenso reservatório para irrigar 1.040 hectares de terra, projeto pelo qual já lutava em junho de 1985. Quando escolhi Itapera para realizar minha pesquisa de campo, desconhecia seu grau de envolvimento com a SEPLANTEC, bem como os projetos já realizados ou em andamento – situação que não ocorria na grande maioria dos novos povoados da borda do lago. Foi ao longo da pesquisa que descobri Itapera como um povoado exemplar, conhecido por seu nível de politização (Machado, 1987). A AMI tem participado ativamente na vida política do município, junto à oposição sindical (derrotados em 1985), e na campanha por candidatos do PMDB, nas duas últimas eleições (ambas com sucesso). Em 1987, trabalhava na consolidação da recém-fundada União das Associações de Moradores do município de Sento Sé, da qual Mano era o vice-presidente. Antes de nos hospedarmos em sua casa, muitas vezes pegamos carona com os carros da SEPLANTEC para chegar no povoado, pois ainda não havia nenhum transporte público entre Sento Sé e Itapera. O que só reforçava minha identificação como seus técnicos, além de haver muitas mulheres em seus quadros, e de estarmos sempre conversando com Mano, presidente da AMI. O que ele bem sabia não ser verdade: no final do primeiro campo em Itapera, Mano até me deu uma carta de apresentação para o “chefe” da SEPLANTEC em Salvador. Pelo menos junto à Família de Seu Domingos, filhos e genros, especialmente Diana e Mano, minha imagem não era tão negativa quanto a da CHESF, nem tão “interessante” quanto a da SEPLANTEC, que liberava recursos para a realização de projetos. Certa vez, alguém me apresentou como “a professora-repórter”, identidade que muito me agradou. Quanto ao livro que eu dizia estar escrevendo sobre eles, ninguém se interessou. Um ano e meio depois, quando voltei para fazer o segundo campo em Itapera (1987), não houve quem perguntasse por meus escritos, nem pelos resultados da pesquisa realizada antes (1985), mesmo com todas as entrevistas gravadas, os desenhos, fotos e mil e um registros em meus cadernos de campo. Apenas me receberam com muita festa e simpatia (meu gravador não parecia incomodá-los), e adoraram as fotos que levei de presente, sobretudo aquelas em que eles apareciam com algumas vacas ao fundo, prontamente reconhecidas pelo nome, entre risos de admiração e saudade.
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Quase todas as entrevistas começavam com uma série de reclamações contra a CHESF: o montante das indenizações; a perda dos rebanhos durante a mudança para a Itapera nova; a péssima qualidade da terra dos lotes agrícolas, dependentes de irrigação e financiamento bancário. Este parece ser o modo habitual de se apresentarem às pessoas de fora, como um preâmbulo. E também sua forma de testar o interlocutor, que poderia ser mais um técnico da CHESF ou simplesmente alguém que levaria adiante suas denúncias e demandas. Todos os antropólogos falam das dificuldades enfrentadas na pesquisa de campo, nos modos variados de entrar na área e interagir com os nativos. Quando chega a nossa vez, parece que é mais difícil. Sobretudo quando nos deparamos com um sentimento generalizado de que todos os de fora têm uma dívida muito grande com eles: roubaram o seu mundo. Fizeram desaparecer sob as águas tudo que tinham, faziam, gostavam. Foram forçados a deixar suas casas para morar em locais que rejeitavam, receber indenizações que recusavam, terras que não queriam. Acabaram com o rio, suas ilhas e vazantes, os locais mais apreciados, aprazíveis ou com forte carga afetiva. Afundaram igrejas e cemitérios. Por mais que tentasse me livrar do estigma da CHESF, volta e meia era jogada em tal posição. Minha simples presença no povoado, fazendo perguntas ou tirando fotos, era o sinal mais evidente de que eu representava aquele poder destrutivo e aquele mundo. Minha primeira reação? Dirigir a pesquisa cada vez mais rumo ao passado, para reconstituir aquele modo de vida tradicional, de antes da barragem. Em longas conversas sobre o velho povoado, procurava driblar, de alguma forma, o momento presente, que se mostrava doloroso e revoltante demais para eles, e para mim também. Falando dos tempos do rio, ficavam mais à vontade, ainda que melancólicos, extremamente nostálgicos. Mas o presente, inescapável, permanecia à espreita, sempre a postos, e as reclamações contra a CHESF reiniciavam cada nova entrevista. Falar do passado parecia a melhor rota de escape, mas de modo algum resolvia toda aquela tensão. O trabalho de campo revela muitas e rápidas surpresas. Passados alguns dias, fui entrevistar um “maiano velho”, Seu Manoel, sobre as pescarias com rede de arrasto na lagoa do Sem-Sem, que não mais existe. E quem estava presente, além de sua esposa? Uma das irmãs dela: a velha senhora desconfiada, do primeiro dia em Itapera. Depois de muitas perguntas e respostas, a conversa já durava um bom tempo, Uma retirada insólita
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quando, de súbito, ela dispara a falar de mim para a irmã (Dona Santa) e o cunhado: ––– Velha senhora: Olha que essa mulher tá parecendo com a Catarina! A Catarina pegou aqui um bocado de ilustração, quando foi lá. E eles pegou e botou nós pr’aqui! Não volto mais pra lá, não! ––– Dona Santa: E ela esmiuçava a gente tanta coisa... Até tirar até retrato da gente com lata d’água na cabeça e tudo. E depois nós viemos pra cá... ––– Eu: Ela que fez isso? ––– Dona Santa: Mas ela já andava já no assunto daquilo, e nós não sabia. ––– Seu Manoel: Ela tirou fotografia e mandou uma pra mim, de lá. ––– Eu: Olhe, eu até já tirei foto da Diana, mas... ––– Velha senhora: Olha aí, viu? Olha, eu tô com medo, ó... Catarina é Kathrein Tallowitz, socióloga alemã que fez pesquisa em Itapera alguns meses antes do enchimento do lago e da inundação do povoado, entre julho e setembro de 1977.20 Li seu trabalho antes de ir a campo, quando reunia informações sobre a área, e minha opção por Itapera levou em conta a oportunidade de poder comparar meus dados com os dela. Só não me ocorreu, na hora, o que depois ficaria óbvio: nossa identificação. Quando lá cheguei, eles já conheciam a figura de um pesquisador, atribuindo-lhe um lugar, que depois seria ocupado por mim. Assim como eu e antes de mim, Catarina havia morado com eles, participando de sua vida cotidiana: tomava banho de rio com as mulheres e crianças, conversava, ouvia estórias, tirava fotos de qualquer detalhe trivial e, acima de tudo, fazia uso da escrita. Além disso, sua estadia em Itapera coincidiu com a chegada das equipes da CHESF. Assim como Catarina em sua pesquisa, também os técnicos perguntavam muito. Mas não se hospedavam na casa de ninguém, nem estavam interessados em aprender a tecer redes ou conhecer seu dia a dia. Apenas faziam levantamentos socioeconômicos para avaliar o “nível de vida da população rural”, no cálculo das indenizações. Passavam de casa em casa cadastrando famílias, inventariando bens. Se Catarina não era técnica da CHESF, no entanto, sua presença em Itapera foi tomada como um mau presságio, prenúncio das mudanças violentas desencadeadas logo depois: “já andava já no assunto daquilo”, e ninguém ainda sabia.
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E ali estava eu: Catarina de volta, “assuntando tudo”, tomando o mundo por desenho e escrito. A velha senhora tinha razão em estar apreensiva: minha presença seria o sinal de uma “outr’arretirada”? Afinal, para que tantas perguntas? Um livro? Já foi dito que primeiro chegam os colonizadores, levando tudo que veem. Depois, é a vez dos antropólogos, levando tudo que resta: sua fala, sua imagem, seu espírito. Minha identificação com a CHESF, com o fantasma de seu poder, tinha bom fundamento. Se estava inexoravelmente vinculada a uma nova “arretirada”, pelo menos não foi um deslocamento efetivo que promovi, com todas as perdas nele implicadas. Melhor pensar em termos de um regresso ao passado pela via das lembranças. Em nossas reuniões noturnas na casa de Diana e Mano, era visível o entusiasmo de todos em descrever o antigo lugar, com as muitas estórias de lá. A feitura de um mapa do antigo território e as longas conversas por ele suscitadas talvez sejam a expressão mais acabada desta viagem imaginária a um tempo e espaço que não mais existem. Despertar a memória, reavivar lembranças: instigando-os a falar, consolidamos quadros e imagens daquele mundo perdido, que regressam agora, anos mais tarde, sob a forma de um livro. É assim que ganha sentido o interesse que sempre demonstraram em ouvir as próprias entrevistas imediatamente após o seu término. Faziam questão de escutar o que haviam acabado de dizer. Mas não escutavam em silêncio: transformavam a escuta em diálogo. Falavam com eles mesmos, concordando ou discordando das próprias afirmações, balançando a cabeça em sinal de aprovação ou repúdio. Quando o tema parecia muito importante, repetiam o que haviam acabado de ouvir; quando alguma coisa não parecia clara, explicavam de novo, redobrando a própria fala, sobre a fita em andamento. E sempre, sem exceção, encerravam com a mesma sentença: – “Era assim. É.” A CHESF trouxe o espelho d’água; eu, o espelho dos homens.
A retirada “Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” Grande sertão: veredas, p. 30. Uma retirada insólita
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Os dois encontros com a velha senhora deixaram sua marca nos rumos da pesquisa. Durante aquela mesma conversa em que me viram “parecendo a Catarina”, descobri qual o sentido da palavra “retirada” (ou “arretirada”): associada às “cheias altas”, designa os deslocamentos provisórios em direção à caatinga, sempre que o rio inundava o povoado. Em tais ocasiões, acampavam nos locais de “retiro”, aguardando o recuo das águas. Só então podiam voltar, e sempre voltavam, ancorados num conhecimento preciso do rio em seu ritmo habitual. Daí a pergunta insistente da velha senhora: “Vai ter outr’arretirada?”. Achei curioso o emprego do mesmo termo para designar situações tão diversas de um ponto de vista técnico: uma enchente natural; um rio represado. Naquele momento, ainda não tinha condições de perceber que a “retirada” era a chave de acesso para a concepção camponesa dos eventos da barragem. Ainda não possuía a visão de conjunto, que só alcançaria depois, com a análise meticulosa do material reunido em campo. A “retirada” ficou guardada na memória como sinal de alerta, ganhando melhores contornos a cada nova entrevista, a cada novo contexto em que surgia. Um ano e meio depois, quando voltei a Itapera, a retirada já se tornara um problema teórico, passando a dar o tom da investigação: estava em busca de seu significado para os camponeses. O tema central das entrevistas passou a ser o rio e suas enchentes, a caatinga e os locais de retiro. O vaqueiro Nelito foi o meu principal interlocutor nesse segundo campo, com suas inesquecíveis estórias sobre a caatinga, lugar ermo e sem fim, conhecido só como um limite, o qual, por força da barragem, transformara-se em seu novo local de moradia. Definitivo? Nem todos pareciam acreditar numa cheia irreversível. O que se lerá a seguir é uma descrição de Sobradinho, a partir da visão dos camponeses de Itapera. No Capítulo I, “O modelo da retirada”, analiso o significado das categorias “retirada” e “enchente alta” em seu contexto tradicional, anterior à intervenção do Estado na área, e seus usos num contexto inusitado, marcado pelo advento da barragem. O Capítulo IV, “Uma retirada insólita: ‘a enchente que o rio encheu pela barragem’”, está centrado nos incidentes produzidos pelo descompasso cultural entre camponeses e equipes técnicas encarregadas de promover o “esvaziamento da área de inundação”. Veremos que, na “enchente da barragem”, eles agiram conforme o modelo das retiradas tradicionais. No Capítulo I, o foco é apreender este modelo; no Capítulo IV, sua eficácia e incidência sobre o rumo dos acontecimentos. Os capítulos inter-
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mediários descrevem o modo de vida tradicional pelo viés do espaço (Capítulo II, “As enchentes altas como marcos espaciais: área da vazante e área da caatinga”) e do tempo (Capítulo III, “As enchentes como marcos temporais: ciclo anual e ciclo excepcional”), buscando resgatar a aura de um mundo denso e estranho.
Uma retirada insólita Este trabalho foi originalmente apresentado como Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, em 1989, que recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais (ANPOCS, 1990). O texto foi integralmente revisto, mas sem alteração de conteúdo. A atualidade do tema no Brasil de hoje, que transforma os rios da Amazônia em canteiro de obras de barragens e insiste em construir a Usina de Belo Monte, no rio Xingu, persistindo num modelo energético pautado em projetos hidrelétricos que destroem modos de vida tradicionais e provocam danos irreversíveis ao meio ambiente, faz com que este trabalho seja retomado agora, cerca de vinte anos depois de escrito. Este livro não seria publicado sem o indispensável apoio de Aurélio Vianna Jr., que sempre me incentivou a divulgar os resultados desta pesquisa. A ele agradeço, e também a muitas outras pessoas, sem as quais não haveria livro algum. Inicialmente, aos camponeses de Itapera, especialmente ao povo de Seu Domingos, a Nelito e aos queridos Mano e Diana, que nos acolheram com tanto carinho e generosidade, ao lado de seus filhos Cleiton, Cleciano e Juninho. Não poderia deixar de mencionar Dona Isaura, esposa de Seu Domingos, e seus filhos Maria, Marisa (Arica) e seu marido Manoel, Neonélia e seu marido Silvino, Chicada, Nely e seu marido João Augusto, Joãozinho e sua esposa Sônia; Toinha, esposa de Nelito, e suas filhas Isabel e Isaura; Manoel Melquides (tio Parrola) e Dona Santa; Brás, Clezinha e Bernaldir; Seu João Grande e Seu Canuto; Firmo, Ananias, Urbano, Sinval, Zé Amaro, Silva, Dona Helena; Alessandra, esposa de Clécio; Seu Afro e Dona Eunice (de Mundo Novo); Seu Higino, Seu Hemitério, Seu Esmeraldo, Sinhozinho e Seu Everaldo (de Remanso); Seu João (de Juazeiro); e Dona Eolina, a velha senhora de Itapera. Uma retirada insólita
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A Lygia Sigaud (in memoriam), minha orientadora de Mestrado, pelo incentivo intelectual e oportunidade de realizar esta pesquisa. Aos membros de minha banca de Mestrado, Beatriz Heredia e Otávio Velho, pela leitura cuidadosa e comentários sugestivos. A Ana Maria Daou, companheira de pesquisas em Sobradinho. A todas as pessoas e instituições que forneceram informações valiosas, com destaque para Henrique Barros (do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais), Diogo Souto (do Centro de Estudos de Recursos Minerais), Margarida Dantas e Jaime Pereira (da CHESF), além dos técnicos de campo da EMATERBA, SUCAM e CAR/SEPLANTEC. Às instituições que concederam os recursos necessários à realização de minha pesquisa: CAPES (bolsa de Mestrado), ANPOCS (bolsa para desenvolver meu projeto de Mestrado, em 1985 e 1987), PPGAS/Museu Nacional (bolsa para conclusão da dissertação), Fundação FORD e FINEP (via convênio PPGAS/Museu Nacional) e IDRC (via COPPE/UFRJ). A Zélia Zeiblitz, Eliane Cantarino O’Dwyer e Beatriz Heredia, pelo estímulo inicial ao estudo da Antropologia. Ao PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, seus funcionários (Tânia, Isabel, Cristina e Rita) e professores de meus cursos de Mestrado: Lygia Sigaud, Moacir Palmeira, Afrânio Garcia Jr., Roberto da Matta, Luís Fernando Dias Duarte e Eduardo Viveiros de Castro, que me deu de presente o “Capitão Cook”, do Sahlins. A Henri Acselrad, por toda a gentileza e interesse em publicar este livro em sua coleção. A Laura Rónai, pela amizade (e cafés) e também pelo carinhoso trabalho de revisão. Aos amigos Florencia Grassi e Leandro Lattes, pela editoração primorosa deste livro. A Irene Ernest Dias, excelente revisora. Aos meus colegas e amigos, pelo convívio estimulante e animadas discussões, especialmente Sérgio, Lelo, Vivi, Flor, Marthinha e Jane. A Dona Sylvia e Dr. Jayme, Vanda e Tom queridos. Ao saudoso Boínha (in memoriam), Éda, Thomaz e Luciane. A mana Sylvia e Ledinha, minha mãe e grande incentivadora. A Dora, que aprendeu a andar em Petrolina. A André, que nasceu na véspera da minha defesa. A Jayme Moraes Aranha Fº, marido e parceiro de viagens pelo sertão, com ele os melhores momentos de tudo.
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1. O termo “camponês” designa os pequenos produtores que trabalham em regime de economia familiar. 2. As organizações sindicais de trabalhadores rurais contabilizam cerca de 72 mil pessoas; nos dados oficiais, 11.853 “famílias” foram “atingidas pelo reservatório de Sobradinho e reassentadas pela CHESF”. Deste total, 8.283 “famílias” (70%) permaneceram na borda do lago, 3.851 (46%) nas novas cidades de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado; 4.432 (54%) na área rural: 2.655 (60%) nos novos povoados (“núcleos rurais”) e 1.777 (40%) na caatinga (CHESF, 1980: 19, Anexo I, p. 217). Para uma análise do processo de “esvaziamento” da área de inundação, ver Capítulo IV (p. 167). 3. Em outro trabalho, analisamos a retomada do processo produtivo camponês na borda do lago de Sobradinho (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987: 214-290). 4. Ver http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/ (acessado em maio/2013). A construção de hidrelétricas que inundam extensas áreas e deslocam milhares de pessoas tem sido uma prática recorrente nos chamados “países do terceiro mundo”. Dentre as que atingiram o maior número de pessoas (Bartolomé, 1985: 9-10), só na África, destacam-se as represas de Assuã (no rio Nilo, entre Egito e Sudão: 100 mil pessoas), Kariba (no Zambezi, entre Zâmbia e Rodésia: 55 mil), Volta (em Gana: 87 mil) e Kainji (na Nigéria: 42 mil); na Índia, Damovar (100 mil); na Tailândia, Ubolratana (30 mil); na Turquia, Keban (30 mil); no México, Papaloapan II e Alemã (37 mil), Nazas (31.800) e Pujal-Coy Fases I e II (34.200). 5. Avaliações negativas de Sobradinho foram divulgadas em jornais de Salvador (A Tarde, 3, 5 e 14/2/77; Jornal da Bahia, 17/3/77) e do Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, 27/1/1985); em documentos da Diocese de Juazeiro (CPT, 1979) e dos Encontros do Vale do São Francisco, promovidos pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG, 1977-84), com representantes do Polo Sindical de Juazeiro, criado em 1977 para congregar os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) dos municípios da borda do lago. Depois da barragem, duas grandes enchentes sucessivas (1979 e 1980) causaram grandes prejuízos aos camponeses recém-reassentados na borda (perda de gado e lavouras). Por solicitação da CONTAG, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Cheias do rio São Francisco após Sobradinho, que contém depoimentos do bispo de Juazeiro, Dom José Rodrigues, e do deputado Elquisson Soares (Congresso Nacional, 1982). Sigaud (1986) analisa as avaliações negativas e positivas (estas por conta apenas da versão oficial) de Sobradinho. 6. Ver Tallowitz, 1979; Sandroni, 1979; Duqué, 1980 e 1984; Barros, 1983 e 1984; Andrade, 1983; Berenguer, 1984; Machado, 1987. 7. Vide os trabalhos de Thompson (1977; 1979) sobre as mudanças nas relações sociais desencadeadas pela revolução industrial; Bourdieu (1963; 1964) e Bourdieu & Sayad (1964) acerca das transformações no modo de vida tradicional dos camponeses argelinos provocadas pela ocupação francesa. Sou muito grata ao professor Eduardo Viveiros de Castro (1988), que discutiu meu projeto de pesquisa em Sobradinho, sugerindo a leitura dos trabalhos de Sahlins (1979; 1981; 1985) sobre os primeiros contatos entre a sociedade havaiana e colonizadores ingleses. 8. Mapas do Instituto Brasileiro de Geografía e Estatística (IBGE), SUCAM, Ministério do Exército e Centro de Estudos de Recursos Minerais; relatos das viagens de Aguiar (1888) e Sampaio (1880); memórias de membros da elite de Pilão Arcado (Lins, 1983) e Juazeiro (Dia-
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mantino, 1959); estudos linguísticos e de folclore (Bergamini, 1976; Trigueiros, 1977; Unger, 1978; Câmara Cascudo, 1985); de música (Souza, 1980) e geografia (Valverde, 1945; Zarur, 1946; Bicalho & Hoefle, 1979); de socioeconomia (Lacerda, 1964; Rocha, 1946; Miranda, 1941). 9. O trecho Médio do rio São Francisco, onde se encontra Sobradinho, é representado pela cidade de Xique-Xique (com o nome fictício de Pesqueira) e o povoado de Marrecas, localizados fora da área de inundação, a montante do reservatório. Minuciosamente descritas por Silva (1961), as condições de vida em tais localidades ribeirinhas servem de contraponto à minha descrição da Itapera velha (hoje submersa), realizada a partir da memória oral. 10. Publicações que podem ser classificados em três grupos (Sigaud, 1987): (1) documentos da CHESF e empresas consultoras contratadas para prever os “impactos” da barragem [CHESF/Hidroservice, 1973a, 1973b; Hidroservice, 1975; CHESF/Asociação Nacional de Crédito e Assistência Rural da Bahía (ANCARBA), 1980; CHESF, 1980]; (2) relatórios de instituições de pesquisa ou de pesquisadores individuais, produzidos por encomenda da CHESF para avaliar o alcance dos “impactos” (SESU, 1979; Barros, 1983); (3) análises acadêmicas sobre a “população deslocada” e os “impactos” da barragem (Tallowitz, 1979; Sandroni, 1979; Duqué, 1980 e 1984; Barros, 1984; Andrade, 1983; Berenguer, 1984; Machado, 1987). 11. Diocese de Juazeiro (CPT, 1979); CONTAG, 1979; Congresso Nacional, 1982. 12. A pesquisa que deu origem a este livro foi desenvolvida dentro de uma investigação bem mais ampla sobre “Efeitos sociais de grandes projetos hidrelétricos”, coordenada por Lygia Sigaud no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional/UFRJ, e vinculada a um esforço interdisciplinar de “Avaliação de aspectos sociais da produção de energia hidrelétrica”, conduzido na área de Energia (COPPE/UFRJ), sob a direção de Luís Pinguelli Rosa. O Projeto aglutinava as pesquisas individuais dos antropólogos Aurélio Vianna Jr. (barragem de Machadinho), Sandra Faillace (Itá), Sonia Magalhães (Tucuruí) e Ana Maria Daou (Sobradinho). Como parte deste grupo, entre 1984-90, trabalhei como assistente de pesquisa de Lygia Sigaud, minha orientadora de Mestrado no PPGAS. Os resultados deste Projeto constam de dois relatórios de atividades, “O social sob controle” (Sigaud, 1989) e “Os camponeses e as grandes barragens” (Sigaud, 1990). Neste último, há um desdobramento de minha Dissertação de Mestrado (Martins Costa, “A família e a reestruturação da vida social na borda do lago de Sobradinho”, p. 11-142), bem como das pesquisas dos demais membros do grupo (Barbosa, “O desencantamento da beira: notas sobre a transferência compulsória provocada pela Usina de Tucuruí”, p. 143-248; Vianna Jr., “Carlos Gomes: luta camponesa e apropriação do espaço por poloneses atingidos pela barragem de Machadinho”, p. 249-364; Faillace, “Os evangélicos de Sarandi: uma análise do caráter étnico religioso do campesinato na área da barragem de Itá”, p. 365-482; Daou, “A ‘solução própria’ em Sobradinho: uma proposta de pesquisa”, p. 483-530). 13. Das 165 “famílias” cadastradas pela CHESF na Itapera velha, 151 foram para a Itapera nova; 6 para a nova cidade de Sento Sé; 3 para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho (PEC-SR), 700 km rio acima; 2 para cidades e povoados a montante ou a jusante do lago; 1 recuou na caatinga; 1 para a nova Remanso; 1 para Emburana (BA). A reconstituição do destino das “famílias desalojadas” foi feita a partir dos dados disponíveis no documento “Controle de População (1978)”, do Departamento de Implantação de Reservatórios da CHESF. Trabalho realizado junto com Ana Maria Daou, na sede da CHESF em Recife, no início da minha primeira viagem para a região de Sobradinho (jun./1985).
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14. Ver Tallowitz (1979), que fez pesquisa de campo em Itapera (jul./set.1977), um pouco antes da formação do lago; e Barros (1983), do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, que coordenou pesquisa (1982) sobre as condições de vida nos núcleos de reassentamento da CHESF, incluindo Itapera. Quando estive em Recife, antes de ir a campo (jun./1985), junto com Ana M. Daou, Barros gentilmente nos franqueou acesso aos seus dados, que nos forneceram uma primeira aproximação, bastante detalhada, dos novos povoados da borda do lago. 15. Vide Mapa VII (p. 258), “Localização dos novos povoados de Aldeia-Pascoal-Limoeiro, Itapera, Riacho dos Paes, Quixaba, Piri e Bazuá”, e Anexo II (p. 219), “Relação dos núcleos rurais implantados pela CHESF (1978)”. 16. Também orientanda de Sigaud, Ana Daou pesquisou em Brejo de Dentro (Sento Sé), povoado mais próximo da barragem e afastado da borda do lago. Políticas de Estado e organização social: a barragem de Sobradinho, sua dissertação, foi defendida no PPGAS em 1988. 17. Para Trigueiros (1977: 27), “Aboiar é tanger ou guiar os bois, cantando de maneira especial [...] É porventura o mais característico dos cantos sertanejos por inimitável e inconfundível. Com palavras ou sem elas, o aboiado é uma toada de grande beleza pela sua plangência e pela emoção que inspira. O vaqueiro o sente profundamente e só ele o sabe entoar. Mas o boi também o entende e se abranda à magia de suas modulações. Vaqueiros há, verdadeiros virtuoses na arte de aboiar. O canto embora pareça monótono na sua arrastada plangência comove e encanta”. Ver, ainda, Câmara Cascudo (1985: 45-50) e Euclides da Cunha (1979: 88). 18. Exímio na arte do aboio, Nelito nos ensinou que o certo é dizer “tirar” um aboio (e não “cantar”). Um de seus clássicos é o “Aboio da mudança” (epígrafe do Capítulo IV). É bem vasto o seu repertório, com aboios que ele mesmo compõe ou que fazem parte do repertório dos vaqueiros, circulando pelo interior do Brasil, inclusive no sertão de João Guimarães Rosa, em Minas Gerais, onde já os escutei, “bôo e rebôo – um taurophtongo; vibrado, ondeado, lengalongo bubúlcito”, com algumas variações. Vale a pena registrá-los: “Deus quando andou no mundo / Deixou tudo separado: / Mato grosso pra zebu, / Mato fino pra veado. / Deixou eu pra tomar cana, / E cantar em festa de gado./ Eeeê-hêeê! boi, ó boi, eeeê boi, hêeê! / Eeeê-hêeê! boi, ó boi, eeeê boi, hêeê!”; ou “A folha da bananeira, / Dizem que ficou madura. / Quem ama mulher casada, / Não tem a vida segura. / Todo dia dá um passo, / Pra cima da sepultura. / Uuuh boi, hôoô boi, ô boi, oooô. / Uuuh boi, hôoô boi, ô boi, oooô.”; e ainda, “A vaca mansa dá leite, / A braba dá se quiser. / A mansa dá pra vender, / A braba nem pro café. / Sem vergonho é o homem / Que não governa a mulher. / Eeeê-hêeê! boi, ó boi, eeeê boi, hêeê! / Uuuh boi, hôoô boi, ô boi, oooô.” 19. Essa insatisfação generalizada com a CHESF também está documentada em Tallowitz, 1979; CONTAG, 1979; CPT, 1979; Congresso Nacional, 1982; Barros, 1983 e 1984. 20. Segundo Dom José Rodrigues (Bispo de Juazeiro), “Entre jul./set. 1977, quando estava em pleno andamento a transferência da população para as novas cidades e novos núcleos, um grupo de 12 estudantes alemães, sob a orientação de Dr. Johannes Augel, do Departamento de Planejamento e Política do Desenvolvimento da Faculdade de Sociologia da Universidade de Bielefeld, fez estágio em diversos povoados novos. [...] K. Tallowitz, uma das estagiárias, publicou, na Alemanha, o resultado de suas observações e estudos num livro de 127 páginas, intitulado A expulsão do povo: a barragem de Sobradinho. Este livro de 127 páginas foi traduzido do alemão especialmente para esta CPI das Cheias. Está aqui.” (Congresso Nacional, 1982: 273).
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O modelo da retirada Capítulo I
Em todos os documentos oficiais sobre a barragem de Sobradinho, o deslocamento compulsório para a borda do lago é descrito como uma “operação de transferência”, “reassentamento”, “relocação”, “mudança” ou “desalojamento” da população. E os “transferidos” são genericamente denominados de “relocados”, “reassentados”, “deslocados” ou “desalojados”. O emprego de tais termos não se restringe a Sobradinho, mas está presente em qualquer documento produzido pelo setor elétrico e empresas consultoras encarregadas de avaliar os chamados “impactos socioeconômicos” de projetos hidrelétricos. Também não fica restrito ao setor, pois a bibliografia sobre barragens incorpora esse jargão oficial. Na verdade, tais termos viraram lugar-comum nos meios oficiais e acadêmicos para designar qualquer deslocamento compulsório promovido e administrado pelo Estado.1 Curiosamente, os camponeses de Sobradinho não descrevem da mesma forma sua “transferência” para a borda do reservatório. Empregam um termo que chama a atenção por ser particular e original: “retirada”. Para um antropólogo, o simples uso de termos tão diferentes para designar uma mesma situação desponta como indício de que há diferentes percepções em jogo: as agências estatais promovendo uma “relocação da população”; os camponeses realizando uma “retirada”. É assim que este termo será aqui entendido: como via de acesso para o ponto de vista de quem vivenciou tal processo.
1. O deslocamento para a borda do lago como uma retirada De um modo geral, os termos “retirada” e “retirar” (ou “arretirar”) são utilizados pelos camponeses para designar a saída do povoado inundado pelas águas represadas, que os forçaram a recuar em direção à caatinga, em busca de locais secos e seguros. Em Itapera e em outros povoados ribeirinhos todos falam em retirar/arretirar (-se) do povoado – “arretirou com medo de morrer afogado” –; retirar os animais da beira do rio – “reUma retirada insólita
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tirava o gado” – ou seus pertences de dentro da casa ameaçada – “retirou os trens”: ––– Seu Esmeraldo: Afundiu tudo. Casa Nova mesmo, quase que morre gente afogada. E aqui também, se não fosse a CHESF, não acudisse com tanto transporte, tinha morrido gente afogada aí nessa beira de rio. Teve uns que, quando arretirou, já tava dentro d’água, com os trens em cima dos paus. [Seu Esmeraldo tem 53 anos. Morava na ilha do Lameirão, em Remanso; com a formação do lago, mudou-se para a nova cidade de Remanso. Grifos meus.] ––– Nelito: A gente tava retirando e às vezes não dava tempo de tirar jumento, e a gente retirava o gado e animal e tudo, e ficasse cinco, seis jumento morto, afogado, animal, essas coisas.2 [Nelito, 44 anos, morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a nova Sento Sé, a 6 km da Itapera nova, onde tem roça e trabalha. Grifos meus.] A retirada é sempre descrita como difícil e trabalhosa, pois é preciso esvaziar as casas rapidamente, salvar o gado ilhado ou preso na lama. Nas entrevistas, todos lamentam a perda dos rebanhos: “eu perdi meu criatório na retirada”. O que significa não ter conseguido resgatar os animais a tempo: morreram afogados ou atolados. O verbo arretirar/retirar é empregado para indicar o movimento de saída, deixando para trás o antigo povoado sob as águas: ––– Eu: Ninguém ficou por aqui, não? ––– Seu Esmeraldo: Ficou muita gente. A maior parte ficou aqui, aqui em Remanso. E aqui nesses encostados, tem muita gente dessas ilhas que mora aí nessa beira de rio, tem casa, tem roça, mora aí. [...] Para o lado de lá, de Sento Sé, é outra quantidade também. Gente daquelas ilhas de lá, muita gente se arretirou para o município de Sento Sé. Tem gente espalhada aí nesse mundo todo. ––– Eu: E esse lugar chamado “Lage”, ainda existe? ––– Seu Afro: A Lage? Tá debaixo d’água. ––– Dona Eunice, esposa de Seu Afro: Ficava quase ali na Quixaba – esse lugar que hoje o povo arretiraram praí. [Seu Afro tem 82 anos. Ele e a esposa moravam em Mundo Novo, município de Sento Sé; com a formação do lago, mudaram-se para a nova Sento Sé. Grifo meu.] “Retirar”/“Arretirar” designa o deslocamento provocado pela inundação dos povoados. Pode ser usado de modo mais genérico, para
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indicar o próprio movimento (“arretirou para Sento Sé”), ou mais específico, para determinar o momento da inundação das casas e o drama da fuga das águas (“na retirada” ou “quando arretirou”). De uso corrente, é utilizado por camponeses de diferentes idades (entre 27 e 82 anos); de ambos os sexos; moradores de povoados bastante diversos, localizados na terra firme/beira do rio (Itapera e Mundo Novo), em ilha (Lameirão) ou no interior de uma fazenda (Boa Sorte, 18 km da beira do rio); e que tiveram diferentes destinos depois da barragem: de povoados para as sedes municipais (de Mundo Novo para a nova Sento Sé; da ilha do Lameirão para a nova Remanso; de Itapera para Juazeiro) ou para os núcleos de reassentamento (de Itapera para a nova Itapera; de Boa Sorte para Pimenteira). Todos foram obrigados a retirar dos antigos locais de moradia. Seu uso generalizado não é excludente, pois muitas vezes utilizam também o verbo “mudar”: “Eu fui o derradeiro que retirei! Retiremo os trens. Eu mudei no dia 17 de dezembro”. O destaque conferido ao termo retirar não se deve, portanto, ao seu monopólio de sentido. Como já foi sugerido, a ênfase baseia-se em dois motivos. Em primeiro lugar, é a sua originalidade que chama a atenção: difere de qualquer um dos termos amplamente utilizados pelas agências que promoveram e administraram o esvaziamento da área de inundação (CHESF, INCRA e ANCARBA), e está totalmente ausente dos trabalhos acadêmicos produzidos sobre a barragem de Sobradinho e suas consequências. Além de ser original, é mais intrigante ainda porque não é um termo novo na região: não foi engendrado neste contexto específico da barragem para designar uma situação de mudança. Ao contrário, é preexistente à intervenção do Estado na área, como atestam seus registros na bibliografia sobre o Vale do rio São Francisco: “Relatam a respeito [da grande enchente de 1949] os moradores de Marrecas, afirmando que, ao se elevarem as águas do São Francisco, foram eles obrigados a se retirarem para a serra do Rumo, situada por detrás da vila, e acrescentaram: ‘mas nóis arretiramo cantando’.” (Silva, 1961: 42-3. Grifos meus.) Presente nas descrições da vida ribeirinha de antes da barragem, tanto na bibliografia quanto nos relatos dos camponeses, o termo retirar/arretirar sempre aparece associado às enchentes excepcionais do rio São Francisco, que inundavam povoados e cidades, como a famosa “cheia alta” de 1949. Em tais ocasiões, todos eram obrigados a fugir das Uma retirada insólita
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águas, recuando em direção a lugares “altos” e “secos”, localizados na caatinga. Levavam consigo seus pertences (objetos e animais) e ficavam aguardando passar o “tempo da invasão do rio” para regressar ao povoado: ––– Eu: A Itapera velha costumava inundar? ––– Seu Domingos: Tinha ano que inundava, né? Tinha ano que pegava as casas. ––– Eu: Entrava água dentro das casas? ––– Seu Domingos: É, entrava. A gente vinha prum retirozinho que tinha aqui, na base de um quilômetro, mil metros. A gente retirava pra lá. Lá era alto! [Seu Domingos tem 71 anos. Morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova. Grifos meus.] Os camponeses fazem uso de um termo tradicional, carregado de sentidos anteriores ao evento da barragem, para se referir ao deslocamento para a borda do lago. E não é nada gratuito o uso de um mesmo termo para designar situações tão diversas de um ponto de vista técnico: uma subida artificial e definitiva das águas, provocada pelo represamento do rio; uma elevação natural e temporária, decorrente do aumento de chuvas nas cabeceiras. Mais do que mera coincidência, parece indicar uma associação entre a inusitada formação do lago e as grandes cheias do rio São Francisco, que também inundavam suas casas, impondo a retirada. O duplo uso do termo sugere uma hipótese interessante: são as retiradas do passado que fornecem o modelo da visão camponesa da subida das águas da barragem e seu recuo para a caatinga (a borda do lago). Para fundamentá-la, é necessário investigar o significado das retiradas tradicionais num contexto anterior à intervenção do Estado na área. O que denomino de “retirada tradicional” (ou do passado) é um fenômeno social fundamentalmente associado às enchentes excepcionais do rio São Francisco.
2. Retirada e enchente alta Coerentemente com o emprego do termo retirar para designar o recuo em direção à caatinga, a subida das águas represadas é descrita como uma enchente do rio São Francisco: ––– Eu: Quer dizer que o senhor saía de Remanso [na margem esquerda] para a festa de Oliveira [povoado na margem direita]? 36 O modelo da retirada
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––– Seu Higino: Eu cansei de encher embarcação aqui, de moça e de rapaz, e ir para a festa lá. Não perdia. Eu só perdi [hoje] porque eu não conheço mais, nem ao menos Oliveira, não conheço. Eu não conheço o lugar, depois dessa enchente. Tá com nove anos que eu não fui mais lá. [Seu Higino tem 77 anos. Morava em Remanso; com a formação do lago, mudou-se para a nova cidade de Remanso. Grifos meus.] O uso do termo retirar supõe a percepção do enchimento do lago como uma enchente de grandes dimensões, denominada localmente de “enchente grande”/”enchente alta” ou “cheia grande”/”cheia alta”. De fato, nos relatos sobre as retiradas tradicionais, o termo retirar é acionado toda vez que mencionam as “enchentes altas” do rio São Francisco: ––– Eu: Como era isso de ter ano com muito peixe e ano com pouco? ––– Seu Manoel: É devido à enchente. ––– Esposa de Seu Manoel: É quando as enchentes era alta, tinha muito peixe. ––– Seu Manoel: Tinha mais peixe. E quando as enchentes era baixa, o peixe também era pouco, aí não dava. Aí era poucos dias. ––– Eu: E tinha mais enchente alta ou baixa? ––– Seu Manoel: Tinha, era muita enchente alta. Tinha ano de enchente alta e tinha ano de enchente baixa. ––– Eu: Enchente alta era o quê? Ia água até onde? ––– Seu Manoel: As águas subiam muito. ––– Esposa: Inundava o nosso lugar que nós morava. ––– Seu Manoel: Inundava, mas nós retirava. Inundava. Inundava, nós vinha pra esse lugar onde tem o cemitério. A gente retirava praí. ––– Esposa: Olhe, vinha água aqui na porta. Enchia a rua. A água na porta, às vezes subia dentro de casa. Era água de um lado e de outro. [Seu Manoel tem 64 anos. Ele e a esposa moravam na Itapera velha; com a formação do lago, mudaram-se para a Itapera nova. Grifos meus.] Reciprocamente, sempre que falam das retiradas, acabam por mencionar determinadas “enchentes grandes” que ocorreram no rio São Francisco: ––– Eu: E lá em Mundo Novo, vocês retiravam? ––– Dona Eunice, esposa de Seu Afro: Se tinha retirada? ––– Eu: É. ––– Dona Eunice: Não era todo o ano, não, mas tinha. Uma retirada insólita
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––– Seu Afro: Mas teve, teve umas enchentes: de 19, 26, nós retirava aqui pra caatinga, mas tornava a voltar pra casa. Em seu contexto tradicional, o uso do termo retirar é bastante preciso e remete necessariamente aos procedimentos adotados por ocasião de uma “cheia grande”, como nos anos de 1919 e 1926. As perguntas feitas sobre as retiradas, mesmo que não façam nenhuma referência às enchentes e introduzam um novo assunto na entrevista, sempre encontram uma confirmação de entendimento: remetem às “cheias altas”. Em todos os relatos, as retiradas aparecem como a outra face de uma subida espetacular das águas: “o rio tomava conta”; “era água de um lado e de outro”. As retiradas do passado estavam associadas a um fenômeno excepcional, as “enchentes grandes” que ocorriam aleatoriamente, num ano ou noutro, sem qualquer regularidade. Somente nessas ocasiões retiravam em direção à caatinga, seguindo por trilhas conhecidas, em busca de determinados sítios já consagrados como seguros: os locais de “retiro”. O termo retirar também é utilizado pelos moradores da caatinga, mas com um sentido inverso daquele que os ribeirinhos lhe atribuem.3 Como nos conta um “caatingueiro” de Remanso: ––– Seu Hemitério: E assim vivia o homem do mato, desse jeito. Só em ano de seca muito dura retirava para a beira do rio. Ficavam morando em barraco, em qualquer coisa aí. [Filho de caatingueiros, Seu Hemitério morou na caatinga até a idade de 20 anos, quando se mudou para a cidade de Remanso; com a formação do lago, foi para a Remanso nova. Grifos meus.] Se os caatingueiros ou “homens do mato” retiram em direção ao rio São Francisco, fugindo da seca (privação de água), os “ribeirinhos” retiram no sentido inverso, rumo à caatinga, fugindo da enchente (excesso de água). O termo retirar é bem mais conhecido com o sentido que os caatingueiros lhe atribuem, provavelmente porque os “retirantes nordestinos” foram muito divulgados na imprensa e na literatura regionalista nordestina, como na obra de Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. O que não deixa de reiterar a originalidade do termo tal como concebido pelos camponeses ribeirinhos.
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3. O caráter coletivo e provisório das retiradas tradicionais Além dos povoados, muitas cidades ribeirinhas (sedes municipais) eram igualmente atingidas pelas enchentes altas: ––– Seu Everaldo: A cidade velha de Remanso inundava. Às vezes tinha enchente que inundava 3/4 da cidade. ––– Eu: E para onde vocês iam? ––– Seu Everaldo: A gente enfrentava. Ficava na parte alta que tinha lá em cima, uma lombada lá, onde a gente geralmente ficava. Tinha gente que mudava para lá para o Marcos. [Seu Everaldo morava em Remanso; com a formação do lago, mudou-se para a nova Remanso. Em 1985, ocupava o cargo de Presidente do STR de Remanso.] Em sua maioria, os moradores de Remanso retiravam para dois locais diferentes: um bairro que ficava atrás da cidade, numa elevação natural do terreno (uma “lombada”); ou para o povoado vizinho de nome Marcos, cerca de 6 km rio abaixo. Os fazendeiros criadores de gado, que também tinham casa na cidade, procediam de modo diverso: ––– Eu: E a sua família estava onde? [na enchente alta de 1926] ––– Seu Sinhozinho: Minha família estava toda nas fazendas. Meus pais foram pra fazenda. [Quando Remanso velho inundava] a gente fugia pras partes mais altas: quem tinha suas fazendas, que tinha com casas boas, essas coisas todas, arribava para as suas fazendas; quem não tinha, armava barraca. [Seu Sinhozinho era um dos donos da fazenda Caroá (hoje sob as águas), onde criava gado e coletava cera de carnaúba. Além da sede da fazenda, também tinha uma casa em Remanso velho. Atualmente, mora na nova cidade de Remanso.] Os fazendeiros de Remanso costumavam ter duas casas: uma na cidade, onde permaneciam no período da seca, de abril a novembro, aproximadamente; outra na fazenda, para onde se dirigiam a partir de novembro, quando as águas do rio começavam a subir, no início da estação das chuvas: “Em janeiro, fevereiro ou março, com a chegada das chuvas, quando luxuriante a vegetação renasce transformando o ambiente, ele [o senhor de terras e de gado na região do Médio São Francisco] se prepara para visitar suas terras e seus pertences. A ocasião é oportuna. Há fartura de leite e o requeijão macio constitui uma tentação ao paladar. Ele sabe que poderá desfrutar, durante esses curtos meses, a única época do ano em que realmente poderá viver bem e fartamente
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na fazenda. Depois, será a repetição do mesmo quadro desolador: árvores sem folhas, gado magro, tempo de sol, muito sol!” (Macedo, 1952: 57). Durante a estadia na cidade, as fazendas eram administradas por capatazes e vaqueiros. Sempre que Remanso inundava, os fazendeiros já estavam instalados na segurança das casas nas fazendas, construídas em locais altos, fora do alcance do rio, justamente para não serem molestadas pelas águas. A distinção feita por Seu Sinhozinho entre “casa” (a sede da fazenda) e “barraca” (no “acampamento” de retiro) aponta para o que há de peculiar na retirada dos camponeses: seu caráter coletivo e estritamente provisório. a) O caráter coletivo Se os fazendeiros permaneciam isolados nas sedes das fazendas, os camponeses retiravam juntos, formando verdadeiras povoações nos “locais de retiro”, que aglutinavam gente de apenas um (às vezes só uma parte) ou vários “lugares” (“lugar” ou “lugar das casas” é o termo nativo para o que venho chamando de “povoado”). Correnteza, Cancela e Lagoa Funda eram lugares ribeirinhos vizinhos que retiravam para o mesmo local, o Alto do Povo, no município de Juazeiro. Segundo o presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Juazeiro, antigo morador de Correnteza, “setenta famílias que eram vizinhos e parentes, numa extensão de seis quilômetros, retiravam para o Alto do Povo”. Os três lugares eram pequenos aglomerados de casas que não somavam mais que setenta famílias (Correnteza, apenas trinta). De modo diverso, Itapera retirava para dois locais diferentes: Tabuleiro e Ariá (ou Arial/Areial), situados na caatinga, cerca de oito quilômetros da beira do rio (Mapa III, no interior da contracapa). Ao contrário do que ocorria no Alto do Povo, nos retiros de Itapera havia apenas gente de lá. No Capítulo IV, veremos em detalhe a configuração dos “grupos de retirada”, bem como a importância do gado na escolha do lugar de retiro. Alguns povoados ribeirinhos serviam de retiro para lugares vizinhos que inundavam com maior facilidade: para Marcos, no município de Remanso, retiravam camponeses da cidade de Remanso; para Barra da Cruz e Intãs, no município de Casa Nova (margem esquerda), gente de Mundo Novo e Carpina, localizados na outra margem do rio (direita), no município de Sento Sé (Mapa VII, p. 258). 40 O modelo da retirada
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Nas três situações descritas, os locais de retiro podiam aglutinar camponeses provenientes de apenas um lugar (como Itapera, dividida entre Tabuleiro e Ariá) ou vários (como Correnteza, Cancela e Lagoa Funda, reunidos no Alto do Povo). Camponeses de um ou mais povoados também podiam reunir-se num terceiro, como Mundo Novo e Carpina, que retiravam para Intãs ou Barra da Cruz, na outra margem do rio. b) O caráter provisório Os fazendeiros não esperavam Remanso inundar para sair da cidade, pois tinham o costume de seguir para a fazenda assim que o rio começava a subir. Para eles não havia relação direta entre enchente alta e deixar a casa, ao contrário dos camponeses, que só saíam do povoado (ou da cidade) quando o rio “dava nas casas”: ––– Seu Domingos: [...] porque o lugar onde nós morava, na Itapera, tinha ano que o rio botava nós pra fora: dava nas casas. Agora, a gente mudava cá pro retiro. Uns ia pro Arial, outros iam pro Tabuleiro. ––– Seu Brás: [...] quando o rio chegava, que fazia aquela retirada, a gente saía. [Seu Brás tem 60 anos. Morava na velha Itapera; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova. Grifos meus.] O retiro não passava de um abrigo provisório, ocupado apenas durante o período da “invasão do rio”, que podia durar apenas alguns dias ou estender-se por vários meses. Em Itapera, a retirada mais longa foi provocada pela enchente alta de 1949, que forçou a permanência de quatro meses nos retiros. Durante a retirada, como o rio já havia “tomado conta” de tudo, colocavam os “trens” (seus pertences) nas canoas e seguiam embarcados até as imediações do retiro. Só retiravam sob pressão das águas, quando o rio “botava pra fora”. Às vezes faziam várias viagens até retirar tudo de dentro das casas. Os objetos de maior tamanho eram deixados sobre “jiraus” (estrados altos de madeira) ou amarrados nas traves de madeira do teto. Levavam para o retiro apenas o necessário e perecível, como alimentos (sacos de farinha e feijão), panelas, pratos e esteiras. Assim que chegavam no retiro, construíam “barracas” provisórias (ou “barracos”/“ranchos”). Se as sedes das fazendas eram casas de alvenaria, geralmente sólidas e antigas, as barracas não passavam de construções improvisadas, feitas rapidamente com uma precária estruUma retirada insólita
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tura de madeira coberta de folhas. Apenas um cercado de galhos colocavam junto ao chão, para impedir a entrada de animais domésticos, como porcos e galinhas, os quais, criados soltos no povoado, ao redor das casas, também eram levados para o retiro. Ao descrever a retirada dos moradores da cidade ribeirinha de Xique-Xique (Bahia), na enchente alta de 1949, Silva (1961: 35-6) também destaca o caráter provisório dos “casebres” construídos no lugar de retiro, localizado na caatinga: “Muita vez o nível das águas continua subindo e vai, pouco a pouco, cobrindo as ruas fronteiras ao porto; em 1949 chegaram as águas até a beirada da escadaria da Matriz. A população vai então se retirando para a caatinga, armando casebres provisórios e levando consigo os pertences de maior valia, mais expostos à ação das águas.” (Grifos meus.) Os fazendeiros tinham casa na cidade e na fazenda; os camponeses, apenas no povoado (ou na periferia das cidades). Ao “lugar de retiro”, onde armavam barracas, opunham o “lugar das casas” (o povoado), diferenciados pelo caráter provisório das retiradas. As casas do povoado eram mais resistentes e elaboradas: feitas de “taipa”, nas “forquilhas de aroeira” (estrutura de madeira revestida de barro), com portas e janelas, mais de um cômodo (quase todas com sala, cozinha e dois ou três quartos, geralmente sem portas internas, apenas cortinas de pano) e teto coberto com folhas de carnaúba, sem forro. As barracas, construídas com rapidez e com o material disponível no momento (palha de milho, folhas de carnaúba ou de qualquer outra palmeira), não tinham divisões internas nem paredes. Em oposição às barracas, as casas eram consideradas permanentes, mesmo que ficassem à mercê das águas numa enchente alta. O rio podia levar o barro das paredes, mas a estrutura de madeira permanecia em pé: as casas ficavam “cortadas ao meio”. Quando o rio recuava e voltavam para casa, bastava repor o barro arrancado, e lá estavam as casas novamente prontas para morar: ––– Seu Domingos: As casas lá a gente não fazia de alvenaria, não. A gente fazia era nas forquilhas de aroeira. Era nas forquilhas de aroeira que a gente tinha mais confiança, pro mode o rio, quando inundasse, não derrubar. ––– Eu: Nunca caía a casa? ––– Seu Domingos: Caía não. A altura que o rio dava, cortava assim, ó [ele aponta para o meio da parede da sala], e as aroeira ficava direitinho. Agora, quando a gente vinha, era só tapar os buracos por baixo.
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Em Itapera, havia apenas uma casa construída no Tabuleiro (retiro). Pertencia a um dos pequenos comerciantes do lugar, que vendia e comprava um pouco de tudo: farinha de mandioca, feijão-de-arranca, peixe, sal, tecidos e ferramentas. Foi construída para servir de depósito de mercadorias, durante uma enchente alta que inundou sua “casa de comércio” no povoado. Esta era a única construção permanente no Tabuleiro, o único marco a assegurar a continuidade entre os vários acampamentos de enchente, entre as diversas e efêmeras levas de barracas de retiro. Assim que o rio vazava e julgavam já ser possível retornar ao “lugar das casas”, as barracas eram rapidamente desfeitas: começavam os preparativos para a volta. Mas o termo retirar é empregado somente para designar a saída do povoado inundado. O retorno do retiro, ainda que envolva o transporte de seus pertences (objetos e animais), não é descrito como uma retirada: não se trata mais de fugir do rio e do cerco das águas. A volta para casa é a retomada do povoado invadido e o regresso à rotina diária, que havia sido quebrada pela enchente alta. Não é uma outra retirada, é apenas o encerramento do retiro.
4. As retiradas e a organização do espaço Os povoados ribeirinhos não eram igualmente atingidos pelas enchentes altas. Alguns retiravam com frequência; outros, de raro em raro, como Aldeia, no município de Sento Sé, que somente retirou em 1919 e 1926: ––– Eu: Quando é que vocês retiravam? ––– Esposa de seu João Grande: A gente morava num lugar mais alto, não retirava não. Só retirava nesses lugar baixo mesmo. Aí na Itapera velha que o povo arretirava prum lugar assim de nome Tabuleiro. Aqui, né? Pertinho mesmo. Mudava. Mas não empatava nada não. ––– Eu: Aldeia era um lugar alto? ––– Seu João Grande: Era alto, não retirava não. Aldeia, Limoeiro. ––– Esposa: Lá retirou quando, João Grande? Em que época foi que retiraram de lá? ––– Seu João Grande: Foi em 26 e 19. ––– Eu: E aí retirava pra onde? ––– Seu João Grande: Tinha uns altos. Na Itapera mesmo mudava aqui prum alto que tinha aqui. Aí era pertinho que retirava. Era um mês, era dois mês, voltava logo. Uma retirada insólita
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––– Eu: Em que época do ano retirava? ––– Seu João Grande: Retirava, talvez, em maio. Teve um ano que retiremo no mês de maio e voltemo no mesmo mês de maio. ––– Eu: Isso na Aldeia? ––– Seu João Grande: Em Aldeia. A época da cheia é geral, era geral. Onde retirava e não retirasse, tudo é num tempo só. [Seu João Grande tem 65 anos. Morou em Itapera até a idade de 30 anos, quando se mudou para Aldeia, junto com a esposa e filhos. Com a formação do lago, foram para a Itapera nova. Grifos meus.] Seu João Grande começa dizendo que Aldeia “não retirava”, mas logo depois admite duas ocasiões: nas enchentes altas de 1919 e 1926. Sua negativa deve ser entendida a partir da oposição entre “lugares altos”, como Aldeia, que só retirou duas vezes, e “lugares baixos”, como Itapera, que inundava com maior frequência e retirava muito mais.4 Povoados “altos” podiam servir de retiro para povoados “baixos”. Segundo um camponês de Barra da Cruz, “Vinha gente de Mundo Novo e Carpina para Barra da Cruz e Intãs, porque aqui era mais alto e não inundava” (grifos meus). A afirmação de que o lugar “não inundava” não necessariamente significa que nunca foi obrigado a retirar. A classificação de uma enchente como “alta” podia variar de um lugar a outro. Assim, para camponeses de Aldeia, apenas 1919 e 1926; para Itapera, além dessas, 1943, 1945, 1946, 1949, 1952 e 1957; para Correnteza, 1943 e 1949, além de 1919 e 1926. As cheias de 1945 e 1947 são consideradas “altas” em Itapera, porque o rio “tomou conta” e tiveram que retirar, mas não em Correnteza, onde o rio não “invadiu” nenhuma casa, aproximando-se apenas. Pode-se dizer que classificam de “altas” (ou “grandes”) somente as enchentes que os obrigam a retirar. As enchentes “baixas” (ou “pequenas”) correspondem à elevação anual das águas, que não chegava a inundar nenhum povoado. O fato de classificarem de “altas” apenas as enchentes que forçavam as retiradas mais uma vez aponta para a associação entre retirada e enchente alta: toda vez que o termo retirar é acionado, necessariamente é de uma enchente alta que se trata, e vice-versa. O que se dá quanto aos povoados e na relação entre eles, ocorre igualmente no interior de cada povoado, na relação entre as casas. Também estas não eram uniformemente atingidas pelo rio. Em Itapera, havia casas consideradas “baixas”, porque eram as primeiras a inundar, e casas “altas”, porque eram as últimas. Os camponeses não retiravam todos ao 44 O modelo da retirada
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mesmo tempo, mas segundo a posição de suas casas em relação ao rio: quem morava em casa baixa, retirava primeiro; quem morava em casa alta, retirava por último ou nem retirava. Quando a enchente era “pouca” ou “ligeira”, isto é, durava poucos dias, apenas retiravam as casas baixas. Os demais permaneciam no povoado parcialmente inundado, “enfrentando” o rio. ––– Dona Santa: [...] as águas vinham pouca, inundava umas partes do lugar, não retirava todo mundo. É porque tinha umas partes mais altas e outras mais baixas. Quando a enchente era pouca, inundava aqueles mais baixos, os mais altos ficava, né? Demorava, os mais altos retirava. [Dona Santa morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova]. A retirada e os movimentos do rio remetem a uma determinada organização do espaço. Os lugares e casas são considerados altos, porque não retiravam quando os baixos já retiravam ou eram os últimos a retirar. Além de diferenciar lugares e casas, as retiradas delimitam o alcance máximo das águas do rio. São considerados altos os locais que nunca foram atingidos pelas águas, ou seja, que estão fora do alcance do rio, mesmo em suas maiores enchentes: os locais de retiro. ––– Seu Domingos: [...] a gente retirava pra lá. Lá era alto! Lá, até agora, até agora não cobriu [até hoje, após a formação do lago]. ––– Eu: E aí retirava pra onde? ––– Seu João Grande: [...] Pertinho, tinha uns altos. Na Itapera mesmo mudava aqui prum alto que tinha aqui. Esta organização espacial, baseada na oposição alto x baixo, deve ser entendida a partir da distinção que fazem entre “área da caatinga” e “área da vazante”. Concebida como a “área que o rio não cobria nunca”, a caatinga estava totalmente fora do alcance do rio. A vazante, ao contrário, também denominada de “alagadiço”, estava sujeita a inundações periódicas: uma “área que, quando o rio enchia, que cobria”.5 A caatinga era considerada o espaço por excelência do seco e do alto (não inundável/não inundado); a vazante, do baixo e do molhado (inundável/inundado). O espaço estava organizado segundo um conjunto de oposições homólogas, onde alto e seco opõem-se a baixo e molhado, assim como a caatinga opõe-se à vazante. As mesmas oposições que delimitavam a vazante x caatinga também estavam presentes na organização do próprio espaço da vazante: Uma retirada insólita
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quando o referencial deixava de ser a “área da caatinga” e passava a ser o maior ou menor alcance do rio no interior da “área da vazante”, consideravam altos e secos os locais somente atingidos pelo rio em suas enchentes altas. Os locais baixos e molhados eram aqueles anualmente cobertos pelas águas. Desse ponto de vista, todos os povoados estavam situados em locais altos. Se a caracterização de um local como alto ou baixo podia variar de um contexto a outro – a caatinga em relação à vazante; na organização interna da vazante –, no entanto, obedecia rigorosamente a uma mesma lógica: sempre retiravam do baixo para o alto, do molhado para o seco, do “lugar das casas” para o “lugar de retiro”. Partiam em direção à caatinga, buscando aqueles locais nunca inundados (reconhecidamente não inundáveis), onde pudessem permanecer em segurança durante o tempo da “invasão do rio”. ––– Seu Afro: [...] nós retirava aqui pra caatinga, mas tornava a voltar pra casa. ––– Eu: E tinha lugar aí na caatinga? ––– Seu Afro: Tinha lugar na caatinga. ––– Esposa de Seu Afro: Esse lugar chamava “as Lages”. A caatinga como local de retiro está presente não só nos relatos dos camponeses, mas também no trabalho de Silva sobre a cidade de XiqueXique e o povoado de Marrecas, ambos na beira do rio São Francisco: “[em Xique-Xique] em 1949 chegaram as águas até a beirada da escadaria da Matriz. A população vai então se retirando para a caatinga [...] Em Marrecas, situada sobre um barranco beira-rio, numa única rua paralela ao São Francisco, as grandes cheias significam destruição parcial da vila, pois as casas de pau-a-pique não resistem ao impacto das águas. Tal fato aconteceu durante a recente cheia de 1949 [...]. Relatam a respeito os moradores de Marrecas, afirmando que, ao se elevarem as águas do São Francisco, foram eles obrigados a se retirarem para a serra do Rumo [na caatinga], situada por detrás da vila”. (Silva, 1961: 35-6; 42-3. Grifos meus.) Não parece ser mera coincidência o fato de que todos os cemitérios estavam localizados na caatinga, nos próprios locais de retiro ou nas suas imediações. Em Mundo Novo, o cemitério ficava junto ao lugar de retiro conhecido como Lages;6 em Itapera, no Tabuleiro: ––– Seu Manoel: [...] inundava, nós vinha pra esse lugar onde tem o cemitério. A gente retirava praí.
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O mesmo ocorria em Marrecas, tal como documentado por Silva (1961: 36): “Na parte sul, próxima à caatinga, ergue-se o cemitério antigo, agora não mais usado, e cujos portões permanecem trancados. Mais afastado, com as paredes brancas de cal, acha-se o Cemitério Novo, mais amplo, já em grande parte utilizado.” A opção de construir os cemitérios na caatinga baseava-se num conhecimento acumulado a respeito dos movimentos do rio São Francisco, especialmente de suas enchentes altas. A visão da caatinga como a “área que o rio não cobria nunca” – característica central para a escolha do local do cemitério – ancorava-se na memória do grupo: há quatro gerações, pelo menos, conheciam o alcance das maiores cheias.7 A concepção da caatinga como espaço do alto e do seco estava investida dos registros históricos de suas retiradas. Em Itapera, o Tabuleiro e o Ariá (os dois locais de retiro) estabeleciam precisamente o limite entre a “área da caatinga” e a “área da vazante”: ––– Seu Domingos: [...] enchia até o Arial só nas grandes cheias. O rio chegava no Arial e chegava no Tabuleiro. A praia ficava mesmo bem na beirada do Arial e na beirada do Tabuleiro. ––– Mano: [...] a caatinga começa depois do Tabuleiro. [Mano tem 35 anos. Morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova.] Ao mesmo tempo que assinalavam o maior alcance do rio, os retiros demarcavam o limite do espaço social apropriado: eram os pontos mais recuados em direção à caatinga para onde se dirigiam os camponeses de Itapera organizados em grupos. O maior alcance do rio era também o maior alcance dos homens: o social só era possível ali onde o rio se fazia presente, dentro dos limites do inundável. Para além desta fronteira, apenas a morte (e os cemitérios), o isolamento, o estado de selvageria, o encontro com o desconhecido e o sobrenatural. Como veremos no Capítulo II, a área de deslocamentos habituais era a “área da vazante”; à caatinga apenas se dirigiam em ocasiões excepcionais e em caráter necessariamente coletivo, como nas retiradas ou para algum enterro.
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5. O princípio da beira “Eu tenho que estar aonde o rio tá!” Na velha Itapera, havia basicamente duas ruas paralelas ao rio: a “rua da Frente”, mais próxima à água, onde ficava a igreja, e a “rua de Trás” (Mapa I, p. 236). A maioria das casas da “rua da Frente” e algumas da “rua de Trás” eram consideradas altas porque dificilmente inundavam: seus moradores eram sempre os últimos a retirar. A parte alta de Itapera era conhecida como “rua das Flores”; a parte baixa, “rua do Nazário” – ainda que não fossem exatamente ruas, no mesmo sentido que “rua da Frente” ou “rua de Trás”. Eles podiam simplesmente dizer que moravam “nas Flores” ou “no Nazário”. Esta dupla classificação das regiões do povoado opera com parâmetros distintos. A primeira sugere dois alinhamentos de casas, paralelos entre si e à margem do rio, um bem junto à água, outro duplamente mais afastado – à distância mensurável, acresce-se a distância simbólica, por já haver outra rua interpondo-se entre ela e o rio. A segunda forma de classificação não parte da distância em relação ao rio, mas considera a altura do terreno, ou seja, sua maior ou menor facilidade de inundar.8 A oposição entre uma parte alta e outra baixa representa uma medida que não a distância na superfície: uma medida de profundidade – marca deixada pela memória das enchentes altas. Ela é pensada como sucessão dentro de uma temporalidade. Isto é baixo, aquilo alto, porque inunda primeiro. Pode-se dizer que o espaço do povoado estava organizado a partir da distância em relação ao rio (frente/beira x trás/costas) e da situação em relação às enchentes (alto/inundado por último x baixo/inundado primeiro). O local de moradia funcionava como um símbolo de status. A superposição da “rua da Frente” com a “rua das Flores” resultava no local mais cobiçado e de maior prestígio no interior do povoado: conciliava o morar junto à água com melhores condições de enfrentar o rio numa enchente alta. Era nessa parte privilegiada que ficava a igreja, as duas maiores “casas de comércio” e três de suas cinco “casas de farinha”. Ser expulso de casa pelo rio, para lá do transtorno, não deixava de ser humilhante, principalmente quando havia gente que podia permanecer no povoado. A retirada era evitada a todo custo, por implicar um ônus muito grande: retirar os objetos da casa ameaçada, as mercadorias das casas de comércio, o maquinário das casas de farinha. Os cam48 O modelo da retirada
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poneses somente retiravam no último momento, quando as paredes de barro da casa já estavam se desmanchando. Havia toda uma questão de honra envolvida no enfrentamento com o rio, e todos se orgulhavam em dizer que haviam sido os últimos a retirar: “Eu fui o derradeiro que retirei!”. A localização dos povoados propõe um problema interessante: por que moravam tão próximos ao rio, se corriam o risco de terem as casas inundadas? Era a proximidade com o rio que os atraía para a beira e para o risco sempre presente das retiradas. O local de moradia mais valorizado era aquele que conseguia conciliar a proximidade do rio (estar junto à água) com a resistência frente às cheias (estar no alto); numa palavra, a moradia devia situar-se na beira. O princípio fundamental que dominava a lógica da organização do espaço era a oposição entre permanecer junto ao rio e permanecer a salvo de suas enchentes. Tanto a escolha do “lugar das casas” quanto a do “lugar de retiro” obedecia a esta lógica: os povoados ficavam junto ao rio e em locais altos (somente atingidos pelas águas numa enchente alta). Os retiros ficavam na beira durante uma enchente alta, no local mais próximo do rio que estava fora do alcance de suas águas (no alto). Mais do que o limite da terra com o rio, a beira consistia no encontro do alto com a proximidade da água. Esta era a posição cobiçada pelos camponeses. Mas a beira não era um local estável: ela migrava junto com os ciclos do rio. A área da vazante poderia ser descrita como o conjunto de todas as beiras possíveis, e todo ponto da vazante é uma beira virtual. Esta fórmula é particularmente feliz: uma vez estabelecido que preferiam a beira, a área da vazante surge como a região que atraía todo o seu interesse. E, de fato, concentravam-se ali as principais atividades sociais. A área da vazante e a área da caatinga não são espaços intercambiáveis; estão hierarquizados: a vazante era mais valorizada que a caatinga. Eram qualificadas diferencialmente em função do valor social do rio. A orientação do espaço era definida pelo rio e pelo interesse em permanecer na beira. Somente uma situação excepcional fazia com que tomassem a direção da caatinga: uma enchente alta. Mesmo assim, o correto seria dizer que se deslocavam de costas para a caatinga, pois seus olhos estavam voltados para o rio. Recuavam em marcha a ré, acompanhando, apreensivos, o avanço insistente das águas. O lugar de retiro, além de ser a beira da caatinga, era também a beira do rio numa enchente alta. A retirada leUma retirada insólita
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vava os camponeses para a posição simétrica à beira onde habitavam: o “lugar das casas” e o “lugar de retiro” ficavam na beira, ou seja, junto à água e no alto. Em ambas as situações, o alto e o seco eram mais valorizados que o baixo e o molhado e estavam associados à vida. (1) no espaço interno da vazante: alto seco lugar alto casa alta Flores ––––– = –––––––– = –––––––––– = –––––––––– = ––––––– baixo molhado lugar baixo casa baixa Nazário onde alto > baixo :: Flores > Nazário (2) na relação entre vazante e caatinga numa enchente alta: alto seco caatinga lugar de retiro ––––– = –––––––– = –––––––––– = ––––––––––––––– baixo molhado vazante lugar das casas onde alto > baixo :: lugar de retiro > lugar das casas (3) na relação entre vazante e caatinga fora das enchentes altas: alto seco caatinga lugar do cemitério ––––– = –––––––– = –––––––––– = –––––––––––––––––– baixo molhado vazante lugar das casas onde alto < baixo :: seco < molhado :: caatinga < vazante Nas retiradas, havia uma inversão dos valores normalmente vinculados ao espaço da vazante e ao espaço da caatinga. Enquanto a vazante era baixa e molhada, associada à vida e à fertilidade, a caatinga era alta e seca, associada à morte e à esterilidade. A vida social se concentrava naquela área que se estendia do rio até o início da caatinga: a área da vazante. Durante uma enchente alta, o excesso de rio inviabilizava a vida na área da vazante, que desaparecia sob as águas. Restavam apenas rio e caatinga. A beira se deslocava para a beira da caatinga: a vida só era possível no alto e no seco, ou seja, no lugar de retiro. Se a vazante se opunha à caatinga como a vida à morte, numa situação de enchente alta, ficava associada à morte, e a caatinga à vida. Pode-se dizer que tanto a vazante quanto a caatinga eram dotadas de uma dupla significação, num sistema
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em que o valor maior estava condensado na noção de beira. Era este o valor que impunha uma ordenação hierárquica na classificação dos espaços sociais.
6. O modelo da retirada A análise do significado das retiradas tradicionais demonstra que os camponeses elaboraram os eventos da barragem dentro de um determinado esquema conceitual, onde o rio São Francisco ocupa a posição central. A formação do lago e o deslocamento para a borda do reservatório incidiram sobre um conjunto articulado de categorias de espaço e de tempo (beira, alto/baixo, seco/molhado, caatinga/vazante, enchente alta), que configuram o que denominei de “modelo da retirada”: é todo um complexo de termos e uma rede de significados, em que as categorias retirada e beira são os termos centrais. Esta rede significante tinha suas raízes num fenômeno social de ocorrência excepcional, mas de inscrição garantida na memória coletiva: a enchente alta. É a esta rede, a esta conhecida trama, que recorreram em busca de referências culturais e ferramentas de inteligibilidade para abordar o evento da barragem. Esta hipótese não ignora que as circunstâncias estabelecidas pelos eventos insólitos da barragem não se encaixam perfeitamente no modelo da retirada. Os camponeses não o ignoram. Conforme veremos no Capítulo IV, eles estão sempre sublinhando as diferenças verificadas entre a “enchente que o rio encheu pela barragem” e as antigas “enchentes do rio”, suas velhas conhecidas: estas eram “enchentes de cima”, que desciam das cabeceiras, e o rio subia lentamente; aquela, ao contrário, foi uma “enchente de baixo”, que se formou a partir da represa, contra o sentido da correnteza do rio, e com uma rapidez jamais vista. As águas “tomaram os altos” (a caatinga), ultrapassando em muito os “locais de retiro”, e o rio nunca mais retornou ao seu leito normal. A retirada provocada pela barragem foi desmedida e sem volta. No entanto, se empregam termos de uso corrente e demarcado para denominar uma situação inédita, isso significa que os eventos da barragem foram de alguma forma incorporados ao modelo da retirada, através de deslizes no interior daquele campo semântico.9 Não é esta migração na rede de significados que me preocupa no momento, mas sim Uma retirada insólita
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a eficácia e incidência do modelo no rumo dos acontecimentos. Este é o problema central do Capítulo IV, antecipado pela descrição das formas camponesas tradicionais de conceber o espaço (Capítulo II) e o tempo (Capítulo III) – mediação fundamental para avaliarmos as implicações daquele modelo.
Dona Isaura e crianças diante da casa de farinha na Itapera nova, em agosto de 1985.
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1. Levantamento realizado em documentos do setor elétrico (Eletrosul/CNEC, 1980; 1983), da CHESF e suas empresas consultoras (CHESF/Hidroservice, 1973a; 1973b; Hidroservice, 1975; SESU, 1979; CHESF/ANCARBA, 1980; CHESF, 1980); e em trabalhos acadêmicos sobre a barragem de Sobradinho (Tallowitz, 1979; Sandroni, 1979; Duqué, 1980; 1984; Andrade, 1983; Barros, 1983; 1984; Berenguer, 1984; Machado, 1987). 2. Os camponeses criam gado bovino (denominado simplesmente de “gado”), caprinos e ovinos (“criação”), equinos (“animal”) e suínos: “Criava tudo, né? Era gado, era porco, era criação de ovelha, era de bode, era tudo.” 3. Foi Sérgio Carrara quem me chamou a atenção para essa diferença tão marcante. Sou muito grata a seus comentários sempre interessantes. 4. Como veremos com mais detalhes no Capítulo III, “As enchentes como marcos temporais: ciclo anual e ciclo excepcional”, Itapera retirou cerca de 12 vezes ao longo do século XX, até o advento da barragem. 5. Os camponeses empregam o termo “vazante” apenas como uma categoria espacial. O momento do ano em que o rio está vazando é denominado de “seca”. Voltarei a esta questão no Capítulo III. 6. Seu Afro retirava para as Lages, na caatinga, onde tinha uma roça de chuva, conhecida como “roça dos defuntos”, porque ficava bem atrás do cemitério. 7. A memória histórica dos camponeses entrevistados dificilmente ultrapassa quatro gerações. 8. Na Itapera velha, havia três baixos (ou “becos”) por onde passava o rio numa enchente alta (Mapa I, “Desenho da Itapera velha feito por Mano”, p. 236): o “beco” por detrás da casa de farinha da Prefeitura, de onde seguia o caminho que levava ao Tabuleiro (“essas águas iam dar na lagoa do Jenipapo, que ficava por detrás do povoado”); o “beco” que dividia a “rua das Flores” da “rua do Nazário” (“essas águas davam na lagoa da Porta, que ficava por detrás do povoado”); a área vazia junto à casa de farinha de Jayme (“as águas passavam pelo campo de futebol e iam até a lagoa da Porta”). 9. “O desdobramento [déploiement] de determinada estrutura numa ordem contextual nova não conduz/resulta [n'aboutit pas à] numa simples reprodução ou estereótipo da estrutura primitiva, mas antes confere às antigas oposições novos valores funcionais, e assim fazendo, modifica/desvia/incide [infléchit] de maneira imprevista no curso/rumo dos acontecimentos.” (Sahlins,1979: 329. Tradução minha da versão francesa).
Página seguinte: Mano e seus filhos Juninho, Cleiton e Cleciano tomando banho no lago de Sobradinho. Itapera, fevereiro de 1985.
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As enchentes altas como marcos espaciais: área da vazante e área da caatinga Capítulo II
Como os camponeses concebem o espaço no qual se estruturava a vida social na velha Itapera? Ao longo deste capítulo, acompanho Mano, passo a passo, na feitura de um mapa do seu antigo território, descrevendo os conceitos de espaço mobilizados em sua execução. Entendido como a tradução gráfica das áreas mais importantes da vida social,1 o mapa se organiza a partir de dois pontos centrais de referência – o rio e o lugar das casas – e ganha corpo numa sequência de trajetos que conduziam aos locais de suas principais atividades. Através da comparação entre “Desenho velho” e “Desenho hoje”, veremos que a Itapera nova localiza-se em plena “área da caatinga”, num local que estava fora da área de deslocamentos habituais. Ao inundar toda a vazante e uma parte da caatinga, a barragem de Sobradinho provocou o desaparecimento físico do antigo território dos camponeses de Itapera.
1. O desenho da Itapera velha e a percepção do espaço Para me localizar naquele espaço, que hoje repousa sob as águas, Mano desenhou um mapa da Itapera velha a meu pedido, delimitando o alcance do lago. Chamado por ele de “Desenho velho” (Mapa II, p. 238-42 e interior da capa), o mapa foi confeccionado ao longo de vários dias, em agosto de 1985, e envolveu um grupo de pessoas: Mano e Diana, Seu Domingos e Nelito vaqueiro, instigados pelas mil e uma perguntas que fazíamos, Jayme e eu, em nosso afã de trazer à tona um lugar perdido. Pressionados entre o rigor da linha e a fluidez da fala, secretamente sonhávamos com uma arte cartográfica que tornasse possível fazer o mapa coincidir pontualmente com aquele mar de territórios. Eles se divertiram muito com a tarefa, e com prazer sugeriam detalhes que sempre brotavam de alguma estória. Às vezes discordavam sobre o nome de uma lagoa ou o traçado de determinado caminho, a localização precisa de uma roça ou de um “poço” de pesca, mostrando-se Uma retirada insólita
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aflitos por não mais lembrar com nitidez do lugar onde por tanto tempo viveram e de onde há tão pouco haviam saído, nem oito anos passados. Todas as conversas suscitadas pelo Desenho velho foram registradas (o gravador ficou simplesmente ligado sobre a mesa), e constituem, junto com o mapa, uma via de acesso àquele mundo esvaecente e ao próprio modo como concebem o antigo território. Quando o Desenho velho foi feito, eu não tinha ainda visto qualquer mapa oficial da região, com escala equivalente. Dispunha apenas de mapas mais abrangentes, produzidos pela CHESF e centrados na “área do reservatório”, que abarca os municípios de Sento Sé, Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado, Juazeiro e Xique-Xique (Mapa VI, p. 254-56). O velho povoado de Itapera, quando aparecia em tais mapas, não passava de um ponto minúsculo na beira do rio. Foi somente na véspera de minha segunda ida a campo, em fevereiro de 1987, que tive acesso à “Carta Topográfica do Vale do São Francisco/Médio São Francisco: Sobrado a Pilão Arcado” (Mapa V, p. 248-52), que recobre em detalhe toda a área desenhada no mapa de Mano. Realizada em 1959, muito antes da construção da barragem, a Carta foi feita a partir de fotografias aéreas, em escala de 1: 25.000. Além de obter uma cópia, também tive acesso às próprias fotografias aéreas que lhe serviram de base.2 Se o Desenho velho constituía, até então, a única fonte disponível sobre o território inundado, com a descoberta das fotos aéreas da região da Itapera velha foi possível estabelecer um contraponto à visão dos camponeses. Em seus relatos sobre o modo de vida passado, era constante a referência a locais que não mais existem (submersos), como a ilha da Itapera e o ilhote da Veneza, onde faziam seus cultivos (locais das roças); o Tabuleiro e o Ariá, para onde retiravam (locais de retiro); a lagoa do Sem-Sem e a lagoa do Saco, onde realizavam grandes pescarias (locais de rancharias). Com a feitura do Desenho velho, esses espaços sociais ganharam um perfil mais definido, mas sempre no âmbito de relatos de um tempo passado e de um espaço desaparecido. Daí que o exame das fotos, realizado depois de todo um trabalho de reconstituição daquele espaço, foi como uma espécie de viagem no tempo: eu podia finalmente ver aquela região tantas vezes descrita por eles, descobrir discrepâncias e me surpreender com detalhes. A comparação entre o Desenho velho e a Carta era imediata, pois o que eu via nas fotos (matriz da Carta) era mediatizado pelo modo como os camponeses concebiam aquele mesmo espaço. Eu já contava com um mapa nativo para me orientar através dos
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inúmeros e indiferenciados acidentes geográficos e curvas de nível da Carta Topográfica de 1959: o território da Itapera velha. Colocando-os lado a lado, é possível delimitar, na Carta, a maior parte da área abrangida pelo Desenho velho. Além de ser mais saturada de detalhes, a Carta recobre um espaço bem maior. Não foi possível obter cartas topográficas das áreas junto ao rio São Francisco imediatamente acima e abaixo da Carta de 1959, de modo que uma parte do mapa dos camponeses não está nela retratada. O que de modo algum impede o cotejo das duas fontes disponíveis. A comparação procura resgatar o significado social daquilo que os camponeses recortam, sublinham, inventam ou deixam de assinalar na área abrangida pela Carta. Um exemplo do que desponta em tal confronto é a seleção de apenas dois povoados vizinhos para constarem do Desenho velho, quando na Carta aparecem inúmeros outros. O que certamente indica que mantinham com eles relações bem mais intensas. As descontinuidades entre as duas fontes reforçam a concepção de que os espaços delimitados são espaços sociais: consta do Desenho velho apenas o que tem algum significado particular para os camponeses, aquilo que é dotado de sentido e valor. Se a Carta Topográfica foi realizada a partir de fotografias aéreas, do ponto de vista de quem olha a região de cima e de fora, o desenho foi feito de memória, do ponto de vista de quem a conhece de dentro, através dos trajetos ali efetuados. A apresentação final de ambos parece coincidir, pois o Desenho velho acaba por fornecer uma visão aérea e globalizante daquele espaço. No entanto, se considerarmos o modo como foi elaborado, fica claro que partiu de um ponto de vista terrestre. O desenho foi literalmente construído através da descrição oral, encadeada pela memória dos trajetos. Ainda que seja uma forma de escrita, é inseparável do relato oral: nas fitas se ouve, passo a passo, a confecção do Desenho velho. As técnicas de registro e reconstituição dos camponeses nada têm em comum com voos de reconhecimento e objetivas fotográficas. Este método de rememoração não foi uma opção ou mero capricho de Mano. Na verdade, o único modo dele recordar-se da geografia do antigo território era reconstituindo mentalmente a sequência de referenciais encontrados num percurso. Está, portanto, relacionado à forma como o espaço foi originalmente apreendido. Pode-se dizer que o desenho ganhou corpo a partir do que Leroi-Gourhan (1983) chama de modo irradiante de apreensão do espaço: “a imagem do mundo com base num itinerário”.3 Uma retirada insólita
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Mano começa por estabelecer dois elementos centrais, de onde “irradia” toda a trama do desenho: o rio São Francisco e o lugar das casas. A partir desta ancoragem, são os itinerários habitualmente realizados que estabelecem o nome e a posição de todas as demais figuras que constam do desenho: lagoas, ilhas, roças, caminhos e serras. Por sua relevância, os elementos irradiantes originais – o rio e o povoado – ocupam um lugar na memória que independe da reconstituição de trajetos. O que não ocorre com as demais figuras, que somente são lembradas e localizadas no interior de uma sequência de locais percorridos durante um determinado itinerário. Há duas grandes diferenças entre a carta oficial e o desenho nativo, que podem ser melhor apreciadas com o cotejo dos Mapas V (“Carta Topográfica de 1959”, p. 248) e II (“Desenho velho”, p. 238 e interior da capa): (1) A ancoragem: enquanto na Carta Topográfica não há um ponto central de referência, o Desenho velho está centralizado em Itapera. Além de situado no meio do papel, o lugar das casas é o coração de todos os caminhos e redes de lagoas e roças. O desenho está estruturado a partir da relação entre um ponto recorrente de partida (Itapera) e vários pontos periféricos de chegada. (2) O eixo direcional de irradiação: não há curvas no rio dos camponeses, enquanto na Carta, aquele mesmo trecho do São Francisco é extremamente sinuoso. Todos os itinerários irradiam do povoado e se balizam pelo rio retificado, seja acompanhando a beira, em paralelo ao rio, seja afastando-se da beira, perpendicularmente ao rio. Há, então, duas peculiaridades marcantes no Desenho velho: ele possui um centro e o rio aparece como uma margem reta ilimitada, que continua para além do papel. O mapa produzido pelo sistema cartográfico obedece a regras de mensuração e cartografia que prescindem de qualquer ponto de referência interior ao próprio mapa. Em outras palavras, o sistema de referência com o qual se pode identificar qualquer ponto na Carta é exterior à imagem cartografada: ele não está calcado em qualquer acidente do próprio mapa. Por outro lado, os dados de base para a confecção da Carta não foram mensurações feitas sobre o próprio solo por equipes de topógrafos percorrendo a região. A fonte primária foi uma coleção completa de fotografias aéreas. O olho que vê a região está na mesma posição do olho que agora contempla o mapa. A posição deste olhar não está assimilada ao próprio mapa: olhar exterior e abrangente, numa só mirada alcança toda a região pertinente.
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2. Focos de irradiação do Desenho velho: o rio e o lugar das casas Mano começa o desenho traçando uma margem do rio São Francisco (direita), e assinala um ponto: Itapera. Depois, desenha uma ilha bem comprida, em frente ao povoado: a ilha da Itapera. E nos explica que o rio, ali, ficava dividido em dois: entre o povoado e a ilha corria um “braço” do rio; entre a ilha e a margem esquerda, o “rio grande”. O braço era bem mais estreito, e, de Itapera, podiam ver quem estava trabalhando nas roças da ilha. O rio grande era também chamado de “canal”, pois era lá que passavam os barcos de grande calado: as famosas “gaiolas” do rio São Francisco, que chamavam simplesmente de “vapor” (de barcos a vapor). Os primeiros traços do desenho – o rio e o lugar das casas – são também as principais referências espaciais em relação às quais estão situados todos os demais locais assinalados em seu mapa. Um dos modos mais comuns de se orientarem no espaço segue do estabelecimento de um ponto fixo e central, o lugar das casas, e de sua posição em relação ao rio e ao sentido de sua correnteza. Daí que Mano divida o Desenho velho em “vazante de cima” e “vazante de baixo”, onde “de cima” é toda aquela área situada acima de Itapera, subindo o rio a partir desse ponto; e “de baixo” é a área oposta, para baixo das casas, descendo o rio. Como Itapera fica na margem direita do São Francisco, o sentido da correnteza, no desenho, é da esquerda para direita. De modo que a “vazante de cima” fica à esquerda de Itapera; a “vazante de baixo”, à direita. A leitura do que se segue deve ser acompanhada do exame dos seguintes mapas: Mapa II, "Desenho velho" feito por Mano (interior da capa e nas páginas 238-42, em tamanho real); Mapa III, “Desenho velho esquematizado” (interior da contracapa), feito por Jayme logo após o término do “Desenho velho”, incorporando sugestões e críticas de Mano, Diana, Nelito e Seu Domingos; Mapa IV, “Localização das roças na ilha e na terra firme” (p. 244), desenhado por Jayme, sob orientação de Mano, com dados por ele fornecidos; Mapa V, “Carta Topográfica de 1959” (p. 248), em escala 1: 25.000. Ver, ainda, a “Fotografia aérea da região da Itapera velha” (p. 246), matriz da Carta Topográfica. O sistema de orientação calcado no rio e no lugar das casas é utilizado por Mano durante toda a confecção do Desenho velho: para localizar as roças na margem do rio, “acima” ou “abaixo” de Itapera; os Uma retirada insólita
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povoados vizinhos de Andorinhas (“para cima”) e Tombador (“para baixo”); a lagoa do Sem-Sem, na “vazante de cima”; a lagoa do Saco, na “vazante de baixo”; o ilhote da Veneza, mais “lá pra cima”. O povoado é denominado de “lugar das casas” ou simplesmente “as casas”, e eles também utilizam as expressões “pra cima das casas” ou “pra baixo das casas”. Os termos “subindo” e “descendo” também podem ser utilizados da mesma forma que “pra cima” (ou “pra riba”) e “pra baixo”. Assim, “subindo” significa ir na direção contrária à correnteza (a montante ou para o lado da nascente do rio); “descendo” é seguir o sentido em que correm as águas (a jusante). Ao lembrar que os camponeses de Tombador (situado “rio abaixo”) também tinham roças na ilha da Itapera, na parte que ficava mais “pra baixo”, já nas imediações de Tombador, Mano acrescenta: “era a mesma ilha, descendo”. A classificação do que é “alto” ou “baixo” está igualmente ancorada no rio. Toda a área sujeita à inundação (vazante) é concebida como baixa, em oposição à área da caatinga, considerada alta por estar totalmente fora do alcance do rio, mesmo em suas enchentes altas. Assim, quando dizem que a serra do Sem-Sem ficava “pra cima” da beira da lagoa do Sem-Sem (no pé da serra), entende-se não só que a serra é mais alta em termos de tamanho, mas também que é alta porque o rio ali jamais chegara: a serra estava em área de caatinga. Já a lagoa do Sem-Sem, ao contrário, é considerada baixa, porque era frequentemente coberta pelas águas: ficava em área de vazante. O fato de um local ser considerado “alto” não necessariamente implica em alguma elevação do terreno. Em Juazeiro, a jusante de Sobradinho, conheci o povoado ribeirinho de Correnteza (não atingido pela barragem), que sempre retirou para um local de nome “Alto do Povo”, por detrás das casas. Para minha surpresa, este lugar não é mais elevado nem está situado em nenhuma serra: é “alto” porque está longe do rio, fora do alcance de suas águas.4 Os termos subir e descer remetem não só ao sentido da correnteza do rio (de “cima” para “baixo”) mas também ao seu movimento de cheias e vazantes (“para cima” e “para baixo”): quando o rio enche, está “subindo”; quando vaza, está “baixando” ou “descendo”. Da mesma forma que “para cima” e “para baixo”, também “frente” e “costas” (ou “atrás” e “por detrás”) são orientações espaciais estabelecidas em função do rio. A direção é dada por ele: a frente, seja
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do povoado, seja das roças ribeirinhas, é o São Francisco; as costas, o sentido oposto ao rio, voltado para a caatinga. A frente está sempre em contato com a água. Mesmo nas roças na beira de lagoas, a frente é o lado da água. A importância do rio e do lugar das casas como os principais pontos de referência espacial deve ser compreendida à luz do conjunto de atividades sociais tradicionalmente desenvolvidas pelos camponeses: estavam todas associadas aos movimentos do rio e tinham no povoado o seu referencial. Este sistema de orientação não se restringe, em absoluto, a Itapera, mas é acionado em todos os lugares que visitei na região da barragem, como em Correnteza (município de Juazeiro) e Mundo Novo (Sento Sé), na ilha do Lameirão ou em Boa Sorte (Remanso). Também foi observado por Duqué (1980: 154), em pesquisa realizada um pouco antes da formação do lago, no município de Casa Nova: “O rio é tão importante que serve de referência para situar os lugares: Bem-bom está ‘acima’, isto é, subindo o rio, Sobrado está ‘abaixo’. Sobe-se para Remanso, desce-se para Juazeiro. E mesmo a 5 km de suas margens, o menino que me serve de guia me grita: ‘Desça’, designando um ponto no pico de uma elevação no terreno.” A generalidade deste sistema também pode ser atestada pela perda de orientação espacial de camponeses de Sobradinho que foram “relocados” no Projeto de Colonização de Serra do Ramalho (município de Bom Jesus da Lapa, Bahia), em local muito afastado do rio. Quando ali chegaram, “estavam sentados em frente de casa e não sabiam em que direção se encontravam, se acima ou abaixo do local em que moravam” antes, na beira do rio.5 O mesmo ocorreu com camponeses da área do reservatório de Itaparica, no rio São Francisco, que também foram “relocados” pela CHESF. 6 Esta perda de orientação pode ser entendida a partir do sistema de referências espaciais evidenciado no mapa da Itapera velha. Em Serra do Ramalho, os camponeses ainda possuem um ponto de ancoragem a partir do qual “irradiar”: ganharam novas casas. O que lhes falta é o rio, a direção de irradiação, o eixo de referência, princípio que permite distinguir as direções, os quatro lados do mundo plano. E do mundo profundo também: não há alto e baixo sem cheia e beira. Desorientaram-se, não por falta de lugar das casas, mas por lá não existir beira.
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3. Itinerários organizadores do desenho velho Nos próximos itens, descrevo em detalhe cada um dos itinerários seguidos por Mano durante a elaboração do Desenho velho. Não por acaso, todos conduzem aos locais onde desenvolviam as principais atividades sociais: cultivo das roças (na ilha, ilhote e terra firme); criação de gado; pesca nas grandes lagoas (rancharias); retiradas; interação com os vizinhos. Foi a rememoração de cada um desses trajetos que tornou possível a própria concepção de algo como um mapa do antigo território. Veremos que o resultado final está estruturado a partir da oposição entre “área da vazante” e “área da caatinga”, e entre “área de Itapera” e área dos vizinhos, os povoados de Andorinhas, Tombador e Aldeia, todos localizados na antiga beira do rio. a) As rancharias nas lagoas do Sem-Sem e do Saco Uma vez estabelecida a direção do rio e a posição do povoado, Mano relembra as inúmeras lagoas que se espalhavam por toda a área da vazante, destacando as maiores de todas: Sem-Sem e Saco, onde realizavam grandes pescarias com rede de arrasto, nos meses de agosto e setembro, em plena época da seca. Como veremos em detalhe no Capítulo III, os camponeses dividem o ano em duas estações contrastadas, que remetem ao regime de águas do rio: a “cheia”, de novembro a março, aproximadamente; a “seca”, de abril a outubro. O tempo da cheia coincide com o “inverno” (estação chuvosa); o tempo da seca, com a ausência de chuvas (usam o mesmo termo: na “seca”). Na beira dessas lagoas, montavam grandes acampamentos, denominados de “rancharias”, integrados por um grupo de pescadores de um mesmo “corpo de rede”, suas mulheres e filhos. Cada corpo de rede era composto por cerca de vinte homens que pescavam juntos com uma rede de arrasto e com os mesmos barcos, sob a liderança de um chefe, geralmente um pescador mais velho e mais experiente, conhecido como “maiano”, “chefe de rede” ou “redeiro”. Em Itapera havia quatro ou cinco corpos de rede, que arranchavam na beira das lagoas do Sem-Sem e do Saco, procedimento também adotado pelos povoados vizinhos.
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Ilhote da Veneza
Município de Remanso Rio
Andorinhas
Sã o
Fra
n c is co Ilha da Itapera
Itapera velha Ariá
Lagoa do Sem-Sem Serra do Sem-Sem
Lagoa do Saco
Tabuleiro
Município de Sento Sé
Serra
Fonte: Carta Topográfica do Vale do São Francisco – Médio São Francisco: Sobrado a Pilão Arcado (1959).
Itapera velha Estrada Rio São Francisco Lagoas
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Itapera velha
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Ilha da Itapera
Lagoa do Sem-Sem
Itapera velha
Tabuleiro
Ariá Lagoa do Saco
Serra do Sem-Sem Tombador
Município de Sento Sé Fonte: Carta Topográfica do Vale do São Francisco – Médio São Francisco: Sobrado a Pilão Arcado (1959).
Estrada Rio São Francisco Lagoas
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Mano desenha primeiro a lagoa do Sem-Sem, na vazante de cima, e comenta que ela era bem maior que a lagoa do Saco, com três “léguas” de comprimento. Essa medida de extensão é amplamente utilizada para o cálculo de longas distâncias, o que não significa que desconheçam sua equivalência em quilômetros: toda vez que falam em “léguas”, logo depois fazem a sua conversão, por saberem que só operamos com quilômetros (1 légua, cerca de 6 km). O mesmo ocorre com a “tarefa”, sua medida de superfície, que também sabem converter para hectares (1 tarefa, cerca de 0,33 ha). O tamanho das roças na velha Itapera era calculado em tarefas. Já a “braça”, medida com os dois braços abertos e bem esticados, quantifica o tamanho das redes de pesca. Eles também sabem convertê-la em metros (1 braça, cerca de 1,5 m). Itinerário a1: Itapera g rancharias no Sem-Sem (corpos de rede) O primeiro itinerário organizador do Desenho velho, a partir do qual serão nomeadas e localizadas várias lagoas na área da vazante de cima, é aquele que conduz às rancharias na lagoa do Sem-Sem. Logo após desenhá-la, Mano relembra o trajeto percorrido de Itapera até lá: saíam por detrás das casas, passando por um “corredor”, situado entre a roça de Pedro, na lagoa da Porta, e a roça de Seu Domingos, na lagoa do Jinipapo (de Jenipapo), e seguiam por um “caminho” (Mapas II e III, itinerário a1), margeando as lagoas do Jinipapo, Rebancerada (de ribanceira) e Sirutim (de serrotinho), até chegar na lagoa dos Anjicos (Angicos). Mano faz uma distinção importante entre “corredor” e “caminho”, que vai nos ajudar, mais adiante, a entender a relação com a terra dos camponeses na borda do lago, sobretudo a sensação generalizada de confinamento nos novos povoados: “Porque a gente bota ‘caminho’, porque lá não tinha cerca assim, uma dum lado e outra doutro. Porque se tivesse cerca de um lado e de outro a gente chamava de ‘corredor’”. O único corredor que havia em toda a área abrangida pelo Desenho velho era justamente aquele que passava entre duas roças cercadas, na beira das lagoas da Porta e do Jenipapo. A via mais frequente pela qual transitavam na área da vazante era o “caminho”. Todas as lagoas mencionadas eram ligadas por “barras”, por onde podiam passar de barco. Mano desenha todas as lagoas no trajeto até Angicos, ligando-as entre si. Entre a lagoa do Sirutim e a lagoa dos Anjicos, escreve “barra”. Quando cheias, as barras permitiam que circulas66 As enchentes altas como marcos espaciais
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sem de barco por toda a região. Havia também algumas barras que ligavam as lagoas ao rio São Francisco: ––– Mano: A lagoa do Jinipapo ligava na lagoa da Rebancerada; a lagoa da Rebancerada ligava noutra lagoa de nome Sirutim; aí a lagoa do Sirutim ligava nos Anjicos. Esta lagoa recebia a água que vinha do rio: a barra jogava na Vaca Morta. Vaca Morta, e aqui, finalmente, Sem-Sem. Mano desenha enquanto fala: entre o rio e a lagoa dos Angicos, insere a lagoa da Vaca Morta, que recebe água do rio. Ali, escreve “barra Sem-Sem”: “quando o rio enchia, a água corria por ali, e quando o rio vazava, ela secava”. As pescarias no Sem-Sem só começavam depois que a barra com o rio secava, pois era assim que os peixes ficavam aprisionados na lagoa, como num imenso viveiro. Quando o rio vazava, secavam também as barras que entre-ligavam as lagoas da vazante. Apenas as mais fundas permaneciam cheias, como a barra entre Angicos e Sem-Sem. Esta barra era importante, pois quando chegavam na lagoa dos Angicos, podiam seguir de barco até o Sem-Sem. O trajeto até Angicos era mais trabalhoso, percorrido a pé, com as mulheres e filhos, carregando os “trens”. O início da temporada de pesca no Sem-Sem tinha data marcada pela Prefeitura. Mas eles já saíam de Itapera um dia antes, fazendo a mudança: todos os corpos de rede iam juntos, levando tudo que era necessário para uma rancharia: panelas, esteiras, sacos de farinha, feijão, açúcar, etc. Partiam ao nascer do sol, para chegar na lagoa dos Angicos por volta do meio-dia, quando almoçavam. Depois, seguiam de barco, cada grupo rumando para um local previamente escolhido, que já havia sido limpo pelos homens na beira da lagoa do Sem-Sem, onde ficariam arranchados. Itinerário a2: Itapera g rancharias no Sem-Sem Bem antes do início da temporada de pesca no Sem-Sem, os homens de cada corpo de rede saíam de Itapera com seus barcos, subindo o rio até a barra do Sem-Sem, que já estaria seca por essa época. Os barcos eram carregados nas costas até a lagoa da Vaca Morta, onde podiam embarcar novamente: sua barra com a lagoa dos Angicos raramente secava, porque era mais funda. Deixavam os barcos ancorados nos Angicos (Mapas II e III, itinerário a2), e voltavam para buscar mulheres e filhos em Itapera. Mano segue explicando como os homens faziam com os barcos, traçando todo o percurso. Seu Domingos, animado com o relato das rancharias, relembra que seu corpo de rede costumava esperar o rio encher Uma retirada insólita
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novamente, em meados de novembro ou dezembro, para tirar os barcos da lagoa do Sem-Sem, “quando a barra da Vaca Morta com o rio enchia”. Eles permaneciam no Sem-Sem até “acabar” o peixe: só saíam de lá quando não valia mais a pena. Mano assinala o local das rancharias de Itapera, em volta da lagoa, divididas entre a “parte da caatinga” e o “lado da vazante”: “Uma quantidade de pessoas se arranchavam na borda da lagoa do Sem-Sem por esse lado, e outra parte também se arranchava por aqui, por esse lado, na parte da caatinga. Do lado da vazante tinha mais gente”. Distribuídas pelos dois lados da lagoa, as rancharias de Itapera nunca se afastavam muito da “ponta de cima”, perto da lagoa dos Angicos (Mapas II e III). O lado da vazante era também chamado de “banda [ou lado] dos passarinhos”; a parte da caatinga, de “banda da serra”, porque “a lagoa ficava bem do lado da serra do Sem-Sem” – agora acrescentada ao desenho. Mano ficava numa rancharia que ia sempre para a “banda dos passarinhos”, a mais disputada, porque “na parte da caatinga havia muito gado à solta, que incomodava o pessoal na rancharia: as mulheres reclamavam”. O lado da serra era menos concorrido, também porque ficava muito próximo da serra do Sem-Sem, e eles preferiam locais mais amplos para “se arrancharem”. Havia, portanto, dois principais trajetos até a lagoa do Sem-Sem: um, utilizado apenas pelos homens, membros de um corpo de rede (Mapas II e III, itinerário a2); outro, pelos homens, suas mulheres e filhos, que juntos formavam uma rancharia (itinerário a1). No primeiro trajeto, saíam embarcados de Itapera, rio acima, até a barra do Sem-Sem, e dali seguiam a pé, carregando os barcos nas costas até a lagoa da Vaca Morta, onde voltavam a embarcar, navegando até a lagoa dos Angicos. Lá ancoravam os barcos. Voltavam a pé pelo mesmo caminho utilizado para trazer as mulheres e filhos. Este segundo trajeto era primeiro percorrido até os Angicos por todos os corpos de rede, que saíam juntos do povoado, a pé, no mesmo dia. Na lagoa dos Angicos, os corpos de rede se separavam, seguindo embarcados até os locais de rancharia no Sem-Sem, previamente escolhidos e limpos pelos homens. Itinerário a3: Itapera g rancharias no Saco Assim que termina de traçar essas duas vias para o Sem-Sem, Mano começa a desenhar a lagoa do Saco. O modo como retraça todo o percurso até lá é o mesmo adotado para o Sem-Sem: desenha uma série de lagoas interligadas, que se estendem por detrás do povoado: lagoa da Porta, do 68 As enchentes altas como marcos espaciais
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Arriá (Ariá, Arial ou Areial), Mané Caetano e, finalmente, lagoa do Saco (Mapas II e III, itinerário a3), distante cerca de 9 km de Itapera, apenas 1 km a mais do que a lagoa do Sem-Sem, onde pescavam primeiro. Somente quando diminuía a produção de peixe é que se mudavam para a lagoa do Saco. Mas nem todos procediam assim: o corpo de rede de Seu Domingos, do qual Mano fazia parte, só pescava no Sem-Sem – daí a maior riqueza de detalhes de que dispomos sobre as rancharias ali realizadas. A mudança para a lagoa do Saco não era menos trabalhosa, pois também carregavam os barcos e redes de arrasto nas costas. Passavam pela lagoa da Porta (já desenhada atrás do povoado) e só quando chegavam no Arriá é que podiam embarcar: ––– Mano: Aí, pegava novamente os barcos nas costas e vinha trazer até aqui em Itapera – porque a lagoa da Porta também tava encombrada [isolada], não tinha saída. A lagoa do Sem-Sem também tinha secado já a barra. Aqueles barcos grande, antes da barra secar, eles já tirava, porque era muito grande; e aqueles barcos menores, eles se juntavam em grupos de 12 homens, um dum lado e outro do outro, e suspendiam aquilo nas costas, e viajava daqui da Itapera até o Ariá. O Ariá era uma lagoa, não secava assim muito rápido. Era quase uma légua até o Ariá; do Ariá eles vinham aqui no Ariá grande, pequeno, e entrava na lagoa do Saco. Nesta lagoa, as rancharias de Itapera ficavam no lado da vazante, na ponta junto à lagoa Mané Caetano. Mas havia também rancharias de outros povoados vizinhos, como a do “povo de Tombador”, que costumava ficar na ponta oposta a Itapera. Na lagoa do Saco ninguém fazia rancharia no lado da caatinga. b) As retiradas para o Tabuleiro e para o Ariá Itinerário g: estrada Itapera-Aldeia Ao desenhar o trajeto percorrido do Sem-Sem até o Saco, passando por detrás das casas, Mano comenta que eles cruzavam a “estrada” entre Itapera e Aldeia, povoado ribeirinho situado rio acima (não consta do Desenho velho, porque era bem mais distante: ver sua localização no Mapa V, p. 248). Peço para Mano me explicar a diferença entre “estrada” e “caminho”: na estrada (ou “rodagem”) passa carro; nos caminhos, anda-se a pé ou a cavalo. Mano desenha a estrada para Aldeia, contornando a lagoa e a serra do Sem-Sem (Mapas II e III, itinerário g): Uma retirada insólita
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––– Mano: Atravessava essa área aqui, que era a estrada que nós ia de Itapera pra Aldeia. Aí, nós atravessava por aqui, vinha pra Tabuleiro, que era onde também o pessoal se mudava quando o rio inundava tudo. Eles mudava daqui, vinha pro Tabuleiro. Uma quantidade ia pro Tabuleiro, e outra quantidade ia pro Ariá. Itinerários b: retirada para o Tabuleiro (b1) e Ariá (b2) Distante cerca de 6 km do lugar das casas, o Tabuleiro (ou Taboleiro) “era um monte de terra, um monte alto”. Nas suas imediações, Mano assinala uma cruz, marcando o lugar do cemitério de Itapera. Também caracterizado como um lugar alto, o Ariá ficava atrás da lagoa do mesmo nome, do lado da caatinga. Ali, Mano escreve “rancho pessoal”, para indicar o local onde montavam seus ranchos ou barracas provisórias. Em ambos os locais de retiro havia algumas roças de chuva, feitas durante uma retirada mais demorada. É possível visualizá-las na Carta Topográfica de 1959 (Mapa V), onde qualquer trecho de terra cercado é assinalado com pequenos retângulos. Na Carta, não há qualquer referência ao Tabuleiro, apenas vemos algumas roças ali concentradas; no Ariá, ao contrário, está escrito “fazenda Areial”. c) A estrada Itapera-Tombador (itinerário c) Além da estrada de Itapera para Aldeia (no lado esquerdo do Desenho velho), na outra direção partia a estrada para Tombador, povoado ribeirinho localizado cerca de 8 km rio abaixo, que era quase do mesmo tamanho que Itapera: “morava a mesma quantidade de gente”. Para localizar Tombador, Mano pede mais uma folha de papel (folha 2), para estender a beira do rio abaixo de Itapera, prolongando o desenho para o lado direito (Mapas II e III, itinerário c). Após a colagem, escreve “Tombador velho” no último ponto à direita do desenho.7 A estrada ItaperaTombador é desenhada como uma linha divisória entre a área da vazante e a área da caatinga: ––– Mano: Aí, nós vinha aqui na estrada – a estrada aqui vinha beirando a caatinga. Aí, depois, lá pra baixo, ela ia fazendo isso, olhe, pra pegar a margem do rio: a estrada vem aqui, descendo. Aí, ela chegava novamente na borda do rio, onde chegava no Tombador aqui. [...] Aqui na ponta da lagoa do Saco era que tinha a estrada; a gente entrava na estrada pra caatinga, descendo. Da lagoa do Saco pro rio dá 70 As enchentes altas como marcos espaciais
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uns três quilômetros, que ela abre assim, em frente à caatinga. Logo depois da lagoa já era a caatinga; esse lado aqui já era a caatinga. A “estrada para Tombador”, assim como a “estrada para Aldeia”, eram os nomes de trechos de uma estrada municipal, construída para ligar a cidade de Sento Sé com os povoados ribeirinhos da parte oeste do município, até Limoeiro. Seu traçado era paralelo ao rio mas beirando a caatinga, justamente para não ser destruída pelas águas numa enchente alta. Não era a estrada que determinava o limite com a caatinga, era o limite, marcado pelo alcance máximo do rio, que determinava o seu traçado. Da estrada para os povoados ribeirinhos partiam inúmeras “variantes”. Na Carta Topográfica (Mapa V), a estrada principal é indicada por um tracejado; sua ligação com Itapera, com um pontilhado. Ao contrário da Carta Topográfica, onde não há um centro de referência, no Desenho velho o lugar das casas é o centro a partir do qual irradiam todos os caminhos e estradas. Do ponto de vista dos camponeses, as estradas eram duas, e saíam de Itapera em direção aos povoados de Tombador, rio abaixo, e Aldeia, rio acima. Mas, antes de levá-los até os vizinhos, a estrada conduzia aos locais de retiro. A rigor, a ligação de Itapera com cada uma das estradas eram os caminhos que levavam aos retiros: Ariá, na direção de Tombador; Tabuleiro, na direção de Aldeia. Era porque ficavam junto à caatinga que encontravam a estrada municipal Sento Sé-Limoeiro. O trecho da estrada entre Tabuleiro e Ariá foi omitido do Desenho velho. Para Mano, era uma ligação entre dois pontos periféricos, num mapa organizado rigorosamente a partir de um ponto central irradiante. Essa omissão permite criar uma descontinuidade na estrada municipal, a ponto de se formarem duas estradas distintas, com origem em Itapera:
Itapera
Itapera Limoeiro (Aldeia) (Tabuleiro)
(Ariá)
Tombador
Visão da Carta Topográfica
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Limoeiro (Aldeia) (Tabuleiro)
(Ariá)
Tombador
Visão dos camponeses de Itapera
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d) As roças de terra firme na vazante de baixo e na vazante de cima Na vazante de baixo A vazante de baixo era toda aquela área compreendida entre Itapera e Tombador, e entre a estrada Itapera-Tombador e o rio São Francisco. Era considerada “larga” e “desocupada”, atributos que ficarão mais claros quando Mano falar dos percursos ali traçados pelo gado e seguir o trajeto do “caminho da vazante”: ––– Mano: Aí, ficava aqui pra nós esse espação todo aqui, olhe: lagoa do Saco, Tombador. Isso aqui, olhe, daqui, da lagoa do Saco pro rio, era longe, e era vazante, era vazante mesmo! Boa, da gente criar tudo, criar gado, criar tudo, era. Era uma área larga! Olha lá, Tombador onde tá. Aí ficava todo esse espaço aqui, dessa área. Isso aqui tudo espaço desocupado! Com pequenas lagoas por aqui, que depois nós vamos completar. Mano começa a desenhar as lagoas que ainda faltam na vazante de baixo, e vai relembrando os caminhos utilizados para percorrê-la: ––– Mano: Aí, voltando ali pra dentro, aquela primeira lagoa que saía de Itapera, aqui na ponta em baixo de Itapera, tinha aquele caminho por dentro da vazante – caminho que se destinava pras roças que iam até Tombador. E aqui, tinha as cercas do pessoal dessas roças aqui, né? Eu vou botar aqui: “roças cercadas”. Itinerário d1: roças de terra firme na vazante de baixo Entre Itapera e Tombador, junto à margem do rio, havia inúmeras roças dos camponeses, uma ao lado da outra, onde realizavam seus cultivos. Eram as “roças de terra firme” (Mapas II e III - itinerário d1). Na Carta Topográfica (Mapa V), é possível perceber tal sequência de propriedades cercadas junto à margem do rio, acima e abaixo de Itapera. As cercas eram feitas para proteger os cultivos do gado, das cabras, porcos e ovelhas, criados soltos por toda a área da vazante. Eles apenas cercavam as laterais e “costas” das roças de terra firme, enquanto a “frente” (junto à água) ficava “aberta”, já que o rio servia de barreira natural, impedindo a entrada de animais: ––– Mano: Cercava pelos três lados e deixava aberto para o rio. Continuava uma roça aqui, emendava aqui na minha. A cerca era de madeira; não usava arame. Tudo de madeira; a gente usava, lá, tudo de
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madeira. A gente criava porco, criação [caprinos e ovinos] e tudo, e de madeira era garantido, não entrava nada, e arame é danado pra entrar. A distinção feita por Mano entre arame e madeira refere-se a uma situação presente: o uso do arame veio junto com a barragem. A CHESF distribuiu rolos de arame para os camponeses cercarem seus lotes agrícolas nos novos povoados da beira do lago. No tempo do velho rio, só faziam cercas de madeira, coletada na área da vazante. Utilizavam apenas algumas espécies de árvores, que sabiam ser mais resistentes à água, pois o rio costumava cobrir as roças de terra firme, total ou parcialmente, em suas enchentes anuais. Itinerário d2: caminho da vazante Nas “costas” das roças de terra firme, bem rente à cerca, passava um caminho muito percorrido: o caminho das roças: ––– Mano: Aqui descia o caminho da vazante [escreve “caminho vazante”]. Quando ele chegava mais aqui embaixo, ele fazia isso, beirando aqui a cerca, né? Esse caminho aí de dentro ia até no Tombador. Aqui, no caminho da vazante, nós vamos lembrar o nome daquelas lagoas, viu? Aqui saía o caminho da vazante. Quando chegava aqui mais embaixo, tinha outro caminho, que fazia isso. Agora vamos ligar aqui o “Alto do Chiqueiro” [escreve o nome no Desenho]. Aqui, faz de conta que foi a entrada do “Alto do Chiqueiro”. Vinha no caminho de Itapera, entrou no “Alto do Chiqueiro”. Chegava aqui no “Alto do Chiqueiro”, nós descia pra ir pra lagoa do Canto. A gente descendo depois da lagoa do Canto, ia pro Chico Grande. Chegava aqui, tinha outro caminhozinho que fazia isso [faz um tracejado]. Entre a lagoa do Canto e do Chico Grande, tinha uma lagoa lá na frente, por nome de Jatobazinho [de Jatobá]. A gente fazia caminho por todo lado, não era, Seu Domingos? ––– Seu Domingos: Chico Grande, você botou aí o Chico Grande, não foi? Abaixo do Chico Grande, um pouquinho, era os Calumbi, Calumbizinho. Chico Grande, depois vem o Calumbizinho mais em baixo, né? ––– Mano: Tinha tanta lagoa que a gente até esquece! ––– Seu Domingos: Calumbizinho e Calumbi Grande, só tem um alto, no meio pra lagoa do Saco. Só tem um alto no meio. Da lagoa do Saco pra Calumbi Grande dá uns 300 metros. Saindo de Itapera pelo caminho da vazante (Mapas II e III, itinerário d2), chegavam num local “mais embaixo”, conhecido como “Alto do ChiUma retirada insólita
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queiro”. Dali, seguia um outro caminho, margeando uma série de lagoas. Ao desenhá-las, Mano comenta que havia ainda muitos outros caminhos e lagoas na vazante de baixo, mas que não caberia inseri-los no desenho: só entram os caminhos mais usados e as lagoas onde mais pescavam. Ao continuar pelo caminho da vazante, acompanhando as roças de terra firme, Mano assinala o limite entre o “pessoal de Itapera” e o “povo do Tombador”: “Quando terminava as roças do pessoal da Itapera, emendava com o povo do Tombador. Acima [da lagoa] das Lontras um pouco, já pegava o povo do Tombador. Ali, se entrasse pra dentro da vazante, ia chegar no Jatobazinho. Lontras já ficava na área de Tombador.” Toda a beira do rio, entre Itapera e Tombador, era uma sequência de “roças de terra firme”, uma ao lado da outra: as mais próximas pertenciam a Itapera; as mais afastadas, e mais perto de Tombador, eram do “povo” de lá. O mesmo ocorria com as roças de Andorinhas, povoado vizinho, rio acima, também na beira do rio (Mapa V): Mano voltará a falar nisso ao descrever a vazante de cima. Itinerário d3: limite Itapera/Tombador (roças) Na Carta Topográfica (Mapa V), entre Itapera e Tombador, as roças de terra firme estão tracejadas, acompanhando a margem do rio, de forma contínua e indiferenciada. No Desenho velho, a lagoa das Lontras é desenhada por Mano para assinalar o limite entre as roças de Itapera e Tombador (itinerário d3). A cada povoado ribeirinho corresponde uma determinada área, que compreende não apenas as roças de terra firme, mas toda aquela área da vazante que se estende entre tais roças e a caatinga. Na vazante de cima “Agora o negócio tá aqui nas roças daqui de cima”: assim que termina a vazante de baixo, Mano começa a desenhar as lagoas e roças que ainda faltam na vazante de cima. Lá também, a beira do rio era uma sequência de “roças de terra firme” do povo de Itapera, que se estendiam até a área de Andorinhas, o primeiro povoado vizinho rio acima. Mano pede mais uma folha (folha 3), para aumentar a linha do rio para cima, do mesmo modo como havia feito com Tombador, para baixo. Após a colagem (o desenho aumenta para o lado esquerdo), escreve “Andorinhas velha”. Ao contrário de Tombador, que agora faz parte da nova Sento Sé, o novo povoado de Andorinhas, na borda do lago, continua vizinho da nova Itapera: apenas recuaram caatinga adentro. 74 As enchentes altas como marcos espaciais
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Itinerário d4: roças de terra firme na vazante de cima Imediatamente acima da Itapera velha começava uma sequência de “roças de terra firme”, que seguiam “emendadas” (uma ao lado da outra) até quase a barra da lagoa do Sem-Sem com o rio (Mapa II e III, itinerário d4). Logo abaixo da barra, não havia nenhuma roça, porque a terra ali era imprópria para a agricultura (trecho de barranco, com muito espinho). Mano escreve “esp. cabeça viado” (espinho cabeça-de-veado, planta que só nasce em terreno arenoso). Da barra para cima, desenha mais algumas roças de Itapera, que acabam emendando com as de Andorinhas. Itinerário d5: limite Itapera/Andorinhas (roças) Neste trecho, mesmo com algumas roças de Itapera, Mano escreve “Planta Andorinha”, como se ali já fosse “área de Andorinhas” (Mapa II, itinerário d5). Subindo um pouco, escreve “área de jurema” (árvore), uma “área desocupada”, ou seja, sem nenhuma roça, porque não prestava para o plantio (terra ruim, que desbarrancava com facilidade). Logo acima, escreve “ilha das mulheres”, explicando que essas “roças de terra firme” eram, originalmente, um “ilhote”, que acabou emendando com a terra firme. Mano explica a diferença entre ilha, ilhote e coroa: a “ilha” diferencia-se do “ilhote” porque tem “terras baixas” (anualmente cobertas pelo rio) e “terras altas” (somente atingidas nas enchentes altas). As terras baixas são chamadas de “lameiros”, devido à lama que fica ali depositada, na vazante do rio. O ilhote só tem terras baixas, que costumam desaparecer sob as águas, na época da cheia. São consideradas ainda mais férteis e produtivas que as terras das ilhas, porque são totalmente renovadas pelas cheias anuais. As “coroas” (ou ilhotes em formação) são verdadeiros bancos de areia no meio do rio, onde ainda não é possível plantar. Frequentemente, uma coroa começa a se formar na ponta de baixo de uma ilha ou de um ilhote. Sempre à mercê das águas, as terras dos ilhotes corriam o risco de serem levadas pela correnteza. Para evitar a perda, plantavam um tipo de capim, o zozó, que “segurava” a terra. Assim, as roças tinham sua frente aumentada pela lama do rio, que ficava presa no zozó ali plantado. Foi isso que aconteceu com o pequeno “ilhote das mulheres”, situado bem ao lado da terra firme: “foi criando uma lama, um lameiro”. O ilhote ganhou esse nome porque apenas algumas viúvas de Andorinhas tinham roças lá. Todos os anos, antes da cheia, elas plantavam zozó. Com isso, o Uma retirada insólita
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ilhote foi aumentando até ficar “pegado” com a terra firme. Os camponeses denominam esta técnica de “plantar ilha”. As roças no ilhote não precisavam de cercas: apenas alguns mourões (marcos de madeira) separavam uma da outra. Porém, quando o “ilhote das mulheres” juntou-se com a terra firme, as roças foram logo cercadas, porque ficaram à mercê dos animais que circulavam livremente pela vazante. Na terra firme, os animais eram criados soltos e as roças eram cercadas; nas ilhas e ilhotes, ao contrário, não havia cercas: era proibido criar qualquer tipo de animal, exceto amarrado. Este contraste entre a terra firme e as ilhas ou ilhotes é facilmente identificado na Carta Topográfica, onde apenas se destacam as propriedades cercadas, localizadas na beira do rio, no Tabuleiro e no Ariá. Nas ilhas, como na maior parte da Carta, não há qualquer indício de cercas, o que dá a impressão (falsa) de que essas terras não eram aproveitadas, e que ali não havia qualquer divisão de terra (Mapa V, p. 248-252). Itinerário d6: caminho da vazante de cima Também na vazante de cima havia um caminho que acompanhava as roças de terra firme até Andorinhas, passando por uma série de lagoas na área da vazante, cujos nomes Mano tenta lembrar: “A lagoa dos Canudos, uma lagoa pequena, ficava no caminho que ia para Andorinhas. Aí tinha tanta lagoa que a gente não sabia nem o nome; vamos botar só as principais, aquelas que a gente pescava: Poque-Poque, Caxingó .... Caxingó, Lontras – aí já fica na parte de Andorinha.” Entre Itapera e a barra do Sem-Sem, havia ainda as lagoas de nome Poque-Poque, Marruá, Barbados, Canudos e Barrinha. Mas Mano desenha apenas Canudos e Marruá (Mapas II e III, itinerário d6). Na área de Andorinhas, após a área de jurema, ficavam as lagoas de nome Caxingó, Lontras e Pajeú, que ele enumera de cabeça, sem inseri-las no desenho. Por toda a área da vazante havia também inúmeros “poços” (ou lagoinhas), onde pescavam principalmente as mulheres e crianças, na época da seca. A pesca era feita com anzol, mas também utilizavam outra técnica: ficavam rodando a água do poço até os peixes boiarem, para então matá-los a facão. No final, sobravam apenas alguns peixes bem pequenos, as piabinhas, comidas por aves da vazante, como o jaburu. A lagoa do Sem-Sem, seguida pela lagoa do Saco, era a mais concorrida: ali eles pescavam toneladas de peixe. A Prefeitura de Sento Sé marcava o início das pescarias e cobrava uma taxa por cada corpo de 76 As enchentes altas como marcos espaciais
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rede. As outras lagoas da vazante não eram fiscalizadas. Durante todo o tempo da seca, enquanto o rio não “caía” nas lagoas pelas barras, ali pescavam à vontade, quando necessário. Somente no tempo das rancharias é que a pesca passava a ser a principal atividade. Quando pergunto a Mano sobre o número de roças de terra firme de Itapera (Mapa IV), ele faz uma distinção entre as roças localizadas “de Itapera para cima” (vazante de cima) e “de Itapera para baixo” (vazante de baixo). Auxiliado por Seu Domingos e Diana, juntos enumeram os nomes dos donos de cada roça. Partindo sempre da primeira roça situada logo após o povoado, a ordem de rememoração acompanha a sequência de roças vizinhas até chegar na área dos outros (do povo de Andorinhas ou de Tombador). Eles começam com as roças “subindo”: “a primeira roça de Itapera para cima era a roça de Antônio R.; depois vinha a roça de Dona Isabel; depois, de Seu Brás”, etc. De Itapera até a “área de espinhos e barranco”, que precedia a barra do Sem-Sem, eram 12 roças (Mapa IV). Entre a barra e a área de jurema, havia duas roças de Itapera (de Arceno e de Jaime) e uma de Andorinhas (de Manoel), bem no meio. (Mapa IV, itinerário d4). Ao todo, na vazante de cima, 14 roças de Itapera na terra firme. Na vazante de baixo, a primeira roça “das casas pra baixo” era de Jaime; a segunda, de João, etc. Mano enumera os donos de 13 roças de Itapera até uma “área solta”, de “barranco e jurema” (imprópria para o plantio), situada entre a roça de Felipe e a roça de Sancho. Depois, vinha a roça de Ana Maria, que já emendava com as roças de Tombador (Mapa IV, itinerário d1). Ao todo, na vazante de baixo, 15 roças de Itapera na terra firme. e) As roças na ilha da Itapera Itinerário e2/e3: roças de Itapera e Andorinhas Mano procura lembrar quantas roças de Itapera havia na ilha. Também aqui ele faz uma distinção entre as roças situadas “das casas para cima” e “das casas para baixo”. Começa com a “roça de João”, que ficava “em frente à igreja, do outro lado” (do rio), seguida pela roça de Abraão e de uma “área desocupada”. Depois, relembra o nome de cada um dos donos de mais sete roças “para cima”, até esbarrar na área de Andorinhas. Ao todo, nove roças de Itapera na ilha, “das casas para cima” (Mapa IV, itinerário e2/e3). Uma retirada insólita
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A primeira roça “para baixo das casas” era de Santiago, ao lado da roça de João, seguida de mais outras seis, até a roça de Miguel (“um moço de Pau-a-Pique, do outro lado do rio, casado com uma moça de Itapera”) e a roça de João R., junto à barra do rio com a lagoa do Cocundo Grande (ou Cocundo de Cima), situada no interior da ilha. Na Carta Topográfica (Mapa V), esta lagoa tem o nome de “lagoa dos Patos”, e a lagoa que aparece com o nome de “Cocundo”, Mano chama de “Cocundo Pequeno” ou “de Baixo” (desenhada na ponta de baixo da ilha da Itapera). Itinerário e2/e1: roças de Itapera e Tombador Depois da barra, vinha a roça de Francisco, uma “área vazia”, e a roça de José, que era a última roça de Itapera (Mapa IV, itinerários e2/e1). Ao todo, 11 roças “das casas para baixo”. Havia ainda muitas outras roças de Itapera na ilha, situadas “nas costas” das roças ribeirinhas, mas eles só lembraram das que ficavam “de frente” para a água. Também havia muitas roças de Tombador, numa parte da ilha conhecida por outro nome: ––– Mano: Aí, quando chegava mais aqui embaixo, aí já vinha a ilha: a gente chamava “ilha do Tombador”. ––– Eu: Tinha outra ilha ali, mais para baixo da ilha da Itapera? ––– Mano: Era a mesma ilha descendo, não era Seu Domingos? Que era a “ilha do Chiquinho”. Aí, lá, cortava só uma barra, assim, pelo meio do rio. Agora, aí já era a “ilha do Tombador”. Na propriedade de Seu Chico Lampião era a divisa da ilha, da área de Itapera para Tombador. Quando alagava, que cobria, aí ela cortava. Só cortava quando o rio enchia. Tinha uma barra que fazia a divisão; saía bem no canto, embaixo, na roça de Seu Francisco. Aí, depois continuava o pessoal de Tombador. Itinerários e: planta Tombador (e1), Itapera (e2), Andorinhas (e3), Umbuzeiro (e4) A barra separava as áreas de Itapera e Tombador. Na parte de Tombador (“ilha do Chiquinho” ou “ilha do Tombador”), Mano escreve “Pessoal Tombador”, para marcar bem a diferença (Mapas II e III, itinerário e1). Na ilha da Itapera propriamente dita, plantavam camponeses de Itapera, Andorinhas e Inibuzeiro (Imbuzeiro ou Umbuzeiro), povoado ribeirinho do outro lado do rio, no município de Remanso (Mapa V). As roças de Itapera ficavam na margem direita da ilha, bem em frente ao povoado. 78 As enchentes altas como marcos espaciais
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Mano escreve “Planta Pessoal Itapera” (Mapas II e III, itinerário e2). As roças de Andorinhas, também na margem direita da ilha, ficavam na ponta, em cima. Ali, Mano escreve “Planta Andorinhas” (Mapas II e III, itinerário e3). Os camponeses de Imbuzeiro plantavam só na margem esquerda da ilha. Ali, Mano escreve “Planta Pessoal Inibuzeiro, Remanso” (Mapas II e III, itinerário e4). f) As roças no ilhote da Veneza Em frente a Andorinhas, Mano desenha o “ilhote da Veneza”, cujos “lameiros” (as terras mais férteis) eram disputados por povoados das duas margens do rio: Itapera, Andorinhas, Favela e Caldeirão (direita); Marcos (esquerda). Na Carta Topográfica (Mapa V, p. 248-252), é possível localizar Marcos, mas não Caldeirão, citado como ponto de referência para delimitar o tamanho do ilhote: “ia até Caldeirão e passava ainda”. Na Carta, logo acima de Andorinhas, aparece o povoado de nome Veneza, seguido por Favela de Baixo e Favela. Caldeirão não consta da Carta, provavelmente por ser muito pequeno, com cinco famílias apenas. Mano esquadrinha o ilhote inteiro, escrevendo ali “Ilha da Veneza - Divisão de Loteamento”. Esse modo de perceber a distribuição de roças no ilhote parece ser uma projeção do presente sobre o passado, feita nos mesmos moldes daquela comparação entre cerca de arame e cerca de madeira. Sabemos que a ideia de loteamento veio junto com a CHESF, que distribuiu “lotes agrícolas” para os camponeses “relocados” na borda do lago. Toda a área em volta da Itapera nova foi loteada, dividida em 186 lotes agrícolas, localizados entre a serra da Melancia e os loteamentos da nova Sento Sé e dos novos povoados de Andorinhas e Aldeia. Não foi deixado nenhum espaço “livre” ou “desocupado”. É muito provável que Mano tenha empregado o termo “loteamento” para descrever o ilhote da Veneza, porque lá não havia nenhum espaço livre, nenhuma terra sobrando: estava todo “ocupado”. Seu Domingos tinha só uma roça no ilhote: “Lá não dava pra gente tirar muita roça de terra não, porque o ilhote era muito bom, todo mundo queria roça”. Por serem mais férteis e produtivas, as terras do ilhote eram mais disputadas do que as da ilha: o ilhote todo formava lameiro. O termo loteamento não é empregado para a ilha da Itapera, onde havia terra disponível (“lá sobrava terra”). As roças da ilha também eram maiores que as do ilhote. Uma retirada insólita
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O motivo principal para Mano falar em “loteamento” parece resultar da própria disposição das roças no ilhote, que não se distribuíam de forma linear, uma ao lado da outra, todas coladas na beira, como na terra firme. O ilhote inteiro era esquadrinhado e retalhado por mourões, que limitavam roças assimétricas, tanto as com “frente” (para a água) como as que ficavam “no centro”, no meio de outras roças. Na ilha havia apenas um alinhamento de roças “nas costas” das roças ribeirinhas: o “centro” (a maior parte da ilha) era “desocupado” (“lá a gente tinha roça e ainda tinha um mato aí”). A divisão de toda a terra disponível do ilhote numa concorrência ávida; a aglomeração de roças pequenas e acotoveladas, preenchendo integralmente um espaço limitado; a disputa acirrada por um pedacinho de roça espremido entre outros: tudo isso sugere analogias com os loteamentos da CHESF. Mas o principal parece ser a importância secundária da proximidade com a água na demarcação das terras. A disposição das roças no ilhote não era seriada, do modo como foram descritas as outras sequências, na ilha ou na terra firme: roças emparelhados em fila pela “frente” (junto à água). Nos loteamentos da CHESF, a grande maioria dos lotes não tem nenhum contato com água: não possuem frente. Terminam aí as semelhanças entre ilhote e loteamento: quando é o cercamento das terras que está em jogo, eles se diferenciam totalmente. No ilhote, as roças não eram divididas por cercas; na Itapera nova, todo o espaço em volta do povoado está cercado de arame, dividido entre os lotes dos camponeses. No ilhote e na ilha não havia cercas entre as roças, apenas alguns mourões, fincados no limite entre cada terra. A cerca era desnecessária: ninguém levava gado para o ilhote, onde toda a terra era aproveitada para o plantio; para a ilha, levavam apenas o gado mais magro, e só no auge da seca, deixando-o amarrado ou em pequenos cercados de madeira. Quanto à qualidade da terra, não há parâmetros de comparação: nada chega perto da fertilidade dos lameiros, muito menos os lotes da CHESF, em plena caatinga árida, seca e pedregosa. Itinerário f: do Sem-Sem para a colheita no ilhote Em meados de agosto, antes de se deslocar para o Sem-Sem, quem tinha roça no ilhote da Veneza (nem todos conseguiam) já havia plantado feijão-de-arranca, milho, abóbora e melancia. O tempo das rancharias era o tempo de maturação das plantas, colhidas entre setembro e novembro, antes do início da cheia. Do Sem-Sem seguiam direto para a 80 As enchentes altas como marcos espaciais
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colheita no ilhote. Mano indica o trajeto percorrido da beira da lagoa até o rio, nas imediações de Andorinhas, onde pegavam o barco para o ilhote (Mapa II e III, itinerário f). ––– Eu: Do Sem-Sem para o ilhote da Veneza, qual era o caminho? ––– Seu Domingos: Era carreirinho aí dentro da mata, aí. Era apertado, no meio dos paus [árvores]. Era caminhozinho de gado mesmo, dentro do mato. No tempo da colheita do feijão, as rancharias se desfaziam. Se a lagoa ainda estivesse dando muito peixe, os pescadores levavam mulher e filhos para o ilhote, deixando-os lá para começar a colheita. Seguiam através de inúmeros “carreiros” ou “caminhozinhos de gado”, espalhados por toda a vazante, e depois voltavam para a lagoa, até a produção de peixe ficar “fraca”, ou até o momento de finalizar a colheita no ilhote (limpar e ensacar feijão), que encerrava o tempo da pesca. g) A destroca na estrada Itapera-Aldeia (itinerário g/g1) Mano termina de desenhar a lagoa do Sem-Sem, aumentando-a em sentido paralelo ao rio. Antes, havia desenhado apenas um pedaço da lagoa, onde ficavam as rancharias de Itapera, na “banda da serra” ou na “banda dos passarinhos”. Agora, acompanhando a lagoa pelo lado da caatinga, aumenta também o traçado da “estrada de fora”, que liga Itapera a Aldeia, “beirando a caatinga” (itinerário g). Como o rio São Francisco, para cima de Andorinhas, fazia uma curva de quase noventa graus em direção ao sul, “pela estrada de fora, para Aldeia, era mais perto do que pelo rio: dava umas três léguas e meia” (cerca de 21 km); de barco, cerca de 50 km (Mapa V). Mano desenha a estrada até o local da lagoa da Aldeia Velha (Mapa II e III, itinerário g1), o local onde faziam a “destroca”: ––– Mano: Lá em cima [na ponta mais a oeste do Sem-Sem] tinha uma lagoa que chama “lagoa da Aldeia Velha”. A gente passava por lá naquele tempo de destroca, que a gente ia beber água. Ela fica mais pro lado da caatinga. ––– Eu: Naquele tempo de quê? ––– Mano: Numa época aí que a gente fazia a destroca: o pessoal de Aldeia roubava um santo aí na igreja, pegava escondido. Aí, ficava um tempo o pessoal procurando o santo, e não encontrava. ––– Eu: Qualquer santo? ––– Mano: Qualquer santo. Aí, depois, quando era pra aparecer, dizia: Uma retirada insólita
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“O santo fulano de tal tá na Aldeia. Nós tem que fazer uma destroca”. Fazer uma destroca de santo, né? Aí dizia: “Tá na Aldeia?” – “Tá”. “Vamos marcar pra quando?” – “Pra tal mês, pra tal dia de tal mês”. Aí, o pessoal de Aldeia se deslocava de lá pra cá, com o santo, e a gente ia daqui pra lá, com o outro santo. Se encontrava no meio da estrada. Aí, no meio da estrada é que ia tirar os cantos [os benditos], né? Rezar. Aí, a gente trazia o santo de Itapera, e eles voltava pra Aldeia com outra imagem. Eles sempre traziam duas imagens, né? Em dois andores. ––– Eu: Eles levavam um santo que era de vocês? ––– Mano: O nosso. Eles levavam. Pegavam escondido, que era para poder fazer a destroca. Porque isso aí era uma coisa que o pessoal mais velho botaram na cabeça: que fazendo a destroca, então, que dava muita chuva, que dava chuva. O “roubo de santo” para fazer chover, seguido da destroca durante uma procissão, está documentado na bibliografia sobre o Médio São Francisco, ainda que não apareça com este mesmo nome: “Em Xique-Xique, nos meses de outubro e novembro, é costume fazerem-se novenas para obter chuva. Uma das maneiras de fazer chover consiste em roubar imagens de santos de seus nichos costumeiros e conduzi-las para locais afastados até que a chuva se inicie. Desgostoso por estar longe de seu oratório habitual, acredita-se, o santo, desejando voltar, faz com que se iniciem as esperadas chuvas. É então a imagem do santo reconduzida, em procissão, ao som de foguetes, para a sua antiga moradia.” (Silva, 1961: 268). Segundo Mano, a destroca era uma “procissão para pedir chuva”, realizada durante aqueles períodos de seca prolongada. Era o “tempo de destroca”. Ocorria quando o povo de Aldeia roubava alguma imagem (um santo) do altar da igreja de Itapera (e vice-versa). Assim que o “roubo” era descoberto, os dois povoados combinavam o dia da destroca: a devolução da imagem. No data marcada, de manhã bem cedinho saíam em procissão, carregando dois andores com imagens da igreja – como Nosso Senhor do Bonfim, padroeiro de Itapera, e Nossa Senhora Sant’Ana –, para que o santo roubado não regressasse sozinho. Iam cantando e rezando até a altura da lagoa da Aldeia Velha, onde encontravam a procissão que vinha de Aldeia, também carregando dois andores com imagens – um deles com o santo roubado. Alguns iam a cavalo, e levavam alimentos para o almoço de confraternização, na beira da lagoa da Aldeia velha. Quando as duas procissões se encontravam, realizavam a
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destroca: Aldeia devolvia o santo de Itapera, e festejavam o encontro com um almoço. Só mais tarde regressavam, levando o santo de volta. Segundo Mano, Itapera só fazia destroca com Aldeia. O ritual da destroca merece uma análise mais detalhada, mas apenas registro aqui sua importância na vida social de Itapera, particularmente no que diz respeito às relações com o povoado vizinho de Aldeia. Eles continuam a praticá-la até hoje, depois da barragem. Em agosto de 1984, cerca de seis anos depois da mudança para a borda do lago, em plena caatinga, enfrentando cinco anos de seca, Itapera e Aldeia fizeram uma nova destroca na estrada de fora, que não foi atingida pelo lago.
Crianças na procissão de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa. Itapera, 6 de agosto de 1985.
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Mano assinala no mapa o trajeto percorrido até o local da destroca, na beira da lagoa da Aldeia Velha. O traçado da estrada para Aldeia termina nesse ponto, indicando que era ali o limite entre os dois povoados: o ponto mais recuado atingido pelo povo de Itapera reunido, organizado em procissão, no rumo de Aldeia. Na Carta Topográfica, a “estrada de fora” aparece como “estrada Limoeiro-Tapera”. Sob tal divergência de nomes manifesta-se o ponto de vista de Itapera: para eles, a estrada conduzia a Aldeia, com quem mantinham estreitas relações, e não a Limoeiro, que não passava de mais um lugar na beira do rio. h) O gado da vazante e o gado da caatinga “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos [...]” Grande sertão: veredas, p. 9. Que distância percorriam entre o Sem-Sem e o rio? É fazendo esse cálculo que Mano comenta o tamanho da vazante de cima: de Itapera até Andorinhas dava cerca de três léguas (18 km); do Sem-Sem até o rio, em certos trechos “chegava a uma légua ou mais” (6 a 10 km). Toda a área da vazante, acima ou abaixo da Itapera velha, era uma imensa “área de pastagem”, onde criavam os rebanhos na larga, na solta: “Tudo aqui era área de pastagem do gado. Isso aqui era uma área muito grande. Aqui nessa área criava ovelha, bode e grande quantidade de gado.” Ao contrário do que ocorria na ilha e no ilhote, as roças de terra firme eram sempre cercadas. Concentradas junto à água, na beira do rio ou das lagoas, costumavam ser divididas ao meio por uma cerca: de um lado, plantavam feijão-de-arranca, melancia, abóbora, etc.; do outro, só capim para o gado. Essas eram as “roças de pastagem” (ou “roças com pasto”): no auge da seca, deixavam ali o gado mais magro. Na vazante de cima, na beira da lagoa do Canto, havia só uma roça de pastagem, de seis hectares; na de baixo tinha mais, na beira das lagoas: três no Jenipapo, duas na Rebancerada, uma na Barrinha. Também “tinha uma área cercada na lagoa do Sirrutim: era a roça de pastagem de José”, com vinte hectares. Seu Domingos tinha uma “roça com pasto” na beira da lagoa da Porta (Mapa IV). Aqui também Mano lembra de cada uma das roças a partir do nome de seu dono: cada roça é sempre a roça de alguém. 84 As enchentes altas como marcos espaciais
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Ajudado por Seu Domingos, agora Mano procura calcular o tamanho da vazante de baixo, entre a beira da caatinga e a beira do rio: ––– Mano: Seu Domingos, aproximadamente, daqui da caatinga, da beira da caatinga até chegar na beira do rio, até chegar na roça da Vargem, esse campo aí dava quantos quilômetros? ––– Seu Domingos: Dava bem uns quatro a cinco quilômetros, que era muito grande isso aí, da lagoa do Saco, aí, até a roça da Vargem. ––– Mano: Era que isso aí era muito largo! Cinco quilômetros só de largura. Agora, a distância de Itapera pra Tombador era 12 quilômetros, que era duas léguas; distância de 12 quilômetros por cinco de largura: veja só que terra não tem solta aqui dentro! Tanto Mano quanto Seu Domingos fazem questão de ressaltar a amplitude do “campo da vazante”, onde podiam criar os rebanhos na solta. Havia também muitas árvores frutíferas, como o tucum, o jenipapo e o araçá, cujos frutos se espalhavam pelo chão, servindo de alimento para os bichos. No desenho da vazante de baixo, Mano escreve: “Campo Vazante - Pastagem Gado - 5 Km”, e “Distância Itapera-Tombador: 12 km Comprimento - 5 Km largura” (Mapa II). Mais uma vez, o local de retiro (no caso, o Ariá) desponta como limite entre a área da caatinga e a área da vazante. Junto à “roça da Vargem” (nome de uma roça de terra firme), o Ariá serve de referência para o cálculo da largura da vazante de baixo: de toda aquela área compreendida entre a caatinga e o rio. Mano procura lembrar dos locais preferidos pelo gado, as aguadas e pastagens mais cobiçadas: nas imediações das lagoas do Sem-Sem e dos Angicos (na vazante de cima); das lagoas do Canto, Chico Grande e Lontras (na vazante de baixo): ––– Mano: Nós morava aqui em Itapera, nós soltava as vacas, as vacas que tava com bezerro. Elas vinham comer por aqui por esse mundo todo: comia na ponta do Sem-Sem, nos Angicos, nessas lagoinhas tudo aqui [no caminho para o Sem-Sem; entre Itapera e a barra do Sem-Sem]. Quando era de noite, tava lá no curral, em Itapera. Elas dormia presa no curral. De manhã, a gente tirava o leite. Depois, umas se destinavam pra cima [para a “vazante de cima”], que eram acostumadas no pasto daqui; já outras vinha pra cá [para a “vazante de baixo]. Cada uma tinha seu destino, pra onde ia. Aí, elas se mandavam no mundo: comiam na lagoa do Canto, no Chico Grande, ia comer lá nas Lontras; quando era de noite, tava novamente em Itapera. A gente deixava os bezerros presos, elas tinham obrigação de Uma retirada insólita
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ir lá. Agora, quando os bezerros tava grande – que chama “garrote” –, aí elas começavam a abandonar um pouco. Aí, acontecia delas não voltar no mesmo dia à noite, ia voltar no outro dia. Na hora que chegava, a gente ia tirar leite. Familiarizados com os hábitos dos rebanhos, seus gostos e manhas, as “pastagens” e “bebedouros” mais apreciados por eles, os vaqueiros já sabiam para onde dirigir-se na hora de buscar alguma rês doente ou prestes a dar cria: “Na sua extensa área de ação, [o vaqueiro] conhece todos os caminhos, todos os ‘malhadouros’, aguadas, brejos, lagoas, serras e acidentes do terreno. Conhece inúmeros animais pelo nome e sabe-lhes a história desde o nascimento.” (Macedo, 1952: 48). O fato de os animais serem criados na solta não significava que estivessem abandonados. Se alguma vaca sumisse, o vaqueiro iria logo “caçála” ou “rastejá-la” (seguir rasto ou pista, rastrear) por toda a vazante: para baixo, até Tombador; para cima, até Aldeia, passando por Andorinhas. ––– Seu Domingos: O vaqueiro ia rastejar ou esperar na bebida; rastejava e levava pra casa, pra domar, pra matar. No período de dar cria, a gente perseguia a área, pra ver se já tinha dado cria. Levava pro curral. ––– Mano: O campo aqui era muito grande. Então, a gente se destacava de Itapera pra vim caçar o animal nessas áreas; até chegava aqui na área de Aldeia, perto de Aldeia. Isso tudo era área livre. Mano comenta que o gado também penetrava na área da caatinga, onde o vaqueiro ia caçá-lo a cavalo, com roupas de couro, para se proteger dos espinhos: iam “encourados”. Ele diferencia o “gado da vazante”, acostumado nas lagoas e pastagens da área, do “gado da caatinga”, “raçado”, que permanecia “afundado no mato”: ––– Eu: O gado ficava mais na vazante ou na caatinga? ––– Mano: Ficava em todo lugar. Esse gado nosso, o gado nosso pé duro, ele usava mais essa área aqui da vazante, porque ele comia muito dentro d’água. Agora, tinha o gado da caatinga, que era um gado raçado, que já tinha o costume na caatinga. Ele afundava mais aqui na área de caatinga. Durante o inverno, de novembro a março, o gado da caatinga bebia água nas lagoas de chuva, sempre temporárias. Na seca, de abril a outubro, descia para a vazante, em busca das lagoas do Saco e do Sem-Sem, onde nunca faltava água. O gado da caatinga ficava mais na lagoa do
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Saco, provavelmente porque a serra do Sem-Sem quase que bloqueava a passagem para a lagoa do Sem-Sem (Mapa V). O gado da vazante permanecia o ano todo junto às lagoas, eventualmente recorrendo ao rio, quando a seca era muito intensa. Ao contrário do gado da caatinga, que permanecia longos períodos sem nenhum cuidado, o gado da vazante era bastante protegido: os vaqueiros sempre traziam as vacas para o curral, na época da cria, ou levavam o gado mais magro para as roças de pastagem, no auge da seca. O gado da caatinga era considerado mais selvagem e resistente; o da vazante, mais manso e carente de atenção. No mapa de Mano, a área da caatinga é todo aquele espaço em branco, praticamente vazio, que começa depois dos locais de retiro e das estradas Itapera-Aldeia e Itapera-Tombador. Ali não morava ninguém, nem havia roças. Situação bastante diversa da caatinga no município de Remanso, repleta de caatingueiros que praticam uma agricultura de chuvas (mandioca, feijão, rícino, palmas, algodão), associada à criação de cabras, porcos e algumas cabeças de gado (Duqué, 1980: 157-61). Os caatingueiros de Remanso costumavam “descer” para vender seus produtos (farinha de mandioca, feijão, cabras, etc.) na feira semanal de Remanso. Era lá que interagiam com o povo da velha Itapera. Depois da barragem, continuaram descendo como sempre; Itapera é que não vai mais lá, em função da largura do lago. ––– Eu: Morava gente na caatinga? ––– Seu Domingos: Não, nessa nossa aqui, não. Mas já a caatinga do outro lado, do Remanso, é situada de gente. Mas aqui não morava na caatinga, não; morava tudo na beira do rio. ––– Seu Domingos: Morava não. Só morava gado; gado, onça, essas coisas. ––– Eu: Porque ninguém morava na caatinga? ––– Seu Domingos: Porque era muita dificuldade. A gente plantava lá mesmo [na beira do rio]. Na caatinga não tinha água. Como veremos mais adiante, Mano lembra de apenas três ou quatro fazendas na área da caatinga, entre Tombador e Aldeia, e entre a vazante e as serras do Calorindo, das Araras e da Melancia, localizadas alguns quilômetros atrás da serra do Sem-Sem (Mapas II e III). O que não invalida sua visão da caatinga como área desabitada. Ao contrário do que ocorria em Remanso, com a caatinga “situada de gente”, nessa área de Itapera, na margem direita do rio, as casas e roças concentravam-se na beira. Além disso, como de hábito, os donos dessas três ou Uma retirada insólita
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quatro fazendas tinham casa também na cidade, em Sento Sé ou Juazeiro (nas sedes municipais), onde passavam temporadas inteiras, deixando os rebanhos soltos na caatinga, sob os cuidados de um ou mais vaqueiros: “O senhor de terras e gados na região do Médio São Francisco é, em geral, um habitante das cidades marginais. Cidadão respeitável, honesto e digno, o seu prestígio entre os membros da comunidade cresce paralelo ao número de cabeças de seus rebanhos e à extensão de seus latifúndios. É comum a existência de fazendas que medem uma légua ao longo da margem do rio por uma extensão de fundo, a bem dizer, ilimitada, de vez que cercas não existem e as divisas são precárias. [...] Vivendo, não obstante, mais nos pequenos centros urbanos do que propriamente nas fazendas, ficam estas entregues aos capatazes e vaqueiros.” (Macedo, 1952: 47). Além de a vazante ser uma imensa área “livre”, com gado solto e roças cercadas (na beira do rio e de algumas lagoas), também a área da caatinga era um amplo espaço “largado”, “desocupado”, só com “gado [raçado], onça, essas coisas”: ––– Mano: [...] que a caatinga aqui era uma área grande também, que nós não tinha roça, aqui era tudo livre, aí, tudo solto, esse mundo de chão daqui [da Itapera Nova] até na Itapera [velha]. Então, isso aqui ficava tudo aí desocupado, não tinha nada ocupado, só de caatinga. Fora essa área de vazante. ––– Eu: Mas não tinha cerca? ––– Seu Domingos: Tinha não. ––– Mano: O gado era criado solto. ––– Seu Domingos: Era criado mesmo solto. Isso aqui tudo era largado, era só pra criar gado. Este modo de apropriação do espaço, em que as cercas protegem as roças e os rebanhos são criados soltos (na vazante e na caatinga), não se restringe, em absoluto, ao território de Itapera, mas está documentado na bibliografia como um traço característico da maior parte do Vale do rio São Francisco, “especialmente na zona norte de Minas, Bahia e Pernambuco” (Pierson, 1972b: 434; Zarur, 1946: 74-5): “Sendo a caatinga área de domínio da pecuária extensiva em campo aberto, com o gado criado solto, cabe ao agricultor construir cercas bem fechadas de pau-a-pique ou de varas, a fim de que as culturas fiquem a salvo da predação dos animais.” (Andrade, 1983: 79).
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“A própria paisagem testemunha o predomínio dos rebanhos sobre a agricultura. O espaço inteiro lhes pertence, somente uma pequena parte das terras lhes é proibida. As cercas protegem as plantações da voracidade do gado: elas limitam a agricultura enquanto o boi é rei.” (Duqué, 1980: 178).
4. Desenho velho x Desenho hoje: localização da Itapera nova “Aqui era lugar mesmo onde a gente andava caçando gado.” Na vazante de cima, entre a lagoa do Sem-Sem e a estrada para Aldeia, Mano desenha ainda a serra dos Cravados, um pouco acima da serra do Sem-Sem, onde fica o novo povoado de Andorinhas. Ali, escreve “Andorinhas Nova”. Pergunto pela localização da Itapera Nova, mas ele deixa para depois: “Nós ’tamos fazendo o desenho velho; depois a gente faz o desenho hoje. Essa estrada velha [de Itapera para Aldeia] tem uma ponta que pega no seco, beirando a serra dos Cravados [que não foi coberta pela lago]. Pela oposição entre Desenho velho e Desenho hoje, entende-se que “Andorinhas Nova” está situada dentro dos limites do antigo território, e que a Itapera nova já se encontra fora, vários quilômetros caatinga adentro. O Desenho velho abrange apenas a área de seus deslocamentos habituais, concentrados na área da vazante e em sua fronteira com a caatinga. É esta área compreendida entre o rio (com suas ilhas e ilhotes) e a caatinga que desapareceu sob as águas do reservatório de Sobradinho: o território da Itapera velha. ––– Eu: O lago chegou aonde, aí nesse desenho? ––– Mano: Nesse desenho, o lago veio, encheu isso aqui tudo: lagoa do Saco... Isso aqui [toda a área da vazante e parte da área da caatinga] ficou tudo cheio. ––– Seu Domingos: Esses desenho aí tá tudo coberto com o largo, tudo coberto. Essa área aqui tá toda coberta, todinha. Agora, nós ’tamos por aqui, na beira do Poço, por aqui assim. Daqui [da Itapera Nova] até lá [o serrote do Poço] é uma faixa de uns 1.500 metros. Nós ’tamos por aqui, assim. [Grifos meus]. “Largo” é um termo local, muito difundido, que designa o lago de Sobradinho. De fato, o reservatório é “largo de não se poder ver a forma Uma retirada insólita
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da outra beira”, com uma largura que varia de 10 a 40 km. Uma travessia de Remanso a Sento Sé, usando barco a motor, leva cerca de quatro horas, dependendo da força do vento e das ondas que lá se formam (a oferta de barcos é muito pequena, o que já indica sua baixa utilização). Com a formação do lago, ficaram “de fora” (viraram ilhas) apenas aqueles locais muito elevados, como a ponta da serra dos Cravados ou o topo do Tabuleiro, onde ficava o cemitério de Itapera, na serra do SemSem. O novo povoado de Andorinhas, na serra dos Cravados, é hoje uma ilha. Encontra-se num local que fazia parte do antigo território. Já a Itapera nova, para ser localizada, requer um novo mapa: o “Desenho hoje”. Esse contraste quanto à localização dos novos povoados de Andorinhas e Itapera torna-se ainda mais significativo se considerarmos o modo como foi ampliada a área abrangida pelo Desenho velho: para prolongar o traçado do rio, estendendo o alcance do desenho no sentido horizontal, no eixo do rio São Francisco, Mano colou novas folhas de papel (folhas 2 e 3) nas laterais do mapa original (folha 1). Ao tentar imaginar a localização da Itapera nova, que provavelmente ultrapassaria o papel ao sul, ele não tomou nenhuma iniciativa para emendar mais uma folha embaixo, que dilatasse a profundidade da caatinga. Isso iria contra a própria concepção do Desenho velho, que promovia um achatamento sistemático de todo o espaço social – a vazante e seus limites – de encontro ao eixo de um rio retificado. Itinerário h (Desenho hoje): Itapera-Poço Mano acaba desistindo da ideia do Desenho hoje e resolve marcar o local da Itapera nova no próprio Desenho velho. Saindo da estrada ItaperaTombador, na altura da lagoa do Saco, ele faz o traçado da estrada que ligava Itapera a um local de nome “Poço”, o “serrote do Poço”, em cujas imediações situa a “Itapera Nova” (Mapas II e III, itinerário h/Desenho hoje). Da estrada até o Poço dava cerca de uma légua. Situado totalmente dentro da área da caatinga, o Poço era conhecido pelos vaqueiros, que por lá passavam, eventualmente, caçando gado raçado. No inverno, formava-se ali um olho d’água (um “caldeirão” de chuva), que atraía os animais: ––– Eu: E no Poço morava gente? ––– Seu Domingos: Sempre no Poço foi um lugar mais habituado, porque tem um olho d’água. Antigamente, eu conheci morando um homem aí. Ele chamava Joaquim Tomás. Depois ele largou, e depois o 90 As enchentes altas como marcos espaciais
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compadre Queiroz botou uma fazenda aí, se situou aí, e ficou morando aí. Aí dá para morar porque tem um caldeirão. Tem anos que não seca, e tem anos que seca, né? O ano que seca, vai pro rio. ––– Eu: E vocês iam lá no Poço? ––– Seu Domingos: Caçando gado. Uma vez assinalado o local da Itapera nova, perto do Poço, Mano desenha, no limite mais embaixo do papel, a “serra da Melancia”, que hoje vemos por detrás do povoado, estendendo-se imponente pela caatinga afora. Para localizar, ainda, a “serra das Araras” e a “serra do Calorindo”, que também passaram a fazer parte do novo território de Itapera, Mano pede ajuda a Seu Domingos, explicando que “não conhecia direito essas serras da caatinga, porque ficavam muito longe da Itapera velha”. A serra das Araras é apenas indicada, porque fica bem atrás da serra da Melancia. Nenhuma folha é solicitada para incluí-la no desenho, via ampliação da área da caatinga.
Na serra da Melancia, Mano contempla a área da caatinga ao redor da Itapera nova (local dos lotes agrícolas distribuídos pela CHESF), em agosto de 1985.
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Itinerário h (Desenho hoje): Itapera-Baixa da Queimada Grande Para completar a parte reservada ao Desenho hoje, Mano assinala o local dos lotes agrícolas que receberam da CHESF (suas roças atuais): junto à “Baixa da Queimada Grande”, entre a serra da Melancia e a serra do Calorindo (Mapas II e III, itinerário h2/Desenho hoje). A “Baixa” (ou “Baixão”) é uma depressão natural do terreno, que costumava encher com água de chuva, nos invernos chuvosos. Somente três camponeses de Itapera chegaram a plantar mandioca no Baixão (roças de chuva). Mesmo assim, não era considerado parte integrante do velho território. Como veremos mais adiante, cultivar mandioca na caatinga era uma atividade excepcional e pouco valorizada. Com a barragem, as águas avançaram caatinga adentro, em direção às serras da Melancia e do Calorindo, e agora o Baixão fica na beira do lago. ––– Seu Domingos: No Baixão, ali era água de chuva; antes era de chuva. Hoje, ela tá entrando hoje por causa do lago que alteou. Antes era de chuva. Entrou agora com o largo [o lago]. Aquele Baixão vai muito longe aí na caatinga. O Desenho velho abrange uma área que desapareceu totalmente sob as águas do reservatório de Sobradinho. Ainda que acabe por incluir o Desenho hoje, a rigor, o Desenho velho terminava na beira da caatinga: nas estradas para Tombador e Aldeia, e nos locais de retiro. Ao contrário dos itinerários organizadores do Desenho velho, que dizem respeito ao conjunto dos camponeses de Itapera, os trajetos rumo ao Poço e ao Baixão eram percorridos apenas por vaqueiros ou algum passante eventual. Se todos os itinerários organizadores do Desenho velho têm por base a área da vazante, também o seu resultado final nos revela ser aquela a área de seus deslocamentos habituais. O que chama a atenção, de imediato, é a existência de duas áreas nitidamente separadas, que contrastam pela profusão de detalhes da vazante, com roças, casas, caminhos e lagoas; e a ausência de referências na parte da caatinga, que Mano teria deixado em branco se o Desenho hoje não tivesse sido incorporado ao Desenho velho.
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5. Área da vazante, área da caatinga e área de Itapera “Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só.” Grande sertão: veredas, p. 29. Durante toda a confecção do Desenho velho, muitos marcos naturais foram acionados para estabelecer limites sociais. Na vazante de baixo, a lagoa das Lontras indica a fronteira entre a área de Tombador e a área de Itapera, assim como a barra de uma lagoa serve de linha divisória entre as roças de Itapera e de Tombador, dividindo a ilha da Itapera em duas: para baixo da barra, a ilha do Tombador (ou “ilha do Chiquinho”); para cima, a ilha da Itapera propriamente dita. Na vazante de cima, a área de Itapera fica circunscrita, por um lado, pelo trecho de roças de terra firme compreendido entre Itapera e a barra do Sem-Sem; por outro, pela estrada Itapera-Aldeia. A área de Andorinhas começa após a área de Jurema, e nela estão situadas as lagoas do Caxingó, Lontras e Pajeú. Se o trecho entre a barra do Sem-Sem e a área de Jurema é dividido entre roças de Andorinhas e de Itapera, no entanto, Mano já o considera de Andorinhas, pois ali escreve “Planta Andorinhas”. Do outro lado do rio, na ilha da Itapera, também as roças deste mesmo povoado ocupam uma área com o mesmo tamanho daquele trecho de roças de terra firme situado entre a barra e a área de jurema, reiterando que a área de Andorinhas já começa a partir da barra do Sem-Sem (Mapa II, itinerário d5). Tanto na ilha da Itapera quanto na terra firme, Mano classifica como “área de Itapera” apenas os trechos de roças emendadas, exclusivamente do povo de lá. Na única situação em que há mistura (uma só roça de Andorinhas no meio de roças de Itapera), ele já considera esta área como de Andorinhas. No ilhote da Veneza não havia nenhum trecho de roças contíguas de um só povoado: as roças de Itapera, Andorinhas, Caldeirão e Marcos estavam todas misturadas. A ilha da Itapera, ao contrário, estava dividida entre as áreas dos povoados de Umbuzeiro, Andorinhas, Tombador e Itapera, cujas roças, dispostas de forma seriada, eram todas emparelhadas pela “frente” (contato direto com a água). O ilhote, totalmente ocupado e esquadrinhado com roças assimétricas e desalinhadas, não suportava
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uma delimitação maior que as próprias roças dos camponeses: lá não havia nenhuma área específica para cada povoado. As lagoas do Sem-Sem e do Saco também não estavam incluídas na área de nenhum povoado, provavelmente por serem muito grandes e acolherem rancharias de vários lugares. Além disso, eram fiscalizadas pela Prefeitura de Sento Sé, o que só reforça o seu caráter público. Não pertencendo a nenhum povoado, no entanto, reproduziam provisoriamente em suas margens o perfil de cada um, pois as rancharias não se misturavam. Se cada lugar tinha uma sequência de roças na terra firme e na ilha, o mesmo ocorria na beira das lagoas: cada povoado tinha uma área própria de rancharias. Excetuando-se as grandes lagoas de pesca, as demais lagoas e poços da vazante distribuíam-se pelas áreas de cada povoado. Como vimos, Mano considerou como “área de Itapera” o trecho da vazante que se estendia para cima e para baixo do lugar das casas, entre a caatinga e o rio, por um lado; entre as áreas de Andorinhas e Tombador, por outro. Era ali que ficavam as roças de terra firme e as roças de pastagem que pertenciam exclusivamente a Itapera, bem como as lagoas e poços preferidos de seus animais. É claro que os camponeses de Itapera, Tombador e Andorinhas não estavam proibidos de pescar nas lagoas situadas na área de algum vizinho, bem como seus rebanhos circulavam livremente pela vazante, onde não havia cercas que impedissem sua passagem. Mas preferiam as lagoas mais próximas das próprias casas, por detrás das roças de terra firme. Do mesmo modo, seus rebanhos não se afastavam muito do povoado, pois era ali que ficavam os currais, onde prendiam os bezerros (a localização dos nove currais de Itapera consta do Mapa I, também desenhado por Mano). Com seus pastos e bebedouros habituais, o gado da vazante também portava “marcas” de identificação. Gado e animal (cavalos) eram “ferrados” nas ancas (com ferro em brasa); a criação (cabras e ovelhas) era “assinada” nas orelhas com um brinco ou através de cortes. Trigueiros (1977: 42) documenta esse sistema de marcação dos animais na bacia do São Francisco, também descrito por Euclides da Cunha (Os sertões, 1979: 86): “[...] sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na solta (pastagens sem cerca) [...].”
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Exímios em sua arte, os vaqueiros conheciam as marcas do gado que circulava à solta pela região: “A primeira cousa que fazem é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os ferros das suas fazendas e os das circunvizinhas. […] Porque o vaqueiro, não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes, por extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades, etc.” (Cunha, 1979: 86). Por “área de Itapera” compreende-se, então, o lugar das casas e o conjunto de roças e lagoas de pesca que pertencem apenas a este povoado, bem como o sistema de caminhos e lagoas mais utilizados por seus moradores e também por seu gado, e onde constantemente se encontram. Isso tudo forma “um todo que tem a sua unidade e todas as características distintivas pelas quais se reconhece um grupo social limitado” (Mauss, 1974b: 252). É esta área com fronteiras definidas que constitui o domínio ou o território dos camponeses de Itapera. A área da caatinga Se a área da vazante estava dividida entre os povoados de Itapera, Tombador, Andorinhas e Aldeia, a área da caatinga não era considerada território de ninguém. A rigor, não é território: não tem roças nem caminhos trilhados, só carreiros de gado. À exceção de vaqueiros e caçadores, que afundavam na caatinga para “caçar”, os demais camponeses pouco interesse demonstravam em para lá se dirigir: suas atividades os concentravam na beira do rio. É verdade que, no inverno, quando a caatinga enverdava, aventuravam-se “pelos matos”, em busca de frutos silvestres, como o umbu, que amadurecia por essa época.8 No entanto, já conheciam a localização das árvores almejadas e jamais se afastavam dos sítios mais conhecidos. ––– Eu: E vocês nunca vinham aqui na caatinga? ––– Seu Domingos: Não, a gente vinha apanhar umbu, caçar gado, essas coisas. [...] Agora, o pessoal que eu já vi com mais ciência assim, daqueles homens velhos, era esses caçador da caatinga.9 Moça, aqueles homens tinham uma ciência! Lá tinha um homem mesmo, ele era profissionado na caatinga. Eu sempre procurava ele: “Seu Jule, me diga mais, o inverno esse ano é bom ou é ruim?” Ele disse: “Seu Domingos, Uma retirada insólita
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não é bom, não. Esse ano, uma chuvinha; mas o inverno não é bom, não”. E era dito e certo. [...] Ele tomava a ciência pelas caças do mato, o tal tatu verdadeiro. Ele tirava a ciência era pelo tatu verdadeiro. Que ele dizia que o ano que o tatu verdadeiro, que o buraco dele tiver cheio de folha, entupido, arrolado de folha, dizia ele que esse ano era ano de chuva. Ele entupia a casa pro mode a chuva não entrar. E no ano que o buraco era limpo, a chuva era pouca. E era mesmo! ––– Eu: Ele morava aí na caatinga mesmo? ––– Seu Domingos: Não, esse homem, ele nem daqui ele era. Ele acampava aqui, mas ele era daí do lado do Piauí. Ele só morava aí pelos matos. Ele saía daqui pro Junco, acolá. A gente pra ir pro Junco, arrodeia lá pelo Cajuí [povoado ribeirinho situado bem acima de Aldeia]; e ele não, ele entrava era por aqui, aí dentro da caatinga. Do jeito que daqui pro Junco por aqui pela caatinga, o muito que podia dar era sete léguas. E a gente pra ir pro Junco por Cajuí é vinte e tantas léguas. Eventualmente, entravam na caatinga em missão de resgate, mas armados de “fogo” [fogos de artifício] e “caixa” [tambor], para orientar perdidos e repelir perigos: ––– Nelito: Em 60, eu andava atrás duma vaca; e chovendo. Eu tinha pegado o rastro duma vaca que o papai tinha por nome Zebu – essa era uma vaca grande. Aí, quando eu dei no rastro da vaca, dela com uma bezerra, aí eu vim dar bem ali na beira desse serrote [do Poço]. E a vaca era muito valente [...] Aí, no fim, anoiteceu, e eu não consegui pegar a bezerra e nem a vaca. Chuva direto. Aí, eu digo: “É, agora aqui pra eu ir pra casa...” Nesse tempo, só tinha caatinga, assim mesmo, não tinha nada. De noite, noite escura. E tinha os carreirinhos. Aí, eu rodei o cavalo lá; aí, eu peguei um carreiro aqui e me mandei. Pra encurtar mais o papo, quando eu fui sair lá na rodagem [estrada Itapera-Tombador], já era mais ou menos umas 8 pra 9 horas da noite. Eu digo: “Esse pessoal lá tão tudo com a cabeça quente, porque uma hora dessas, chovendo desse jeito, e eu aqui...” Ainda bem que a rodagem era limpa. Aí, quando eu saí na rodagem, aí, eu chinelei esse cavalo direto, correndo. Quando eu cheguei lá, o povo tava tudo em confusão, tinha mais de cem homem, uns com fogos, outros com caixa, pra vim me caçar na caatinga. Aí, quando eu cheguei lá em casa, que eu cheguei na porta, os homens já não ’tavam mais. Lá tinha, assim, uma malhada, que os homens se arreuniram pro mode –
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fizeram assim uma reunião pro mode combinar: uns entrava por uma parte, outros por outra, com fogos, com caixa, pro mode que na hora que encontrasse, uns avisava os outros. [...] Aí foi que eu conversei com eles tudo, aí contei o causo, como foi que aconteceu, aonde eu tava, porque às vezes tinha gente que não conhecia. Mas aquelas pessoas que trabalhava no campo junto com a gente, sabia onde a gente tava. E eles não iam me achar, se eu tivesse me perdido, porque eles iam me caçar lá bem perto, né? E eu tava aqui bem longe. A caatinga é considerada lugar por demais perigoso e traiçoeiro, onde as veredas são tantas e sem marcas de reconhecimento que é muito fácil se perder. Morada de bichos selvagens, serpentes e carcarás, na caatinga só se entrava fundo em dia claro, e por precisão. A noite abrigava mil perigos. Apenas os vaqueiros ou algum caçador nômade e solitário, “profissionado na caatinga”, possuíam autoridade de ali entrar, para “caçar” ou “rastejar” suas presas, gado ou gente perdida, onça, marruás... Os demais podiam perder a vida ou a razão, sobretudo mulheres e crianças. O vaqueiro Nelito jamais esquece de duas pessoas que lá se perderam – uma velha que morreu; um menino que “embrabeceu” –, e de quando ele mesmo se arriscou, caçando rês desgarrada: ––– Eu: Tinha muita gente que se perdia na caatinga? ––– Nelito: Às vezes tinha gente que se perdia. Aqui andou morrendo até gente perdido. Ali, por aquele lado de cima, onde é a Itapera nova, tem um lugar que chama “Cova da velha”: foi uma velha que se perdeu, e morreu ali. ––– Eu: Mas não tinha caminho nenhum na caatinga? ––– Nelito: De primeiro não tinha nada não. Tinha era as estradinhas do gado, num sabe? Mas, às vezes, a pessoa se perdia aí, não sabia pra onde é que dava. Ia indo até quando morria de fome e de sede. Andou morrendo diversas pessoas. Uma ocasião, eu era novo, mas a Toinha [sua esposa] conheceu, que era um tio da Toinha. Ele chamava velho Zeca. Ele se perdeu na caatinga. Ainda bem que meu avô andava no campo. Aí, quando ele se perdeu na caatinga, aí eles vinham no campo, meu avô e o finado pai do Pedro. Aí, eles viram aquela pessoa gritando e chorando. Aí eles diz: “Ali é gente que tá perdida!”. E quando se perde, embrabece. ––– Toinha: Fica que nem gente louca. ––– Nelito: Aí, eles pararam os cavalos, e ficaram em pé. E ele vinha num carreirinho, gritando e chorando. Quando eles viram ele, que ele Uma retirada insólita
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viu eles, ele ajuntou, correu deles. E eles diz: “É nós, menino! É nós!”. Ele era um garotozinho, assim [mostra com a mão que ele era pequeno]. Aí ele correu, afundou na caatinga. E eles botaram os cavalos pra riba dele, até quando pegou. Ficou assim como um índio brabo mesmo, assim, num sabe? Aí, eles pegaram ele. E ele querendo morder eles. E eles seguraram ele, até que, com muito tempo, ele esmoreceu. A vazante era espaço conhecido e habitado, lugar de passagem, frequentado por todos; a caatinga, selvagem e inóspita, um verdadeiro labirinto de carreiros que conduziam a lugar nenhum. Terra de ninguém e de todos, espaço aberto, ermo, sem cercas nem fronteiras, a caatinga começava depois da vazante, estendendo-se sem fim a partir da linha máxima do São Francisco em seu alcance. Não havia outro lado, como no rio, na ilha e na lagoa. Terra sem fundo, inculta, seca e áspera, onde se forma calor de morte, nela até os vaqueiros viviam no risco de perder a vida, ferir-se, estropiar-se: “Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua. Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...” (Cunha, 1979: 29). “[...] caatinga tórrida, hórrida, que é pedra e cacto e agressivo garrancho, e o retombado escorrer do espinhal, o desgrém de um espinheiro só, tranço de cabelos da terra morta ou reptar de monstro hisurto, feito em pique, farpa, flecha, unha e faca. [...] onde, subida a seca, só pervive o que tem pedra na seiva, o que é em-si e híspido, armado, fechado.” (Guimarães Rosa, 1970: 129; 138).10 Se a vazante era o espaço da vida em sociedade, das casas e roças, e do rio que anualmente cobria os terrenos de plantação, tornando-os férteis e produtivos, a caatinga era o espaço da morte e da esterilidade, das terras incultas, mato bravo e estado de selvageria. Para quem não
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tinha “ciência”, perder-se na caatinga, sob sol causticante, implicava passar fome e sede, virar bicho selvagem, perecer. Os camponeses de Itapera rumavam para lá somente em ocasiões muito especiais: para enterrar os mortos, fazer destroca e retirar. A divisa entre a área da vazante e a área da caatinga era estabelecida justamente por aqueles pontos mais recuados em direção à caatinga para onde se dirigiam, organizados em grupos, em situações excepcionais e sempre provisórias: o cemitério, os locais de retiro (Tabuleiro e Arial) e de destroca (na estrada de fora, beirando a lagoa da Aldeia velha). Assim como marcos naturais delimitavam a área de Itapera e a área de cada um dos povoados vizinhos, também as estradas e os locais de retiro demarcavam a fronteira entre vazante e caatinga. Em ambos os casos, eram as atividades conjuntamente desenvolvidas que traçavam o limite: de um lado, a contiguidade das roças de um lugar; de outro, o enterro, a destroca, a retirada. Durante toda a feitura do mapa, os camponeses só registravam pontos de referência significativos para suas atividades sociais.11 Postas em confronto, tais atividades e as áreas que delimitam apresentam características distintas. Na configuração de cada território, as fronteiras recortam áreas, atividades e recursos semelhantes: terras cultiváveis, lagoas de pesca, pastagens para o gado. Estamos aqui no domínio da vida cotidiana – da ordem normal-profana, como Durkheim não hesitaria em classificar. Ao contrário, as atividades que estabelecem a divisa entre vazante e caatinga têm um caráter excepcional, da ordem anormal-sagrada. É o limite com o estranho e o desconhecido que está em jogo. Retirada, enterro, destroca, expedições de resgate: situações rituais em que confrontam o extraordinário e o sobrenatural, o limite – e o princípio – do social. A linha de demarcação entre caatinga e vazante pode ser vista como uma fronteira ritual, que põe em contato e deixa fluir o trânsito entre dois espaços sociais. Reunião de contrários, o limiar é o lugar dos avessos. Daí que esteja associado, direta ou indiretamente, a ritos de inversão do curso normal das coisas, como os que almejam chuva em seca prolongada (a destroca). Na retirada, igualmente, invertem-se as oposições fundamentais que definem vazante e caatinga: a beira do rio desloca-se para a beira da caatinga. Provisoriamente, a vida só é possível no alto e no seco: no lugar de retiro. O excesso de água inviabiliza a vida na vazante, assim como o seco em excesso inviabiliza a vida na caatinga. O espaço e seus limites são coletivamente concebidos e ritualmente estabelecidos.12 Uma retirada insólita
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6. A construção social do espaço O Desenho velho tem início com o estabelecimento de duas figuras básicas: o rio e o lugar das casas (em sua margem). O povoado é um ponto de ancoragem fixo em relação ao qual todo deslocamento pode ser avaliado, medido, percebido. O rio fornece os outros dois elementos para formar o arcabouço lógico do sistema de referências espaciais: um eixo direcional e uma seta de sentido. Uma direção: o rio (sua margem) é imaginado como uma reta tangente ao povoado, que estabelece um eixo de referência em relação ao qual todos os trajetos (partindo do povoado, o ponto zero, inicial) tomam direção, seja em paralelo, acompanhando a beira, seja perpendicularmente, rumo ao lugar de retiro e à caatinga, seja sinuosamente, acompanhando a trama da faixa da vazante. Um sentido: o curso do rio estabelece uma assimetria lógica entre os dois lados da reta que tangencia o povoado. Existe um “para cima” e um “para baixo”, que estabelecem definitivamente a que lado se refere. Com este sistema lógico mínimo – um ponto zero, um eixo de direção e um sentido de deslocamento –, os camponeses estão equipados com todo o instrumental necessário para situar qualquer acidente da sua região. Estes três elementos – povoado, beira e correnteza – podem ser considerados os referenciais espaciais absolutos de sua percepção. Ponto, reta e sentido: casa e rio. A falta de qualquer um dos referenciais implica desorientação espacial. No caso exemplar dos camponeses reassentados em Serra do Ramalho, privaram-lhes do rio. Restou-lhes apenas, como sistema de referência, o ponto fixo do povoado. Diante das novas moradias, no entanto, estão quase incapacitados de dar um passo. As casas, as roças, as ruas carecem de frente. Não sobem nem descem. Não se afastam nem se aproximam da beira. Todos os caminhos possíveis que partem do povoado se perdem numa região desprovida de referências, uma vez carente de eixo. Todas as direções se confundem e se equivalem, pois não há como localizar nenhum ponto em referência a outro. Norte e sul, leste e oeste não se conhecem. A rosa dos ventos apagou-se e o mundo está privado de eixo. Isto lembra a caatinga: carreiros que se embrenham, surgem e abortam, e levam a lugar nenhum. Em Serra do Ramalho teme-se dar um passo além das casas: o mundo é um imenso e desorientado sertão. Uma retirada insólita
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Povoado e rio: a partir da ancoragem e do eixo direcional de irradiação, são os itinerários organizadores que acrescentam todas as demais figuras ao Desenho velho. O ponto de partida dos trajetos é sempre o lugar das casas, e os diferentes pontos de chegada são os locais de pesca, plantio e trato com o gado, as atividades mais importantes. De Itapera irradiam os caminhos que levam aos locais onde costumavam permanecer por longos períodos: as lagoas do Sem-Sem e do Saco, onde faziam rancharias no tempo da pesca; as roças no ilhote da Veneza, onde permaneciam abrigados em barracas no tempo da colheita; Tabuleiro e Ariá, onde passavam o tempo da invasão do rio, nas enchentes altas que inundavam as casas. Pode-se dizer que seu ciclo e modo de vida, movimentos e atividades econômicas, foram atualizados a cada etapa de elaboração do Desenho velho. A partir dos referenciais primordiais e através da tessitura da rede de itinerários, vai-se preenchendo um espaço extenso, que acompanha o rio, por um lado, e a caatinga, por outro. Rememorando caminhos habituais, segue-se ou colado à beira ou transversal ao rio até o limiar da caatinga, seguindo a estrada. Entre tais extremos, vai-se povoando a vazante com o universo de figuras do social: as lagoas e rancharias; as enchentes e retiradas; as estradas e caminhos em direção aos povoados vizinhos; as roças de terra firme, ilha e ilhote; os enterros e a destroca; o gado da vazante e da caatinga. O resultado final, a vazante – todo o espaço do social – aparece como uma faixa de terra contínua, que segue para cima e para baixo do rio, limitada pela beira, de um lado, e pela caatinga, do outro. O eixo direcional, inicialmente dado pela imagem do rio retificado, tornou-se o eixo geográfico de toda a região, o eixo do próprio espaço do social. Uma faixa contínua, delimitada acima e abaixo por povoados vizinhos, isto é, ainda o social, o outro. O mundo social pode existir, mas constrangido num corredor pelas forças da natureza: num horizonte, o acontecimento do rio, por onde toda água passa; no outro, a indevassável caatinga, que água nenhuma conhece. Entre os dois, a beira, a vazante: lugar de camponeses. Assim, todos os itinerários que miram “subir” ou “descer” a vazante – itinerário a (rede de lagoas); d (“caminho da vazante”/roças de terra firme); e (roças na ilha) – enumeram séries de nomes, um ao lado do outro, um seguindo o outro, como um colar de contas. Representam a delimitação entre territórios, identidades, vizinhanças. É a fronteira com o vizinho que está em questão: as casas, as roças, as lagoas, as áreas
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de cada povoado. Partindo de Itapera e seguindo o eixo do rio, encontramos a série dos semelhantes, dos iguais. Se cruzarmos a vazante, no entanto, em sua profundidade, atravessamos toda a vida social do povoado em seus vários aspectos, na diversidade dos atos coletivos e rituais. São os itinerários a (rancharias), b (retiradas), f (descida da rancharia para o ilhote), g (destroca). Saindo do povoado e atravessando a vazante perpendicularmente, encontramos a série dos dissemelhantes, dos complementares. No eixo paralelo ao rio, da série dos semelhantes, do princípio de vizinhança, não há limite para o social. No eixo perpendicular ao rio, que percorre transversalmente a vazante, a caatinga é o limite: a partir dali, é o confronto com o estranho e o sobrenatural. O primeiro eixo foi mais explorado neste capítulo, porque exibe uma disposição espacial: séries de roças, lagoas, povoados, contíguos no espaço. O segundo eixo exibe uma disposição temporal: a diversidade de atividades que se articulam e se complementam num calendário de trabalhos e de festas. Este será o tema do capítulo seguinte, que trata do ciclo anual dos camponeses. A partir da análise dos itinerários organizadores do Desenho velho, percebe-se que o espaço ali concebido não é um espaço geográfico neutro, mas apropriado socialmente. Durante a reconstituição de cada um dos itinerários, Mano começava sempre por estabelecer a sequência de locais por onde passava até chegar ao seu destino. Depois, procurava identificar quem utilizava tais trajetos e em qual ocasião. Num primeiro momento, nomeava “coisas da natureza” (lagoas, serras, etc.), por ele recortadas e destacadas seguindo uma ordem em que a sequência evocada de nomes obedecia a mesma sequência dos locais percorridos. Num segundo momento, trabalhava a partir de distinções eminentemente sociais, qualificando os grupos que percorriam os trajetos indicados. Desse modo, foram traçados os itinerários costumeiramente seguidos apenas por homens, e por homens e mulheres; pelos corpos de rede que arranchavam na banda da serra ou na banda dos passarinhos; que saíam da lagoa do Sem-Sem para a lagoa do Saco ou retornavam diretamente ao povoado; por quem retirava para o Tabuleiro ou para o Ariá; por quem saía do Sem-Sem direto para o ilhote da Veneza; por quem tinha roça de terra firme na vazante de cima ou na vazante de baixo; por quem tinha roça na ilha da Itapera para cima ou para baixo das casas; pelos que faziam a destroca com Aldeia; pelos vaqueiros que cuidavam do gado da caatinga e do gado da vazante. A partir de várias investidas de descrição Uma retirada insólita
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itinerante do espaço, foram indicados e diferenciados não só os locais onde realizavam as atividades sociais mais importantes, como também os diversos grupos que as exerciam. Além dos itinerários dos camponeses, os trajetos de seu gado tiveram igualmente papel importante na organização do Desenho velho e na qualificação do espaço. Muitas lagoas da vazante foram lembradas apenas por serem os locais frequentados pelos rebanhos, e as próprias vias mais utilizadas para percorrer a região estavam, de alguma forma, relacionadas com o gado: caminhos e carreiros (ou “caminhos de gado”). Construídos e trilhados pelos homens, os caminhos partiam sempre de Itapera e eram pouco numerosos; já os carreiros, variados e incontáveis, eram obra do gado, de suas andanças à solta por toda a região. E as estradas para Tombador e para Aldeia, pouquíssimo usadas, haviam sido construídas pela Prefeitura de Sento Sé com o objetivo de ligar a sede municipal aos povoados ribeirinhos daquela região. É verdade que o rio São Francisco era o principal meio de transporte dos camponeses, que o utilizavam constantemente, sobretudo rumo às roças no ilhote da Veneza, para os povoados vizinhos ou seguindo até Remanso, onde vendiam seus produtos e faziam compras, levavam doentes, divertiam-se em festas, visitavam amigos, etc. A área de Itapera também era frequentemente percorrida a pé ou a cavalo. Os caminhos conduziam às roças de terra firme e de pastagem ou à lagoa dos Angicos, quando em direção ao Sem-Sem. Os carreiros, que recortavam a área da vazante em todas as direções, eram aproveitados para ligar o Sem-Sem e o ilhote da Veneza, Itapera e os poços ou lagoas menores de pesca, as casas e os locais de apanhar lenha e frutos silvestres, dentre outros. Os vaqueiros, mais do que ninguém, usavam os carreiros para rastejar o gado, principalmente na caatinga, onde não havia caminhos. As diferenças entre a área da vazante e a área da caatinga também se manifestam nos diferentes caminhos de gado: os carreiros da vazante, situados na área dos deslocamentos habituais, sempre acabavam por conduzir a algum local conhecido e almejado; os carreiros da caatinga, ao contrário, perdiam-se numa área sem rumo, carente de referenciais. Os dois tipos de rebanho exibem características que reproduzem as mesmas diferenças verificadas entre aqueles dois espaços sociais: o “gado da vazante”, acostumado ao convívio humano e à proximidade das casas; o “gado da caatinga”, habituado à vida selvagem e ao contato com os bichos do mato. Enquanto o primeiro viabilizava o domínio de
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um povoado sobre determinada área, o segundo apenas reforçava as fronteiras fugidias e extensões desmedidas da caatinga. Mesmo a lagoa do Saco, onde o gado da caatinga vinha beber água durante o período da seca, não fazia parte de nenhum território. E as lagoas de chuva, que brotavam no inverno, eram inconstantes e efêmeras. A aridez da caatinga forçava um deslocamento constante dos rebanhos em busca de água e alimentos, que conduzia a todos os lugares ou a lugar nenhum. A relevância dos rebanhos na qualificação do espaço é um bom indicador de sua importância para os camponeses. Aqui, estamos próximos do que Evans-Pritchard (1978) observa acerca do valor social e simbólico do gado entre os Nuer. Mas não tão próximos a ponto de dizer que a maioria das atividades sociais na Itapera velha dizia respeito ao gado, e que “cherchez la vache” seria o melhor conselho a ser dado aos que desejam ter acesso àquele mundo. Como veremos, a pesca e a agricultura de vazante também eram atividades de peso no interior daquela organização social. Afinal, trata-se de moradores das beiras, camponeses que sempre viveram junto ao rio São Francisco, seu ponto de referência central. Aos que buscam alguma chave para entendê-los, mais sábio seria recomendar-lhes: “cherchez la rive”.
1. “As aldeias desenhadas pelos informantes são esquemas ou diagramas onde se procura traduzir graficamente as áreas mais importantes da sociedade Apinayé” (Da Matta, 1976: 64). 2. Sou muito grata ao senhor Diogo Souto, da Divisão de Cartografia do Centro de Estudos de Recursos Minerais (Rio de Janeiro), que gentilmente me auxiliou a localizar as cartas e fotografias aéreas da região do lago de Sobradinho. 3. Leroi-Gourhan (1983: 134-9) distingue dois modos de apreensão do espaço, o “irradiante” (característico dos animais terrestres) e o “itinerante” (apanágio dos pássaros): “A percepção do mundo circundante faz-se através de duas vias, uma dinâmica, que consiste em percorrer o espaço tomando assim consciência dele, a outra estática, que permite, na imobilidade, reconstituir à nossa volta sucessivos círculos que se esbatem progressivamente até aos limites do desconhecido. Uma das vias dá-nos a imagem do mundo com base num itinerário, enquanto a outra integra essa mesma imagem em duas superfícies opostas, a do céu e a da terra, que se unem no horizonte”. 4. Visitei Correnteza em companhia de Seu João, então presidente do STR de Juazeiro (1985). Ele me garantiu que o rio São Francisco “nunca chegou no Alto do Povo”. 5. Relato da assistente social responsável pela Divisão de Relocação de Populações da CHESF, do Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho.
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6. Relato de Henrique Barros, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (Recife), que coordenou uma pesquisa sobre os impactos socioeconômicos de Itaparica, realizada logo depois do enchimento do lago. Localizada 25 km a jusante de Petrolândia (PE), a Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga (seu nome atual) entrou em operação em junho de 1988, cerca de dez anos após Sobradinho, formando um lago de 828 km2, que inundou terras da Bahia e Pernambuco, “desalojando” cerca de 10.400 “famílias”, no mínimo (http://periodicos.fundaj.gov.br/index.php/CAD/article/viewFile/294/301, consultado em maio/2013). 7. Depois da barragem, não mais existe um povoado de nome Tombador, ainda que seus moradores tenham permanecido juntos no novo local de moradia: a nova cidade de Sento Sé, que foi relocada junto com Tombador (no mesmo lugar). 8. Euclides da Cunha (1979: 35-6) descreve a “mutação de apoteose” da vegetação da caatinga na época das chuvas, que “resurge triunfalmente”, repleta de cores e odores, flores e frutos, destacando os umbuzeiros (Spondias tuberosa), que dominam a “revivescência geral” com seu porte “gracioso” e galhos numerosos: “é a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. […] alimenta-o e mitiga-lhe a sede. […] E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional. O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. […] Estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.” A raiz do umbuzeiro, conhecida como “batata do umbu”, suculenta e adocicada, conserva grande quantidade de água, servindo para saciar a sede e a fome. 9. A “ciência” dos caçadores da caatinga está documentada no filme O rastejador, de Sergio Muniz (1970, cor, 25’, 16 mm). 10. A descrição da caatinga feita por Euclides da Cunha em Os sertões (1902), retomada por João Guimarães Rosa em “Pé-duro, chapéu-de-couro” (1952), capta bem esta estúrdia agrestia que busco enfatizar, coincidindo com a própria impressão que a caatinga me causou (ou antecipando-a). 11. Para uma análise das concepções nativas de espaço e tempo em sua relação com as atividades sociais, ver Evans-Pritchard (1978). 12. Nos termos de Leach (1974: 207-8), o período transcorrido na caatinga seria um tempo de “reclusão ritual” (interrupção do tempo social ordinário), marcado pela “vida normal às avessas” (ritos de inversão); a volta ao povoado, um retorno ao mundo profano (recomeço do tempo secular). Ver, ainda, Bourdieu (1980: 459).
Dona Isaura e Seu Domingos. Itapera, fevereiro de 1987.
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As enchentes altas como marcos temporais: ciclo anual e ciclo excepcional Capítulo III
1. Ciclo anual de atividades Os camponeses dividem o ano em duas estações contrastadas, que remetem ao regime de águas do rio São Francisco: a “cheia”, de novembro a março, na subida das águas (cerca de cinco meses); a “seca”, de abril a outubro, na vazante do rio (cerca de sete meses). A cada estação associam uma série de atividades sociais: a cheia, que ritualmente começa com a festa do padroeiro de Itapera, Nosso Senhor do Bonfim, no dia 1º de novembro, é o tempo da colheita e preparo da mandioca; a seca, do plantio nos terrenos da vazante e da pesca nas grandes lagoas. A divisão do ano em “tempo da cheia” e “tempo da seca” deriva mais das atividades desenvolvidas em cada período do que das condições ambientais condicionantes.1 O tempo da cheia coincide com a estação chuvosa do ano, denominada de “inverno” ou “chuva” (“as chuvas”); o tempo da seca, com sua ausência ou pouco volume. Ao inverno (“na chuva”), opõem a “seca” (usam o mesmo termo que designa o momento do ano em que o rio está vazando) ou “verão” (mais raro): “Lá era umas vazante muito boa, né? Tinha pasto de seca e de verde”. A “vazante” é acionada apenas como categoria espacial. O inverno é também conhecido como o tempo do “verde”, devido à vegetação que brota por toda a área da vazante e da caatinga, assim que caem as primeiras chuvas. Em tais ocasiões, é costume dizer que “a caatinga enverdou!” A seca é o tempo das folhas amareladas e do capim ressecado; o inverno, da agricultura de chuva em terras não atingidas pelo rio (roças de chuva) e de uma série de atividades relacionadas ao gado: é o tempo da fartura de leite, das vacas e seus bezerros mugindo junto às casas. Para designar o ano inteiro, usam a expressão “de seca a verde”.
Diana e Marisa carregando lenha na Itapera nova, em agosto de 1985.
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Os camponeses realizavam os plantios e colheitas apoiados num conhecimento preciso dos movimentos do São Francisco. Seu calendário agrícola estava organizado em função do tempo do rio, de seu ritmo anual de cheias e secas. O rio era seu mestre. A oposição entre locais altos e baixos, baseada no alcance das águas, também diferenciava as roças. Se os lugares e casas são considerados “altos” porque não inundavam/ retiravam ou eram os últimos a inundar/retirar, o mesmo ocorre com os locais de cultivo: são “baixas” as roças anualmente cobertas pelo rio; “altas”, só nas grandes enchentes. Quando Itapera retirava, também as roças altas (“de alto”) já estavam dentro d’água. Nas terras baixas (roças de lameiro), “plantavam de vazante”; nas altas, só de chuva (roças de chuva). Nas terras anualmente cobertas pelo rio (os lameiros), as “altas” inundavam por último e apareciam primeiro; as “baixas”, justo o contrário. Os camponeses de Itapera tinham roças na ilha da Itapera (em frente ao povoado), no ilhote da Veneza (um pouco mais acima) e na terra firme (acima e abaixo das casas). Na ilha, havia dois tipos de roça: “de chuva”, cultivadas apenas com “mandioca da chuva” (ou “de chuva”); e “de lameiro”, com “mandioca do rio” (na parte mais alta), feijão-de-arranca, milho, abóbora e melancia (na mais baixa). Na terra firme, só havia roças de lameiro, com os mesmos cultivos dos baixios da ilha, além de batata e feijão-de-corda. Algumas roças de terra firme eram divididas ao meio por uma cerca, para o plantio de capim e alguma mandioca para o gado (“roças de pastagem”). No ilhote todo só havia roças baixas, que vazavam logo depois dos baixios da ilha. Eram destinadas aos mesmos cultivos da terra firme. O mais comum e almejado era um chefe de Família possuir roças nos três lugares (ilha, ilhote e terra firme) e trabalhar junto com os filhos. Como Seu Domingos (71 anos), que tinha quatro roças: uma no ilhote da Veneza, com sete “tarefas” (cerca de 2,30 ha);2 duas na ilha da Itapera (um lameiro com sete tarefas e uma roça de chuva com cinco tarefas); uma na terra firme (um lameiro na beira da lagoa da Porta, dividido ao meio por uma cerca: uma parte era roça de pastagem). Já Seu Manoel (64 anos) tinha três roças: uma no ilhote e duas na ilha (um lameiro e uma roça de chuva); e Seu Brás (60 anos) tinha cinco roças: uma no ilhote; um lameiro na terra firme, entre a lagoa da Porta e o rio, também dividido (um lado com pastagem); duas roças de chuva na ilha; e mais uma na caatinga, por “detrás” do Tabuleiro. As diferentes roças eram aproveitadas de forma complementar, num calendário agrícola que
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seguia de perto o movimento de subida e descida das águas. As terras “descobertas” primeiro (o alto dos lameiros) permaneciam fora d’água por toda a seca (até dez meses), o que viabilizava culturas de ciclo longo, como a mandioca, plantada no início do tempo da vazante. Os terrenos que apareciam por último (o baixio dos lameiros e o ilhote por inteiro), com menos tempo fora d’água, eram destinados a cultivos de ciclo curto, de até três meses, como o feijão e o milho, colhidos assim que o rio voltava a subir, no início do tempo da cheia.3 Cultivados por último, eram os primeiros a serem colhidos. a) Atividades desenvolvidas na seca Quando o rio começava a descer, de março em diante, era o tempo de plantar mandioca do rio na parte mais alta dos lameiros (roças da ilha e terra firme). Logo depois, em abril ou maio, plantavam feijão-de-arranca e milho nos baixios, colhidos em cerca de três meses, a partir de junho. A mandioca do rio (ou de vazante) era assim designada porque nascia em “terras do rio” (nos lameiros) e porque sua colheita – com o nome sugestivo de “desmancha” – era realizada já dentro d’água e às pressas, quando o rio começava a encher, a partir de novembro. Os lameiros eram terras “remontadas” ou “renovadas” pela lama trazida na correnteza. Eram consideradas as melhores terras para a agricultura, as mais férteis e produtivas, pois ali “caía o remonte”. A mandioca do rio diferenciavase da mandioca de chuva, plantada apenas no inverno, nas roças de chuva, onde “não caía remonte”. Não eram cobertas pelo rio, exceto nas enchentes grandes. No entanto, podiam contar com seu “repasso”, aproveitando a umidade dos lameiros vizinhos. Fora do alcance do rio em suas cheias normais, a mandioca de chuva perdurava por mais de um ciclo anual: sua colheita era realizada a partir de ano e meio: “A gente plantava agora no mês de novembro em diante, né? Novembro em diante, na chuva. Agora, ela passava a outra seca, e pegava o outro inverno”. A partir de junho, quando as terras do ilhote ressurgiam, era o tempo de plantar feijão-de-arranca, abóbora, milho e melancia. Na cheia, o ilhote era coberto pelas águas. Renovadas todos os anos, suas terras “remontadas” eram ainda mais férteis e produtivas do que os lameiros da ilha e terra firme. O tempo do plantio no ilhote coincidia com a colheita do feijão-de-arranca e milho, na ilha e terra firme. Assim, o grupo doméstico se dividia: as mulheres faziam a colheita, enquanto os Uma retirada insólita
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homens limpavam e capinavam os terrenos do ilhote. O plantio mesmo era realizado por todos, pois quando terminavam o preparo da terra, as mulheres já haviam finalizado a colheita. Em setembro e outubro, era o tempo da colheita no ilhote, onde passavam a residir, abrigados em barracas provisórias. A melancia e a abóbora eram colhidas por último, somente quando o rio começava a subir, ameaçando “comê-las”. Nos anos de enchente “boa”, quando o rio “cobria” grande parte da área da vazante, “jogando peixe” nas lagoas, todos se preparavam para a temporada de pesca no Sem-Sem e no Saco. Havia uma espécie de função de abundância a relacionar diretamente cheia e rancharia. Quanto maior a enchente, maiores os lameiros, mais peixes nas lagoas, mais longas as rancharias. Os anos bons de pescaria eram também bons de agricultura. No final da cheia, antes mesmo do recuo das águas, já começavam a avaliar as condições de pesca no Sem-Sem. Se fosse negativa, naquele ano não haveria rancharia, apenas um ou outro corpo de rede poderia, eventualmente, deslocar-se até lá para arriscar a sorte. Se fosse positiva, os preparativos começavam em junho ou julho. Havia dois pequenos comerciantes em Itapera que contratavam mulheres do povoado para tecer redes. Vendiam depois, na beira da lagoa. As mulheres procuravam conciliar a colheita na ilha e terra firme com a confecção doméstica de redes. Caso contrário, teriam que comprá-las. Os homens articulavam o plantio no ilhote com a limpeza dos locais de rancharia e transporte dos barcos e redes até lá. Às vezes “chamavam gente” para “auxiliá-los” no ilhote, gente de Itapera mesmo, sobretudo parentes ou afins do chefe do grupo doméstico, como um irmão mais novo de sua esposa, o filho de um irmão ou marido de uma irmã. Em troca do “auxílio”, recebiam em dinheiro (uma “diária”) ou produto (uma “feira”; um saco de feijão ou milho). ––– Eu: E era gente daqui mesmo? ––– Seu Domingos: Era. Todos de lá. Gente daqui. Porque não era todo mundo que tinha roça no ilhote, porque as terras não davam. ––– Eu: O ilhote era muito pequeno? ––– Seu Domingos: Era, o ilhote era pequeno. E mesmo muita gente não se esforçava mesmo de querer a terra, só se preocupava com outra coisa. Um se preocupava com pesca, outros com rede... [Seu Domingos tem 71 anos. Morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova.] Disputados por cinco povoados vizinhos – Itapera, Andorinhas, Caldeirão, Favela de Cima e Marco – , os terrenos do ilhote estavam todos
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ocupados, e ninguém cedia o direito à sua roça. Quem não tinha acesso ao ilhote plantava só na ilha e terra firme, onde era mais fácil conseguir terra. A partir de agosto, depois da colheita de feijão e milho, dedicavamse à pesca nas lagoas. A temporada no Sem-Sem começava assim que a lagoa e o rio se desligavam, em agosto ou setembro. Quem tinha roça no ilhote deixava alguém da família “tomando conta das plantas” até o início da colheita. Se a lagoa ainda estivesse dando peixe, apenas as mulheres e alguns filhos seguiam para lá. Em geral, os homens saíam da lagoa apenas no final da seca, para encerrar a colheita no ilhote: “bater feijão” (limpar), ensacá-lo, colher melancia e abóbora. No início da seca, plantavam capim nas roças de pastagem, destinado ao gado mais magro ou doente, no auge da seca, em setembro ou outubro. Alguns plantavam capim também na terra firme. Na seca, podiam vendê-lo para quem não plantava ou não havia produzido o suficiente. b) Atividades desenvolvidas na cheia (inverno) “A mandioca, a gente só ia colher no rio.” O tempo da cheia era o tempo da “desmancha”, um período de trabalho muito intenso, relacionado com a colheita e armazenamento da mandioca. Começava a partir de dezembro, assim que o rio alcançava as roças de mandioca, estendendo-se até fevereiro ou março, dependendo do alcance da cheia. Era preciso colher rápido a mandioca que o rio queria “engolir”, transformando-a em farinha logo depois. “Arrancavam” dentro d’água, até mesmo mergulhando para alcançar as raízes. A “colheita no rio” implicava alguma perda: apesar de todo o esforço despendido, o rio sempre “comia alguma planta”. Mesmo assim, só colhiam com a subida das águas, colados ao seu ritmo. A mandioca “desenvolvia” um pouco mais e o trabalho ficava bem mais fácil: ––– Seu Domingos: [...] mas a gente já pegou aquele treino, a gente tinha preguiça de arrancar mandioca no seco, né? Porque a mandioca no seco, ela é dura pra arrancar, e, na água, ela é mole. A gente deixava a mandioca cair n’água pra poder arrancar. ––– Eu: E não prejudicava a planta? ––– Seu Domingos: Não prejudicava nada! Agora, a gente era arrancando e botando dentro dos paquetes – aqueles barcos –, e trazendo pras casas de farinha, e entregando pras mulher. E quando Uma retirada insólita
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era de noite, a gente só sofria muito porque nesse tempo não tinha casa de farinha de motor. A gente ia puxar as mandioca a braço. Perecível, a mandioca deve ser prontamente transformada em farinha para armazenamento. Na desmancha, os homens passavam o dia “enfrentando” o rio; as mulheres, “rapando” e “coando” as raízes arrancadas. À noite, os homens “puxavam a roda” (mover manualmente uma moenda), espremendo a mandioca já preparada (fazem isso hoje com motor elétrico). Nos invernos chuvosos, podiam ainda plantar nas roças de chuva, mas somente depois de colher toda a mandioca ameaçada pelo rio. A desmancha podia durar o tempo inteiro da cheia, impossibilitando o plantio da mandioca de chuva: ––– Seu Domingos: Quando a gente tava na desmancha, a gente não plantava nem direito de chuva, porque o plantio de mandioca não deixava a gente ficar colhendo lá mandioca. Quando a gente ia acabar, o rio, às vezes, já começava a vazar, a gente, aí, ia plantar outra vez. As roças de chuva da ilha eram mais valorizadas do que as roças de chuva da caatinga, também cultivadas com mandioca: não só contavam com o “repasso do rio” (a umidade do lameiro), mas também eram “remontadas” de tempos em tempos pelo rio em suas enchentes grandes. Em Itapera, as únicas (e poucas) roças na caatinga estavam localizadas nos locais de retiro (feitas durante alguma retirada) e na Baixa (ou Baixão) da Queimada Grande (apenas três roças, feitas em ano de muita chuva): ––– Eu: Mas lá no Tabuleiro não fazia roça, não? ––– Seu Domingos: Tinha muita gente que tinha roça lá, depois dessas enchente grande. Tinha muita gente que fazia roça lá, que plantava lá. ––– Diana (filha de Seu Domingos): O povo aproveitava mais era os terrenos da vazante. ––– Seu Domingos: Agora, eu não tinha não. Eu nunca fiz roça, não. Eu tinha minhas roças boas lá na vazante. Largar minhas roças aqui, pro mode ir pra lá? Numa enchente alta, quando o rio atingia as roças de chuva da ilha, logo após a desmancha da mandioca do rio, começava a desmancha da mandioca de chuva. Em tais ocasiões, passavam praticamente todo o tempo da retirada ocupados com a colheita das roças ameaçadas pelo rio. O plantio de chuva na caatinga, subordinado ao término da desmancha, era uma alternativa excepcional e provisória. Por isso, eram poucos os que faziam roça na caatinga.
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A mandioca do rio era colhida com cerca de oito meses, no máximo, no tempo do rio; a da chuva, a partir de um ano e meio, podendo permanecer longos períodos sob a terra, sem nenhum prejuízo. Sempre à mercê das águas como os demais cultivos, a mandioca do rio garantia o suprimento anual de farinha; a de chuva era uma reserva, só para “ajudar”.4 Sua colheita seguia necessidades de consumo ou venda, em função da quantidade de farinha almejada, especialmente na entressafra, para garantir o plantio de vazante, no tempo da seca: ––– Seu Domingos: E essa aí, da chuva, era que ajudava a plantar de vazante. ––– Eu: Ajudava como? ––– Seu Domingos: Aquela de chuva podia vender pra ajudar a outra planta, que começava de junho, depois que o rio descia. A mandioca da chuva era o único cultivo que podia permanecer mais tempo na roça. Apenas as enchentes altas interferiam em sua condição de reserva, pois o rio impunha a colheita integral, equiparando-a à mandioca do rio. Os camponeses de Itapera preferiam vender os produtos da roça na feira de Remanso ou na beira do rio, para os “paqueteiros” – os barqueiros tradicionais do São Francisco, condutores de canoas ou “paquetes”. Não valia a pena vender para os pequenos comerciantes do próprio povoado, que sempre pagavam menos. ––– Eu: Vendia farinha onde? ––– Diana: Pra Remanso, tirava pra Remanso. ––– Seu Domingos: Oxente! Não recusava nada! Lá não recusava nada. E lá, olhe, tinha paqueteiro de Juazeiro, de Remanso, XiqueXique. Lá tinha movimento. ––– Eu: Em que época vocês vendiam farinha? ––– Seu Domingos: Todo o tempo. Todo o tempo a gente vendia. Agora, a época que a gente vendia mais barato era só na desmancha. Aí tinha demais. ––– Diana: Todo mundo tinha, né? Todo mundo queria vender. ––– Seu Domingos: Mas, às vezes que você depositava a farinha, quando era no tempo da seca, você vendia. Associadas ao ritmo do São Francisco, a colheita do ilhote e da mandioca do rio era realizada, simultaneamente, por todos os camponeses da região. Reagindo ao excesso de oferta, os preços caíam. O tempo da cheia não era muito propício para a venda. Todos procuravam Uma retirada insólita
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“depositar” os produtos, transformando as moradias em verdadeiros depósitos. A cheia era um tempo de fartura, da casa repleta de sacos de farinha, feijão e milho, de abóboras e melancias empilhadas. A cada ano, dependendo do alcance do rio na estação das águas, a área dos lameiros aumentava ou diminuía. Na ilha, o lameiro podia crescer para o alto, avançando nas roças de chuva. No ilhote, onde não havia terra alta, apenas a frente das roças poderia aumentar, desde que ali plantassem o capim zozó, para segurar a lama. Às vezes a frente de uma roça era comida pelas águas, e a terra diminuía ao invés de aumentar. No ilhote, as roças de centro, sem frente para a água, não podiam crescer, mas eram mais seguras contra a voracidade do rio. Muitos preferiam o centro, pois água em demasia prejudica os cultivos: “tinha terra lá que ficava muito na beira d’água, que a planta embebedava, não prestava. A terra mais do alto era melhor.” Quando a cheia era pequena, diminuíam os lameiros e a colheita era fraca: “depositavam” poucos sacos de farinha ou feijão, ficando na dependência das roças de chuva. O regime de cheias e secas do São Francisco era muito irregular, bem como o regime de chuvas. Para assegurar a continuidade do calendário agrícola, aproveitavam os anos chuvosos para aumentar as roças de chuva, buscando assim, por antecipação, compensar os anos de seca. Na cheia, também o gado requeria maiores cuidados. De novembro em diante, no “verde”, era o “tempo de parição”, quando as vacas davam cria. Os vaqueiros trabalhavam em ritmo intenso, percorrendo constantemente toda a área da vazante, afundando na caatinga. Traziam as vacas para os currais, nas imediações das casas (Mapa I, p. 236), onde deixavam os bezerros presos. Tiravam leite de manhã bem cedo, e depois soltavam as vacas nos pastos da vazante. Estavam sempre a postos, recolhendo o gado, tratando de bicheiras e feridas. Ao entardecer, em busca das crias, as vacas voltavam para os currais, onde passavam a noite. No início da seca, os bezerros eram “ferrados” (marcados a ferro) e, finalmente, soltos. Só ficavam as reses mais fracas ou alguma vaca leiteira. O resto era criado solto, à larga, circulando livremente até o próximo inverno. O tempo da cheia e do verde era também o tempo de concentração do gado, que no resto do ano se dispersava. As atividades desenvolvidas pelos camponeses de Itapera na cheia e na seca podem ser ordenadas no seguinte calendário:
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Ciclo anual dos camponeses de Itapera nov regime do rio e de chuvas
dez
jan fev
mar abr
mai
jun
jul
cheia/inverno/verde
ago
out
seca
povoado (casas)
morfologia
set
concentração
dispersão
desmancha da mandioca (casas de farinha)
roças na ilha da Itapera e na terra firme
roças na ilha da Itapera
lagoa (toldas)
ilha (barracas)
concentr
dispersão
rancharias roças no no Sem-Sem ilhote e no Saco da Veneza
roças na ilha e na terra firme
(mandioca do rio)
atividades econômicas
(feijão, milho, abóbora, melancia)
colheita
plantio
plantio colheita
roças de chuva na ilha da Itapera
roças no ilhote da Veneza
(mandioca de chuva)
(feijão, milho, abóbora, melancia)
plantio
gado concentrado tempo da parição (vaqueiros na caatinga vacas e bezerros no curral fartura de leite)
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plantio
colheita
gado disperso gado magro nas roças de pastagem (na ilha ou terra firme)
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c) Avaliação social do tempo “As barcas estão descendo, os vapô estão subindo; o rio ‘stá reinando água, as ribancêra caindo.”5 Antes da barragem, os camponeses conheciam muito bem o comportamento do rio São Francisco. Era este um dos assuntos prediletos, além do gado. Assim que notavam um aumento de volume, diziam que estava “reinando água”. O início da cheia era conhecido como “piquete do primeiro de novembro” ou “primeira reinação das águas”. Quando havia um segundo “pique”, em março ou abril, era o “repiquete das águas”.6 Todos os anos, aproximando-se o tempo da cheia, os movimentos do rio viravam o principal assunto de conversa: “o rio tá chegando na minha roça...”; “já cobriu a roça de Brás!”; “essa enchente é demorosa...”. O nível diário do São Francisco era cuidadosamente avaliado, porque dele dependiam decisões sobre a colheita e o gado, sobretudo a desmancha da mandioca do rio. A duração e o alcance da cheia, o momento da subida das águas e de sua vazante variavam de ano a ano. Daí que todos falem mais em termos de um período do que de uma data precisa, como “de março em diante” ou “a partir de agosto”: “nesse tempo, agora de novembro em diante, o rio enchia. Novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março. Agora, em março, de março em diante ele já vazava” (Mano). Havia anos em que o rio “descobria cedo”, vazando no final de fevereiro; outros, em que “custava a descobrir”, estendendo-se até abril ou maio. O início da cheia e da seca era sempre objeto de uma avaliação coletiva, vinculada às decisões de plantio e colheita (quando e onde) ou de encerramento do tempo de retiro.7 Estavam sempre falando sobre o rio, examinando seu comportamento, especulando sobre a próxima cheia ou seca. Num ano em que as águas recuassem em demasia, a mandioca do rio, plantada em terras altas, primeiro descobertas, poderia secar totalmente, trazendo grandes prejuízos. Somente em anos excepcionais, de muita chuva nas cabeceiras, era possível saber que o rio “tava botando muita água”: ––– Eu: E como era quando tinha cheia alta? ––– Seu Domingos: Era quando o rio de cima botava muita água. ––– Eu: Vocês chegavam a saber antes? Antes mesmo de chegar aqui, vocês já sabiam se iria ter uma cheia alta? 118 As enchentes altas como marcos temporais
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––– Seu Domingos: Todo ano tinha cheia. Agora, a gente não sabia qual era o ano que tinha cheia alta. O ano que a gente via que a enchente era grande, a gente conhecia mesmo, porque chovia muito pra riba. ––– Marisa (filha de Seu Domingos): Quando a gente sabia que aí pro alto tava chovendo muito, a gente esperava era a cheia. Havia um “medidor” em Remanso, que avaliava diariamente a vazão do rio São Francisco, divulgando o volume e data provável de chegada do “pique da cheia”. Também recebiam, via telégrafo, notícias das cidades inundadas “lá pra cima”. A feira de Remanso era palco de inúmeras discussões, com apostas sobre o dia do “pique” na cidade. Uma enchente grande era aguardada com muita ansiedade, e as avaliações diárias do nível do rio tornavam-se ainda mais cuidadosas. Ninguém se arriscaria a perder mandioca na roça, deixando-a à mercê das águas. Do mesmo modo, os fazendeiros ficavam especulando sobre a cheia, para decidir o momento certo de tirar os rebanhos da beira do rio. Remanso fervilhava ante a expectativa de uma enchente alta.
2. Morfologia social dos camponeses de Itapera a) Unidades sociais pertinentes: a família e seu chefe “Um cunhado que eu tenho, que me mostra querê bem, atracô a cartuchêra sem dizê nada a ninguém. – Aonde meu cunhado morrer é certo eu morro também.”8 As casas de Itapera eram habitadas por uma família conjugal, seus filhos solteiros e algum outro parente, como um irmão mais moço, sobrinho ou neto do casal. Este grupo de pessoas formava um grupo doméstico: “conjunto de indivíduos que vivem na mesma casa e possuem uma economia doméstica comum”.9 Um novo grupo surgia quando um filho se casava, passando a residir em uma casa e a administrá-la, cultivando sua própria roça. Excepcionalmente, poderia permanecer na casa dos pais, situação sempre vivida como transitória. A categoria nativa para designar o grupo doméstico é “família”. Na Itapera velha, a família de Seu Uma retirada insólita
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Domingos morava numa casa na rua da Frente (Mapa I, p. 236): ele, a esposa e dez filhos (quatro homens e cinco mulheres, uma delas adotiva, filha de uma irmã falecida de Seu Domingos). Na divisão de tarefas por sexo e idade no interior da família, os homens eram responsáveis pelo gado, “criação” (ovinos e caprinos) e “animais” (equinos); limpavam e plantavam nos lameiros e no ilhote. As mulheres, sempre acompanhadas pelos filhos de até 10 ou 12 anos, faziam a colheita no ilhote (até os homens regressarem da pesca nas lagoas, quando passavam a trabalhar juntos), teciam redes, criavam porcos e galinhas, e se incumbiam das demais tarefas domésticas, como cuidar das crianças, lavar e cozinhar, buscar lenha para o fogo, etc. Nas rancharias, os homens pescavam, as mulheres limpavam e salgavam o peixe. Na desmancha, os homens colhiam e, depois, nas casas de farinha, moíam a mandioca que as mulheres já haviam preparado, em trabalhos sucessivos de lavar, descascar, ralar, coar, etc. No entanto, a noção de grupo doméstico é insuficiente para dar conta da organização social dos camponeses ribeirinhos: a família por si só era incapaz de assegurar sua reprodução sem a cooperação de outras famílias.10 Nessa região do Médio São Francisco, o agrupamento familiar é fundamental: a articulação de várias famílias ligadas por laços de sangue ou afinidade, que têm interesses e objetivos comuns, lideradas por um chefe.11 Como também é chamado de “família”, para diferenciálo do grupo doméstico, emprego a notação “Família” (com f maiúsculo). Há sempre um chefe que centraliza e simboliza o agrupamento familiar, cujo nome é utilizado para identificá-lo, geralmente precedido por termos mais genéricos, como “povo”, “gente” ou “pessoal”: ––– Diana: [...] esse pessoal do meu marido [Mano] e outras famílias lá, gente do Vicente, eles viajavam era para o Saco [onde arranchavam]. Mas ia mais gente pro Sem-Sem do que pro Saco. ––– Seu Domingos: [meu pai] tinha uns lameiros muito grande na ilha, mas esse nós deixamos, outra gente tomou conta. Nós deixamos esses lameiros, outra gente tomou conta. Porque lá, quando a gente, às vezes, largava uma terra, outro pegava, né? Outro pegava e pagava à Prefeitura, era dono. De uso bastante frequente, “povo”, “gente” ou “pessoal” designam totalidades: não só a Família (“povo de Francisco” ou “gente de Vicente”), mas também o conjunto de moradores de determinado lugar (o “povo do Tombador” ou “gente da Itapera”):
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––– Manoel maiano: [para o Sem-Sem] vinha muita gente de fora. Vinha gente do Bem-Bom, vinha gente do Tombador, vinha gente do Riacho dos Pais... Tinha ano, inté gente do Sento Sé! ––– Seu Domingos: [no ilhote] trabalhava nós daí; trabalhava uma parte do povo do Marco, lá do outro lado, do Remanso; trabalhava um povo que tem ali na, que mora ali nas Andorinha, que era de lá das Andorinha, que era em frente à ilha mesmo; trabalhava gente da Favela; trabalhava gente do Remanso. Trabalhava muita gente lá! [...] tinha gente da Itapera; tinha gente da Andorinha. Em Itapera, havia basicamente dois tipos de Famílias, cujo núcleo era um grupo de irmãos, casados e solteiros, liderados pelo pai ou sogro (como o “povo de Domingos”, que agregava as famílias de seus quatro filhos e três filhas); ou um grupo de cunhados, liderados por um deles, geralmente mais velho.12 Coerentemente com o emprego do mesmo termo para designar o grupo doméstico e o agrupamento familiar, os cunhados pertencentes ao grupo eram chamados de “irmãos”; os genros, de “filhos”. Geralmente, quando o pai morria ou estava muito velho, um dos filhos assumia a liderança do grupo. O perfil de cada Família variava em função do momento do ciclo de vida e das “condições” de cada um de seus membros. Quando um filho homem se casava, os pais que tinham condições davam casa e roça para o noivo.13 Seu Domingos é um caso exemplar de chefe de Família com condições: era dono de três roças de lameiro (no ilhote, ilha e terra firme) e uma roça de chuva (na ilha), que viabilizavam o cumprimento do calendário agrícola, com seus diferentes momentos e locais de cultivo. Também era membro de um corpo de rede, participando ativamente das pescarias no Sem-Sem. Em campo, quando eu indagava sobre o gado na Itapera velha, sempre diziam que “todo mundo tinha”, nem que fosse uma ou duas cabeças, mas logo nomeavam os sete ou nove “criadores fortes” do lugar, donos dos maiores rebanhos. Nunca deixavam de mencionar Seu Domingos, que era dono de curral, roça de pastagem e “mais de cem reses!”, além de “animal” e “criação”. De acordo com Mano, havia nove currais atrás do povoado, que pertenciam aos “criadores fortes” do lugar (Mapa I, p. 236). Além do número de cabeças, era a posse de um curral que definia um criador forte. Seu Domingos tinha condições de ceder uma parte de suas roças ou mesmo vender gado para comprar um pedaço de terra para um filho Uma retirada insólita
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recém-casado. A posse de um rebanho era o ponto de partida para a ampliação do estoque de terras da família: poderia ser convertido em terra ou benfeitoria, quando surgisse um bom negócio.14 ––– Diana: Olhe, os filhos de meu pai [Seu Domingos], quando casa – só um que casou com 17 anos e morou na casa da mãe dela, porque não tinha casa, né? Mas logo meu pai a todos deu uma casa. Todos os filhos dele, antes de quando eles casa, todos dá. O Nelito mesmo, quando casou – ele ficou noivo, de aliança e tudo –, aí o papai arrumou logo a casa, e ele já teve a roça logo dele, né? Teve um que casou de repente, porque ele tirou a moça, né? Aí, os pais botaram – eles casaram de repente. Ele morou na casa do sogro, mas morou pouco tempo. O papai comprou uma casa também, já deu. Esse João, Joãozinho, que tem nove filhos, ele casou também. Foi de repente o casamento dele. Ele foi morar na casa da sogra. Mas logo ele arrumou a casa e a roça. Porque todos eles o meu pai dá. ––– Eu: E teu pai conseguia roça onde? ––– Diana: Às vezes, ele comprava. Ele tinha, assim, terra na ilha mesmo. Ele tinha bastante terra, né? ––– Eu: No ilhote também? ––– Diana: Ele tinha na ilha, no ilhote e na terra firme também. Apenas na terra firme as roças podiam ser compradas. Em geral, eram antigas posses familiares, cujo direito de utilização ninguém questionava. Como na área de Itapera não havia mais espaço “livre” ou “desocupado” na beira do rio, apenas relações de parentesco (herdar dos pais) ou de compra e venda viabilizavam o acesso às roças de terra firme. A roça de Seu Domingos, na beira da lagoa da Porta, foi comprada de gente de Itapera. As terras devolutas da caatinga eram simplesmente ocupadas. As roças de chuva tiradas no Baixão ou nos locais de retiro (Tabuleiro e Ariá) haviam sido livremente apossadas. Ao contrário da vazante, na caatinga era sempre possível “tirar” novas roças. Só que não valia muito a pena. Não tinham como disputar com as “terras do rio”, muito mais férteis e produtivas. Dificilmente alguém de Itapera possuía título de propriedade das roças de terra firme ou da caatinga. O que não impedia, em absoluto, que fossem comercializadas. No entanto, a ausência de títulos foi alegada pela CHESF no momento das indenizações: os camponeses nada receberam pelos terrenos que cultivavam há gerações, só pelas benfeitorias.
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O acesso direto à terra firme não pode ser generalizado. Em Remanso ou em boa parte do município de Sento Sé, nas áreas de fazendas de gado que se estendiam da beira do rio para dentro da caatinga, os camponeses só tinham acesso à terra via relação de “agregacia”: recebiam autorização de construir casa (sem telha) e “tirar” roça, desde que ficassem disponíveis para todo e qualquer “serviço” (cuidar do gado, abrir aguadas, colher carnaúba, etc.). As roças não podiam ser vendidas, o que contrastava fortemente com a situação privilegiada de quem negociava livremente na terra firme, como ocorria na região de Itapera. Subordinados pela moradia, sem dispor livremente do próprio tempo nem da terra de trabalho, os agregados eram considerados “cativos”, em oposição aos “libertos”, que moravam fora das fazendas, em povoados com acesso direto à terra firme.15 No município de Sento Sé, pelo menos naquela área compreendida entre Tombador e Aldeia, onde ficava a Itapera velha, não havia fazendas na beira do rio, apenas roças dos povoados ribeirinhos, obtidas via posse ou compra, sem qualquer mediação. Ao contrário da terra firme, as inúmeras ilhas e ilhotes do rio São Francisco pertencem ao Estado (Ministério da Marinha), mas são administradas pelas prefeituras dos municípios ribeirinhos, que as “arrendam” aos camponeses. Para controlar seu uso e acesso, cobrando um imposto anual por cada roça ocupada, os municípios de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado contavam com um quadro de funcionários, denominados de “administradores de ilhas, ilhotes e coroas”, mais conhecidos como “fiscais” ou “encarregados da Prefeitura”. Os camponeses recebiam um “talão” de pagamento por cada roça arrendada, que servia de recibo e comprovante de posse: “pagava à Prefeitura, era dono”. O talão era tirado em nome do chefe de família, que tinha autonomia para largar a terra quando quisesse: outro arrendava, “tomava conta”. O fiscal apenas anotava no talão o número de “tarefas” (tamanho da roça), valor e data de pagamento, geralmente no início da cheia, logo após o término da colheita, quando todos estavam capitalizados. (Foto do talão, p. 165) Os camponeses de Itapera tinham roças na ilha da Itapera, que pertencia ao município de Remanso, e no ilhote da Veneza, que pertencia a Sento Sé. Dessa forma, mantinham relações com as prefeituras e fiscais dos dois municípios para pagar o talão, assegurar sua permanência ou negociar o acesso a novas terras.16 O fiscal tinha autorização para arrenUma retirada insólita
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dar terrenos desocupados, controlar seu aproveitamento e até mesmo negar a renovação, expulsando o responsável por aquela terra para arrendá-la a outro, o que não ocorria sem conflitos. O mais comum, no entanto, era que as roças permanecessem no interior de um mesmo agrupamento familiar. O talão era transmitido para um dos membros da Família de seu antigo dono. Como ocorreu com Nelito, filho mais velho de Seu Domingos, que herdou do avô materno a sua roça no ilhote. Logo após a morte do avô, o talão foi transferido para o seu nome. Quando os filhos já tinham “condições”, as roças podiam passar diretamente para os netos. O “dono” de uma roça podia dividi-la com algum membro de sua Família (filho, genro, neto, irmão), requerendo um novo talão ao fiscal. Foi o que aconteceu quando Nelito dividiu a roça no ilhote, herdada do avô, com um irmão recém-casado. Nelito “tirou documento” (talão) em nome do irmão: ––– Eu: O Nelito ganhou roça onde? ––– Diana (irmã de Nelito): O Nelito ganhou roça no ilhote da Veneza. A terra dele era tão grande que, quando o irmão meu casou, ele deu uma parte da terra, e tirou documento como dele mesmo. O Chicada, aqui esse Chicada. E esse João Francisco, quando ele casou, ele ficou trabalhando na ilha e na terra firme, do meu pai também [...] Todo pai faz isso. Só não faz se não tem condição. O pai tem obrigação de dar casa e roça para os filhos. O mais frequente, no entanto, era apenas ceder um pedaço de terra para uso de membros da Família: “cortava” uma parte da roça arrendada, mas o talão continuava registrado com o nome do antigo dono. Quando dois filhos de Seu Domingos se casaram (Chicada e João Francisco), receberam partes de suas roças para trabalhar, mas os talões não mudaram de nome. O mesmo ocorreu com a Família de Seu Afro, que morava no povoado ribeirinho de Mundo Novo, no município de Sento Sé, bem mais abaixo da velha Itapera: ––– Eu: Quando os filhos se casavam, como é que arranjavam terra na ilha? ––– Seu Afro: A gente arrendava qualquer uma, qualquer uma pessoa que queria uma roça, a gente arrendava. ––– Eu: E tinha terra para todo mundo? ––– Seu Afro: Tinha, arranjava, nem que cortasse, mas tinha que dividir. ––– Eu: Dividia a terra do pai?
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––– Seu Afro: É, da minha mesmo, eu tinha essa minha, mas quem plantava era meus filhos. Era, quem plantava era meus filhos. Dividia, dava um pedaço um, dava a outro, da minha. [Seu Afro tem 82 anos. Morava em Mundo Novo, município de Sento Sé; com a formação do lago, mudou-se para a nova cidade de Sento Sé.] Quando as filhas se casavam, e o pai do noivo tinha condições, a família recém formada era incorporada ao seu povo. O perfil de uma Família sofria modificações ao longo do tempo, com novas famílias se formando, integrando-se a um grupo ou outro, sempre em função das “condições”. Os filhos podiam voltar a trabalhar com o pai, deixando a Família do sogro ou de um cunhado. Depois de casados, os filhos não faziam mais parte da família do pai, já que moravam em casas diferentes e trabalhavam em roças ou áreas próprias. Não aprofundei a pesquisa sobre a divisão de trabalho e de produtos, quando mais de uma família trabalhava na mesma roça, na Itapera velha. Mas acompanhei de perto os trabalhos de uma Família na Itapera nova: um grupo de irmãos e cunhados que plantam no lote de um deles (Nelito), o único que tem acesso à agua, e, portanto, melhores condições de cultivo: ––– Mano: Inicialmente começou trabalhando eu e Nelito, e João [...] Já no segundo ano, já aumentou: trabalhou João, trabalhou Francisco e Silvino, que é tudo de uma Família só. Nós somos cunhados, né? Cunhados. E João, e Francisco, e Nelito são irmãos. E nós dois somos cunhados [Mano e Nelito]. Então, nós produzimos tudo lá na propriedade dele: Nelito entrava com a terra e a moto-bomba, nós entrava com o recurso da nossa parte. Nelito entrava com a motobomba e com recurso para plantar a área dele, e a outra área que fosse da gente, entrava com recurso próprio da gente. [Mano tem 35 anos. Morava na Itapera velha; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova. É o presidente da Associação de Moradores de Itapera (AMI).] Esse grupo de cunhados parece reproduzir um padrão de relações vigentes no velho povoado: um grupo de famílias ligadas por laços de parentesco e afinidade que cooperam entre si. São três irmãos e dois cunhados (maridos das irmãs) que trabalham na roça de um deles, Nelito, que possui um motor de irrigação. Cada família planta numa determinada área, com recursos próprios, principalmente cebola. Óleo e inseticida, compram juntos. Se a colheita for boa e conseguirem bons preços, Uma retirada insólita
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compensam Nelito e asseguram a conservação do motor (consertos e troca de peças gastas). Na época da colheita, todas as famílias vão “morar na roça”, distante cerca de 20 km do povoado, abrigando-se na mesma barraca. Há muitas outras formas de cooperação e retribuição entre eles, que valeria a pena descrever e analisar mais detidamente. Nelito arranchado em sua roça na Itapera nova, em fevereiro de 1987.
A esfera de autonomia de cada família não excluía decisões tomadas em conjunto, dentro da Família, como o momento certo para iniciar o plantio ou a colheita. No ilhote, ficavam abrigados sob a mesma barraca no tempo da colheita; na desmancha, os homens enfrentavam o rio juntos, arrancando a mandioca ameaçada, independentemente de quem havia plantado, e faziam uso da mesma casa de farinha. As mulheres, rapando e coando mandioca; os homens “puxando roda”, revezando-se. Os integrantes de uma Família também podiam trabalhar nas roças do chefe do grupo para completar o calendário agrícola. Quem tinha roça de lameiro precisava também de uma roça de chuva para não depender integral-
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mente do rio. Se trabalhassem só com feijão e milho, não poderiam fazer a desmancha, o que seria inconcebível para camponeses que tinham na mandioca uma de suas principais fontes de recursos e alimentação. A Família possibilitava a todos os seus membros o acesso a roças localizadas na ilha, ilhote e terra firme, a lameiros e roças de chuva. Cultivadas segundo um calendário que contemplava todos os períodos do ano, as várias roças podiam produzir de forma alternada, garantindo um certo equilíbrio no orçamento anual de cada família. Na obtenção e administração de várias roças estava em jogo uma série de fatores interligados, que configuram o patrimônio do chefe da Família. Não só terra e gado, mas capital social: as relações com as elites políticas de Remanso e Sento Sé, que viabilizavam o acesso às terras das ilhas e ilhotes. A Família de Seu Domingos é paradigmática nesse sentido, pois seu pai mantinha boas relações com os fazendeiros que controlavam a política em Remanso, trabalhando, ele mesmo, como fiscal durante muitos anos. Responsável pela administração das terras nas ilhas, ilhotes e coroas, o fiscal podia favorecer os membros de sua própria Família e ainda se beneficiar diretamente das terras que tinha direito de explorar, no local que escolhesse, sem o pagamento do talão. Tudo isso dentro de um jogo político, no qual nem sempre se estava na posição privilegiada de aliado da elite no poder. Não caberia fazer aqui uma análise desse sistema político de acesso às terras mais valorizadas da região (os lameiros das ilhas e ilhotes) e do lugar que as boas relações com a elite ocupava na reprodução desse campesinato. Pode-se, no entanto, dimensionar o alcance dessas relações nos mais variados aspectos de sua vida social. No que diz respeito ao patrimônio, Seu Domingos herdou do pai uma roça muito produtiva na terra firme (com pastagem) e muitas cabeças de gado. Além de fiscal, seu pai era um criador forte, que ainda lhe transmitiu suas próprias alianças políticas: Seu Domingos era “afilhado” de um grande criador de gado da região. Em Itapera, eram poucos os chefes que mantinham boas relações com a elite local, possuíam os maiores rebanhos e um conjunto de roças variadas e bem localizadas. Eram esses os chefes de Família “com condições”: sempre podiam conseguir terra para um filho recém-casado, cedendo parte de alguma roça, comprando uma nova ou tirando mais um “talão”, por intermédio do fiscal da Família (ou de uma Família da parentela). Foi assim que Seu Domingos teve condições de assegurar a permanência da maior parte dos filhos, homens e mulheres, junto de si. Uma retirada insólita
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Cada família (“cada qual”) tinha algumas cabeças de gado, criadas em conjunto com o gado das demais famílias que integravam sua Família: “às vezes um tem três, quatro vacas, dava àquele pra olhar; outro, às vezes, tinha cinco ou seis, dava praquele mesmo vaqueiro”. Os membros de uma Família conservavam os rebanhos juntos, sob os cuidados do mesmo vaqueiro, fazendo uso do mesmo curral. ––– Seu Domingos: Cada qual criava a sua, mas às vezes tinha um vaqueiro que era criador forte, apanhava setenta e tantas, noventa bezerros, cem. E, às vezes, outros apanhava cinco ou seis, outro apanhava 10, outro apanhava 15. Cada qual tinha seu numerozinho de gado. Por ocasião das enchentes altas que inundavam Itapera, a Família de Seu Domingos retirava para o mesmo lugar, o Tabuleiro, onde permaneciam abrigados sob a mesma barraca. Todos os irmãos cooperavam durante a saída do povoado, bastante trabalhosa, principalmente na retirada do gado da vazante. A opção pelo Tabuleiro levava em conta os rebanhos: havia boas pastagens em volta e também era mais perto de Itapera, onde estavam os currais com os bezerros (tempo da cheia). ––– Seu Brás: A gente tinha um gadinho, e lá [no Tabuleiro] ficava mais perto pra mim lutar. [...] Esse meu cunhado era proprietário, ele tinha um pouco de gado, né? Eu era o vaqueiro. Era o vaqueiro do meu e do dele. Mas nesse ano ele não quis ir lá pro Ariá porque era mais longe. Lá no Tabuleiro ficava mais perto da gente lutar. [Seu Brás tem 60 anos. Morava na velha Itapera; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova.] Também algumas Famílias de Mundo Novo, povoado ribeirinho do município de Sento Sé, bem abaixo de Itapera, escolhiam os locais de retiro em função do gado: ––– Esposa de Seu Afro: [...] Nós mesmo era duns que arretirava pra cá pra fazenda, por causa da gente ter o gadinho da gente. Já o outro pessoal nosso já ficava nas Lages nova. ––– Eu: Por que eles ficavam nas Lages nova? ––– Esposa de Seu Afro: Porque eles não tinha gado. ––– Seu Afro: Era mais pertinho. ––– Esposa de Seu Afro: Não tinha nada, ficava cá. ––– Seu Afro: É, ficava cá, ficava mais perto do rio. ––– Esposa de Seu Afro: Pra poder pescar com a redinha, anzol, ia pescar, passava o dia inteirinho pescando no anzol, pra poder matar
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uns piauzinhos, uns douradinhos.17 Chamavam até de “salva-vida”, os peixinhos chamava “salva-vida”. ––– Seu Afro: Uns peixinhos pequenininhos. Passava o dia inteirinho pescando. Em Itapera, Famílias com pouco gado podiam escolher o lugar de retiro em função de suas roças na caatinga: ––– Eu: O senhor nunca foi para o Ariá? ––– Seu João Augusto (genro de Seu Domingos): Não, nunca fui não. Pra lá, não. ––– Eu: Mas tinha gente que ia? ––– Seu João Augusto: Tinha. A metade pra lá, e a metade pro Ariá, mas mais era para o Tabuleiro. ––– Eu: Isso é que eu não consigo entender: por que uns iam para o Tabuleiro e outros para o Ariá? ––– Seu João Augusto: Era que, isso aí era um motivo justo: porque uns tinha roça de caatinga lá na parte do Arial, e outros para o Tabuleiro. Então, o pessoal retirava para mais próximo das roças que aplantavam, entendeu? [Casado com Nely, filha de Seu Domingos, Seu João Augusto era fiscal da prefeitura.] Cada Família formava um grupo de retirada, que “enfrentava” junto a enchente alta. Além de retirar para o mesmo local e manter os rebanhos juntos, de avaliar e cumprir conjuntamente todas as etapas do calendário agrícola e de festas, integravam a mesma rancharia. No entanto, o agrupamento familiar era ainda insuficiente para o cumprimento de todo o ciclo anual: as rancharias aglutinavam mais de uma Família, ligadas por laços de sangue ou afinidade. Famílias de uma mesma rancharia retiravam para o mesmo local de retiro e utilizavam a mesma casa de farinha. A Família não eliminava a esfera de autonomia do grupo doméstico. Cada família trabalhava em sua roça (plantio/colheita), comercializava seus produtos, possuía casa, gado e criação. Na Itapera nova, ainda que um grupo de irmãos e cunhados de uma Família utilizem o mesmo curral, criando o gado em conjunto, “cada um” (cada família) tem a sua própria marca. É muito provável que o mesmo ocorresse no velho povoado. No entanto, era a Família que fornecia as condições para “cada qual” cumprir todas as etapas do calendário, desenvolvendo atividades relacionadas com roça, gado e pesca. A reprodução social dependia de uma articulação com outros Uma retirada insólita
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grupos domésticos aparentados. A cooperação no interior da Família viabilizava o “trabalho direto”, a ocupação plena em todas as épocas do ano. O ritmo do rio era retraduzido na alternância de tempos fortes (“de reposição”) e fracos (“de trabalho”).18 Tempos fortes: Famílias concentradas nas rancharias e casas de farinha, em atividades de caráter coletivo, reforçando os laços sociais. Tempos fracos: Famílias dispersas nas roças, em atividades próprias a cada grupo doméstico. O ciclo anual se organizava a partir da relação entre tempos fortes e fracos, em momentos sucessivos de concentração (povoado, beira da lagoa, local de retiro) e dispersão (roças).19 b) Movimentos de dispersão: o trabalho nas roças O início e o final da seca eram marcados pela dispersão das diferentes Famílias do povoado. Entre março e junho, aproximadamente, plantavam todos juntos, na ilha da Itapera e na terra firme; entre junho e julho, começavam a colher, mas só as mulheres e alguns filhos pequenos, porque os homens iam plantar no ilhote da Veneza (nas próprias roças ou “ajudando” outros). Nessa época, as mulheres também começavam a tecer redes para as pescarias nas lagoas. Dormiam todos em casa, mas passavam o dia fora, espalhados pelas roças. A dispersão também atingia cada família. Após as rancharias no Sem-Sem, que concentravam Famílias de Itapera e de outros lugares, começavam os movimentos progressivos de dispersão rumo ao ilhote da Veneza, para a colheita do feijão e do milho. Permaneciam cerca de dois meses na roça, de setembro a novembro. Cada Família construía uma barraca, onde se abrigavam durante toda a colheita: no início, apenas mulheres e crianças, acompanhadas de um irmão ou filho maior; no final, todos os membros da Família, com a chegada do chefe e demais filhos e irmãos, que ainda estavam na lagoa. O ilhote era todo ocupado com roças de vários lugares, das duas margens do rio: Itapera, Andorinhas, Caldeirão, Favela de Cima e Marco. Ao contrário da ilha, lá não havia nenhum trecho de roças contíguas apenas de Itapera, mas estavam todas misturadas. No meio de tanta gente, as Famílias de uma mesma rancharia procuravam permanecer juntas, reunindo-se à noite numa mesma barraca. 130 As enchentes altas como marcos temporais
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As mulheres eram as primeiras a chegar e a sair do ilhote. Em meados de outubro, voltavam ao povoado para os preparativos da festa do padroeiro, Nosso Senhor do Bonfim, comemorada no dia 1º de novembro, precedida por uma novena. Com a venda de alguns sacos de feijão em Remanso, faziam compras de fim de ano, sobretudo roupas novas para a festa. c) Movimentos de concentração c1. Rancharias na lagoa do Sem-Sem “Abre a roda, paqueteiro, olha o peixe na lagoa; quem tem rede mata peixe, quem não tem rema canoa. Pescadô qu’está pescando, pesca na pedra do meio; me pega aquela menina vistidinha de vermêio.”20 Em agosto ou setembro, estavam todos concentrados em “rancharias” (acampamentos) na beira da lagoa do Sem-Sem, integradas por mais de uma Família. Cada rancharia era formada por um corpo de rede, a mulher e filhos de cada pescador, e alguns outros membros de sua Família. A pesca nas lagoas da vazante era uma prática comum em todo o Médio São Francisco: “Na época das pescarias formam-se verdadeiras povoações em torno das grandes lagoas e toda a população se alimenta exclusivamente de peixe.” (Miranda, 1941: 57). “Por ocasião das enchentes, as águas transbordadas do rio São Francisco formam pelas caatingas marginais inúmeras lagoas que são enormes viveiros, onde o peixe é abundante, abastecendo estas paragens, escoando-se o excedente para as localidades próximas e para o porto de Salvador. Com a rede de pescar, o barranqueiro dá o cerco em determinado ponto e vai recolhendo-a sob o ritmo compassado de melodias [...].” (Souza, 1980: 45). Os povoados vizinhos de Limoeiro, Pascoal, Aldeia, Andorinhas, Itapera e Tombador faziam rancharias na lagoa do Sem-Sem. Se na ilha e terra firme as roças de cada lugar ficavam em áreas definidas, também na lagoa as rancharias de diferentes lugares não se misturavam, instaUma retirada insólita
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lando-se na parte mais próxima do local de origem. Itapera ocupava a ponta de baixo da lagoa, em ambas as margens: na “banda (lado) do rio” (ou “dos Passarinhos”) e na “banda da serra”. Somente Itapera acampava também junto à serra do Sem-Sem. Ali, a lagoa ficava bem “no pé da pedra” e não havia espaço “mais para cima”. Antes do início da temporada de pesca, cada corpo de rede limpava o local de sua rancharia, geralmente o mesmo dos anos anteriores, de preferência debaixo de árvores frondosas. Costumavam dormir em esteiras. Cada Família levava duas “toldas” (grandes tendas de pano), uma só para as mulheres, outra só para os homens, que depois eram reutilizadas no ilhote, na época da colheita. O teto de palha das barracas (com folhas de palmeiras) protegia das chuvas que já começavam a cair por essa época. Armadas debaixo das barracas, as toldas protegiam dos mosquitos. A rotina das rancharias respeitava a divisão de tarefas por gênero. Os homens pescavam, as mulheres tratavam do peixe, além das atividades domésticas rotineiras, como cuidar dos filhos, cozinhar e lavar. Todos os dias, os pescadores saíam bem cedo para jogar a rede e “colher” peixe. Na beira da lagoa, ficavam circulando diante de grandes “rumas” (pilhas) de pescado, que as mulheres limpavam e salgavam, sentadas ao seu redor. Cada corpo de rede pescava com uma rede de arrasto de vários metros de comprimento, a “rede de caroá” ou “rede grossa”. Feitas de uma planta fibrosa da caatinga (caroá),21 eram tecidas todos os anos, devido à sua pouca durabilidade. Cada família contribuía com um “pano” (um pedaço de rede), tecido pelas mulheres nos meses que antecediam a temporada de pesca. Os panos eram emendados na beira da lagoa, formando uma rede “de até 600 braças”,22 “rede pesada, com chumbo e cortiça”. Numa das extremidades, pregavam bolas de barro (os “pesos” ou “chumbos”); na outra, pedaços de cortiça, extraída das folhas da carnaúba. A cortiça mantinha um lado flutuando, bem junto à superfície; o chumbo prendia o outro lado bem rente ao fundo, evitando a fuga dos peixes, sobretudo na hora de puxá-la. De dentro de um barco grande, os pescadores soltavam a rede aos poucos até “cercar” uma determinada área da lagoa, bastante ampla. Depois “puxavam”, “colhendo” peixe. Eram as “botadas” (ou “lanços”) de rede. As primeiras “botadas” marcavam, de fato, o início da pescaria, e eram famosas pela quantidade imensa de peixes arrecadados.
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––– Seu Brás (maiano): O corpo de rede que a gente fazia maior numa lagoa, a gente ponhava 600 braças de rede. Mas sempre pegava um largo de chão terrível! Digamos, uma base dessa rua aqui. A gente quase cercava ela toda. E, agora, ia colhendo, colhendo, colhendo, colhendo, colhendo, colhendo, até que chegava no seco. O peixe fazia tanta força pra voltar com a gente! A gente deixava a água escoar, e o peixe ali... [Seu Brás tem 60 anos. Morava na velha Itapera; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova.] Cada corpo de rede era liderado por um “maiano” (“chefe de rede” ou “redeiro”), que coordenava os pescadores, instruindo-os durante cada botada; determinava o tamanho da rede (da área cercada) e controlava suas condições de uso, se carecia de remendos ou de mais algum pano. Todo maiano era chefe de Família, mas nem todo chefe era maiano. As lagoas do Sem-Sem e do Saco pertenciam à Prefeitura de Sento Sé, que estabelecia o início da temporada de pesca. Só se marcava a data depois que as lagoas se desligavam do rio, aprisionando os peixes (quando as barras secavam). Os fiscais de ilhas e ilhotes também administravam as grandes lagoas do município. Cobravam uma taxa por cada corpo de rede, denominada igualmente de “talão”, que devia ser paga logo após as primeiras botadas. Cada corpo de rede tinha o seu “ponto de botada”, onde lançava a rede, cercando uma área da lagoa. Antes de começar a pescaria, os maianos entravam em entendimento com o fiscal sobre os pontos de cada um. A tendência era permanecer com os mesmos dos anos anteriores. Os maianos “assinavam” os lances – o termo “assinar” é o mesmo empregado para o gado –, fincando uma bandeira no local. Havia lances considerados melhores do que os outros, de modo que também na lagoa o fiscal podia favorecer seus aliados, a própria Família ou Famílias da parentela. O maiano também “negociava” o peixe: escolhia o comprador, acertava o preço, determinava a partilha entre os membros de seu corpo de rede e algumas doações. No município de Xique-Xique (Bahia), também na margem direita do rio, acima de Sento Sé, os pescadores recebiam de acordo com o tamanho do pedaço de rede (os panos) que levavam para a lagoa (Silva, 1961: 85-90). Documentada na bibliografia sobre o Médio São Francisco, a pesca com rede de caroá nas lagoas da vazante atesta a abrangência dos padrões de pescaria no Sem-Sem, descritos aqui a partir da memória oral. O peixe salgado era vendido para “compradores do lugar” (de Itapera mesmo) ou de fora, provenientes de Remanso e Juazeiro, e até Uma retirada insólita
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mesmo “sergipanos”. Os dois principais compradores de Itapera tinham “casa de comércio” e “depósito de peixe” no povoado, onde armazenavam todo o produto comprado. Durante a temporada de pesca, montavam pequenas “vendas” na beira da lagoa, onde vendiam “mantimentos”, muito sal e também cachaça. Um dos comerciantes de Itapera, dono da única casa no Tabuleiro, além de comprar peixe e produtos da roça para revendê-los em Remanso ou Juazeiro, contratava mulheres para tecer panos de rede, que depois vendia para a pesca nas lagoas. Costumava “fornecer” até as primeiras colheitas, deixando que comprassem a crédito em sua casa de comércio, recebendo só depois, em sacos de feijão ou farinha. Fornecia panos em condições semelhantes, recebendo pagamento em peixe, na beira da lagoa. Quem tinha mais recursos preferia “negociar” em Remanso, onde os preços eram bem melhores. Era lá que também faziam compras, na feira de sábado. Com a venda do peixe, conseguiam dinheiro para saldar dívidas contraídas no comércio local ou para aumentar o patrimônio da família (gado e roça). Nos anos “fracos” de peixe, devido à enchente pequena, os produtos da roça eram a principal fonte de recursos. Nos anos bons, a temporada de pesca na lagoa era uma verdadeira “época do ouro”: ––– Mano: Durante esse período que o povo tava arranchado, dormia por lá mesmo, ficava lá direto, quando a produção do peixe tava boa, justamente nas primeiras botadas, no mês de agosto. Agosto mesmo era o tempo bom, era a época boa, era a época do ouro, certo? Considerada a época do ouro, que tava rolando muito dinheiro. As noites na beira da lagoa eram marcadas por uma atividade social intensa. Integrantes de mais de uma rancharia costumavam se reunir em volta de fogueiras para conversar, beber e contar estórias. Nos primeiros dias de pescaria, com a fartura de peixe, havia muitos festejos e danças ao som de sanfonas. As festas eram mais concorridas no início da temporada. Além das inúmeras rancharias, chegava muito “pessoal de fora”, que não pertencia a nenhum dos grupos de pesca, atraídos pela fartura das primeiras botadas de rede. Quanto maior a enchente, maior a produção: depois de uma enchente alta, o primeiro lance podia render até quinze mil peixes, número que diminuía progressivamente. O “pessoal de fora” vinha assistir ao belo espetáculo das puxadas de rede, animados ante a expectativa de ganhar algum pescado. Nas
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primeiras botadas, todos os corpos de rede respeitavam o tradicional costume de doar peixes para quem estivesse ali só assistindo ou auxiliando: “era o prazer que todo mundo tinha”. Os maianos não saíam de perto das rumas, exibindo-se diante de seu tamanho. A notícia de que a rede de um determinado maiano vinha carregada ecoava rápido pela lagoa. Mais pessoas acorriam para ver e ajudar, embaladas pelas cantorias dos pescadores, configurando um cenário de alegria e abundância: ––– Dona Santa: Agora, aí quando o peixe vinha, era bonito! ––– Irmã de Dona Santa: Vai puxando a rede, o peixe vai pulando, pulando, pulando. De um lado pra outro. ––– Dona Santa: Era tão bonito! ––– Irmã de Dona Santa: Juntava era muita gente! ––– Dona Santa: Porque muitas pessoas vinha pegar peixe, porque a gente dava mesmo. O ano que tinha peixe, a gente dava com dó. Era muita gente! Olhe, trazia era jegue, trazia era jegue pra levar peixe. Era. ––– Manoel maiano: Era uma feira grande! [Seu Manoel tem 64 anos. Ele e Dona Santa moravam na Itapera velha; com a formação do lago, mudaram-se para a Itapera nova.] O pessoal de fora procurava permanecer junto às rancharias de conhecidos ou parentes. Ficavam poucos dias, “olhando o movimento do peixe”, conversando e se divertindo. Por frequentarem a feira de Remanso e suas festas religiosas, os pescadores e suas famílias, de Itapera e dos outros povoados, mantinham relações com muita gente da cidade, negociantes e políticos, amigos e parentes. Com a fartura de peixe, podiam retribuir algum favor. ––– Seu Brás (maiano): Teve uns anos que andou vindo bastante gente de lá [de Remanso]. É porque, naquele tempo, quem vinha assistir uma rede assim, quando ia pra casa, levava peixe pra comer um mês. ––– Esposa de Seu Brás: E lá, era à base de peixe. ––– Seu Brás: Eles chegavam, encostavam em qualquer um corpo de rede, daqueles onde a gente encostasse, fosse quem fosse. Vocês não ’tão aqui? Se, por acaso, a gente, digamos, a gente ’tamo nesse tempo: vocês ’tavam aqui, vocês andavam caminhando na beira da lagoa, olhando o movimento do peixe. Na hora que chegasse na beira de um corpo de rede ali, o cabra tinha que pegar um peixe ali pra lhe dar. Pegava dois, três, quatro peixe. Eu digo: – “Não, não quero não!” – “Não, mas é pra levar!” ––– Eu: Por que vocês davam tanto peixe assim? Uma retirada insólita
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––– Seu Brás: Mas é porque era o hábito da gente. Era o prazer que todo mundo tinha, num sabe? Em Itapera havia cinco ou seis corpos de rede, cujas rancharias estavam concentradas na ponta da lagoa. Nem todas ficavam juntas, reunindo-se à noite ou frequentando as mesmas festas. Algumas rancharias, no entanto, como a do maiano Adelino e de Manoel maiano, mantinham estreitas relações. Apesar de situadas em lados diferentes da lagoa, uma na banda da serra, outra na banda do rio, estavam mais próximas socialmente do que rancharias vizinhas, localizadas na mesma margem.23 Os integrantes das duas rancharias eram ligados por laços de sangue e afinidade: o pai do maiano Adelino era irmão do pai de Manoel maiano e da esposa de Seu Domingos (seus filhos chamavam o maiano Adelino de “tio”).24 Diagrama de parentesco I:
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“Povo de Adelino”
“Povo de Domingos”
1. Manoel maiano 2. maiano Adelino 3. Seu Domingos 4. Seu João Augusto, fiscal de ilhas e lagoas 5. vaqueiro Nelito
Os pescadores dos dois corpos de rede se ajudavam mutuamente, assim como suas mulheres, que trabalhavam juntas na lida diária (afazeres domésticos) e no preparo dos peixes, frequentando o mesmo local de banho, na banda da serra, bem junto ao “pé da pedra”, onde iam todas as tardes, acompanhadas das filhas e crianças. As Famílias integrantes das duas rancharias também se beneficiavam da relação com o fiscal da parentela, seu João Augusto, casado com Nely, filha de Seu Domingos. Mas os fiscais não pertenciam a nenhum corpo de rede, o que certamente inviabilizaria seu papel de mediador entre os grupos na escolha dos lances de rede. 136 As enchentes altas como marcos temporais
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Com muitas festas e namoros, o tempo das rancharias era um período de diversão. Os pais não deixavam as filhas frequentar rancharias mais afastadas, e os namoros ocorriam, de preferência, entre participantes de rancharias próximas socialmente. Foi o que ocorreu com um dos filhos do maiano Adelino, que casou com a filha de uma falecida irmã de Seu Domingos, da rancharia de Manoel maiano, que morava com os tios desde a morte da mãe (os primos a chamavam de “irmã”). O tempo de convivência na lagoa, com suas festas frequentes e animadas reuniões noturnas, era o melhor momento para o estreitamento de relações. “Eu vô, eu vô, eu vô, mulé, pra beirada da lagoa, mulé, vô bebê minha cachaça, mulé, namorá é coisa boa, mulé!”25 Na Itapera velha, camponeses de diferentes Famílias e rancharias eram casados com gente de Oliveira, povoado ribeirinho mais distante, localizado cerca de trinta quilômetros rio abaixo. O que poderia parecer estranho, se não soubéssemos que os dois lugares se encontravam regularmente nas rancharias do Sem-Sem. No mapa do antigo território de Itapera (Mapa II, “Desenho velho”), não consta nenhuma “área de Oliveira” na beira da lagoa, provavelmente porque integravam corpos de rede e rancharias consideradas de Itapera (os maianos e boa parte dos pescadores não eram de Oliveira). Pelo menos em três corpos de rede de Itapera, dos maianos Manoel, Adelino e Brás, havia muitos pescadores de Oliveira, que também traziam mulher e filhos para as rancharias. Na beira das grandes lagoas, intensificavam-se as relações interfamiliares (entre os integrantes de uma rancharia e entre rancharias ligadas por relações de parentesco e afinidade) e entre os diferentes lugares, ampliando-se os contatos com gente de fora, de outros povoados e cidades, sobretudo Remanso. A beira da lagoa era o local que reunia o maior número de pessoas pelo período mais longo: o tempo das rancharias no Sem-Sem era o momento culminante de sociabilidade dos camponeses de Itapera, onde reforçavam e estabeleciam alianças.
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c2. A desmancha e o movimento nas casas de farinha “Aí, quando era em novembro, o rio tomava conta, e ficava todo mundo chorando, chorando com dó da planta de ficar no fundo d’água. Era aquela correria.” Quando o rio subia a ponto de atingir a mandioca do rio, começava o período da desmancha. Nessa altura, o ilhote já estava dentro d’água, as casas repletas de peixe, sacos de feijão e milho, melancias e abóboras. Os homens passavam o dia arrancando mandioca no rio; as mulheres “danando” nas casas de farinha. Quanto maior a cheia, mais altas as “rumas”: é o mesmo termo que empregam para designar as pilhas de peixes (na lagoa) e de mandioca (nas casas de farinha), expoentes máximos da abundância dos frutos de seu trabalho. ––– Seu Domingos: Mas quando era nas casa de farinha, juntava um lote assim de vinte, trinta homem, ficava ali mesmo na casa de farinha, era puxando roda, tinha vez que puxava até o dia amanhecer. A noite todinha. E as mulher rapando, espremendo, danando, era aquela bagunça toda, não dormia nem homem, nem mulher, nem ninguém. O negócio ali era apertado! Na desmancha, o “povo de Domingos” permanecia junto, “botando” mandioca na mesma casa de farinha que o povo de Manoel maiano. As duas Famílias também retiravam para o mesmo local e arranchavam juntos no Sem-Sem. Em Itapera, havia cinco casas de farinha (Mapa I, p. 236), praticamente o mesmo número de rancharias do povoado. Quem “lutava” num mesmo corpo de rede também passava a noite “puxando roda”, labutando e cantando, assim como as mulheres, sempre juntas, limpando e salgando peixe, rapando e coando mandioca.26 A desmancha tornava mais intensas as relações interfamiliares entre camponeses que botavam farinha no mesmo local, a exemplo do que ocorria com os integrantes de uma mesma rancharia ou de rancharias próximas socialmente.27
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d) O povoado, fonte de identidade territorial: o lugar das casas e a festa do padroeiro “Pois desejo passear Nestas festas do Bomfim; e preciso ter dinheiro para gastar no botequim.”28 Na Itapera velha, o ciclo anual de atividades envolvia uma série de deslocamentos periódicos, articulada ao regime de cheias e secas do rio São Francisco. A mobilidade no espaço é uma característica marcante desse campesinato. A ausência de contiguidade física entre o lugar da casa e o lugar da roça, que se encontra na base de tais deslocamentos, é um traço distintivo de sua organização social.29 É o “princípio da beira” que confere sentido à separação física entre roça e casa. A primeira, situada em locais baixos e o mais perto do rio possível, deveria ser inundada anualmente; a segunda, situada em locais altos, próximos ao rio, deveria resistir ao máximo às enchentes. As roças distribuíam-se em série, uma ao lado da outra, achatadas contra a borda do rio, aproveitando ao máximo os terrenos anualmente inundados. As casas concentravam-se em altos eventuais, formando aglomerados que ficavam o mais próximo possível das roças, além de centralizados ao máximo, porém a salvo das cheias comuns: os povoados. Na ausência de contiguidade física entre casa e roça, o povoado era a fonte de identidade territorial. Em primeiro lugar, por ser a única referência espacial fixa:30 era o lugar das casas, em oposição a uma variedade de locais onde se abrigavam em toldas (na lagoa) e barracas provisórias (no ilhote e nos locais de retiro). Era também o lugar permanente dos currais e casas de farinha, dos depósitos de peixe e casas de comércio. Acima de tudo, Itapera era o lugar da igreja, que abrigava a imagem do santo padroeiro, Nosso Senhor do Bonfim. Cada lugar era conhecido e identificado a partir do santo patrono e das festas realizadas em sua homenagem.31 Povoados vizinhos, que frequentavam o mesmo circuito festivo, disputavam qual a festa mais bonita e concorrida. Geralmente possuíam uma pequena igreja ou minúscula capela, construída para abrigar o patrono. Sua imagem ocupava lugar de destaque no altar, de onde saía regularmente, mas apenas em datas especiais e em caráter provisório: nas procissões em sua homenagem. Colocada num andor, percorria as ruas do povoado, no meio do povo, que Uma retirada insólita
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depois assegurava sua volta para casa. Em Itapera, além do Senhor do Bonfim, festejavam os outros santos da igreja, também com novena. Costume que continua a ser respeitado até hoje, no novo povoado. Quando lá estive, em 1985, participei de duas procissões, de Nossa Senhora Sant’Ana (26/6) e de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa (6/8. Ver foto p. 83), precedidas de novenas. Ao que tudo indica, as pequenas igrejas dedicadas ao padroeiro eram privilégio de povoados maiores, como Itapera (185 casas) e Aldeia (90). Em povoados menores, como Boa Sorte, de apenas quatro casas, guardavam o santo devoto num oratório, ao lado de outras imagens, na sala de alguma residência, conhecida como “casa de festejo”. Era lá que comemoravam o seu dia, contando com a presença de lugares vizinhos, como foi observado por Silva (1961: 262), no município de Xique-Xique. O povoado era fonte de identidade territorial, em segundo lugar, por ser a única estrutura capaz de integrar as diferentes Famílias, frequentemente dispersas pela área da vazante. Realizada anualmente, a festa do padroeiro era a expressão mais acabada dessa unidade.32 Todos procuravam terminar a colheita no ilhote até o final de outubro, não só porque o rio costumava encher a partir desta data, mas também porque a festa do santo acontecia no primeiro dia de novembro: ––– Eu: Na festa do padroeiro, vocês não estavam mais colhendo? ––– Seu Domingos: Tava. ––– Marisa (filha de Seu Domingos): Nem que tivesse! A gente deixava tudo. ––– Diana: Nem que tivesse! Deixava pra depois. ––– Seu Domingos: Podia ter o que tivesse. ––– Diana: Em novembro ainda tinha muita abóbora nas roças, muita melancia, moranga, ainda tinha muita gente, muita coisa. ––– Marisa: Naquele dia o forró dominava! ––– Diana: Quando tinha o forró, naquele dia o povo deixava, todo homem deixava as roças pra vir farrear. ––– Marisa: A gente, quando via que as coisas ’tavam em perigo, né? Às vezes, dia 1º tava tudo n’água. Então, o povo já tirava antes. ––– Diana: Tirava antes. ––– Marisa: Na festa não tava perturbando. ––– Seu Domingos: A festa era tão boa lá, que prejuízo pouco era lucro, viu? Voltando do ilhote antes do dia da festa, podiam acompanhar a mulher e filhas na novena, realizada ao longo das nove noites que a pre-
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cediam. Em meados de outubro, ainda que estivessem colhendo melancia e abóbora, já pernoitavam no povoado. O tempo de permanência no ilhote tinha data certa para acabar: a festa do padroeiro. Cada noite da novena ficava a cargo de um grupo, que comandava rezas e cantos, e ainda conseguia “fogos” (de artifício) para o encerramento dos trabalhos na igreja. Havia a “noite das crianças”, “das moças”, “dos rapazes”, “das casadas”, “dos artistas” e “dos lavradores”, dentre outras. As noites da novena atualizavam as diferentes fases do ciclo de vida dos camponeses:33 as “crianças” passavam para a noite “dos rapazes” ou “das moças”; os “rapazes” para a “noite dos lavradores” ou “dos artistas”; as “moças” para a “noite das casadas”. Seu Domingos mesmo, antes de “se assinar” como “lavrador”, frequentava a “noite dos artistas” (que para eles designa o velho ofício de carpinteiro), porque era exímio na arte de construir barcos e “oficinas de farinha”, e toda uma gama de utensílios. A noite considerada “mais forte” e importante era a “dos lavradores”, que coincidia com o dia da festa. O que sugere uma hierarquia entre os diferentes grupos de novena, com destaque para as atividades agrícolas. Nas ocasiões em que algum padre de Remanso vinha para a festa, havia missa logo após a novena; do contrário, os “lavradores” promoviam o espetáculo de fogos, seguido pelo baile. Esse modo de comemorar a festa do padroeiro parece ser comum a todos os povoados e cidades ribeirinhas do Médio São Francisco. Em campo, ouvi muitos relatos de festas organizadas nos mesmos moldes de Itapera, como a de Nossa Senhora do Rosário, padroeira de Remanso (dia 30/10), e a de Nossa Senhora da Conceição, de Aldeia (dia 8/12). O mesmo pode ser dito acerca dos festejos em Xique-Xique: “As comemorações se iniciam nove dias antes, com reuniões periódicas na igreja paroquial da cidade, onde é rezado o terço seguido de benção do Santíssimo. É costume formarem-se oito grupos competitivos, encarregados de enfeitar a igreja: o grupo dos pescadores, dos comerciantes, dos viúvos, dos fazendeiros, dos casados, dos solteiros, dos moços e o grupo das moças. A cada um dos grupos cabe uma noite em que lhe é reservado o privilégio de cuidarem dos arranjos externos e internos da igreja. A novena termina no dia primeiro de janeiro, quando é celebrada a festa do Senhor do Bonfim. Começam os festejos com uma missa, à qual acorre a população dos arredores. Durante o dia é celebrada uma procissão, sendo o andor do padroeiro da cidade conduzido pelas ruas principais, carregado por quatro devoUma retirada insólita
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tos que vão, de quando em quando, sendo substituídos. À noite, finalmente, após a benção do Santíssimo, realizam-se bailes nas duas associações da cidade [...].” (Silva (1961: 235). Em Itapera, a festa do Senhor do Bonfim era muito concorrida. Vinha gente “de todo lugar”, principalmente de Aldeia, Andorinhas, Tombador e Oliveira (vizinhos de roça e de pesca), e também de Remanso, que eram o lugares mais próximos socialmente de Itapera. Encarregados da última noite, os “lavradores” procuravam soltar o maior número de fogos, para aumentar o brilho da festa diante do “pessoal de fora”. O baile, animado por músicos contratados em Remanso, entrava noite adentro. As festas de Aldeia (8 de dezembro) e de Itapera (1o de novembro) eram conhecidas como as mais “animosas”. Na Itapera nova, a festa do padroeiro é comemorada em moldes semelhantes aos do passado, com novena, procissão e baile. Moradores de povoados próximos, como Aldeia e Andorinhas, relocados na mesma margem do lago (direita), continuam participando da festa. No entanto, os que foram para a outra borda acabaram separados. Os antigos vizinhos da margem esquerda do rio, que eram próximos na geografia e no social, não mais frequentam o outro lado (e vice-versa): a largura do lago é muito grande (dez a quarenta quilômetros), de travessia difícil, exigindo barcos maiores e motorizados para enfrentar as altas ondas que lá se formam. Na Itapera nova, a festa no velho lugar é sempre lembrada como bem mais “animosa”, porque “tinha mais concorrente”. Lá, durante os festejos do Bonfim, conversavam sobre os resultados da colheita, sempre espreitando o rio, em busca dos sinais da cheia, de seu ritmo e volume. A festa do padroeiro marcava o final da temporada no ilhote e o início da subida das águas. O tempo da desmancha começava logo a seguir, intenso e divertido: todos empenhados a gosto na labuta diária com a mandioca e o rio. De modo semelhante, também Xique-Xique fervilhava de especulações sobre a cheia nos festejos do santo padroeiro: “Em períodos considerados normais, o início do ano ocorre em Xique-Xique, quando as águas do São Francisco já iniciaram a sua elevação, permitindo avaliar a extensão que a cheia alcançará. Essa estação das águas se inicia regularmente em dezembro, prolongando-se até abril. Com a subida das águas, avivam-se para a área ribeirinha as esperanças de um plantio bem sucedido e de pescarias compensadoras. É nessa expectativa que começa o ano em Xique-Xique e quando também se
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comemora o dia do Senhor do Bonfim, padroeiro da cidade, festejado a primeiro de janeiro.” (Silva, 1961: 235). A festa do santo patrono reforçava o senso de pertencimento ao povoado, ponto de referência obrigatório de todas as famílias de Itapera. Seu caráter integrador está presente na própria organização interna da novena. Se passavam o tempo da seca fora de casa (ou apenas pernoitando), divididos em grupos de roça, pesca e gado, as diferentes Famílias retornavam ao povoado para a novena e a festa, a partir de meados de outubro. Então, por nove dias desfilavam para si próprios num recorte diferente, de blocos competitivos, exibindo-se noite após noite como grupos de “moças”, “rapazes”, “casados”, “artistas”, “lavradores”. Só gente do lugar, protegida pelo mesmo patrono, vivendo de modo semelhante, seguindo o mesmo ritmo social. Como “lugar das casas”, Itapera era o ponto central de ancoragem do sistema de referências espaciais, de onde irradiavam todos os trajetos e caminhos do antigo território. Única referência espacial fixa, era também a única estrutura capaz de integrar as diferentes Famílias do lugar.
3. Ciclo excepcional de abundância generalizada: anos de enchente alta a) A enchente maior que existiu “Teve ano que o rio comia tudo.” As retiradas ocorriam em anos de cheias excepcionais do rio São Francisco, que inundavam a área da vazante e povoados ribeirinhos. Lugares baixos retiravam com mais frequência; altos, de raro em raro; e havia alguns locais que nunca retiravam, como os grandes altos da ilha do Lameirão.34 Os registros dos camponeses de Itapera e do próprio rio São Francisco (seu volume d’água) indicam que o povoado inteiro retirava quando a vazão do rio era superior a 7 mil m3/segundo (máxima descarga média mensal).35 Considerando-se, ainda, as grandes cheias de 1906, 1919, 1926,36 podemos dizer que Itapera enfrentou cerca de 12 retiradas ao longo do século XX (até o advento da barragem), o dobro de vezes que um lugar mais alto, como o povoado de Correnteza, no município de Juazeiro.37 Uma retirada insólita
143
Mundo Novo (S)
Itapera (S)
Itapera (S)
Aldeia (S)
Correnteza (J)
Afro
Domingos
Manoel
João Grde
João
144 As enchentes altas como marcos temporais 50
Sítio Boa Sorte (R)
Itapera (S)
Itapera (S)
Itapera (S)
Itapera (S)
Itapera (S)
Américo
Nelito
Mano
Nely
Marisa
Diana
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
1919 1926
X
1936
X
X
1943
X
X
1945
X
1946
X
1947
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
1949 1952
X
1956
X
1957
Fonte: Entrevistas realizadas em povoados dos municípios de Sento Sé (S), Remanso (R) e Juazeiro (J), em 1985 e 1987.
29
27
38
35
44
53
Esmeraldo Ilha do Lameirão (R)
68
65
64
71
82
Povoado de origem Idade
Nome
X
1960
X
1962
Tabela III Anos de enchente alta para camponeses de Itapera, Aldeia, Mundo Novo, Correnteza, ilha do Lameirão e Sítio Boa Sorte (1919-1976)
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Uma retirada insólita
1926
9,67 m
(nível máximo atingido pelo rio); sem dados da vazão do rio
1919
9,80 m
(nível máximo atingido pelo rio); sem dados da vazão do rio
(nível máximo); vazão de 13.040 m3/seg. (4 meses): Gráfico I (p. 233)
8,82 m
1949
7,10 m
1943
(nível (nível máximo); máximo); vazão de vazão de 10.073 9.463 m3/seg. m3/seg. (2 meses) (2 meses) Gráfico II Gráfico III (p. 233) (p. 233)
7,68 m
1946
Tabela V 12 enchentes altas que inundaram Itapera (1900-1976) 1945
1957
1929
1931
1947
1963
(nível vazão de vazão de vazão de vazão de vazão de vazão de máximo); 8.760 7.959 7.381 7.331 7.280 7.017 sem m3/seg. m3/seg. m3/seg. m3/seg. m3/seg. m3/seg. dados (3 meses): (2 meses): (1 mês): (1 mês): (1 mês): (1 mês): da vazão Gráfico IV Gráfico V Gráfico VI Gráfico VII Gráfico II Gráfico VIII do rio (p. 234) (p. 234) (p. 234) (p. 235) (p. 233) (p. 235)
7,00 m
1906
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145
146 As enchentes altas como marcos temporais
Fonte: CHESF, 1983.
Meses em que 6.000 m3/seg. > x < 7.000 m3/seg.
4 meses: janeiro a abril
Março
Mês
Meses em que x > 7.000 m3/seg.
13.040
1949
Máxima descarga média mensal (x)
Descargas (m3/seg) do rio São Francisco
2 meses: janeiro e fevereiro
Fevereiro
10.073
1946
1 mês (janeiro): 6.183. m3/seg.
2 meses: fevereiro e março
Fevereiro
9.463
1943
1 mês (fevereiro): 6.941 m3/seg.
3 meses: março a maio
Maio
8.760
1945
1 mês (março): 6.899 m3/seg
2 meses: fevereiro e abril
Abril
7.959
1957
ANOS
Tabela I Rio São Francisco em Juazeiro (Bahia): Anos com descargas médias mensais maiores que 7 mil m3/seg. (1928 a 1976)
1 mês (abril): 6.333 m3/seg.
1 mês: março
Março
7.381
1929
1 mês (março): 6.628 m3/seg.
1 mês: abril
Abril
7.331
1931
1 mês: abril
Abril
7.280
1947
1 mês (janeiro): 6.179 m3/seg.
1 mês: fevereiro
Fevereiro
7.017
1963
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Uma retirada insólita Abril 1 mês (abril)
Mês
Meses em que x > 6.000 m3/seg.
Fonte: CHESF, 1983.
6.934
1952
Máxima descarga média mensal (x)
Descargas (m3/seg) do rio São Francisco
1 mês (fevereiro)
Fevereiro
6.392
1964
1 mês (janeiro)
Janeiro
6.340
1948
1 mês (janeiro)
Janeiro
6.325
1944
1 mês (janeiro)
Janeiro
6.305
1938
ANOS
Tabela II Rio São Francisco em Juazeiro (Bahia): Anos com descargas médias mensais entre 6 e 7 mil m3/seg. (1928 a 1976)
1 mês (fevereiro)
Fevereiro
6.270
1961
2 meses (fevereiro e março)
Março
6.208
1966
2 meses (março e abril)
Março
6.119
1960
1 mês (janeiro)
Janeiro
6.107
1934
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147
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No entanto, dentre todas as enchentes grandes que enfrentaram, camponeses com mais de 60 anos geralmente mencionam 1919, 1926 e 1949 como as maiores de todas, que atingiram os níveis mais altos de que têm conhecimento: ––– Seu Domingos: Só teve uma enchente que subiu muito. Foi a enchente de 26, de 49, a enchente subiu muito. ––– Eu: O rio chegava a cobrir a parte alta da ilha da Itapera? ––– Seu Domingos: Cobria tudo, cobria tudo. Aqui e acolá ficava um comorozinho, um cacorutozinho [...] Era obrigado a retirar o gado todo pra caatinga. [Seu Domingos nasceu em 1914: tinha 12 anos em 1926 e 35 anos em 1949.] Mais adiante, Seu Domingos menciona também a enchente de 1919 (tinha 5 anos na época), que certamente foi um marco para seus pais e toda a geração acima da sua. Da mesma forma, Manoel maiano (64 anos) e sua esposa não esquecem de 1949: “deu de fechar”; “foi formidável!” Ele já era adulto na época (28 anos), ao contrário de 1926, quando ainda “não tinha entendimento” (era novo demais, com apenas 5 anos): ––– Seu Manoel: [...] a de 49 deu de entrar na casa adentro. ––– Dona Santa (esposa de Seu Manoel): A de 57 parece que deu no meio das casas, não foi Manoel? ––– Seu Manoel: Foi, mas a de 49 deu de fechar. Derrubou muita casa. ––– Dona Santa: Os barros caía feio, meu Deus do céu! Os barros caía tudo. Foi formidável! ––– Seu Manoel: A de 49 foi a enchente maior que existiu. Do meu entendimento pra cá, foi a enchente maior. Nesse tempo eu não tinha entendimento, era muito novo, em 26. [Manoel maiano nasceu em 1921. Ele e Dona Santa moravam na Itapera velha; com a formação do lago, mudaram-se para a Itapera nova. Grifos meus.] Preservadas como memórias de infância, as enchentes grandes de 1919 e 1926 são evocadas por velhos fazendeiros de Remanso e Casa Nova: “Na enchente de 1919, eu tinha 10 anos. Tenho lembrança de que andei de canoa dentro da sala de visitas da casa de meu pai. Eram enchentes grandes, e ninguém sentia nada. Quando o rio baixava, a terra estava mais fértil, o húmus propiciava culturas melhores, e tínhamos alegria na cheia e na vazante. Em 1926, sete anos depois, portanto, assisti à nova cheia.” [Depoimento de um fazendeiro (76 anos) de Casa Nova, na CPI das Cheias do rio São Francisco após Sobradinho, apud Congresso Nacional, 1982: 20].
148 As enchentes altas como marcos temporais
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“Eu me lembro bem da enchente de 1926, que eu era criança, era menino [tinha 8 anos], e dentro de Remanso não ficou ninguém, todo mundo teve que arribar pras fazendas e fazer barracas, enquanto as águas ’tavam tomando conta da cidade. E isso não foi uma vez só. Agora, a maior cheia que conheci foi essa. E essa tomou totalmente a cidade.” [Seu Sinhozinho tem 67 anos e mora em Remanso novo. Era um dos donos da fazenda Caroá, de gado e carnaúba (coleta de cera). Tinha casa na fazenda e na velha cidade de Remanso, ambas inundadas.] Excepcionalmente grandes, as enchentes de 1919, 1926 e 1949 estão documentadas na bibliografia sobre o Vale do rio São Francisco (vide Tabela IV, p. 150), com destaque para a altura e violência das águas, sua duração e forte poder destrutivo: “No século em curso, enchentes excepcionais ocorreram nos anos de 1919, 1926 e 1949. Muito gado morreu afogado, e em muitas cidades ribeirinhas os habitantes tiveram de usar canoas para se locomoverem. Em 1935, também, o nível do São Francisco ultrapassou o da gruta de Bom Jesus da Lapa, e camadas de lodo se depositaram aí em torno da pia batismal.” (Pierson, 1972a: 51). 1919, 1926 e 1949 não são as únicas enchentes grandes do rio São Francisco ao longo do século XX até a formação do lago de Sobradinho, mas certamente foram as maiores. Os camponeses mencionam muitas outras, nem sempre as mesmas (vide Tabela III, p. 144), porque remetem à própria altura de seus locais de moradia (povoados altos ou baixos; se retiraram ou não), e a eventos de ordem mais pessoal, como o nascimento de um filho na mesma época ou as dificuldades enfrentadas durante a retirada (trabalhos e prejuízos). Se 1919 e 1926 são mencionadas apenas pelos mais velhos, 1949 é a mais lembrada, mesmo que seja a terceira maior enchente, certamente por ser mais recente e ter mais testemunhas vivas. Praticamente todos evocam 1949 como “a enchente maior que existiu”: jovens e velhos, e até quem não havia nascido na ocasião; moradores de lugares altos e baixos; gente das ilhas (Lameirão), da beira do rio (Itapera, Aldeia, Mundo Novo e Correnteza) ou da caatinga (Boa Sorte, no interior da fazenda Sítio do Meio, a 18 km do rio). Para a irmã de Dona Santa, foi a “enchente mais alta” de todas, o que é reafirmado por Nelito (44 anos): “Lá, quando tinha aquelas cheias, só teve uma cheia que lá o rio inundou os altos, foi só na enchente de 49”. Ele ainda era criança na época (8 anos). Uma retirada insólita
149
150 As enchentes altas como marcos temporais 1985
Dias da Silva (jornalista)
X
X
X X
X
X
1926 X
1929 X
1930
X
1935
X
X
X
X
X
1943 1945
Anos de enchentes excepcionais
Fonte: Zarur (1946); Silva (1961); Pierson (1972a); Congresso Nacional (1982); Dias da Silva (1985).
1982
Maranhão (engenheiro da CHESF) 1982
M. Soares (engenheiro da CEMIG)
X
1972
Pierson (sociólogo) X
1961
Silva (sociólogo)
X
X
1946
1919
Zarur (geógrafo)
1906 1907
Data da obra
Autores
Tabela IV Anos de enchentes excepcionais na bibliografia sobre o Vale do rio São Francisco (1906-1976)
X
X
1946
1947
X
X
X
X
X
1949
X
1960
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1949 é referência obrigatória e parâmetro de comparação para todas as demais enchentes do São Francisco, sobretudo no que se refere às marcas deixadas pelo rio nas paredes das casas: “[...] uma linha escura, manchada, marca o nível que as águas do rio alcançaram na última grande enchente [1949]. [...] Subindo o barranco, entramos na vila [o povoado ribeirinho de Marrecas], uma longa rua que acompanha o contorno do rio. As casas são todas de pau-a-pique, barreadas e, na grande maioria, cobertas de telhas. Nas paredes, de barro alisado, veem-se ainda as marcas deixadas pela grande cheia de 1949.” (Silva, 1961: 34; 38). 1949 é um marco na memória, não só pela altura e violência das águas (seu alcance e poder destrutivo), mas também por sua duração, que impôs uma retirada muito “demorosa” (longa). Em 1949, a Família de Seu Domingos permaneceu cerca de quatro meses no Tabuleiro: ––– Eu: E quanto tempo vocês ficavam lá? ––– Seu Domingos: Às vezes, na enchente de 49, nós passamos lá uns quatro meses, bem uns quatro meses. Mas tinha outras enchentes que a gente às vezes passava um mês ali, vinte dias. Era assim. ––– Marisa (filha de Seu Domingos): Essas enchentes mais baixa, a gente saía por causa da umidade, que era demais. ––– Seu Domingos: Agora, a enchente de 49, nós passamos lá quatro meses. A enchente de 49 mexeu na geografia das ilhas e da beira do rio são Francisco. Quanto maior a cheia, mais o rio desbarrancava as margens e mais sedimentos eram trazidos pela correnteza para “remontar” as roças, deixando as terras melhores e mais produtivas. Uma enchente alta alterava totalmente o perfil das ilhas, ilhotes e coroas: o rio podia levar a ponta de cima de uma ilha; dividir um ilhote ao meio ou aumentá-lo, conectando-o à terra firme; uma coroa podia receber tanta terra que se transformava num pequeno ilhote. Em 1949, a ilha da Itapera foi coberta pelas águas; o gado todo da vazante foi retirado para a caatinga. Os rebanhos sofreram muitas perdas e o povoado ficou desfigurado. As casas mais baixas caíram, as mais altas foram cortadas pelo rio, perdendo os barros. A área da vazante desapareceu sob as águas e a beira alcançou os locais de retiro, confrontando-se com eles.
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b) A grande desmancha de 1949 Está documentado na bibliografia sobre o Médio São Francisco que as grandes enchentes precediam um período de fartura, de abundância de peixes e produtos agrícolas: “A maior ou menor descarga de água do São Francisco, na ocasião das cheias, pode resultar em períodos de fartura ou de fome para a região. [...] Para as populações ribeirinhas, embora as oscilações do nível do São Francisco não deixem de se processar todos os anos, a agricultura depende da extensão dos terrenos recobertos durante a cheia. De outra parte, uma cheia tardia ou pouco volumosa não traz consigo senão pescarias pobres, ao passo que as grandes enchentes acarretam sempre uma abundância de peixes, que ficam aprisionados nas lagoas e furos ao longo das margens do rio. Em Marrecas, situada sobre um barranco beira-rio, numa única rua paralela ao São Francisco, as grandes cheias significam destruição parcial da vila, pois as casas de pau-a-pique não resistem ao impacto das águas. Tal fato aconteceu durante a recente cheia de 1949, mas isso foi considerado não uma desgraça mas uma benção.” (Silva, 1961: 42-3). Para os camponeses, a enchente de 1949 está associada a um excesso de farinha. Como as águas alcançaram as roças altas, além da desmancha da mandioca do rio, foram forçados a desmanchar a de chuva também: ––– Seu Domingos: [...] a de 49, a barraca nossa quase não dava a farinha. Foi preciso eu fazer outra barraca só pra poder aproveitar a farinha. ––– Nely (filha de Seu Domingos): Porque onde ele morava não dava. ––– Eu: Mesmo com a cheia, deu muita farinha? ––– Seu Domingos: Mesmo com a cheia. Aí, às vezes, porque tinha uma roça de chuva lá. Eu mesmo tinha uma roça de chuva que tava cheia de mandioca: foi preciso a gente trazer uma oficina de lá [de Itapera] pra botar cá [no Tabuleiro], pro mode a gente desmanchar as mandiocas cá, pras roças de alto. ––– Nely: Nessa enchente mesmo que o papai falou, fizeram foi os barraco pra botar farinha, feijão, essas coisas. E levaram tudo com suficiência. ––– Seu Domingos: Só depois que eu retirei, depois que eu retirei pra lá [Tabuleiro], saíram daqui umas 60 sacas de farinha. Só depois lá da retirada. E fora a mandioca que eu já tinha arrancado dos lameiros, de novembro em diante. Mas não deu tempo. 152 As enchentes altas como marcos temporais
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––– Nely: Não tinha lugar onde a gente entrar para pegar as coisas. Tinha que sair por cima das coisas. Quando o rio começou a encher, em dezembro de 1948 (Gráfico I, p. 233), colheram a mandioca do rio, como sempre faziam no tempo da cheia. Sem parar de subir, no final de janeiro o rio alcança o lugar das casas e as “roças de alto”, forçando a retirada e duas desmanchas sucessivas, do rio e da chuva. Em anos normais, arrancavam mandioca em dois tempos distintos: na cheia e na seca. Em anos de enchente alta, faziam tudo num só tempo: na cheia. A mandioca ameaçada era arrancada às pressas, e sempre havia alguma perda: o rio acabava engolindo uma parte da roça. Transportada de barco para o retiro, a mandioca era empilhada em altas rumas, que mal conseguiam preparar. Na enchente de 1949, não puderam trabalhar nas casas de farinha de Itapera, porque o rio havia “tomado conta do lugar”. Apenas a igreja resistia bravamente às suas investidas. Os quatro longos meses de retirada, de janeiro a abril, transcorreram em ritmo frenético. Improvisadas nos locais de retiro, as “oficinas” trabalhavam no limite, sem dar conta de toda a produção. Muitas raízes apodreciam ou eram transformadas em farinha de qualidade inferior, a chamada “farinha azeda”, feita com a mandioca fermentada durante o tempo de espera, às vezes de até vinte dias. Sem aceitação no mercado, servia apenas para consumo doméstico. O gado retirado, que abrigavam em currais igualmente improvisados nos retiros, também aproveitava a mandioca excedente, já que os pastos estavam alagados. A enchente alta impunha um ritmo de trabalho que excedia a velocidade de assimilação, preparo e aproveitamento da mandioca. Havia muita fartura, mas também grande desperdício. A “sobredesmancha” (neologismo meu a partir de um termo nativo) de 1949 está documentada na bibliografia sobre o Vale do rio São Francisco. No município de Xique-Xique, a produção de farinha de mandioca apresentou a seguinte variação: “1949, ano da grande cheia, 80.000 sacas; 1950, apenas 50.000 sacas; finalmente, 1951, já sob a ação de uma cheia insatisfatória e sob a influência da seca, 25.000 sacas.” (Silva, 1961: 105). 1949 é um marco na produção agrícola do Vale, não só da farinha mas de todos os demais cultivos: “Em 1949, ano considerado de fartura, a produção de mandioca foi de 14 mil toneladas, todo o Município [de Xique-Xique], comparativamente a 4 mil no ano de 1951; ainda em 1949 a colheita de milho totalizou Uma retirada insólita
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250 mil sacas, contra apenas 51 em 1951. Essas variações a que está sujeita a agricultura, à mercê das chuvas e enchentes do São Francisco, fazem com que a população oscile entre anos de fartura e de fome. Em 1952, com a intensificação da seca e com uma enchente tardia e pequena, a colheita de mandioca e milho foi diminuta e insuficiente para as necessidades alimentares, causando fome e forçando a migração.” (Silva, 1961: 96). O excesso de oferta no mercado produzia um achatamento dos preços. A fartura só traria bons resultados se conseguissem depositar os cultivos para vender depois, em época mais propícia. c) As rancharias de 1949 As enchentes altas também estão associadas às grandes pescarias de rede nas lagoas e ao excepcional aumento da produção de peixe: “O maior lanço de rede, ao que se afirma em Xique-Xique, alcançou em 1949, quinze mil peixes. Todavia, em 1952, quando a cheia do rio não foi satisfatória, um lanço superior a um milhar de peixe era considerado satisfatório.” (Silva, 1961: 87).38 Flutuando de acordo com o tamanho da enchente, quanto mais o rio subia, maiores as rancharias (as “povoações” em volta das lagoas) e maior a “colheita” de peixe. Manoel maiano ainda lembra dos dez mil peixes que saíram na rede de seu pai (maiano antes dele), na vazante da enchente grande de 1949: as rumas das primeiras botadas eram mais altas que ele! ––– Eu: E como era isso do peixe ser pouco ou muito? ––– Manoel maiano: É devido à enchente. ––– Dona Santa (esposa de Seu Manoel): É quando as enchentes era alta, tinha muito peixe. ––– Manoel maiano: Tinha mais peixe. E quando as enchentes era baixa, o peixe também era pouco, aí não dava, aí era poucos dias [na beira da lagoa]. [Seu Manoel tem 64 anos. Ele e a esposa moravam na Itapera velha; com a formação do lago, mudaram-se para a Itapera nova.] As enchentes altas ampliavam o tempo das retiradas e também das rancharias. As lagoas de pesca da vazante, como o Sem-Sem, ficavam repletas de gente, com muito mais pescadores e pessoas de fora, atraídos por tanta fartura. Se não davam conta das rumas de mandioca nos retiros, igualmente na lagoa as rumas de peixe eram excessivas. Trabalha154 As enchentes altas como marcos temporais
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vam no limite das forças, mal conseguindo puxar as redes, de tão pesadas, esforçando-se ao máximo para limpar e salgar tudo a tempo de evitar as perdas. Os maianos davam peixe “com dó”, e todos saíam de lá carregados, “fosse quem fosse”: “trazia era jegue pra levar”. Os preços despencavam e as barracas e depósitos superlotavam, aguardando a venda em momento mais propício. d) Enchente alta: ruptura na ordem normal do tempo Marcos temporais de longa duração, as enchentes altas de 1949, 1926 e 1919 remetem a uma série de eventos excepcionais: as maiores enchentes já vistas; as retiradas mais longas; as desmanchas e rancharias mais intensas e produtivas. Estão associadas a um conjunto de atividades sociais extremamente significativas na vida dos camponeses, que dizem respeito ao calendário agrícola e de festas, movimentando coletividades inteiras. Excetuando-se a retirada, que só ocorria em anos de enchente grande, a desmancha e as rancharias faziam parte do ciclo anual de atividades. Seu ritmo é que ficava bem mais intenso. Em Itapera, 1949 foi um ano de excesso e abundância. Quando chegou o tempo da cheia, o rio subiu como sempre, mas acabou por desmanchar também as roças de chuva, inundando as casas e toda a área da vazante. O tempo da desmancha foi excessivamente longo, com a desmancha da mandioca do rio seguida de imediato pela da mandioca de chuva. Tiveram que construir barracas para armazenar toda a produção. Quando chegou o tempo da seca, com os lameiros ampliados, cresceram as áreas de cultivo. As mulheres teceram mais redes; as rancharias foram maiores e mais longas; os lances de rede produziram em demasia. A desmancha e as rancharias de 1949 delimitaram o limite máximo de tais atividades. Pode-se falar em termos de superação do assimilável, do que poderia ser feito ou aproveitado. O excesso resultou em desperdício. Ninguém dava conta de colher toda a mandioca à mercê do rio, nem todo o peixe disponível na lagoa. Era impossível prepará-los a tempo, e apodreciam empilhados. A oferta excessiva destruía seu valor de venda. Cada Família, ou cada grupo de Famílias, esforçava-se ao máximo para exibir as mais altas rumas, em ritual de enfrentamento com o rio e com os próprios rivais. Produziam uma espécie de “potlatch de destruição”, onde o prestígio individual de cada chefe e seu povo estava assoUma retirada insólita
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ciado ao desperdício e ao dom: o “princípio de antagonismo e rivalidade” estabelecia tudo em tal “guerra de propriedade”.39 Numa disputa de posições sociais, rivalizavam em generosidade: cada chefe de rede procurava arrasar os demais, doando maiores quantidades de peixes, diante das rumas mais elevadas. Se entendermos o calendário de trabalhos e festas como a expressão dos ritmos coletivos, na alternância de momentos de maior ou menor efervescência social, os períodos de concentração são os “tempos fortes” do ano: a desmancha e as rancharias. São momentos de vida social intensa, consagrados ao estabelecimento de alianças, reconstrução de vínculos e disputa de posições sociais (Granet, 1968). Opõem-se aos “tempos fracos”, de dispersão: cada família trabalhando em sua própria roça. As enchentes grandes de 1949, 1926 e 1919 são marcos temporais de longa duração, porque rompem com a ordem normal do tempo. São anos em que há apenas “tempos fortes”, em relação aos quais os demais anos seriam “tempos fracos”. Destacam-se dentre as demais enchentes grandes, porque foram anos de grande efervescência social: todas as atividades habituais transcorreram com o máximo de intensidade. São anos de fartura, excesso e desperdício, de perda e destruição. Grandes potlatchs. Além da magnitude da cheia, que atingiu os níveis mais altos registrados pela memória social, a intensificação das relações entre os grupos, o maior reforço e disputa de posições sociais configuram o caráter excepcional de tais enchentes grandes.
4. Medidores do tempo: o rio e a chuva A compreensão do significado social das enchentes altas requer a delimitação precisa do ciclo anual dos camponeses. Há que se distinguir as atividades ou bens que se encerram no espaço de um ano daquelas que perduram, e permanecem por mais de um ciclo. No primeiro caso, a agricultura praticada anualmente nos lameiros (mandioca do rio, feijão, milho, abóbora, melancia) e a pesca. No segundo, a agricultura bianual nas roças de chuva (mandioca da chuva), o gado e as casas. As atividades do primeiro tipo são liquidadas no fim do ciclo anual, recomeçando do zero na abertura do ano seguinte. Articuladas ao ritmo do rio, cada cheia representa o período de transição de um ciclo para 156 As enchentes altas como marcos temporais
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outro. Quando as águas se elevavam, o rio engolia os lameiros e tudo que ali estivesse plantado. Cabia aos camponeses enfrentá-lo, salvando as culturas de sua avidez. A enchente alta exigia maior liquidação dos investimentos ao fim do ciclo. Colocava em risco todo o patrimônio, tudo que os camponeses tinham, faziam ou usavam, obrigando-os a liquidar o que pudessem. Toda roça plantada devia ser colhida prontamente, sob pena de perda total; o gado todo, conduzido à caatinga de retiro, sob risco de atolar, ilhar, afogar. Os objetos domésticos, o maquinário das casas de farinha, os sacos de mantimentos, deveriam ser salvos, transportados provisoriamente para o retiro. As casas e a igreja, bens imóveis, por definição fixos e não removíveis, eram temporariamente abandonadas à sorte, na esperança de que o rio não se atrevesse a derrubá-los. Os “terrenos de plantação”, ainda menos “retiráveis”, eram igualmente abandonados, na certeza de serem devolvidos remontados, na esperança de crescerem com os sedimentos ali depositados, na torcida de que não fossem dragados pela erosão (principalmente o ilhote). Ou eram liquidados (os cultivos) ou retirados para um local seguro (os rebanhos e objetos perecíveis), ou abandonados aos caprichos do rio, na expectativa de sua resistência (as casas, a igreja, os terrenos). Se os homens retiravam, esperavam que suas casas e terras (e seu santo40) enfrentassem o rio em sua ausência e em seu nome. Todos os anos, os camponeses viam seu mundo desaparecer sob o espelho d’água. Mas esperavam, certos do ressurgimento. A tendência era o rio zerar todo o produto do trabalho passado, e oferecer um ano novo promissor, que se iniciava fértil e abundante – a “sobredesmancha”, o “sobrerremonte”, a “hiper-rancharia” –, mas sem nenhuma herança acumulada. Durante a enchente alta, o rio tomava conta de toda a área da vazante, invadia o povoado, derrubando casa, engolindo mandioca, afogando gado. Cobrava seu tributo. Os camponeses recuavam, acompanhando a beira, procurando enfrentar o avanço das águas salvando os “trens”, seus pertences e frutos do trabalho. Recuo tático: cediam tudo ao rio, para dele receber de volta terras novas e fertilizadas. Esperavam o recuo manso e certo das águas. Uma cheia convencional exigia apenas a liquidação dos lameiros, das roças já plantadas no intuito de serem colhidas dentro do prazo do rio. Ciclo anual harmônico, sem sobrecarga em qualquer período. Além da apuração das roças sazonais, a cheia afetava parcialmente suas terras, Uma retirada insólita
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desmanchando terrenos, trazendo remonte. O gado, as casas, os objetos só eram atingidos quando o rio invadia o povoado, alcançando as terras altas. As casas e as roças de chuva ocupavam posição equivalente em relação ao princípio da beira: no alto e junto ao rio; o mais próximo da margem, não obstante, altas o suficiente para escapar às cheias convencionais. As casas estavam para a retirada assim como as roças de chuva para a sobredesmancha. Há uma propriedade comum entre ambas: a segurança, o tempo materializado em riqueza, a reserva, a preservação do trabalho acumulado por mais de um ciclo. Representam a continuidade no tempo e no espaço, que a cheia alta vinha inapelavelmente romper. Na articulação entre o ciclo anual e o ciclo excepcional estavam em jogo dois contadores temporais, o rio e a chuva. Os movimentos do rio (na verdade, da beira); as épocas de chuva e seca. O tempo do recuo das águas, como o da ausência de chuvas é designado pelo mesmo termo, seca. É no momento de abundância de água que os nomes se diferenciam: cheia e inverno. Enchente e chuvas. Subida das águas e verde. Abundância até de vocábulos. Os dois contadores de tempo tendem a coincidir: o inverno começava junto com a subida das águas. Mas, em outro nível, são complementares: na apropriação produtiva dos excessos de água. Pois a que inunda a vazante só se torna benéfica viabilizando os cultivos e a pesca após o recuo, no tempo da seca. É o lameiro remontado; o Sem-Sem gordo e isolado. A cheia só se mostra “boa” depois de vazar. Já a chuva é aproveitada logo que cai, de imediato. Choveu, o inverno “pegou”, a roça é cultivada. A chuva viabilizava uma agricultura alternativa à principal, à do rio. Permitia aos camponeses disporem de uma cultura de caráter alternativo, que podia ser conservada na terra por mais tempo, sendo colhida por decisão, em momento propício, não imposto pelo rio. A roça de chuva era secundária, mas autônoma; subordinada à dos lameiros, mas complementar. Podia ser colhida em plena seca, para assegurar o consumo doméstico em ano difícil, quando o rio não era generoso. A agricultura regulada pelo ritmo das chuvas era secundária à do ritmo do rio, mas fundamental na travessia dos períodos de escassez e de irregularidades das cheias. O ritual da destroca para invocar chuva é um bom indicador de sua importância. Além disso, as chuvas atingiam indistintamente toda a região, sem respeitar fronteira da beira, da vazante, da caatinga. Nos invernos chu-
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vosos formavam-se poços d’água, pequenas lagoas, enchiam-se os baixões, apareciam estoques extras em plena caatinga. O gado raçado bem sabia desfrutar do tempo do verde, ganhando total autonomia da vazante e do rio: afundava mais na caatinga, perdendo-se nos carreiros, aproveitando o capim que florescia. Tempo do verde. Também os camponeses podiam usufruir das chuvas na caatinga, plantando mandioca no baixão alagado. A enchente alta promovia abundância a dois tempos. No futuro, fornecendo condições de uma produção ampliada: maiores lameiros, maiores botadas de rede. No presente, obrigando à imolação das culturas, impondo a dupla desmancha. A abundância imediata envolvia uma lógica que transcendia o ritmo de cheias e secas do rio. A enchente alta interferia na articulação entre dois gêneros complementares de cultivo do calendário agrícola: à desmancha sazonal, sobrepunha a sobredesmancha. O rio interferia nos domínios da chuva, cortando o ciclo, eliminando as reservas. A enchente alta zerava os relógios do rio e da chuva, para recomeçarem juntos no ano seguinte, na assimetria de ciclos não coincidentes. A abundância imediata e futura, gerada por mecanismos inteiramente distintos, um negativo (interferir e liquidar a produção intempestivamente), outro positivo (fornecer as condições de produção da abundância), terminam por somar-se, configurando a enchente alta como ciclo excepcional da abundância generalizada.
1. É o contraste entre o modo de vida em cada estação que fornece os “polos conceituais na contagem do tempo” (Evans-Pritchard, 1978: 109). 2. O tamanho das roças é calculado em “tarefas” (cerca de 0,33 ha). 3. O cultivo tradicional nos lameiros das ilhas e margens do rio São Francisco está documentado em Pierson, 1972b; Silva, 1961; Duqué, 1980; Tallowitz, 1979; e Sandroni, 1979. Para uma análise comparativa entre as antigas condições de produção (nos lameiros) e as atuais, nos lotes da borda do lago (terras secas da caatinga), ver Sigaud, Martins Costa & Daou, 1987. 4. “Por um lado, a mandioca pode ser armazenada na terra durante um período que ultrapassa o de seu ciclo agrícola e, por outro, pode ser colhida em pequenas quantidades, o que possibilita sua transformação em farinha sempre que for necessário.” (Heredia, 1979: 126). Na beira do rio São Francisco, apenas a mandioca de chuva podia ser conservada na terra.
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5. Estrofe de “A moenda virô”, toada dos remeiros do rio São Francisco, registrada em Sítio do Mato (Bahia), 30/8/1949 (Souza, 1980: 25): “Uma das tradições mais bonitas, e já hoje bem rara no rio São Francisco, é a dos remeiros remarem cantando. Cantam para espairecer e para estimular as forças. Quando descem o rio, na voga, regularizam o movimento das remadas com a cadência da melodia, aliviando assim o penoso trabalho que vai da madrugada até a tardinha, varando léguas e léguas de rio, sob o sol inclemente ou sob aguaceiros repentinos.” (idem, p. 7). 6. A vazão do rio São Francisco aumenta muito em dois momentos, conhecidos como “piques” da cheia (ou “piquetes”), em jan./fev. e mar./abr. Podemos visualizá-los nos Gráficos I a IX (p. 232-35), e também em Zarur (1946, Figura 10: “Descarga diária do rio São Francisco em Juazeiro, de 1929 a 1939”). 7. Esse modo de avaliar coletivamente o início de cada “tempo” nos remete à avaliação do “inverno” feita por um campesinato marginal à plantation açucareira no nordeste do Brasil: “A época em que começa o inverno, isto é, quando ‘o inverno pegar’, é de grande importância, pois dela depende o plantio dos diferentes cultivos e a possibilidade de maior êxito na colheita. O início do inverno é precedido por chuvas associadas a raios e trovões e quando começam, os produtores dizem ‘pegou a chover’, indicando com isso que se trata de chuvas que anunciam a proximidade dessa estação. Embora seja certo que o inverno se caracterize por chuvas, não é menos certo que no verão também caiam chuvas, apesar de esparsas. O inverno constitui-se uma categoria social e o momento exato do seu início é motivo de controvérsias entre os pequenos produtores.” (Heredia, 1979: 55. Grifos meus). Garcia Jr. (1983: 97, grifos meus) também observa que, “embora objeto de intensas discussões, sobretudo durante as feiras, se ‘pegou ou não o inverno’, ‘onde o inverno já pegou’, demonstrando que há uma avaliação social do inverno, cada agricultor vai realizar a sequência das operações segundo uma avaliação individual da terra de que dispõe, dos recursos e força de trabalho doméstica disponível, da necessidade da produção a ser feita. Em particular, examinando a terra em que vai trabalhar aquele ano é que decide se já pegou o inverno.” 8. Estrofe de “Décimas do Rio Preto”, registrada em Sítio do Mato (Bahia), 28/08/1949 (Souza, 1980: 109). 9. Na zona da Mata de Pernambuco, “cada uma das casas é habitada por indivíduos ligados entre si por laços de parentesco: pai-mãe e filhos solteiros e, excepcionalmente agregam-se a eles o pai ou a mãe de um dos cônjuges. São estes indivíduos que compõem o grupo doméstico. Entende-se, pois, por grupo doméstico o conjunto de indivíduos que vivem na mesma casa e possuem uma economia doméstica comum [...]. O grupo doméstico é a unidade de residência e é dentro dele que tem lugar a reprodução física e, em grande parte, a reprodução social de seus membros [...]. Os filhos quando casam passam a residir em outra casa e constituem unidades de trabalho separadas. Por conseguinte, é através do casamento que se forma um novo grupo doméstico.” (Heredia, 1979: 37. Grifos meus). 10. “Num bom número de sociedades camponesas [...] o grupo de residência doméstico assemelha-se à família conjugal, sem que esta possa assegurar sozinha sua reprodução econômica: cada uma deve cooperar estreitamente com unidades idênticas, vizinhas ou parentes, afim de realizar as condições estritamente econômicas de sua vida material.” (Karnoouh, 1979: 41). 11. Campbell (1968: 10) analisa as relações dinâmicas que vinculam vários grupos domésticos relacionados por parentesco ou afinidade: “A família, seja em sua forma elementar ou
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extensa, é a unidade crítica da organização social, e um número de famílias relacionadas por parentesco ou casamento geralmente cooperam no cuidado de seus rebanhos. Uma company [grupo de pastores de ovelhas] normalmente é composta de 15-50 indivíduos de todas as idades e na maior parte dos casos é dominada por um grupo de irmãos casados.” 12. O “povo de Marciano” incluía a família do único irmão de sua esposa (seu cunhado Brás) e os pais deles. O sogro de Marciano era também seu cunhado: irmão da primeira esposa de Marciano (falecida) e pai da atual (sobrinha do marido). Marciano, Brás e seus pais eram da rancharia de Antônio Matias maiano (tio paterno de Brás e ex-cunhado de Marciano), da “área de Itapera” na lagoa do Sem-Sem. O povo de Marciano botava mandioca na casa de farinha de Antônio Matias, em Itapera. Inicialmente vaqueiro de Marciano, Brás acabou se tornando um dos criadores fortes da velha Itapera, chefe de sua própria Família. Era dono de cinco roças (uma no ilhote; uma na terra firme; duas na ilha, ambas de chuva; uma na caatinga, no Tabuleiro), onde trabalhava com três filhos casados e o marido de uma das filhas. Era também maiano de um corpo de rede, que herdou de Antônio Matias, maiano antes dele. Tio paterno de Brás, Antônio Matias era de Itapera, mas morou por um tempo em Oliveira, quando casou com uma moça de lá.
Diagrama de parentesco II:
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“Povo de Marciano” 1. Maiano Antônio Matias, dono de uma casa de farinha 2. Brás, vaqueiro de Marciano 3. Marciano, criador forte
13. Recorrente no mundo rural brasileiro, esta obrigação também foi observada por Heredia (1979: 145): “considera-se responsabilidade do chefe da família contribuir para a constituição do novo grupo doméstico. Existem diversas formas de fazê-lo.” 14. “O gado é um elemento central em termos de acumulação, já que possibilita aumentar a renda da unidade produtora, seja através da compra da terra ou assegurando a renda da mesma e a reprodução dos futuros ciclos agrícolas.” (Heredia, 1979: 103). Garcia Jr. (1983: 137-8) também observa que “a criação serve mesmo de meio de acumulação para aumentar o estoque de terras em poder da unidade doméstica. Não só observamos casos de agricultores que adquiriram esta condição através da compra e engorda de cabeças de gado com o dinheiro obtido por si mesmos ou filhos no Sul, mas também esta era a forma de acumulação de filhos de agricultores para se estabelecerem depois do casamento, e mesmo de pais de família para expandir o patrimônio da unidade doméstica. Em todos esses casos o gado serve também como forma de acumulação para construção, reforma ou ampliação de casas.
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Em situações difíceis, onde a renda proporcionada pela agricultura é insuficiente, a venda de cabeças de gado permite reequilibrar a situação.” 15. Para uma análise da “relação de agregacia” na região da barragem de Sobradinho, vide Duqué (1980) e Sigaud, Martins-Costa & Daou (1987: 219-20). 16. Entrevistei sete antigos fiscais de ilhas e ilhotes de Remanso (um da ilha da Itapera e dois da ilha do Lameirão) e Sento Sé (três do ilhote da Veneza e um da ilha do Mundo Novo). Também consultei os livros de registro da Prefeitura de Remanso, com as portarias municipais de nomeação e demissão de fiscais. O que não pude fazer em Sento Sé, devido ao clima de desconfiança na cidade (em julho/agosto de 1985), às vésperas das eleições para prefeito (nov./85). Na bibliografia, Duqué (1980) menciona apenas o “coletor” de impostos de Casa Nova, sem maiores detalhes. Em outro trabalho (Martins Costa, 1985b), analiso o acesso às terras das ilhas e ilhotes, via fiscais da Prefeitura. 17. “Piau” (Leporinus steindachneri) e “dourado” (Salminus franciscanus) são peixes do rio São Francisco muito usados na alimentação. 18. “O calendário agrícola [dos camponeses argelinos] reproduz, sob forma transfigurada, os ritmos do ano agrícola, isto é, mais precisamente, os próprios ritmos climáticos retraduzidos na alternância entre um tempo de trabalho e um tempo de produção, que confere sua estrutura ao ano agrícola.” (Bourdieu, 1976: 56. Tradução minha). 19. Em estudo sobre as variações sazonais da sociedade esquimó, Mauss (1974b: 324) descreve sua unidade morfológica como um “grupo de famílias aglomeradas e unidas por laços especiais, que ocupam um determinado habitat, pelo qual se distribuem desigualmente conforme as quadras do ano”: o settlement possui um nome comum, usado por todos os membros do grupo; um solo com fronteiras estabelecidas; território próprio de caça e pesca; unidade linguística, moral e religiosa. Define-se pela dimensão (geralmente restrita); composição social (sexo; faixa etária; estado civil) e regime de vida (condições de caça e pesca, essenciais à sua reprodução). Varia conforme as estações (inverno/verão): concentrado/disperso; casa/tenda (técnicas de habitat); uma só família/várias famílias (estrutura do grupo abrigado). No inverno, a comunidade se congrega e se consagra (forte unidade religiosa e moral; ritmo intenso de festas e cerimônias; comunidade moral de ideias e interesses); no verão, dispersa (isolamento; pulverização social; extrema pobreza moral e religiosa). Com efeitos na vida religiosa e jurídico-moral, a dupla morfologia se articula com o próprio ritmo da vida social: nas diferentes quadras do ano, “passa por fases sucessivas e regulares de intensidade crescente e decrescente, de pausa e atividade, de gasto e reposição”. 20. Estrofe de “Abre a roda, paqueteiro”, canto de pescadores registrado na cidade ribeirinha de Barra (Bahia), 15/10/1949 (Souza, 1980: 45). 21. O caroá (Neoglaziovia variegata) é uma bromélia da caatinga, que foi muito utilizada como fonte de fibra para a confecção artesanal de cordas e barbantes (hoje usam fibras sintéticas). 22. Medida com os dois braços abertos e bem esticados, a “braça” equivale a 1,5 metro, aproximadamente. 23. Em sua descrição dos conceitos de espaço dos Nuer, Evans-Pritchard (1978: 123) observa situação semelhante: duas aldeias de uma mesma tribo estão estruturalmente mais próximas do que uma terceira, que pertence a outra tribo fisicamente mais próxima a cada uma delas.
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24. Não só os irmãos dos pais e seus cônjuges são chamados de “tio”, mas também “primos carnais” de seus pais (filhos de dois irmãos). Já os “irmãos carnais” (ou “irmãos legítimos”), filhos dos mesmos pais, diferenciam-se daqueles cujo pai (ou mãe) é diferente. 25. Estrofe do samba “Não vai, mulé”, registrado em Pilão Arcado, 24/10/1949 (Souza, 1980: 208). 26. Rancharias próximas socialmente faziam uso da mesma casa de farinha? Não saberia dizer se o povo do maiano Adelino fazia farinha junto com o povo de Manoel maiano. Mas seria bem possível. 27. Os trabalhos que envolvem a feitura da farinha são uma forma de “articular o grupo doméstico, cujos membros estavam dispersos”. As casas de farinha são “locais em que se reforçam as relações sociais”, “pontos de encontro”, onde conversam “sobre os assuntos mais variados”, contam estórias e trocam “ideias sobre a vida e os problemas de todo o grupo” (Heredia, 1979: 47-8). 28. Estrofe do“Baile pastoril do filho pródigo”, registrado na cidade de Barra (Souza, 1980: 120). 29. Ao contrário de outras sociedades camponesas, caracterizadas pela contiguidade física entre lugar da casa e lugar da roça, como ocorre na Irlanda (Arensberg & Kimball, 1968) ou no nordeste brasileiro: “Cada grupo doméstico possui uma extensão de terra que pode variar entre um e cinco hectares. A casa e o roçado correspondente constituem geralmente uma única unidade espacial, não existindo normalmente nenhuma separação evidente entre eles.” (Heredia, 1979: 37). 30. “Nessas circunstâncias de inexistência de contiguidade física entre a casa e o roçado, e entre a casa e uma atividade como a pesca, que assegura a manutenção da família, o povoado aparece como a única referência espacial fixa que lhe assegura o sentimento de pertencimento e que o localiza no interior do espaço social. O povoado é o local da casa, a sede para a qual converge a família (ou membros dela) após os deslocamentos e o local onde se encontram os parentes mais próximos.” (Sigaud,1986: 45). 31. Os pequenos povoados do Vale do rio São Francisco “eram constituídos fundamentalmente de parentelas com fortes laços de solidariedade que se sobrepunham a quaisquer outros e com uma identidade própria, construída a partir daqueles laços, do culto a um mesmo Santo Patrono, de festas religiosas promovidas em sua honra, de uma mesma capela, de formas de cooperação mútua no trabalho produtivo, etc. Tal identidade seria reforçada pela referência comum a um mesmo centro urbano [...] e a locais comuns onde eram feitas as compras, para onde se levava a produção, onde se enterravam os mortos.” (Sigaud, 1986: 37-8). 32. “Todos os que habitam o mesmo bairro rural sentem a obrigação de festejar o patrono. A convergência do grupo todo para a capela, a reunião e a prática em comum tornam-lhes palpável a noção de que pertencem a um mesmo grupo social. Para esta população dispersa, a capela do bairro é por assim dizer o símbolo de um grupo social importante, que ultrapassa e se sobrepõe ao grupo doméstico.” (Queiroz, 1973: 82). 33. Van Gennep (1978) descreve os ritos de passagem que delimitam os diferentes estágios do ciclo vital de um indivíduo (nascimento, casamento, morte, etc.). 34. “Morava na ilha de seca a verde. Ninguém saía. O rio enchia e vazava, e a gente morando lá dentro da ilha. Porque a ilha tinha umas partes baixas, onde cobria, e tinha um alto, no
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meio, ali onde morava o pessoal”. O rio nunca chegava lá, nem nas grandes enchentes, segundo o relato de Seu Esmeraldo (53 anos), que morava na ilha do Lameirão, e agora reside na periferia de Remanso novo. 35. A Tabela III (p. 144), “Anos de enchente alta para camponeses” (dados de campo), balizada pelas Tabelas I e II (p. 146-47), que registram as maiores vazões do rio entre 1928-1976 (dados da CHESF), viabiliza o cálculo aproximado do número de vezes que Itapera inundou ao longo deste período, considerando-se, ainda, que o lugar inteiro retirou em 1947 (vazão do rio de 7.280 m3/seg.) e, em 1952 (6.934 m3/seg.), só a metade (dados de Manoel maiano). 36. Cheias que não constam das Tabelas I e II, porque os dados da CHESF (1983) sobre a vazão do rio só abrangem o período de out./1928 a out./1976. No entanto, a partir de um levantamento do “Nível máximo atingido pelo rio São Francisco em anos de enchente alta, de 1906 a 1976” (Dias da Silva, 1985), sabemos que 1919 e 1916 suplantaram 1949 em altura, e que em 1906 o rio subiu quase tanto quanto em 1943. Em ordem decrescente de altura do rio, temos 1919 (9,80 m), 1926 (9,67 m) e 1949 (8,82 m), que são as três maiores cheias, seguidas por 1946 (7,68 m), 1943 (7,10 m) e 1906 (7,00 m) – vide Tabela V (p. 145). 37. De acordo com Seu João (presidente do STR de Juazeiro), antigo morador de Correnteza, este povoado retirou em 1943 (9.463 m3/seg.), mas não em 1945 (8.760), ou seja, o povoado inundava quando a vazão do rio era superior a 9 mil m3/seg. (dados de campo): nas enchentes grandes de 1943, 1946 e 1949, além de 1919, 1926 e 1906 (cerca de seis vezes). 38. Antes mesmo da grande cheia de 1949, Miranda (1941: 57) já chamava a atenção para as enormes potencialidades de pesca nas lagoas de vazante, sobretudo nos municípios de Lapa, Rio Branco, Xique-Xique, Pilão Arcado, Casa Nova (na lagoa do Pico) e Rio Grande: só a lagoa das Duas Bocas “produziu cerca de 40 mil quilos de peixes secos na grande enchente de 1919”, quase três vezes mais do que em anos de enchente baixa, e com qualidade muito superior: 75% de surubim (Pseudoplatystoma corruscans), o peixe mais valorizado, maior e mais caro que curimatã (Phochilodus argenteus), piranha (Pygocentrus nattereri) ou traíra (Hoplias malabaricus). 39. Valeria a pena desenvolver a análise da desmancha e rancharias em anos de enchente alta a partir do “potlatch de destruição” (Mauss, 1974a): na lagoa, enfrentam-se diferentes lugares (povo de Manoel maiano, de Itapera, versus povo do maiano João Grande, de Aldeia); na desmancha, gente do mesmo lugar (povo de Domingos versus povo de Brás). Na lagoa, a pesca é voluntária; na roça, a desmancha é imposta pelo rio; na colheita do peixe (dom do rio), o excedente é doado de bom grado; não na colheita da mandioca (fruto do trabalho humano), que abastece o gado. 40. O que faziam com a imagem do padroeiro durante uma enchente alta? Retiravam junto? Para qual retiro? Ou o santo ficava no altar da igreja, exercendo sua função de protetor contra as investidas do rio? Tudo indica que as imagens não retiravam, pois todos se orgulham da altura da velha igreja de Itapera, erguida numa elevação natural do terreno, e também da qualidade de seu prédio, construído de alvenaria, e não de pau-a-pique, como as demais casas. A igreja ocupava a posição privilegiada da beira: no alto e junto à água. E até mais do que isso: para entrar nela, era preciso subir cinco degraus. Talão da Prefeitura de Sento Sé
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“As comportas já fechou, As águas já levantou, tomando as terras do povo, do pequeno agricultor. Como é qu’eu vou viver, nesse mundo enganador?” Nelito, “Aboio da Barragem”. 1
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Uma retirada insólita: “a enchente que o rio encheu pela barragem” Capítulo IV 1. Descompasso cultural entre camponeses e técnicos do Estado Os camponeses conceberam os eventos inéditos da barragem de Sobradinho a partir do que caracterizei como “modelo da retirada”, um conjunto de categorias de tempo e espaço (alto/baixo; seco/molhado; caatinga/vazante; seca/verde), associadas a um fenômeno social de ocorrência extraordinária, mas de inscrição garantida na memória coletiva: as enchentes altas do rio São Francisco. Dentro deste modelo, em que “retirada” e “beira” são os conceitos centrais, era impensável a inundação da caatinga, definida como a área que o rio não cobria nunca, e inaceitável a imposição de abandonarem seus locais de moradia e de trabalho, sob o argumento de que seriam cobertos em caráter definitivo. Esta descrença na subida das águas será analisada em seu duplo aspecto: os camponeses não acreditavam no tamanho da enchente anunciada (o rio ultrapassar o limite com a caatinga e invadir seus domínios secos indevassáveis), nem em seu caráter irreversível (o rio encher e não mais vazar). Duas proposições contrárias à ordem da natureza tal como a percebiam, mas que acabaram se impondo, em momentos distintos, com a própria força e violência das águas represadas. No “primeiro ano da barragem”, com a subida efetiva do rio, afogando os altos e invadindo a caatinga, os camponeses reconheceram o poder da CHESF de levantar as águas. Mesmo assim, como veremos, permaneceram nos povoados até o último instante, procedendo em conformidade com as retiradas tradicionais. O enchimento do lago é por eles descrito como uma “cheia” invertida: uma “enchente de baixo”, “que o rio encheu pela barragem”, subindo às avessas, contracorrente e em ritmo acelerado, numa rapidez inconcebível. Todos foram surpreendidos pelo comportamento inusitado do rio São Francisco. A “retirada da barragem” foi desmedida e sem volta. As dessemelhanças são por eles descritas em detalhes, reiteradas vezes, incansavelmente, como em exerUma retirada insólita
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cício constante de reconhecimento e apreensão. Não houve um encaixe perfeito, nem mera reprodução do modelo da retirada. No entanto, o uso insistente dos termos “retirada” e “enchente” no contexto da formação do lago, seguidos (ou não) do qualificativo “da barragem”, indica que tais eventos inéditos foram incorporados àquele modelo, através de deslizes e rearranjos em seu campo semântico. Ao longo deste capítulo, veremos que o rumo dos acontecimentos resultou de uma conjugação de fatores, centrados na relação entre camponeses e técnicos do Estado, sobretudo nos mal-entendidos ali produzidos. De um lado, confiantes nas vantagens do progresso e em sua missão modernizadora, as agências governamentais encarregadas de esvaziar a área de inundação; sua atuação imprevidente e indefinida quanto ao destino dos desalojados. De outro lado, seguros em seu modo de vida e no saber da tradição, os camponeses que se recusavam a sair da beira do rio. Surpreendidos por uma enchente insólita, são forçados a se instalar em plena caatinga, retirando às pressas e sem condições, incertos quanto ao caráter definitivo da “retirada da barragem”. a) Descrença na inundação da caatinga anunciada pela CHESF “Mandaram buscá um guia para ensiná os pasto.”2 Comecemos pela proposição de que a inundação da caatinga era um acontecimento impensável, que contrariava a ordem do mundo tal como os camponeses a concebiam. Tomarei como paradigma o relato do encontro de um vaqueiro de Itapera com um topógrafo da CHESF, que precisava fazer medições em toda a área, para calcular o alcance das águas do futuro lago de Sobradinho. Para não se perder na caatinga, o engenheiro contrata um guia experiente, o vaqueiro Nelito, mateiro rastejador, que conhecia bem o lugar onde hoje é a beira do lago: ––– Eu: [no lote agrícola de Nelito, nas imediações da Itapera nova, em plena caatinga]. Aqui é muito longe da Itapera velha? ––– Nelito: [...] Daqui pra lá onde nós morava era uma faixa de três léguas [18 km]. Eu cansei de vim campear de lá com distância de cinco léguas [30 km], na beira daquela serra, que esse gado de lá mexia por aqui tudo [refere-se à serra da Melancia, que ficava fora do território da Itapera velha, como vimos no Capítulo II/Mapa I]. 168 A enchente que o rio encheu pela barragem
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––– Eu: Você conhecia isso aqui? ––– Nelito: Tudo! Eu conheço até a beira daquela serra lá, campeando [rastejando rês]. Com exceção de vaqueiros e caçadores, ninguém mais se arriscava a entrar tão fundo na caatinga aberta, multívia, impenetrável a qualquer forasteiro. Daí que “os cabras da CHESF” buscassem um vaqueiro como guia. Nelito mencionou o episódio quando estive em seu lote agrícola, localizado junto à Baixa da Queimada Grande (ou Baixão), que ficava em plena “área da caatinga”, e hoje está na beira do lago, como vimos no Capítulo II (Mapas I e II). Por sua jocosidade, seu relato da travessia da caatinga conduzindo o “Doutor Juvenal” demonstra claramente como eram diferentes os códigos culturais em confronto: ––– Eu: Você já conhecia esse lugar aqui? ––– Nelito: Já, oxente! Campeando direto aqui. Logo quando, assim, no começo [...] eles chegaram na Itapera procurando um vaqueiro, pro mode amostrar pros cabras da CHESF a caatinga. Aí, me informaram. Aí, eu vim com eles. ––– Eu: A CHESF não conhecia nada aqui? ––– Nelito: A CHESF não. ’Tava só os topógrafos fazendo as picadas, num sabe? Pra lá e pra cá. Ele chamava Doutor Juvenal. Aí nós viemos. Viemos. Saí mais ele. Quando nós chegamos bem ali adiante, onde é aquela banca ali, eu digo: “Aqui é uma picada”. E ele parou. Aí ele me pediu um facão, bem desses assim [Nelito desembainha um facão de uns 30 cm, que carrega sempre na cintura]. Parou, chegou num pé de favela [uma árvore da caatinga]: “Olha, Nelito” – era um pé de favela alto! – “A água vem mais ou menos aqui nesse pé de favela”. Dá três léguas daqui pro rio! [18 km.] Bem aqui, assim [bem perto do lote agrícola de Nelito]. Eu fiquei assim, olhando pra ele, fiquei olhando pra distância do rio, e pra altura – eu não disse a ele mesmo, não. Eu digo: “Esse homem tá é mentindo!” [risos] Mas eu não disse a ele mesmo não, eu fiquei só comigo: “Esse homem tá é mentindo! Qual é essa água que vai vim aqui?” ––– Eu: A água nunca tinha vindo aqui? ––– Nelito: Oxente! Nunca! Três léguas daqui para onde era o rio! A água nunca tinha andado aqui, nem perto! ––– Toinha (esposa de Nelito): Nós ainda tava na Itapera velha. ––– Nelito: Nós ainda tava, ainda, no lugar velho, morando lá. “Esse homem tá é mentindo! Qual é essa água que vem aqui?!” Uma retirada insólita
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Ele disse assim: “E quem tirar esse giro de terra aqui, tira todo na beira d’água”. Não é por acaso que a afirmação do topógrafo pareceu tão absurda a Nelito e Toinha, sua esposa, chegando a provocar risos. No meio da mais seca e arenosa das caatingas, “que o rio não cobria nunca”, o doutor declara, peremptório, que o rio vai tomar conta, inundando tudo ali em volta. Não contente com isso, acrescenta a altura desmedida das águas, de alcançar o topo de uma favela, das mais robustas – árvore que Nelito conhecia muito bem.3 Se o jatobá e a mangueira identificam a vazante, a favela é um ícone da caatinga.4 ––– Eu: Mas como é que dava para reconhecer que já era a caatinga, que não estava mais na vazante? ––– Mano: A caatinga era diferente, era área de pedreira, e que o rio não cobria nunca. ––– Seu Domingos: Até os paus [as árvores] é diferente. ––– Mano: É, os paus é diferente. ––– Seu Domingos: Os paus lá da vazante é um, e da caatinga é outro. [Grifos meus.] Esse modo de caracterizar a caatinga e a vazante é totalmente evidente para quem vive lá. Suas diferenças são naturalizadas. Quando estive em Correnteza, povoado ribeirinho a jusante da barragem, no município de Juazeiro, onde o rio ainda corre em seu leito normal, perguntei a um camponês onde ficava a caatinga. Sorrindo, e dando a entender que eu perguntava o óbvio, Seu João apontou na direção do local de retiro, o Alto do Povo, situado por detrás das casas: “depois de lá é que começa”. Primeiro, destacou o verde da vazante, com suas árvores frondosas, mangueiras e jatobás, capim alto e coqueiral, estendendo-se até o retiro. Daquele ponto em diante, ressaltou a mudança de cor, perfeitamente visível porque estávamos em agosto, no auge da seca: o amarelado da caatinga, a braveza convulsiva de sua vegetação brancacenta, crispada e ressequida. Esta distinção entre as duas áreas a partir de sua flora e do alcance do rio também está presente na bibliografia sobre a região do Médio São Francisco. Silva (1961) destaca duas zonas bem marcadas, no município de Xique-Xique. “[...] caracterizados, cada um deles, por uma vegetação especial: a zona do alagadiço (que seria a zona da vazante do rio); uma zona intermediária e a caatinga [...] com uma vegetação que chama a atenção
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mesmo do observador incauto. Inúmeras cactáceas, dentre as quais o Xique-Xique (Pilocereus gounellei), o Mandacaru (Cereus peruvianus) e o Cabeça de Frade (Pithecoseris pacourinoides), as Favelas (Jatropha phyllacantha) e os Umbuzeiros (Spondias purpurea) caracterizam a região.” (Silva, op. cit., p. 46-7).5 Em Os Sertões, Euclides da Cunha também descreve a vegetação típica das caatingas, destacando a peculiaridade daquela árvore que serviu de marco para o alcance das águas da barragem: “As favelas, anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus – talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.” (Cunha, 1979: 31).6 Se camponeses e estudiosos estão afinados na caracterização da caatinga, não seria absurdo supor que também Euclides da Cunha sorriria incrédulo diante da afirmação de que o velho Chico afogaria uma favela. Certamente atribuiria a Antônio Conselheiro a inventiva de previsão tão prodigiosa: “então o certão virará praia e a praia virará certão”.7 Da mesma forma, para Nelito e demais tabaréus das beiras, era totalmente impossível o rio alcançar um pé de favela, inundar tudo em volta, afundar a caatinga. Era contra a própria natureza. Só mesmo em profecia de algum anacoreta sombrio invocando praia no sertão; somente um “doutor” incauto, versado em livros e números, mas alheio às mais elementares verdades da vida camponesa; alguém de fora, somenos, instruído na cidade, leigo nos fatos do rio e da caatinga; só mesmo um sábio assim para pegar um facão e marcar um pé de favela no alto, pronunciando o maior disparate. Só rindo, tamanha mentira (ou asneira). “A gente jurava e batia pé que a água não vinha aqui.” Era igualmente impensável que o rio ultrapassasse os próprios marcos registrados na memória, ancorados num saber dos mais antigos, de quem sempre viveu acoplado ao rio na rotina de seus movimentos ciclados. Nem mesmo em 49, muito menos em 26, ou 19, nas mais altas das enchentes grandes, o rio nunca passou do Tabuleiro, nem do Ariá. Uma retirada insólita
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E o local escolhido pelo doutor ficava ainda mais longe, muito atrás dos locais de retiro: 10 km daquele pé de favela até o Tabuleiro, 8 km do Tabuleiro até o rio. Como vimos, se o rio e a caatinga eventualmente se encontravam, remarcando a fronteira, jamais cruzavam a linha. A caatinga “o rio não cobria nunca”, “começava depois do Tabuleiro”. A delimitação do alcance máximo do rio era o próprio cerne da definição de caatinga. Lugar do seco e do alto, sempre pensados numa relação de oposição com a vazante e suas terras baixas, sujeitas a inundações periódicas. A afirmação do doutor não podia mesmo ser levada a sério: era alguma piada ou mentira. Um homem que nem conhecia a caatinga, e precisava de um guia, como um cego, que autoridade teria para afirmar tal disparate? “Eu quero ver essa barragem vir aqui!” Em toda a área do reservatório, são inúmeros os relatos que reafirmam o caráter insólito dos eventos produzidos pela barragem. A inundação da caatinga era impensável para um camponês da beira do rio São Francisco, que conhecia bem o seu histórico de cheias e vazantes. Em Itapera, não apenas Seu Domingos, mas quase todos volta e meia repetiam, entre surpresos e perplexos, que “a gente jurava e batia pé que a água não vinha aqui!”, referindo-se ao lugar onde hoje se encontra o novo povoado. Mano não esquece do espanto e descrença de todos diante dos cabras da CHESF insistindo que “a água ia ficar na lagoa da Jurema”, uma lagoa de chuva, bebedouro de gado raçado em inverno chuvoso, tão afundada na caatinga que nem consta do Desenho velho (Mapa II). Mano ainda lembra do dia em que ficou sabendo que “a água ia bater na Queimada Grande”. Ninguém acreditava. Muito menos aqueles três camponeses de Itapera que às vezes plantavam mandioca lá. Não só não acreditaram que o rio conseguiria alcançar o Baixão, cobrindo as roças de chuva, como nem quiseram aceitar a indenização oferecida pela CHESF: ––– Seu Domingos: O compadre João não queria sair. Mas eles pensando de não cobrir, não era? Eles não queria sair, porque pensando que a roça não cobria. [Grifos meus.] E não é que “afundiu tudo”? “Alisou tudo”, afundou até a caatinga. Apesar de tanto espanto e incredulidade, a Itapera nova fica bem na altura da velha lagoa da Jurema, agora dissimulada sob as águas do lago, e uma parte dos lotes agrícolas distribuídos pela CHESF encontra-se na
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beira da Baixa Queimada Grande, recentemente transformada em canal de irrigação (1987/8). Povoado e roças no centro daquela caatinga bruta, onde o rio jamais chegara. Hoje, quem ri é o doutor. E Nelito vaqueiro, que riu desconfiado, mesmo assim acabou seguindo seus conselhos. Como um bom tabaréu, e dos mais sábios, tirou exatamente o “giro de terra” recomendado pelo topógrafo: seu lote agrícola está na beira do lago. “E eu dizia que essa água não vinha nem aqui em Remanso velho!” A descrença na excepcional subida das águas anunciada pela CHESF (sua “altura terrível”) também está presente no relato de Seu Esmeraldo (53 anos), que vivia na ilha do Lameirão, em Remanso, e hoje reside na nova sede do município: ––– Seu Esmeraldo: [...] E eu dizia que essa água não vinha nem aqui em Remanso velho! E porque cobriu uma igreja que tinha aí, não sei quantos metros de altura. Dizem até que já caiu. Cobriu a cidade, parece que com 12 metros de fundura. Umas enchente grande que teve aqui, deu 12 metros de fundura em Remanso velho. A ilha onde eu morava tinha uns pés de pau de jatobá, de mangueira (lá em nossa roça), que era uma altura enorme. Eu digo: “Eu quero ver essa barragem vir aqui, ao menos no meio desses pés de manga!” Cobriu que ninguém viu nem o olho! Alisou tudo! E aqui, esse lugar onde está localizada essa cidade, dentro desse buraco, tinha uma altura terrível. Porque esta água cobriu a igreja de Remanso que era uma altura medonha, e não veio atingir aqui? [Grifos meus.] Seu Esmeraldo nunca precisou retirar, nem mesmo na grande cheia de 1949, porque morava na parte alta da ilha do Lameirão, que era tão alta que jamais havia sido tocada pelo rio: ––– Eu: O senhor sempre morou na ilha do Lameirão? ––– Seu Esmeraldo: Morava na ilha de seca a verde, ninguém saía. O rio enchia e vazava, e a gente morando lá dentro da ilha. Porque a ilha tinha umas partes baixas, onde cobria, e tinha um alto, no meio, ali onde morava o pessoal. Dois altos: tinha um pro lado de cá, e outro pro lado de lá. Ali tudo morava gente. [...] Eu fui criado lá. Comecei a trabalhar na roça desde a idade de 10 anos. Saí de lá com 50 e tantos, quando veio a barragem. Nunca saí de lá, nunca estive fora de lá nem um mês, da ilha do Lameirão, desde quando eu nasci, é assim que se pode dizer. Lá era bom, naquela ilha. Uma retirada insólita
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Para Seu Esmeraldo, era impensável que o rio pudesse cobrir a “altura medonha” da igreja velha de Remanso, ou a “altura enorme” de seus pés de manga e jatobá, quando nem a enchente de 1949 realizara tal proeza. Para quem nunca precisou retirar, era inaceitável o que tentavam lhe impor: deixar a ilha do Lameirão, sob o argumento de que seria totalmente coberta pelas águas? E de forma definitiva e sem volta? Nos dois relatos, a descrença na subida espetacular e irreversível do rio aparece em contextos distintos. Com Nelito, falávamos da caatinga, que ele conhecia profundamente, mais do que todos, por ser vaqueiro; com Seu Esmeraldo, era a ilha o tema da conversa, seu local de moradia por mais de cinquenta anos, de onde nunca havia saído, nem mesmo na mais alta das enchentes grandes. Moravam em locais bem diversos (na margem do rio e numa ilha), em municípios apartados pelo São Francisco (Sento Sé e Remanso). Para eles, era absurda a afirmação dos técnicos de que o rio iria transpor de modo tão incrível os limites das enchentes mais altas que haviam presenciado ou que bem conheciam, de tanto ouvir falar (1919, 1926 e 1949). Esta descrença generalizada na subida das águas anunciada pela CHESF não era desconhecida das equipes de relocação. A própria diretora da Divisão de Relocação de Populações, do Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho, que coordenava o trabalho das equipes sociais na área de inundação, aciona a descrença como justificativa para os prejuízos dos desalojados, sobretudo a perda dos rebanhos durante a transferência para a borda do lago: “[...] o povo não acreditava que o rio ia subir tanto. Assim, deixaram os animais em local que não deviam; porque quando havia cheias, eles sabiam direitinho como cuidar dos animais. [...] a CHESF não sabia que eles tinham tantos animais, pois viviam soltos, e quando a CHESF perguntava o número, eles diziam: ‘um punhadinho’. Assim, a CHESF foi pega de surpresa na hora de providenciar transporte para tanto animal que apareceu na última hora.” (Entrevista realizada nos escritórios da CHESF em Recife, em junho de 1985. Grifos meus). De fato, como vimos no Capítulo III, durante uma enchente alta, também o gado retirava. As perdas, quando ocorriam, eram minimizadas pelo próprio modo de proceder numa retirada, em seu cálculo preciso. Os camponeses sabiam como fazer, em que momento, qual o ritmo e maneira. Se não era desconhecida da CHESF e de seus técnicos, a descrença na subida das águas era desconsiderada. Para eles, não passava
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de mais uma anedota a ilustrar a “ignorância” e o “atraso” daquela população. A ironia do desentendimento surge em toda a sua aridez sertaneja quando vemos ambos os lados rindo e cometendo erros análogos de julgamento: à ignorância e atraso do camponês corresponde o disparate ou má-fé dos técnicos. Ambos na certeza. Mas apenas um estava sendo invadido, e logo veria o seu mundo desaparecer sob as águas. O outro, inabalável, em breve levaria sua arrogância para construir em outra área, destruindo mais um povoado ignorante e atrasado. b) O princípio da beira: a expropriação dos lameiros e a opção borda do lago “Tudo o que eles querem é tirar a gente da beira do rio.” Desde os primeiros contatos com os técnicos até a subida efetiva das águas, alastrou-se entre os camponeses a suspeita de que a CHESF pretendia expulsá-los da beira do rio para se apossar dos lameiros: as terras melhores e mais disputadas de toda a região. Há vários indícios de que o argumento da subida definitiva e extraordinária das águas foi tomado como uma “mentira” ou invenção da “Dona CHESF e seus cabras” (como se referem à Companhia, com seus doutores engenheiros), que na verdade estariam interessados em se apropriar da beira, o seu bem mais precioso. A própria CHESF reconhece que “os caboclos achavam que o interesse da Companhia estava voltado para suas terras da beira do rio”.8 “A maioria a quem eu indaguei por que precisavam sair de suas terras, davam como resposta que não sabiam por que a barragem estava sendo construída. Um lavrador disse: ‘Tudo o que eles querem é tirar a gente da beira do rio!’ O rio representava a base da sua existência; isso se refletia em todas as perguntas feitas pelos moradores a respeito da minha terra: ‘Lá também existe um rio?’”(Tallowitz, 1979: 36. Grifos meus).9 Os camponeses não acreditaram na anunciada subida do rio, que seria capaz de invadir a caatinga e engolir para sempre o lugar das casas e toda a área da vazante, todas as ilhas e ilhotes do São Francisco. Em seu lugar, e para justificar tanta pressão da CHESF, imaginaram tratar-se de uma invasão, não das águas, mas de concorrentes: uma expropriação grileira. A contrapartida da descrença na formação do lago era a Uma retirada insólita
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convicção de que a CHESF estava interessada na beira. Como vimos nos capítulos anteriores, era esta a posição mais cobiçada e valorizada por todos: situar-se o mais perto possível do molhado, sem a obrigação de retirar anualmente durante a cheia. Mesmo quando ocorria uma enchente alta, que inundava o lugar das casas, procuravam permanecer na beira. O lugar de retiro, além de ser a beira da caatinga, era também a beira do rio numa enchente alta. A retirada levava os camponeses à posição simétrica à beira onde habitavam. O retiro e as casas ficavam junto à água e no alto. Toda a orientação do espaço era definida pelo rio e pelo interesse em permanecer na beira. Sob a ótica do princípio da beira, a chamada “opção Borda do lago” ganha um significado muito diferente daquele que os técnicos lhe atribuíam. Os camponeses apenas pretendiam acompanhar a beira do rio, exatamente como faziam durante uma enchente alta. ––– Entrevistador da TV: Seu Zé, é verdade que o senhor não quer sair daqui [da beira do rio] de jeito nenhum? ––– Seu Zé Chico: Não quero, não senhor. ––– Entrevistador da TV: Por quê? ––– Seu Zé Chico: Porque eu nasci e me criei aqui, e acho bom ficar aqui tomando banho na água do São Francisco. Meu carro é esse [o barco onde está sentado]. E eu tenho que estar aonde o rio tá. ––– Entrevistador da TV: Mas Seu Zé, a água vai aumentar! Vai ficar 30 metros de altura de água! ––– Seu Zé Chico: Mas eu fico lá onde ela fica. ––– Entrevistador da TV: O senhor quer ficar na margem? ––– Seu Zé Chico: É, na margem. Eu quero ficar é na margem. ––– Entrevistador da TV: Seu Zé, como é que o senhor consegue imaginar esse rio aqui subindo, subindo, subindo e inundando tudo. Como é que o senhor vê isso? ––– Seu Zé Chico: Isso aqui é o seguinte: eu quero ver, porque eu nunca vi. Eu quero ver e acho bonito. Agora, eu quero ficar lá onde ele parar. Lá onde ele parar, eu quero ficar. ––– Entrevistador da TV: Na beirinha dele? ––– Seu Zé Chico: Na beirinha dele.10 Seu Zé Chico poderia perfeitamente ser um camponês de Itapera, e seu interlocutor, um técnico da Hidroservice, nos idos de 1973, realizando pesquisa de opinião acerca das “intenções e direção de mudança” manifestadas pela “população rural”:
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“O que se pode claramente constatar, no contato com a população ribeirinha do São Francisco, é que, em geral, a escassez de chuva nessas áreas provoca em seus moradores um receio acentuado de uma possível mudança para a caatinga. Assim, quando se perguntou aos chefes de família se seriam capazes de indicar um ‘bom lugar’ no interior de seus municípios para onde suas localidades pudessem ser transferidas, todos foram unânimes em declarar que não tinham condições, ou porque não conheciam o interior (a maioria), ou porque, embora conhecendo, a escolha do lugar ‘só os engenheiros sabem’. Entretanto, todos pediram que não os colocassem em lugar seco, onde não existe água, seja esta do lago ou riachos, pois não seriam capazes de viver em lugares onde não tem lameiro.” (Hidroservice, 1975: 82-5. Grifos meus). Tanto em Sobradinho quanto em Itaparica, duas barragens construídas no São Francisco, os camponeses ribeirinhos conheciam muito bem toda a história de cheias e vazantes do rio, o que tornava difícil acreditarem na subida das águas anunciada pela CHESF: “Eu quero ver porque eu nunca vi”. Se porventura ocorresse uma enchente alta, acompanhariam a beira como sempre haviam feito: “Agora, eu quero ficar lá onde ele parar, lá onde ele parar, eu quero ficar”. Se o lugar das casas inundasse, agiriam de acordo com o modelo da retirada, acompanhando a beira em seus recuos sucessivos até o limite máximo, os locais de retiro tradicionais. “Eu tenho que estar aonde o rio tá”: o que os técnicos finalmente entenderam como uma opção pela borda do lago, sem conseguir explicála de modo satisfatório, para os camponeses era apenas a reafirmação de uma escolha feita há muito tempo: a velha opção pela beira, princípio de todo o modo de vida desenvolvido na região. A “opção Borda do lago” era uma reedição do imperativo da beira, uma aplicação melancólica e derradeira do modelo da retirada. Se a conversa de surdos travada entre camponeses e técnicos tem muito do humor daquelas histórias que enfocam situações absurdas, no entanto, neste caso a anedota teve um desfecho trágico, infletindo de modo decisivo no rumo dos acontecimentos. Com o fechamento das comportas, os camponeses foram submetidos a uma situação de fato: a subida das águas. A formação do lago, além de implicar a expropriação destrutiva de suas antigas condições de existência, foi uma violência simbólica. Colocou em xeque todo o patrimônio cultural de um grupo, seus conceitos mais elementares, suas próprias concepções de tempo e espaço. Uma retirada insólita
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2. Atuação da CHESF e de seus técnicos a) A borda do lago como solução de emergência No período que antecede a formação do reservatório de Sobradinho (1972 a 1977), técnicos da CHESF e de outras agências por ela contratadas percorreram a área de inundação para realizar levantamentos técnicos e socioeconômicos, e comunicar à população urbana e rural que precisavam sair de seus locais de moradia e trabalho, em caráter definitivo, porque o rio São Francisco iria “avançar léguas e léguas”. A decisão de construir a Usina Hidrelétrica de Sobradinho foi tomada em 1972. Nesse ano, começam os trabalhos de topografia para estabelecer os limites do futuro lago, e a instalação do acampamento de obras junto ao local da barragem (vide Foto, p. 8), 40 km a montante das cidades de Juazeiro (Bahia) e Petrolina (Pernambuco). As obras civis e as primeiras indenizações têm início em junho de 1973. Ainda em 1972, a CHESF contrata os serviços de uma empresa consultora, a Hidroservice, para realizar uma série de trabalhos prévios ao “esvaziamento da área de inundação”: recenseamento da população e estudo socioeconômico; levantamento da infraestrutura urbana das cidades e povoados; pesquisa de opinião sobre as intenções dos futuros “desalojados”. A consultora deveria apresentar recomendações quanto à localização das novas sedes municipais (a ser negociada com o poder local) e à política de transferência da “população urbana e rural” (Duqué, 1980: 288-9). As avaliações feitas pela Hidroservice (1975: 89) destacavam que “a população tinha um nível econômico muito baixo”, praticando uma “agricultura de subsistência com uma tecnologia primitiva”. As pesquisas de opinião revelavam que “a maior parte da população rural desejava permanecer nos municípios, nas áreas não atingidas pelo reservatório, isto é, na borda do lago”. Com base em tais dados, a CHESF aciona o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria) e a ANCARBA (Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural da Bahia) para prestarem assistência à “população rural a ser deslocada”. Em 1974, a ANCARBA elabora um programa de trabalho que tentava conciliar aquele desejo da população rural de permanecer na área com as limitações de solo e clima na futura borda do lago. Duas equipes atuavam neste programa: a “equipe de planificação”, para avaliar as condições de produção na futura borda e elaborar “alternativas” (infraes-
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trutura e pacote tecnológico que deveriam ser adotados), e a “equipe de ação comunitária”, para preparar a “transferência da população”, colaborando no planejamento das “alternativas de produção” (Duqué, 1980). A equipe de planificação percorreu toda a borda do lago, e a equipe de ação comunitária concentrou seu esforços no município de Casa Nova, considerando sua população rural como uma amostra significativa do conjunto da “população afetada” pela barragem: “Tendo em vista a homogeneidade da área em estudo, pode-se admitir que a situação diagnosticada à Casa Nova se repete nos demais municípios do reservatório de Sobradinho.” (Hidroservice, op. cit., p. 91). Assim, durante o ano de 1974, a equipe de ação comunitária atuou somente em Casa Nova, preparando a transferência da população rural para a futura borda do lago. Um ano depois, em 1975, a mesma equipe ficou encarregada de comunicar à mesma população que tal alternativa era inviável, porque a equipe de planificação havia chegado à conclusão de que somente mil famílias poderiam ser instaladas na futura borda do lago e, assim mesmo, apenas em algumas manchas de solo: “No entanto, o estudo de viabilidade de aproveitamento da borda do lago concluiu pela impossibilidade do reassentamento da maior parte da população, devido aos seguintes fatores: dificuldade de obtenção de água; inexistência de manchas contíguas de solos agricultáveis; inviabilidade de desenvolver agricultura irrigada pelo alto custo de investimento. Portanto, as áreas referidas teriam a capacidade para assegurar a sobrevivência de apenas 1.000 famílias.” (Hidroservice, op. cit., p. 90). Esta conclusão partia do princípio, “ditado pela CHESF e pelo INCRA”, de que a solução a ser adotada “não poderia incluir agricultura irrigada”, por seus altos custos de investimento: “nessas condições, foram eliminadas todas as áreas em torno e a jusante do reservatório” (Hidroservice, op. cit., p. 94). Ainda em 1975, o INCRA define um projeto para “reassentar quatro mil famílias”, o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho (PEC-SR), localizado no interior do município de Bom Jesus da Lapa (Bahia), 700 km rio acima (afastado da beira). Estava previsto que as famílias restantes adotariam soluções individuais: “Uma outra alternativa ainda será o ingresso nas correntes migratórias que buscam os mercados de trabalho local (Sobradinho) e regional ou ainda a transferência, por conta própria, para glebas de propriedade de parentes e amigos.” (Hidroservice, op. cit., p. 91). Uma retirada insólita
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Entre 1975-76, a CHESF e demais agências contratadas concentram seus esforços em convencer a população rural a optar pelo PECSR. Como “incentivo”, suspendem a alternativa borda do lago. Além da equipe de ação comunitária da ANCARBA, entra em campo uma equipe social da CHESF, da Divisão de Relocação de Populações, composta basicamente de assistentes sociais e seus auxiliares de campo, recrutados entre os moradores da região.11 Até maio de 1977, apesar dos esforços dessas duas equipes, somente 1.026 famílias haviam optado pelo PEC-SR, ou seja, apenas 26% das quatro mil famílias previstas. Em dezembro de 1976, o rio é parcialmente represado e suas águas começam a subir.12 O “esvaziamento” da área torna-se urgente. Elevando-se contracorrente, a partir da barragem, o rio inicia sua jornada destrutiva, inundando cidades e povoados ribeirinhos, em movimento contínuo, ao longo de todo o ano de 1977, até julho de 1978, quando o lago atinge a cota máxima de 392,5 metros. Como a maior parte da população rural havia se recusado a sair da beira do rio, a CHESF é obrigada a retomar a “alternativa borda do lago”, agora como “solução de emergência” (Sigaud, 1986: 27-31). O enchimento do lago, a construção dos “núcleos de reassentamento” (os novos povoados da borda do lago) e a relocação da população foram “quase simultâneos”, sobretudo em 1977, no primeiro ano do lago em formação: “Os documentos da CHESF não indicam em que momento preciso foi tomada a decisão de atender à reivindicação da população sob a forma de instalação de 25 núcleos na borda do lago [17 em Sento Sé]. Essa omissão não parece gratuita, uma vez que graças a ela é possível veicular a imagem das opções articuladas, colocadas para a população a um só momento. [...] Sabe-se ainda que, segundo Duqué, em fins de 1976, centenas de famílias eram relocadas por semana. É possível portanto supor que a construção dos núcleos tenha se intensificado nos anos de 1976 a 1977. Se, por ocasião da inauguração da barragem, em março de 1978, o lago já estava praticamente formado, conclui-se que a construção de núcleos e relocação tenham sido quase que simultâneas.” (Sigaud, op. cit., p. 30-31).13 Do ponto de vista dos camponeses, foram esparsas e geralmente contraditórias as informações que receberam sobre a construção da barragem, a formação do lago e o imperativo de abandonar, em caráter definitivo, seus antigos locais de moradia e trabalho. Apenas em Casa Nova tiveram um contato mais sistemático com as equipes sociais, mas so-
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mente porque haviam sido escolhidos como “amostra” da população a ser relocada. Mesmo assim, receberam um apoio contraditório, devido à indefinição do Estado sobre o destino da população rural: primeiro, poderiam permanecer na região; depois, deveriam mudar-se para longe (PEC-SR); por fim, poderiam novamente permanecer na área, na futura borda do lago. De qualquer forma, o trabalho da ANCARBA em Casa Nova surtiu algum efeito: de acordo com os dados oficiais (Anexo I, p. 217), de um total de 8.619 famílias que saíram da área rural e tiveram seu destino administrado pela CHESF, apenas 12% foram para o PEC-SR (1.013 famílias), das quais 64% (652) saíram de Casa Nova. Ao que tudo indica, esse trabalho teve alguma repercussão em Sento Sé, na outra margem do rio, sobretudo na área mais ao leste do município (Mapa VII, p. 258).14 Como vimos, camponeses de povoados vizinhos, mesmo morando em margens opostas, trabalhavam nas mesmas ilhas e ilhotes, e muitos deles estavam ligados por laços de parentesco e afinidade. Assim, é bem provável que camponeses de Sento Sé tenham recebido, direta ou indiretamente, informações veiculadas pelas equipes sociais alocadas em Casa Nova.15 Nos municípios de Remanso e Pilão Arcado, e na parte oeste de Sento Sé, na região da velha Itapera, de acesso bem mais difícil, porque distantes da barragem e das cidades de Juazeiro e Petrolina, de onde partiam as estradas para Salvador e Recife, ao que tudo indica, os camponeses ficaram mais isolados, recebendo informações mais esparsas. Seu principal contato foi com as equipes técnicas, que apareciam na região fazendo “apanhamentos” (coletando dados), e não com as equipes sociais, que deveriam prepará-los para desocupar a área de inundação, explicando os motivos e vantagens de sua mudança compulsória. Inicialmente, conheceram os topógrafos da CHESF (como o Doutor Juvenal), palmilhando a caatinga para calcular o alcance das águas (a cota máxima do lago), e as equipes de campo da Hidroservice, ocupadas com suas pesquisas e inventários. Depois, os planificadores da ANCARBA, investigando as condições de solo e clima da futura borda do lago. Por fim, a equipe de advogados da CHESF, encarregados das indenizações compulsórias, “tomando nota de tudo que tinham” e “fazendo abatimento”: ––– Eu: Mas como foi quando a CHESF chegou? Apareceu nas ilhas e foi falar com todo mundo? ––– Seu Esmeraldo: Apareceu nas ilhas, foi. Puseram os escritórios aí na cidade [Remanso], da CHESF. E agora aí, começou a botar piquete Uma retirada insólita
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nessas caatingas, que eu não sei pra quê. Ainda hoje tem. Abrindo estrada. E aí começou. Iam pras ilhas, faziam abatimento, olhavam o que as pessoas tinham. Nas ilhas e nas propriedades também, de terra firme. E eles andavam lá para tomar nota de tudo que a gente tinha, na ilha. Quantas tarefas de terra, quanto você apanha de feijão. E a gente dava todo o apanhamento, e eles escreviam tudo lá no livro e trazia. [Seu Esmeraldo (53 anos) vivia na ilha do Lameirão, em Remanso, e hoje reside na nova sede do município.] Em resumo, se a decisão de construir a barragem foi tomada em 1972, os trabalhos de esclarecimento e motivação dos camponeses para “desocupar a área de inundação” só começaram em 1974. Assim mesmo, apenas Casa Nova recebeu um apoio mais sistemático, ainda que contraditório: as equipes sociais primeiro incentivaram a opção borda do lago (1974), que foi rejeitada em 1975-6 em favor do PEC-SR, para ser finalmente retomada três anos depois, como solução de emergência (1977-78). Nessa altura, não se tratava mais de convencer ninguém, pois as águas já estavam subindo. Os camponeses se viram às voltas com uma situação de fato: a inundação dos povoados.16 b) O desconhecimento da lógica dos camponeses “Nós tivemos, portanto, desde o início, um muro de incompreensões que separa os camponeses da maior parte dos técnicos. Para estes, a população recusa a mudança: não somente a transferência, mas a passagem do mundo tradicional ao mundo moderno. É claro que sua recusa não é culpável, ela se explica pela ignorância.” Duqué, 1980, p. 303.17 O trabalho desenvolvido pelas equipes sociais para incentivar a opção PEC-SR partia do suposto de que as perspectivas concretas de melhoria do padrão de vida “precário” da população rural seria um “elemento persuasivo” para obter sua adesão. É o que consta do “Plano de Reassentamento para a população atingida pelo reservatório de Sobradinho”, elaborado pela Hidroservice, no item “Alternativas de mudança da população”: “Embora essa alternativa [PEC-SR] contrarie em certa medida a tendência da população, pode-se admitir que a compulsoriedade da 182 A enchente que o rio encheu pela barragem
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mudança, a possibilidade de manutenção dos grupos de parentesco e vizinhança, bem como as perspectivas concretas de melhorias do padrão de vida, constituirão elementos persuasivos para obter a adesão da maioria dos chefes de família.” (Hidroservice, 1975: 91). O PEC-SR oferecia um conjunto de serviços inexistentes na área de inundação (ou de difícil acesso), como eletricidade, abastecimento de água, escolas e postos médicos, para uma população que deveria estar interessada em “melhorar seu nível de vida”. Conjuntamente com a propaganda das vantagens do PEC-SR, os técnicos procuravam desqualificar a borda do lago, cujas possibilidades produtivas dependiam de projetos de irrigação, vetados pela CHESF e pelo INCRA. As agências governamentais pretendiam aproveitar a “operação de reassentamento” para promover uma “mudança social” na área, através da modernização da agricultura e da instalação de uma infraestrutura básica na região (estradas, luz elétrica, etc.): “O técnico está tão convencido que a agricultura de subsistência é um resíduo a liquidar, ele assimila tão bem a tecnologia ao progresso [...] que ele raciocina nesses termos: a transferência é uma imposição dolorosa, ‘mas vamos aproveitar a mudança de local para operar uma mudança social’ (como está escrito em todas as cartas do programa estabelecido pela ANCARBA no momento da assinatura do contrato com a CHESF).” (Duqué, 1980: 305). Assim, todos os esforços das equipes sociais deveriam concentrarse no objetivo mais geral e “ambicioso” de “fazer evoluirem” as aspirações da “população rural objeto do programa”: “O que se pretende a curto e médio prazo é dar uma condição mais humana de vida através da legalização da posse da terra, melhoria das técnicas de produção, condições de higiene, saúde e instrução. [...] O objetivo mais ambicioso do plano é o de demonstrar à população que suas condições de vida podem ser alteradas com o esforço comum e perseverante, transformando o conformismo com que encaram a atual situação em ambição de melhorar cada vez mais.” (Hidroservice, op. cit., p.132). Conceber uma intervenção violenta sobre o espaço social como uma boa “oportunidade para implementar mudanças” não se restringe, de modo algum, à hidrelétrica de Sobradinho ou ao Estado brasileiro e seus projetos e empreendimentos de grande porte, mas parece ser uma prática recorrente nos chamados “países do terceiro mundo”. Conforme observou Scudder (1973: 710), “os Governos africanos vêem a relocação Uma retirada insólita
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como uma oportunidade para implementar mudanças planejadas, segundo um programa mais amplo de desenvolvimento nacional”, como os projetos associados às barragens de Volta, Assuã, Kainji e Kossou. Como vimos, apesar da boa vontade dos técnicos em seus esforços de conduzir a população a uma “condição existencial mais humana” (Hidroservice, 1975: 133), foram poucas as famílias que optaram pelo PEC-SR: 1.013 ou 12% de um total de 8.619 famílias que saíram da área rural (Anexo I, p. 217). No final da “operação de esvaziamento da área de inundação” (1978), a CHESF computou um total de 11.853 “famílias reassentadas”, das quais 8.619 famílias saíram da área rural. 62% dessa população rural permaneu na borda do lago.18 Os camponeses, em sua maioria, só saíram da beira do rio quando as águas represadas atingiram suas casas, e acabaram por se instalar às pressas na borda do lago, sofrendo grandes prejuízos. A recusa ao PEC-SR foi interpretada pela CHESF e seus técnicos de campo como um sinal da “ignorância” e “conformismo” da “população”. É o que se depreende da análise das condições de vida dos “ribeirinhos”, feita pelo diretor de obras da CHESF em Sobradinho, centrada no que eles “não tinham” ou “não estavam interessados” em possuir: “O peixinho da beira do São Francisco que ele pesca para dar um pouco de comida para a sua família, tudo aquilo é o universo dele. Ele estagnou no tempo. Para ele não interessava ter televisão, não interessava ter meio de comunicação e tudo. Ele criou-se dentro daquilo, ele adaptou-se àquela pobreza. Ele encontrou uma harmonia de viver pobre e miserável, já que ele não conseguia romper tudo aquilo que a sociedade tinha criado de maneira a deixá-lo marginalizado. Em resumo, se isso pode existir – mas, agora é trabalho para outras pessoas, não para mim –, se pode existir uma felicidade na marginalização. Ele era absolutamente miserável dentro de qualquer padrão de comparação que você queira fazer. Porque ele não tinha saúde, ele não tinha assistência médica, ele não tinha instrução, ele não tinha condição de escoar a produção dele; o primeiro coronel do interior que chegava, se queria botar o gado, expulsava ele, escorraçava ele do lugar onde ele estava, mas ele, dentro da marginalização dele, dentro da miséria dele, vivia feliz.”19 De acordo com o diretor da CHESF, os “ribeirinhos” estavam acostumados a um padrão de vida “miserável” e “estagnado”, e não tinham interesse em “evoluir”. Os técnicos da equipe de planificação da ANCARBA criticavam a equipe de ação comunitária por sua incapacidade de “fazer
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a população evoluir, de fazer nascer suas aspirações” (Duqué, 1980: 305). Nesse contexto, a insistência da população rural em permanecer numa região “tão inóspita” era entendida como um “suicídio coletivo”: “Para os técnicos da CHESF [...] importa oferecer as melhores alternativas possíveis, levando em conta as possibilidades produtivas do solo e das condições climáticas. Ver uma tal massa de pessoas insistir em permanecer numa região tão inóspita, parece um suicídio coletivo.” (Duqué, op. cit., p. 333). Animados pela “convicção de serem representantes dessa forma de salvação que é a modernização”20, os técnicos do Estado estavam por demais seguros da legitimidade de seu trabalho e da superioridade do padrão de vida oferecido para poder compreender as razões do que julgavam ser mero “conformismo” ou “instinto autodestrutivo” da população. Na verdade, desconheciam plenamente a complexidade do pensamento dos camponeses ribeirinhos e de sua organização social, porque já dispunham de um modelo para classificá-los, que excluía sua participação em projetos mais custosos, como a irrigação das terras na borda do lago: estavam às voltas com um bando de “primitivos” e “incapazes”, resignados com seu padrão de vida “miserável”, totalmente “desinteressados” pela vida moderna, “televisão, meio de comunicação e tudo”. Em resumo, estavam lidando com “cidadãos de segunda categoria”, como bem indicou Sigaud (1986), em sua análise do “barranqueiro típico”, na visão do diretor de obras da CHESF em Sobradinho (op. cit.): “[Trata-se] de um pobre, subdesenvolvido, sem qualificação profissional, condicionado pelo rio, isolado, autossuficiente, analfabeto, sem contatos com os meios de comunicação de massa, limitado aos contatos com vizinhos e nas feiras, cuja mentalidade não pode evoluir; em suma, um primitivo, sem poder aquisitivo, sem aspirações, conformado e dominado pelo pavor do desconhecido, um ser desvinculado cultural e economicamente do resto do país. Cidadão de segunda categoria, o ‘barranqueiro’ é percebido de uma forma que se assemelha em muito à visão do colonizador ‘civilizado’ diante das sociedades tribais ‘bárbaras e primitivas’ que pretende submeter. O ‘barranqueiro’ [...] a rigor, é uma construção ideológica, sem qualquer suporte na realidade da vida social [...]. Essa percepção que exclui qualquer tentativa de compreender a especificidade do modo de vida daquela população parece informar tanto as avaliações feitas pela empresa consultora (Hidroservice), como documentos posteriores da própria CHESF e decisões por ela tomadas. A partir Uma retirada insólita
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dessa reflexão, é possível perceber que o que a CHESF e os órgãos e empresas a ela associados tinham pela frente não era apenas um entrave a ser removido, mas um entrave constituído de ‘incapazes’ que não poderiam ser objeto de investimentos custosos destinados aos ‘capazes’.” (Sigaud, 1986: 24-5. Grifos meus.). Durante toda a “operação de reassentamento”, a CHESF e seus técnicos de campo atuaram a partir do pressuposto da homogeneidade cultural entre eles e a “população da área de inundação”. Por um lado, supondo que seus valores urbanos e progressistas eram compartilhados: a população rural estaria interessada em “evoluir”. Por outro, que as informações veiculadas sobre a formação do lago e a mudança compulsória seriam assimiladas da forma prevista e almejada: a população rural entenderia prontamente uma subida artificial e definitiva das águas, provocada pela construção de uma barragem. O fato de que os camponeses falavam a mesma língua que os técnicos – o português – certamente reforçava este suposto de que a mensagem adotava o mesmo significado para ambos os polos da comunicação. A relativa homogeneidade linguística era equivocante, tomada de imediato como homogeneidade cultural. Se os técnicos estivessem às voltas com grupos indígenas, a comunicação entre eles ganharia, pelo menos, o status de um “problema” a ser resolvido, e qualquer interpretação de atos ou mensagens seria encarada com mais cautela e critério. A postura do Estado frente à população rural a ser deslocada assemelha-se àquela do colonizador que ignora os códigos culturais das sociedades “primitivas” que domina ou quer dominar (Sigaud, 1986). Ao analisar a intervenção colonial francesa na Argélia (1955-1962), Bourdieu & Sayad (1964: 25) chamam a atenção para a “ignorância” do Estado a respeito da lógica das sociedades sobre as quais atua: “não podem conceber generosidade maior do que conceder aos argelinos o direito de serem o que devem ser, portanto, à margem do europeu, o que consiste em negar o que eles são de fato, em sua originalidade de homens particulares, participando de uma cultura particular.” Essa recusa do Estado em reconhecê-los como uma cultura original é a condição mesma de sua intervenção. O colonialismo seria inviável se as diferenças culturais fossem reconhecidas e consideradas. Porque ignoram os códigos locais, seus planejamentos “modernizantes” e “civilizatórios” estão condenados ao fracasso.
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É inevitável traçar um paralelo entre a empresa colonial e a remoção compulsória de milhares de pessoas para dar lugar a empreendimentos hidrelétricos de grande porte. Ao analisar uma série de “operações de reassentamento” provocadas pela construção de barragens, Scudder (1973: 712) também atribui seu alto índice de fracasso à “comunicação num só sentido” verificada entre técnicos e relocados, suas “premissas essencialmente diferentes”, “com os técnicos ditando aos relocados, cujo comportamento eles só compreendem parcialmente”. Ou não compreendem em absoluto. No caso de Sobradinho, a atuação do Estado conduziu igualmente ao fracasso da “operação de reassentamento” nos moldes inicialmente propostos, pela ausência de um plano definido de relocação, por sua determinação em fazer a obra, cujo cronograma era cumprido independentemente dos “problemas” com o esvaziamento da área, e pelo desconhecimento da lógica da população sobre a qual atuaram. Como vimos, os camponeses atribuíram significados bastante diversos às informações veiculadas pela CHESF e seus técnicos de campo. Os eventos da barragem foram retraduzidos em outra linguagem, mediados por um esquema muito particular de percepção cultural: o modelo da retirada.
3. Implicações do modelo da retirada a) Reconhecimento do poder da CHESF de levantar as águas: a enchente da barragem “[...] o povo dentro de casa achava que a água não ia levantar [n]o primeiro ano. Aí, perderam as coisas de dentro de casa e tudo. [...] Depois que eles levantaram as águas o primeiro ano, depois o povo reconheceram que eles levantavam as águas mesmo, né? Foi quando o povo vieram reconhecer que eles levantavam [...]” Às vésperas do fechamento das comportas, a CHESF ainda não havia conseguido retirar a maior parte da população da área a ser inundada: “As informações veiculadas pelos documentos do movimento sindical e da Igreja e o depoimento de pessoas que acompanharam esse processo final, como Duqué (1980) e Tallowitz (1979), transmitem a imaUma retirada insólita
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gem de uma situação caótica: o rio subindo e as pessoas em pânico, ainda não relocadas, fugindo das águas, as criações morrendo afogadas, famílias inteiras desabrigadas na beira das estradas, suicídios, etc.” (Sigaud, 1986: 30-1). A situação trágica e caótica enfrentada pelos camponeses no início de 1977, logo após o fechamento das comportas, está documentada em jornais de Salvador, Bahia:21 POPULAÇÕES FOGEM DAS ÁGUAS
“As populações da sede de Casa Nova e dos Distritos de Santana do Sobrado, Pau-a-Pique e Bem-Bom estão apavoradas e choram os pertences deixados para trás, ao fugirem das águas da Barragem de Sobradinho [...]. Em Santana do Sobrado, as águas começaram a chegar, provocando revolta e pânico na população, que se está utilizando das árvores, principalmente umbuzeiros, e das lonas fornecidas pela própria CHESF, para se abrigarem, uma vez que o valor da indenização recebida não foi suficiente para construir suas novas casas”. (A Tarde, 03/02/1977). SOBRADINHO EM FASE FINAL
“Ao longo das picadas improvisadas e das estradas, viam-se pessoas desoladas, dirigindo-se, a passos lentos, em busca da nova ‘morada’. Os mais felizes conseguiram construir casinhas na área que lhes fora destinada, embora as mesmas não ofereçam, ainda, o mínimo de conforto e higiene, pois não possuem esgotos, nem água encanada, e os detritos são atirados pelas janelas. O lamaçal existente na nova Santana do Sobrado é uma ameaça à saúde de seus moradores [...]. Pelas estradas observam-se famílias inteiras abrigadas sob umbuzeiros ou lonas improvisadas pela CHESF. Crianças e velhos enfrentam fome e frio, como Otília Maria da Fé, de 60 anos, com seus 13 netos [...]”. (A Tarde, 05/02/1977). RESGATADOS OS ÚLTIMOS MORADORES DE CASA NOVA
“A igreja de São José, em Casa Nova, foi destruída por dinamites [...]. Por toda parte, onde as águas do São Francisco vão penetrando, são vistos animais e pertences dos que não tive-
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ram tempo de carregá-los [...]. A lentidão da retirada prendese, principalmente, à falta de habitações, o que tem ocasionado a transferência de várias pessoas para as margens das estradas, onde permanecem debaixo de umbuzeiros ou de barracas de lona improvisadas”. (A Tarde, 14/02/1977). O DESESPERO DE QUEM NÃO SABE VIVER LONGE DO RIO
“De braços cruzados, nos povoados que foram transferidos para os centros das caatingas, ou amontoados nas novas cidades construídas pela CHESF – onde formam um exército de desempregados –, os milhares de pequenos agricultores que perderam suas terras com a Barragem de Sobradinho são o retrato mais fiel do caos em que se transformou a vida da população rural dos Municípios a serem inundados pelo que será o maior lago artificial do mundo”. (Jornal da Bahia, 17/03/1977). O lago começou a encher na virada de 1976 para 1977.22 Acompanhando as notícias de jornais, vemos que as águas avançaram rio acima, passando por Santana do Sobrado (ao lado da barragem), Casa Nova, Paua-Pique e Bem-Bom (Mapa VI, p. 254), entre fevereiro e março de 1977. Há muitas discrepâncias de datas e poucos registros sobre o período da formação do lago e consequente inundação de povoados e cidades ribeirinhas, o que torna difícil reconstitui-lo pontualmente. Mas sabemos que a área de Remanso e Itapera somente foi atingida pelas águas represadas no final de 1977. As relocações promovidas pela CHESF seguiram o cronograma da subida das águas, acompanhando a inundação progressiva dos lugares. Durante todo o “primeiro ano da barragem”, quem morava mais “para cima” foi recebendo notícias trágicas do “pessoal de baixo”, dos lugares inundados e da extraordinária altura das águas: ––– Eu: Mas Nelito, como é que a CHESF convenceu o povo de que a água ia subir isso aí tudo? ––– Nelito: Ela convenceu o povo, porque o povo não acreditava, né? Mas sabe quando foi que o povo veio a acreditar? Porque ela não levantou a água de vez, eles primeiro fizeram a barragem, e o primeiro ano o pessoal, assim, de baixo, teve gente aí de Sento Sé pra baixo, pra Casa Nova, teve gente que perdeu as coisas, que achava que a água não Uma retirada insólita
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ia levantar, entendeu? O primeiro ano. E aí, quando ela foi levantando as águas, o povo sem sair de dentro de casa, que teve gente que já foi tirado de barco, porque não pôde tirar mais as coisas, porque era a água levantando e o povo dentro de casa achava que a água não ia levantar o primeiro ano. Aí, perderam as coisas de dentro de casa e tudo. Na casa, não tiraram as telhas, não tiraram nada, no primeiro ano. Depois que eles levantaram as águas o primeiro ano, depois o povo reconheceram que eles levantavam as águas mesmo, né? Foi quando o povo vieram reconhecer que eles levantavam, pelo primeiro ano que o pessoal tomaram prejuízo. Morria jumento afogado, morria gado, morria criação. O que era de trem que tava nos altos, morria tudo. O pessoal retirava um tanto, morria outro. [Grifos meus.] O “largo” [lago] atingiu sua cota máxima em julho de 1978. Nove meses antes, no dia 16 de outubro de 1977, uma grande procissão percorreu as ruas de Remanso. Carregada num andor, a imagem da santa padroeira, Nossa Senhora do Rosário, foi transferida para a nova igreja Matriz, recém-construída. Foi assim que decretaram a mudança oficial da cidade. Dessa data em diante, já desfigurada e com os dias contados, a antiga Remanso seguiu definhando numa gestação às avessas, até desaparecer sob as águas. Ironicamente, apenas duas caixas-d’água ficaram de fora, e ainda hoje, decaídas e imponentes, assinalam o lugar. Como vimos, Remanso era o centro urbano de referência dos camponeses de Itapera e de seus vizinhos. Quando a imagem da santa padroeira foi transferida, a velha cidade perdeu seu símbolo maior. Mais do que isso, uma nova Remanso abrigava a padroeira: a imagem havia mudado de casa. Este foi o sinal derradeiro de que a CHESF estava, de fato, promovendo altas mudanças. Ao longo de todo o ano de 1977, os lugares mais “para cima”, como Itapera, foram recebendo notícias “lá de baixo”, de que o rio estava atingindo as marcas dos topógrafos, espalhadas pelos matos da caatinga. Foi somente com a subida efetiva do rio represado, no “primeiro ano da barragem”, que os camponeses“reconheceram”o poder da CHESF de “levantar as águas mesmo”, como um Moisés da técnica, só que invertido: ao invés de abrir passagem e salvar o povo, lançava sobre ele o próprio Dilúvio, e como um Noé imprevidente, deixava de lado a construção da arca. No entanto, além de “levantar o largo”, a CHESF teria também o poder de segurar as águas nos altos, definitivamente, impondo uma cheia sem vazante e uma retirada sem volta?
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b) Desconhecimento do velho rio: a velocidade surpreendente das águas, a retirada às pressas e a perda dos rebanhos “Mas o que acontece é que as cheias que o rio enchia sem ser pela barragem, ele ia enchendo era bem aos pouquinhos, entendeu?” Próximos ou afastados da barragem, inundados antes ou depois, os camponeses “não puderam agir com condições” e “tomaram prejuízos”. Mesmo em Itapera, que inundou no final de 1977, quando já estavam plenamente cientes do que vinha acontecendo com o “pessoal de baixo”, todos reclamam de perdas significativas, sobretudo dos rebanhos: ––– Nelito: Na época da barragem, eu perdi 8 vacas e 8 bezerros, 16 gado, assim vendo. Perdi quase uns 40 gado. Olhe, pra eu lhe encurtar, de 45 gado, eu fiquei com 3 gado. Agora é que tá rendendo um pouco. ––– Eu: E o Seu Domingos? ––– Nelito: O papai, ele tinha, parece, umas 130 cabeças. Sabe quantas ele ficou? Com 6! Criação, ele trouxe de lá 296 cabeça de criação [ovinos], na caderneta. Sabe com quanto ele ficou? Com 19! Animal [equinos] ele trouxe 18, e eu trouxe 16. E eu não fiquei com nenhum, e ele ficou com aquele cavalo. Porco não, porque a gente criava bastante. E no fim, o que a gente tinha, acabou tudo. [Grifos meus.] Sem exceção, todos os camponeses que entrevistei, em diferentes povoados da borda do lago, sempre mencionam a perda dos rebanhos durante a “retirada da barragem”, além de outros prejuízos.23 ––– Eu: O senhor trouxe seus animais lá de Boa Sorte? ––– Seu Américo: Eu perdi meu criatório na retirada [...]. [Seu Américo tem 50 anos. Morava no Sítio Boa Sorte, no interior da fazenda Sítio do Meio, no município de Remanso; com a barragem, mudou-se para Pimenteira, na borda do lago, também em Remanso. Grifos meus.] Invariavelmente, atribuem a perda dos rebanhos à rapidez da subida das águas. Todos relatam que “não dava tempo” de retirar os animais, “quando o rio ia enchendo, na época da barragem”: ––– Nelito: [...] eu cansei de estar retirando assim, que, às vezes, a gente tava retirando – nesse tempo a gente tinha uns animal, um gadinho aí –, e às vezes não dava tempo de tirar jumento, e a gente retirava o gado, e animal, e tudo, e ficasse cinco, seis jumento morto, afogado, animal, essas coisas. Uma retirada insólita
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––– Eu: Quando que aconteceu isso? ––– Nelito: Quando o rio ia enchendo, na época da barragem, quando eles tavam levantando as águas. Um dia mesmo, quando eles tavam levantando as águas, eu fui pegar uma besta nossa, e a besta tava num alto e se baldeou na água, dum alto, pra pegar uma lagoa que tinha por nome Sem-Sem. Eu nadei uma légua. Aí, quando eu vi que não dava para eu pegar, eu cansei, e eu voltei. Aí, vinha uma turma num barco. Aí, me pegaram e me levaram. Aí, no outro dia, viemos atrás. Apois, não deu pra ela alcançar o seco, e ela morreu afogada. Porque não tinha seco pra ela pegar pé. E assim perdeu muita coisa. A CHESF deu muito prejuízo no povo, muito prejuízo mesmo, incomparável. E até hoje o pessoal ainda não puderam se equilibrar. [...] eu conheci gente de ter 60, 70 gado, e não ter nenhuma cabeça aqui nessa região. [Grifos meus.] Pode parecer estranho que os camponeses “de cima” tenham insistido em permanecer nos povoados até o último instante, mesmo “reconhecendo” que a CHESF “levantava o largo” de fato. Se já acreditavam no poder da CHESF de “inundar os altos”, por que não saíram antes da “enchente de baixo” chegar? Se ainda havia tempo, por que esperaram até as aguas atingirem suas casas? Somente à luz do modelo da retirada essa aparente imprevidência adquire algum sentido. Quando souberam que o rio estava subindo, e muito, os camponeses de Itapera procederam da mesma forma como faziam diante da expectativa de uma enchente alta. O próprio emprego dos termos “retirar” e “cheia”, no contexto da formação do lago, é um indício significativo de que agiram conforme aquele modelo. Como vimos no Capítulo I, o deslocamento provocado pela “cheia da barragem” é sempre descrito como uma “retirada” (“da barragem”). O fator imediato que mais contribuiu para a catástrofe da inundação dos povoados – os prejuízos “desnecessários” impostos aos camponeses –, não foi o desconhecimento ou o descrédito na formação do lago, e sim a sua rapidez. Nesse momento, mais do que a subida das águas, foi sua velocidade que surpreendeu a todos, porque não era compatível com o ritmo dos procedimentos tradicionais de retirada. “Era uma coisa incrível! Que eles não podiam ter levantado o largo desse jeito! Eles podiam ter levantado ele, mas aos poucos também, pro pessoal ter as condições de ir tirando as coisas. Mas não, mas na hora de levantar, foi ligeiro.”
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O modo como avaliaram e procederam diante da enchente enviada pela CHESF evidencia que o modelo da retirada estava em ação. Mesmo sabendo que a “cheia da barragem” estava subindo o rio (e não descendo, como seria o normal), vindo em sua direção, os camponeses de Itapera só deixaram o povoado com a água na porta de casa, porque era exatamente assim que faziam no passado. Só retiravam no último momento, quando o rio “tomava conta” do lugar e “botava pra fora”. Como vimos no Capítulo I, a retirada era evitada a todo custo, porque implicava um grande ônus. Era preciso esvaziar as casas, encher os barcos e carregar os “trens” para um local distante, construir barracas para se abrigar, recolher o gado da vazante, etc. A opção de retirar já dentro d’água baseava-se num conhecimento preciso dos movimentos do rio, que não apenas subia lentamente mas também podia descer de uma hora para outra. Não havia como prever a duração de uma enchente, se “ligeira” ou “demorosa”, e assim eles aguardavam o máximo de tempo possível: ––– Dona Santa: [...] a gente ficava com medo de retirar logo, e a vazante chegasse. E era uma dificuldade grande. A gente ficava contando ali. Passava era semana, ali. Vez que a enchente não ficava, ou ficava a enchente tão pouquinho! A gente passava era dia ali esperando que chegasse a vazante! A vez que não chegava, a gente tinha que arretirar. Vez que a enchente não vazava, era demorosa, a gente pegava as bagagens e mudava para o Tabuleiro. Era um pega danado, fazendo barraquinha [...]. ––– Eu: Quer dizer que vocês nunca sabiam se a enchente ia subir mais? Não dava para saber? ––– Dona Santa: Não, porque tinha vez que, quando a pessoa arretirava, com poucos dias a vazante chegava. Aí, era muita dificuldade pra gente voltar. E assim a gente ficava ali, aguentando aquele barro nas casas [...]. [Dona Santa e o marido, Manoel maiano, moravam na Itapera velha; com a formação do lago, mudaram-se para a Itapera nova. Grifos meus.] Aguentar a cheia, mesmo “rodeados de água”, não era o maior dos problemas. Evitava-se, sim, a todo custo, a trabalhosa retirada. Como o rio subia devagar, ficavam ali “contando”, na expectativa da vazante, avaliando com cuidado se “a enchente ficava” ou não, fazendo um cálculo preciso. Era sempre possível recuar com o gado em direção à caatinga, perseguindo os altos e acompanhando a beira do rio, cada dia um pouco mais para trás, protegendo-os das águas. A retirada ocorria a um só Uma retirada insólita
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tempo para os camponeses e seus rebanhos: quando as casas alagavam e o rio continuava subindo. Só então rumavam para os locais de retiro, “num pega danado”, levando junto com eles todo o gado da vazante. Vê-se, portanto, que não foi por imprevidência ou desatino que os camponeses “de cima” não saíram de casa antes da enchente da barragem chegar. O procedimento habitual, e mais valorizado, era o de “aguentar firme”, pois a retirada era o último recurso acionado. Como vimos no Capítulo I, na velha Itapera, o local de moradia era símbolo de status. A superposição da rua da Frente com a rua das Flores resultava no lugar de maior prestígio no interior do povoado, por conciliar o morar junto à água com melhores condições para “enfrentar” uma enchente alta. Esse embate com o rio, resistindo bravamente às suas investidas, era motivo de orgulho; retirar sem precisão era tolice e vergonha. Todos fazem questão de dizer que foram “os últimos” a retirar: “Eu, pra lhe dizer, que eu fui o derradeiro que, eu e o senhor Henrique, que fui o derradeiro que retirei! Retiremo os trens. Eu mudei no dia 17 de dezembro [de 1977].” (Nelito). ––– Seu Afro: Mas você sabe: quem fez as marcação foi os engenheiros. ––– Esposa de Seu Afro: Mas eles diziam, mas a gente não acreditava, né? Ainda dizia assim: “Arretire logo! Vocês arretirem senão vocês vão morrer afogado!” A gente ainda dizia que era mentira. Eu mesmo fui dos que saiu do meu lugar já todo mundo arretirado, eu e uma nora minha. ––– Seu Afro: Quando nós saímos de lá já tava tudo rodeado de água. [Seu Afro tem 82 anos. Ele e a esposa moravam em Mundo Novo, município de Sento Sé; com a formação do lago, mudaram-se para a nova cidade de Sento Sé. Grifos meus.] A retirada era sempre dentro d’água. Assim, de nada adiantava os técnicos recomendarem a saída precoce do povoado, ainda no seco. Por que tanta pressa? Como retirar antes da hora, se o tamanho da enchente era imprevisível? O ritmo lento do rio permitia que retirassem durante a cheia: isso eles sabiam melhor do que ninguém. Ao modelo da retirada há que se somar o fantasma da grilagem: o suposto interesse da CHESF pela beira. Os camponeses não deixariam suas casas e terras abandonadas, antes da chegada das águas, entregando-as “de bandeja”. Não eram imprevidentes, nem loucos, nem ingênuos. Tal como o medo de que estivessem às voltas com o “conto da grilagem” – uma “mentira” que usa a imagem da cheia para esconder
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uma manobra política de expropriação –, havia o medo do “blefe” do rio, de que ele ocupasse as terras e recuasse logo depois, imediatamente após a retirada. “A gente ficava com medo de retirar logo”, ou seja, de retirar precipitada e inutilmente. Sob a ótica do modelo da retirada, vejamos, então, o que ocorreu quando os povoados foram inundados pelas águas represadas, começando pela perda dos rebanhos: ––– Eu: Antes, quando havia aquelas cheias, que tinha até que fazer a retirada, não acontecia de perder gado também? ––– Nelito: Acontecia não. ––– Eu: De perder casa, nada? ––– Nelito: Não, porque lá, quando tinha aquelas cheias, só teve uma cheia que lá o rio inundou os altos, foi só na enchente de 49. Mas o que acontece é que as cheias que o rio enchia sem ser pela barragem, ele ia enchendo era bem aos pouquinhos, entendeu? Ele enchia era uns centímetros, era um pouco, e tinha condições do pessoal tirar todo o criatório que tinha nos altos, e aí não tinha esse prejuízo. ––– Eu: O lago subiu muito rápido, então? ––– Nelito: Mas o lago subiu de maneira que, se ele tava aqui, ó, ele subia era assim, ó, chega a poeira a levantar [ele faz um movimento de subida rápida]. Você não vê como esse pau vai fazendo aqui assim, ó, diretamente? A água ia assim, olhe. ––– Toinha (esposa de Nelito): Era rápido! Você não calcula! ––– Nelito: Era uma coisa incrível! Que eles não podiam ter levantado o largo desse jeito! Eles podiam ter levantado ele, mas aos poucos também, pro pessoal ter as condições de ir tirando as coisas. Mas não, mas na hora de levantar, foi ligeiro. [...] Aí, eu passei com duas carradas de trem [as coisas dele]. Foi com duas ou foi com uma? ––– Toinha: Foi com uma. Depois você voltou, e veio pegar a outra. ––– Nelito: A derradeira. Depois eu voltei pra pegar a outra. E depois foi que nós voltemos pra pegar os porcos. Na hora que eu passei pra pegar os porcos, a água ainda não ’tava nem perto. Quando nós fomos lá, que peguemos os porco, que voltemos, quase o carro que não passa mais. ––– Toinha: Não era rápido? ––– Nelito: Com uma distância de uma légua assim, subindo, de uma meia légua assim, subindo. Tinha um rapaz lá, no outro dia ele tirou uma carrada, e no outro dia ele não pode mais tirar. O rio, mais ou menos, ele subia mais ou menos, por dia, eu faço uma base que ele Uma retirada insólita
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subia uns 40 a 50 cm por dia. Entre o dia e de noite ele subia mais de metro. Assim logo no comecinho. Mas quando eles veio querer normalizar as águas pra parar mais um pouquinho, já tinha dado o prejuízo no povo. Porque eles tinham que ter feito isso antes, pro mode o pessoal agir com condições. Aquele pessoal – que às vezes tinha aquelas pessoas que ia cuidando os seus com tempo, ainda bem. Mas, às vezes, tinha umas que a gente não ia deixar de cuidar do da gente pra ir cuidar do dos outros. E aí, aqueles, coitados, tomaram um prejuízo que não foi fácil. E a água subiu rápido. [Grifos meus.] Na “cheia que o rio encheu pela barragem”, o que mais surpreendeu a todos foi o comportamento insólito do São Francisco. Os camponeses estavam preparados para enfrentar uma enchente alta, não um rio diferente, elevando-se com uma rapidez jamais vista, inconcebível. Não é de se estranhar, portanto, que todas as notícias sobre o momento da inundação dos povoados mencionem a mesma situação de pânico e desespero, com gente “fugindo das águas”, o resgate de pessoas ilhadas, até com helicópteros, gado morrendo afogado, casas caindo sobre os moradores, dentre outras tragédias: “Ponta d’Água e Malhada da Areia: o que aconteceu com esses povoados aconteceu, mais ou menos, com os outros. Assim registrou a Irmã Joana as cenas dramáticas daqueles dias contados pelo povo: ‘A água chegou a esses povoados antes que o povo se tivesse mudado. A água ia chegando, invadindo as casas e as famílias iam fugindo para os lugares mais altos. Carregavam tudo o que tinham, nas costas. As águas cercavam os povoados, chegando de todos os lados.’ ––– A casa de Alexandrina e as de outras sete famílias foram rodeadas pelas águas. O povo estava angustiado, vendo a água cada dia mais subindo. Fizeram sinal a um helicóptero da CHESF que voava em cima, pedindo socorro. O helicóptero desceu, e o piloto perguntou por que ainda estavam ali. Responderam ‘porque ninguém veio nos retirar’. A CHESF havia dado ordem que ninguém se mudasse para o novo povoado até que ela viesse buscá-los. O galpão de taipa, no povoado novo, ainda não estava pronto para recebê-los. ––– A casa de Altamira Bonfim da Cruz rachou-se toda, e a água ia entrando, enquanto a família estava ainda dentro. ––– Martim de Souza e a esposa Maria Lima de Souza disseram que não podiam dormir à noite, vendo a água chegar. A CHESF prometera
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ir buscá-los: ‘hoje é para ir e já não foi’. A água estava lambendo os sacos de provisões. ––– Deusdeudite Alves de Almeida e Filadélfia Maria de Almeida, com oito filhos: as águas cercaram as casas, tomaram as estradas e continuavam a subir. As famílias tomaram uma canoa do vizinho para atravessar a um lugar mais alto. Fazia um mês e meio que tinham pedido à CHESF uma canoa para mudar’.” (Depoimento da Irmã Joana, assistente social da Diocese de Juazeiro, citado durante a exposição do bispo diocesano de Juazeiro, D. José Rodrigues, na CPI das Enchentes, apud Congresso Nacional, 1982: 266).24 Em abril de 1978, camponeses de Marcos, povoado ribeirinho da margem direita do rio, entre Itapera e Remanso, enviam à CHESF um pedido de socorro para salvar seus rebanhos: 25 “Nós, o povo do povoado de Marcos, vimos, pela quarta vez, pedir ajuda, neste caso de emergência. O nosso gado (100 cabeças) está dentro d’água, e, se não conseguirmos tirá-lo, vai morrer dentro de poucos dias. Toda a Comunidade tem lutado durante estes dias, tirando 20 cabeças. Mas um boi e muitos jumentos e criação já morreram. Senhores, este gado é a nossa vida, e, se morrer, vai prejudicar muito a nossa vida. Até agora, não recebemos nenhuma ajuda, embora duas vezes representantes da Comunidade de Marcos tenham falado com os senhores e a terceira vez uns vinte homens pediram ajuda dos senhores na presença do Padre José (Vigário de Remanso). Pedimos respeitosamente que nos ajudem, pois a situação já é crítica”. (Carta enviada à CHESF por 48 lavradores de Marcos, datada de Remanso, 03/04/1978, apud Congresso Nacional, 1982: 266). Camponeses e fazendeiros são unânimes em afirmar que sempre foi possível “tirar as coisas com tempo”, numa enchente alta: ––– Eu: A cidade de Remanso ficou dentro d’água na enchente de 1926? ––– Seu Sinhozinho: Ficou dentro d’água. ––– Eu: E a enchente estragava tudo? ––– Seu Sinhozinho: Ah, não, aqui as casas naquela época, que eram feitas de taipa, então cortava à altura das águas, ficava tudo cortado, ficava só os enchimentos de fora. Agora, nunca se tinha, como eu vejo essas enchente lá do sul, hoje, num momento que o povo perde isso, perde aquilo, aquilo outro. Não, aqui ninguém perdia, aqui a gente tirava com tempo. Uma retirada insólita
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––– Eu: Dava tempo para saber? ––– Seu Sinhozinho: Ah, dava sim. O São Francisco não tinha essas enchentes assim, não. Começava enchendo um centímetro, dois, três, quatro, cinco; dez, vinte, trinta... ––– Eu: Mas dava para saber quando é que ia ter enchente alta? ––– Seu Sinhozinho: Ah, dava sim. Porque através do telégrafo a gente tinha as notícias lá de cima, de onde vinham as águas. Então, pelas cidades que iam sendo inundadas lá pra cima, a gente já sabia mais ou menos qual era a posição que ela ficava aqui embaixo. E daí, num sabe, a gente fugia pras partes mais altas. [Seu Sinhozinho tem 67 anos. Era um dos donos da fazenda Caroá, hoje sob as águas, onde criava gado e coletava cera de carnaúba. Além da sede da fazenda, também tinha uma casa em Remanso velho. Atualmente, mora na nova cidade de Remanso. Grifos meus.] Numa enchente alta, o rio sempre cobrava algum tributo, engolindo mandioca e carregando o barro das casas. Mas nada comparável ao que ocorreu durante o enchimento do lago. No passado, os prejuízos eram minimizados por um controle da subida das águas.26 O ritmo do rio era bem conhecido de todos. As águas subiam lentamente, e não do modo aberrante como ocorreu na “cheia da barragem”: estavam diante de um São Francisco irreconhecível. O resultado da subida das águas represadas foi o mesmo para todos os povoados, independentemente do momento em que foram atingidos. A diferença entre Santana do Sobrado (inundada primeiro, em fevereiro de 1977) e Itapera (inundada quase um ano depois) aponta para a coexistência de dois modos de interpretação e ação entre os camponeses: a retirada e o interesse da CHESF pela beira (sua suposta intenção grileira). Modos concorrentes e incompatíveis. Porém, na dúvida sobre qual seria o correto, somavam suas prescrições, convergindo para uma mesma conduta: esperar até o último momento, até a invasão do rio, até a expulsão de fato. A confirmação de que “as águas iam subir mesmo” apenas dirimiu a desconfiança diante do motivo alegado pela CHESF para a relocação. O fantasma da grilagem foi exorcizado (provisoriamente), excluída a possibilidade de má-fé ou mentira dos técnicos. Mas essa revelação em nada afetou o modelo da retirada. Os técnicos podiam estar certos quanto à chegada de uma enchente alta, podiam “levantar o largo” e “inundar os altos”, mas nada entendiam de retiradas, não sabiam como nem quando,
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eram precipitados, inexperientes, não conheciam o ritmo, o momento certo de arretirar. Assim, os camponeses “de baixo” foram surpreendidos duplamente pelo avanço do lago: deram-se conta do acerto das advertências da CHESF ao mesmo tempo que percebiam que era tarde demais para retirar. A tragédia caiu sobre eles inteira, de um só golpe. Nem bem se recuperavam do primeiro espanto – uma enchente de baixo, às avessas! –, perceberam a velocidade imprevisível do evento. A desgraça vinha a galope. Já os camponeses “de cima” receberam os fatos em dois golpes. As notícias da enchente da barragem correram rápido, assim como os boatos e informações que sempre recebiam sobre a cheia descendo das cabeceiras. Acompanharam o enchimento do lago com a mesma expectativa com que aguardavam uma enchente excepcional. Claro que sempre restava alguma dúvida quanto à sua magnitude e real alcance: onde vai parar? Na beira de que alto? Será que vem até aqui? Descartada a possibilidade do blefe e da grilagem, apegaram-se, seguros, ao modelo da retirada, tão conhecido e tantas vezes provado. Mas os resultados finais – a expropriação destrutiva de seus bens, recursos e colheitas – foram, sem dúvida, idênticos para todos. c) A descrença na irreversibilidade do lago e a localização dos novos povoados e roças em plena área da caatinga “O rio quando enche e vaza deixa a c’roa descoberta; vai um amor, fica outro, nunca vi coisa tão certa.”27 Em abril de 1978, muitos povoados “lá de cima”, como Andorinhas e Tombador, vizinhos de Itapera (Mapa VI), que haviam se mudado em dezembro de 1977 ou janeiro de 1978, estavam vivendo em condições precárias, morando na casa de outros, em barracões, galpões e até debaixo de árvores: “a) Em Retiro de Baixo: 10 famílias morando num galpão de taipa, cada família ocupando um pequeno quarto, enquanto 15 famílias moravam nas casas dos conhecidos; b) Em Retiro de Cima: 20 famílias morando num galpão, cada família ocupando um quarto; c) Em Andorinhas: 50% do povo não tinha casa construída, Uma retirada insólita
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morando nas casas dos outros, até 4 famílias numa casa de 2 quartos e uma sala; d) Em Tombador de Cima: 7 famílias morando num galpão de taipa. Cada família ocupa um quarto pequeno, algumas com 7 filhos; e) Em Piri: as famílias morando debaixo de árvores; f) Em Piçarrão: as famílias morando em barracões.” Depoimento da Irmã Joana, assistente social da Diocese de Juazeiro, op. cit., 1982, p. 266.28 Procurando responder às denúncias de que haviam deixado muitas pessoas desabrigadas, a diretora da Divisão de Relocação de Populações da CHESF29 lembrou de uma conversa “exemplar” que tivera com um “relocado”, logo após a sua mudança para o novo local de moradia, na borda do lago. Abrigado numa tenda, junto com outros moradores de seu povoado de origem, “o caboclo não havia construído uma nova casa, porque achava que o rio ia voltar como sempre para o lugar dele”. Assim, enquanto aguardava a vazante, ficava “assuntando” (avaliando a situação), pois sabia que “a CHESF não queria que a gente voltasse pra beira do rio”. O “caboclo” não acreditava na “permanência do lago”, e “por isso ficou em tenda, como outros também, porque achava que sua situação era transitória” (idem). Se esse relato não justifica a imprevidência da CHESF, pelo menos evidencia um aspecto fundamental da “enchente da barragem”, do ponto de vista dos camponeses: a descrença na irreversibilidade do lago. Se o rio subiu (ainda que de modo estranho), haveria de descer. O rio “enche e vaza”, “nunca vi coisa tão certa”. Não é isso que dizem as canções dos remeiros do São Francisco? Uma enchente alta não poderia durar para sempre. Eles contavam com o regresso: poder voltar para casa, como sempre faziam, e como fizeram até mesmo em 49, na mais alta e demorosa das enchentes, que levou quatro meses para “descobrir os altos”. Assim, muitos se comportaram como se estivessem provisoriamente instalados em novo lugar de retiro, passando o “tempo da invasão do rio”. Parecia-lhes absurda a ideia de construir residência permanente em local provisório, ainda mais “dentro da mata braba” da caatinga, quando o certo seria armar barracas nos retiros. Era este o procedimento habitual. Quando o rio regressava ao seu leito normal, as construções estavam todas lá, no lugar das casas, prontas para qualquer 200 A enchente que o rio encheu pela barragem
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reparo: “E o rio vinha, e serrava as paredes no meio, e voltava. Aí, eu botava barro e colava as paredes de novo.”30 A descrença na irreversibilidade do lago foi determinante na escolha dos novos locais de moradia (os núcleos de reassentamento) e trabalho (os lotes agrícolas). A única limitação imposta pela CHESF eram as marcações dos topógrafos, suas projeções quanto à futura borda do lago. Os camponeses tiveram que decidir antes da chegada das águas, pautando-se apenas por uma hipotética beira, que não passava de marcos afundados no chão seco da caatinga, numa área que mal conheciam, excetuando-se vaqueiros e caçadores. Em Itapera, optaram de imediato pelo Tabuleiro, o próprio local de retiro, vetado pela CHESF porque ficaria ilhado, como de fato ficou. O Ariá nem foi cogitado, porque era mais baixo, junto à lagoa do Saco, e ainda sob a influência da vazante. Decidiram, então, pela longínqua lagoa da Jurema, que seria alcançada pelo lago. Era o que a CHESF garantia. Afundada na caatinga, não fazia parte do território da Itapera velha e nem consta do Desenho velho (Mapa II). Os vaqueiros, como Nelito, que campeavam por toda a região, mato afora, sabiam que a Jurema era uma lagoa de chuva intermitente, inconstante e efêmera, procurada como local de “bebida” pelo gado selvagem. Os camponeses decidiram respeitando os marcos dos topógrafos, mas com o aval dos vaqueiros e uma única certeza: nos invernos mais chuvosos, sempre havia água na Jurema. Assim, pelo menos, teriam melhores condições para “passar o tempo da invasão do rio”. A ideia de que estavam se instalando em local provisório pode ser atestada pelo próprio nome que escolheram: nos primeiros anos, a nova Itapera era conhecida como “Jurema”, assim como os locais de retiro tinham nomes específicos, diferentes dos povoados. Em 1987, quando lá estive, eles ainda recebiam cartas endereçadas à Jurema (e não Itapera), enviadas por familiares que estavam em São Paulo, acumulando recursos, desde a formação do lago. O antigo nome só foi retomado quando “reconheceram” que não haveria mais regresso. Em 1979, passados dois anos à beira do “largo”, que insistia em sua cheia sem vazante, ocorreu uma enchente, já em relação à nova beira, que inundou alguns dos novos povoados ribeirinhos. Foi só então que a Jurema se impôs como residência definitiva, e o camponeses voltaram a usar o nome do velho lugar: Itapera. A responsável pelas equipes de relocação da CHESF também lembrou de um povoado que escolheu um local distante da futura borda do lago, bem mais recuado na caatinga. Para justificar tal opção, ela mesma Uma retirada insólita
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acionou a descrença na permanência do lago: os “caboclos” acreditavam que seria possível voltar para casa, depois da enchente.31 ––– Eu: Aí você veio escolher o lote aqui na caatinga? ––– Nelito: Aí eu vim escolher aqui. ––– Eu: E o lago já estava cheio? ––– Nelito: Ainda não, ’tava seco! ’Tava seco, não tinha água. O largo ainda tava lá ainda [...]. A escolha da localização dos “lotes agrícolas” também foi feita no seco da caatinga, antes da formação do lago. Ninguém sabia exatamente onde seria a sua beira, se é que, de fato, o rio alcançaria as marcações dos topógrafos. A CHESF deixou a escolha dos novos locais de moradia e de trabalho a critério exclusivo de camponeses que não tinham parâmetros para avaliar as implicações de suas escolhas. Primeiro, porque não acreditavam na irreversibilidade do lago, e contavam com o retorno, como de costume. Nessas condições, estariam apenas “tirando” roças de chuva na caatinga, nas imediações de um novo lugar de retiro. Segundo, porque a escolha dependia de uma beira do lago virtual, que os deixava totalmente à mercê dos técnicos: ––– Eu: Quem foi que escolheu quem ia ficar na beira do lago? ––– Seu Domingos: Aí, eu não sabia nem onde iam ficar as águas, né? Foi um negócio assim de sorte, né? ––– Eu: Foi antes do lago subir? ––– Seu Domingos: Foi antes. ––– Eu: Não sabia onde ia parar o lago? ––– Seu Domingos: Não sabia onde ia parar. Aqueles que ficaram mais cá para o alto, ficaram sem água, e os da frente, assim, o rio veio, veio perto da roça. [Grifos meus.] Como resultado dessa escolha às cegas, apenas 20% dos camponeses de Itapera receberam terras junto à água. De acordo com os dados oficiais, de um total de 186 lotes distribuídos pela CHESF, apenas 39 (21%) ficam na “borda do lago”, e 147 (79%) no “sequeiro”. Os “lotes de sequeiro” não têm contato com o lago e dependem das chuvas, sempre instáveis, para serem cultivados. No município de Sento Sé, de um total de 2.774 lotes distribuídos, apenas 817 (29%) estão na “borda”, e 1.957 (71%) no “sequeiro”.32 Os camponeses não tinham condições de avaliar a localização das novas roças, e tiveram que arcar com as consequências de sua escolha no escuro. Possuir uma terra junto à água revelou-se indispensável para a retomada do processo
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produtivo nos novos povoados da borda do lago.33 Todos os que receberam “lotes de sequeiro”, ou seja, a grande maioria (79% dos camponeses de Itapera), ficaram confinados à agricultura de chuvas, tornada impraticável devido à seca que assolou a região, entre 1979/80 e 1983/84. Os poucos que possuem lotes na borda (21%) passaram a explorar as pequenas faixas de terra úmida deixadas pelo lago em sua vazante, cultivando-as com feijão-de-arranca, milho, melancia, abóbora e mandioca. Comparada com a antiga beira do rio, com seus lameiros em ilhas, ilhotes e terra firme, a vazante do lago é muito menor e de qualidade infinitamente inferior, porque não “remonta” as terras. Além disso, “como solução de emergência, o assentamento na borda do lago não obedeceu sequer aos critérios de melhores áreas sugeridos pela ANCARBA”.34 Somente nos lotes de borda é possível praticar também uma agricultura irrigada, mas para isso é preciso possuir um motor de irrigação. Obtido com empréstimo bancário, o motor viabiliza a adoção de culturas comerciais, como a cebola, e a ampliação das áreas ocupadas com os cultivos tradicionais, fugindo da dependência estrita do regime de chuvas da caatinga. Em tais condições, a maior parte dos “lotes de sequeiro” foram abandonados. Concentrados na borda, os camponeses trabalham em seus próprios lotes ou em lotes de pessoas da Família. A “escolha” dos novos locais de moradia, pautada apenas nas marcações dos topógrafos, teve resultados ainda mais desastrosos. Em Iguarapé, no município de Remanso, a CHESF havia assegurado aos camponeses que o novo povoado ficaria na beira do lago. No entanto, a nova Iguarapé encontra-se hoje no meio da caatinga, a três quilômetros da borda do reservatório, enfrentando sérios problemas de abastecimento de água. d) Os grupos de retirada: a composição dos novos povoados e dos grupos de vizinhos de roças O modelo da retirada também nos ajuda a entender a composição dos novos povoados, especialmente os que aglutinaram mais de um lugar. Ao que tudo indica, quem retirava para o mesmo local, integrando o mesmo grupo de retirada, permaneceu junto na retirada da barragem (ou pelo menos tentou). Como não disponho de dados suficientes para demonstrar a abrangência desta hipótese, detenho-me aqui nos povoaUma retirada insólita
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dos de Mundo Novo, Carpina e Campinas, localizados na margem direita do rio São Francisco, no município de Sento Sé. Nas enchentes grandes, camponeses de Mundo Novo e Carpina retiravam juntos, dirigindo-se para cinco locais diferentes: três retiros (Lages velha, Lages nova e Tomba Surrão) e dois povoados “altos” da outra margem do rio, Barra da Cruz e Intãs, no município de Casa Nova, que raramente inundavam (Mapa VII, p. 258). Quem tinha gado (Famílias chefiadas por um criador forte) retirava apenas para as Lages velha, situada no interior de uma fazenda: “Nós mesmo era duns que arretirava pra cá pra fazenda, por causa da gente ter o gadinho da gente” (moradora de Mundo Novo). Nessa área, havia duas ilhas (do Fogo e da Barra da Cruz) e dois ilhotes (dos Bodes e do Tito), onde plantavam camponeses de povoados das duas margens do rio: de Barra da Cruz e Intãs (margem esquerda); de Mundo Novo, Carpina, Campinas e Malhada (margem direita). De acordo com Seu Ausébio, camponeses de Barra da Cruz (onde ele morava) e de Carpina, além de serem vizinhos de roça, ligavam-se por laços de parentesco e afinidade. Sua esposa era de Carpina, e os irmãos dela costumavam cruzar o rio, no tempo da desmancha, para fazer farinha junto com eles, em Barra da Cruz, para onde também retiravam. Integravam uma Família que aglutinava famílias dos dois povoados: botavam mandioca na mesma casa de farinha e permaneciam juntos nas retiradas. Nesse trecho do rio, havia Famílias cujo recorte ultrapassava os limites de um povoado, de um município (Casa Nova e Sento Sé) ou do próprio rio (de ambas as margens). Em Itapera, onde as áreas de cada povoado eram bem delimitadas (exceto no ilhote), não encontrei nenhuma Família com esse mesmo perfil. Como vimos no Capítulo III, somente nas rancharias ocorria a associação de Famílias de diferentes lugares, como Itapera e Oliveira. Os grupos de retirada eram formados por gente só de Itapera. A ocorrência de Famílias que agregavam famílias de mais um povoado parece ter uma relação direta com as condições de acesso à terra na área. Ao contrário do que ocorria em Itapera, na região de Barra da Cruz, Mundo Novo e Carpina havia fazendas de gado em ambas as margens do rio (em Casa Nova e em Sento Sé), e o acesso às roças de terra firme era mediatizado por fazendeiros, via relação de agregacia. Os grupos de retirada integrados por famílias de diferentes povoados poderiam explicar a composição dos núcleos de reassentamento que aglutinaram mais de um lugar. É claro que somente um trabalho de
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campo em tais povoados, levantando a composição de cada Família, indicaria com precisão a lógica dos reagrupamentos. Porém, com base nos dados já expostos, podemos levantar a hipótese de que o modelo da retirada orientou as escolhas de camponeses de Mundo Novo, Carpina e Campinas: a decisão de permanecerem juntos na retirada da barragem, do mesmo modo como faziam nas enchentes altas do passado, reunindo-se no mesmo lugar de retiro.35
Núcleo de reassentamento de Quixaba (1978)
Núcleo de reassentamento de Bazuá (1978)
Povoado de origem
Povoado de origem
Número de famílias
Número de famílias
Oliveira
41
Mundo Novo
Campinas
24
Carpina
48 3
Pau-a-Pique
16
Areia
2
Traíras
9
Campinas
Mundo Novo
9
Outros lugares
12
Nova Vista
8
Cercado
6
Total
66
Carpina Outros lugares Total
1
5 24 142
Fonte: “Controle de População” (CHESF, 1978). Documento arquivado no Departamento de Implantação de Reservatórios (consultado no escritório da CHESF em Recife, em julho de 1985).
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Destino das 83 famílias que saíram de Mundo Novo
Destino das 62 famílias que saíram de Campinas
Destino das 16 famílias que saíram de Carpina
Local/destino
Local/destino
Local/destino
Bazuá
n. famílias
Quixaba
5
8
Bazuá
1
Bazuá
3
Piri
6
PEC-SR
6
Piri
1
Montante/ Jusante
4
Montante/ Jusante
3
10
Quixaba
49
n. famílias
Quixaba Montante/ Jusante
41
n. famílias
Caatinga
7
Sento Sé
1
Sento Sé
2
Sento Sé
5
São Paulo
1
PEC-SR
1
PEC-SR
3
Destino ignorado
1
São Paulo
3
Fonte: “Controle de População” (CHESF, 1978). Nenhuma família de Mundo Novo, Carpina e Campinas optou por Barra da Cruz ou Intãs. No entanto, a opção pelo PEC-SR (3 famílias de Mundo Novo; 6 de Campinas; 1 de Carpina) poderia ser uma opção por esses dois povoados, pois sabemos que eles foram integralmente relocados no PEC-SR. No caso de Piri, é provável que formasse grupos de retirada com Mundo Novo, seu vizinho rio abaixo (Mapa VII, p. 258), a exemplo de Carpina (o que talvez explicasse as seis famílias de Mundo Novo que foram para Piri).
Como vimos no Capítulo III, a unidade social pertinente nessa região do Médio São Francisco é a Família, um agrupamento de famílias ligadas por laços de sangue e afinidade, com interesses e objetivos comuns, lideradas por um chefe. Se o povoado era uma referência espacial chave, no entanto, havia agrupamentos sociais que articulavam mais de um povoado. Em Itapera, era o que ocorria entre Famílias que se agrupavam nas rancharias; em Barra da Cruz, Mundo Novo e Carpina, no interior de cada Família. 91% das famílias cadastradas pela CHESF na Itapera velha retiraram para a Itapera nova (CHESF, 1978), indicando que o povoado manteve seu perfil social anterior. As Famílias foram as unidades operantes durante a retirada da barragem e também na retomada do processo produtivo no núcleo de reassentamento na borda do lago. O “povo de Domingos”, por exemplo, foi morar na mesma rua da Itapera nova, em casas vizinhas (à exceção de um filho). Quanto aos lotes agrícolas, a Família também foi a unidade pertinente. Após a mudança para o núcleo de Itapera, a CHESF
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determinou a organização de grupos de seis pessoas, de livre escolha, para receberem lotes agrícolas vizinhos e arame o suficiente para cercar os seis lotes juntos, segundo o princípio da economia de arame. Os camponeses procuraram compor seus grupos com “gente da Família”: ––– Eu: Foi o senhor que escolheu o seu grupo? ––– Seu Domingos: Foi. O meu grupo foi eu mais os meninos. O meu grupo foi só mesmo nós, da Família. O grupo de seis foi: a minha; três de filho, que faz quatro; uma com um cunhado: cinco. O meu cunhado, cinco. Quatro filhos e a minha: cinco. E o meu cunhado: seis. Dessa maneira. ––– Eu: Foram vocês que quiseram fazer um grupo de seis? ––– Seu Domingos: A gente queria assim: que cada qual cercasse a sua roça, né? E ela disse que não, que fosse grupo de seis. Aí, pra não meter outra gente no nosso grupo, né, nós mesmo só ficamos com a Família. (Grifos meus). O grupo de seis de Seu Domingos é integrado por dois filhos homens, uma filha viúva, um genro e um cunhado (viúvo). Como sua Família é mais extensa, Nelito, seu filho mais velho, faz parte de um grupo de apenas três (excepcionalmente), com um cunhado e um irmão, alocados numa “sobra de terra”. Lidando apenas com “famílias” (para a CHESF, trata-se da família nuclear) e estipulando um número arbitrário de membros para cada grupo, a CHESF impediu que todos os integrantes de uma Família numerosa tirassem lotes vizinhos, como desejavam. Em outras situações, Famílias com menos de seis integrantes foram obrigadas a formar grupos com “gente forasteira”, ou seja, que não eram de uma família da parentela: ––– Seu Brás: [...] cada quem que tinha o seu pessoal ia colocando ali, até chegar uma porção. Com o Domingos, foi com os filhos e genro – Domingos velho, lá. E cada quem que tinha os seus ia colocando naquela quadra. Eu quis colocar os meus, mas não deu pra colocar, entrei com esses forasteiros. [Seu Brás tem 60 anos. Morava na velha Itapera; com a formação do lago, mudou-se para a Itapera nova. Era maiano e criador forte de gado.] A retomada do processo produtivo na borda do lago foi em parte viabilizada com recursos obtidos através da venda da força de trabalho nas grandes cidades do Sudeste, principalmente São Paulo (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987). No momento de formar os grupos, muitos camponeses estavam fora do povoado, deixando esposa e filhos sob a Uma retirada insólita
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proteção da Família, com o chefe do grupo (como Seu Brás ou Seu Domingos) encarregado de representá-los junto à CHESF. No entanto, por não estarem presentes no momento de receber os lotes, foram sumariamente excluídos. Ao retornar ao povoado, contaram somente com o apoio da Família para ter acesso à terra. ––– Seu Brás: [...] quando foi o tempo de tirar o grupo, aí não aceitaram. O Bernaldir [seu filho] tava pra São Paulo, o Ceição [filho de um irmão de Seu Brás] também tinha viajado pra São Paulo [ambos da Família de Brás]. Não aceitaram. Disseram que eles ’tavam em São Paulo, não tinha lote pra eles não. ––– Eu: Mas eles iam voltar, não? ––– Seu Brás: Então! Eu falei pra eles! No dia que me chamaram para ir tirar o lote, eu cheguei lá e quis fazer. Eles disse que não dava: os que ’tavam em São Paulo não tinha lote pra eles de jeito nenhum. – “Mas por quê? Não são filho daqui?” – “Ah, mas ‘tão em São Paulo!” – “Mas volta!”. Dei um duro lá com eles, demandando, até que não deram. Durante todo o processo de relocação, a CHESF trabalhou apenas com “famílias”, cujo recorte estava muito distante das unidades produtivas efetivamente operantes na área. Para a CHESF, a população rural era composta por inúmeras famílias nucleares, e cada povoado, um somatório de famílias. Como vimos, a família nuclear era um agrupamento fraco em relação a outros agrupamentos mais fortes e operacionais: a Família (nas roças e no trato com o gado) e os grupos de Famílias (nas rancharias e nas casas de farinha; na relação com os fiscais da Prefeitura; em alguns grupos de retirada). Operando apenas com “famílias”, a CHESF individualizou o que não era individualizado, ignorando relações que ultrapassavam os limites da família nuclear ou do próprio povoado, e até mesmo de um município. Por desconhecer e desconsiderar a lógica dessa organização social, a CHESF privou inúmeros camponeses do acesso à terra, sobrecarregando ainda mais as Famílias, cujo patrimônio havia sido drasticamente reduzido com a formação do lago.36 e) O primeiro ano da barragem (1977) e a imprevidência da CHESF Como vimos, ao longo de todo o “primeiro ano da barragem”, os camponeses que moravam rio acima receberam notícias alarmantes da “enchente de baixo”, que vinha subindo, contracorrente, desde o local da represa, engolindo tudo e afundando os altos. A invasão da caatinga pelo 208 A enchente que o rio encheu pela barragem
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rio tornara-se um fato irrefutável; a inundação dos locais de moradia e trabalho, uma questão de tempo. Como a maior parte da população rural havia se recusado a deixar a beira do rio, a CHESF precisava desocupar a área às pressas, reassentando-os ali mesmo, no entorno do futuro lago, em núcleos rurais (povoados) ou apenas providenciando seu recuo na caatinga (moradores dispersos). A borda do lago como solução de emergência era uma verdadeira corrida contra o tempo. Em Itapera, é nesse momento, e ainda às voltas com uma hipotética beira, que negociam com a CHESF a localização do novo povoado e do loteamento agrícola, nas imediações da futura borda do lago. Enquanto aguardavam a chegada da enchente da barragem (que só chegou em dezembro) e a construção do novo lugar no meio da caatinga (que só ocorreu a partir da chegada das águas), além da entrega dos lotes (que só ocorreu em 1978, no tempo da seca), os camponeses passaram o ano inteiro de 1977 enfrentando um rio inusitado, atentos ao momento certo de retirar.37 Em Itapera, no primeiro ano da barragem, há uma ruptura no ciclo anual de atividades (p. 117). No tempo da cheia, entre dezembro de 1976 e março de 1977, o rio São Francisco encheu como de costume, mas não mais vazou “de março em diante”, como seria de se esperar. No início da seca, entre março e abril, sem o recuo das águas, não puderam plantar mandioca do rio nos lameiros da ilha e da terra firme, nem milho e feijão-de-arranca no ilhote da Veneza (entre maio e junho), como de costume. Em agosto, no auge da seca, quando todos os baixios já deveriam estar descobertos, somente as roças de chuva, nos altos da ilha da Itapera, ainda permaneciam fora d’água. O ilhote da Veneza havia desaparecido. Entre julho e setembro, ao invés de plantar nos lameiros do ilhote ou de pescar nas lagoas do Sem-Sem e do Saco (cobertas pelo rio), estavam fazendo telhas para as novas casas.38 Pelo menos até o mês de agosto, o “plano de reconstrução do povoado” ainda não havia sido definido, nem os lotes agrícolas haviam sido distribuídos. Em outubro, colheram toda a mandioca de chuva dos terrenos altos da ilha, pressionados pelo rio e também pela CHESF, que dizia que “em três semanas as casas de farinha do povoado seriam derrubadas”. “A CHESF tinha prometido, de início, dar aos moradores uma casa em nova Itapera, em troca da antiga. Em agosto de 1977 ela já tinha dado para trás nessa promessa, e queria dar aos relocantes apenas uma ajuda financeira de sete mil cruzeiros, com a qual as próprias Uma retirada insólita
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famílias deveriam construir as suas casas. Naquele tempo, o custo mínimo de uma casa de alvenaria, simples, com três quartos e cozinha, era de 24 mil cruzeiros. E contra passadas afirmativas de que a CHESF mandaria passar o trator nas terras que seriam distribuídas aos lavradores, agora se dizia que eles próprios deveriam fazer isso. Pelo que a CHESF lhes prometeu 1.500 cruzeiros, cerca de 200 marcos alemães. Estava claro para todos que essa quantia não seria suficiente para arar quatro ou cinco hectares. E também era previsível que uma família sozinha não poderia realizar esse trabalho antes da chegada das chuvas.” (Tallowitz, 1979: 34-5). Ao longo de 1977, os camponeses de Itapera não puderam plantar em suas roças, “porque a água represada tinha ‘engolido tudo’, como contavam.” (idem). O ciclo de atividades agrícolas encontrava-se interrompido. “A isso some-se a insegurança de poderem começar com o cultivo da terra em tempo: [em Itapera] na época da minha permanência [entre agosto e outubro], as tarefas [lotes] ainda não tinham sido distribuídas.” (ibidem). Não podiam plantar em suas velhas roças, nem nas terras prometidas pela CHESF. Não tinham recebido os lotes agrícolas, nem sabiam como seria possível limpar e arar o solo seco e arenoso da caatinga, coberto de plantas rasteiras e árvores de raízes profundas, antes das chuvas chegarem, “de novembro em diante”. Acertadas em 1976, apesar da insatisfação generalizada com os valores recebidos, as indenizações compulsórias convertiam-se em “sustento”, correndo o risco de se extinguirem.39 Segundo Tallowitz, o pagamento antecipado das indenizações (1976) funcionou como estratégia da CHESF para esvaziar a área de inundação: “[...] a falta do elo de ligação temporal entre o pagamento da indenização e o relocamento (inclusive a distribuição das novas terras) desemboca na insegurança da população, que se encontrava, pela primeira vez na vida, na situação de ter uma soma relativamente alta de dinheiro vivo nas mãos – e não sabem onde e de quê viver nos próximos meses, acabando talvez por se decidirem espontaneamente pela emigração, procurando melhorar de sorte em outros lugares. Na minha opinião, deve-se reconhecer na falta dessa coordenação temporal uma especulação da CHESF nesse sentido.” (Tallowitz, op. cit., p. 39). Mesmo assim, a maioria da população rural insistiu em permanecer na beira do rio (62%). Impossibilitados de pescar nas lagoas ou de “mexer” com as roças, os camponeses de Itapera contavam apenas com a pesca
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no rio, que os ajudou até novembro de 1977, quando foi proibida pela CHESF, porque era o tempo da desova (de outubro a fevereiro), e os peixes estavam aprisionados no reservatório como num grande viveiro. Com o orçamento doméstico subvertido, e totalmente abalado, a proibição da pesca (e a posterior queima de suas redes de caroá) parecia uma imposição descabida, sobretudo para quem sempre havia pescado livremente no rio São Franscico, sem nenhuma ameaça à reprodução das espécies.40 Confinados entre o avanço inclemente das águas e os recuos sucessivos da CHESF em seus planos indefinidos de reassentamento, proibições e promessas revistas, os camponeses permaneceram no povoado até as águas cercarem as casas. Como vimos, não foi por insensatez ou mera imprudência, mas porque estavam habituados a “aguentar firme”, resistindo bravamente às investidas do rio em suas enchentes grandes. A retirada era o último recurso acionado; o enfrentamento com o rio, fonte de prestígio e motivo de orgulho. Só deixavam as casas depois que o rio “tomava conta”, e então seguiam embarcados para os locais de retiro, carregando seus pertences dentro dos barcos. Como fariam isso no seco, antes da chegada das águas? Deixar a beira do rio e seguir para a Jurema, no meio da caatinga, no auge da seca? E o gado da vazante? Não fazia sentido retirá-lo da área do rio para jogá-lo “dentro da mata braba”, nas pedreiras da caatinga, onde não estava nem um pouco habituado, como vimos no Capítulo II. Inseridos num contexto inédito, e reforçados pela imprevidência da CHESF, os procedimentos habituais das retiradas foram implementados de um modo trágico: os camponeses acabaram retirando às pressas, sem condições, afinando o descompasso com o modelo de suas retiradas tradicionais.
4. Precisão no sertão: a cheia excepcional da penúria generalizada “O problema da barragem Já deixou a decisão Deixou cobra venenosa Precisão no sertão A barragem de Sobradinho Foi mesmo que o laço do cão”41 Uma retirada insólita
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Itapera foi inundada no final de 1977. Só então, pressionados pelas águas, os camponeses recuaram 18 km caatinga adentro, na direção da Baixa da Queimada Grande (Mapas I e II), fazendo uma retirada às pressas, na qual “não puderam agir com condições”, perdendo boa parte dos rebanhos. Enfrentaram um rio irreconhecível, que subia rápido, em ritmo incompatível com as retiradas tradicionais. Quando chegaram na lagoa da Jurema, as casas não estavam prontas. Ficaram no meio da caatinga, desabrigados e sem condições de produzir. Os lotes agrícolas só foram entregues depois das chuvas, e eles ainda precisavam derrubar e destocar o mato brabo da caatinga, arar e cercar as novas roças. “A CHESF pegou nóis e jogou pr’aqui, e deixou aqui, igualmente o gado que tava aqui, brabo, no mato.” Os camponeses haviam escolhido a localização dos lotes em 1977, muito antes da chegada das águas represadas, mas só vieram a recebê-los em 1978, no tempo da seca. De acordo com um funcionário da CHESF que trabalhou na “operação de reassentamento” no município de Sento Sé, em 1977-78, cadastrando os camponeses que solicitavam auxílio para a construção das novas casas e transporte de seus pertences para o novo povoado, “o núcleo de Itapera começou a ser construído no final de 1977”, concomitantemente com a inundação do velho povoado: “os moradores de Itapera e dos povoados vizinhos passaram um ano e seis meses sem produzir, porque o loteamento foi feito depois da mudança”.42 Assim, somente no inverno seguinte (fins de 1978/início de 1979), e apenas em alguns lotes, conseguiram plantar mandioca de chuva, beneficiados por um inverno excepcionalmente chuvoso. A partir do ano seguinte, no entanto, enfrentaram cinco anos de seca (1980 a 1984), que tornou impraticável a agricultura de chuvas em toda a borda do lago: ––– Seu Domingos: Quando nós chegamos aqui, entrou a secona aí, e a gente sem ter o pasto pro mode dar o gado. As roças, que a gente veio num ano, foi receber as roças no outro ano. Agora, pra depois cercar a roça, pro mode plantar um pasto, plantar uma coisa... As cercas eram fundamentais para proteger os cultivos dos rebanhos que haviam sobrevivido à retirada. Soltos em seu novo habitat, os animais não se adaptaram às condições ambientais da caatinga. Privados das lagoas e pastagens da vazante, muitos morreram de fome. Não havia
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mandioca nem pastagens para alimentá-los. Enquanto não fossem cercadas, as roças eram um alvo certo para os animais famintos: ––– Nelito: Quando o largo encheu, as nossas roças lá acabou. Eles não deram o direito de nós cercar as roças antes de nós vim, nós viemos cercar depois aqui. Aí, jogou aí, dentro da mata braba. Aí, pronto! “Jogados” na caatinga “igualmente o gado brabo”, os camponeses de Itapera viram-se às voltas com o preparo e cercamento de suas novas roças (basicamente os “lotes de borda”) e com a obtenção de recursos para sobreviver. Recorreram ao consumo doméstico da “criação” (cabras e ovelhas), à pesca no lago, que foi abundante logo após o fechamento das comportas, e à venda do que havia restado dos rebanhos. Muitos donos de lotes de sequeiro acabaram vendendo também os rolos de arame fornecidos pela CHESF para o cercamento dos lotes agrícolas. Com a seca, não podiam cultivá-los, e assim não fazia sentido cercá-los. Alguns camponeses acabaram migrando temporariamente para as grandes cidades do sudeste do país, sobretudo São Paulo, onde trabalharam na construção civil ou na indústria metalúrgica. Assim conseguiram acumular recursos para a retomada do processo produtivo na nova Itapera. Essa foi uma estratégia articulada no interior de cada Família, em sua luta para assegurar a manutenção de suas famílias, no primeiro ano da barragem ou durante a instalação no novo lugar.43 O enchimento do lago e a mudança para os novos povoados inaugurou um longo período coletivo de escassez, de “precisão no sertão”. Os camponeses ficaram “sem condições”, numa “situação muito precária”, obrigados a comprar os alimentos que sempre produziram, como farinha e feijão.44 Os mantimentos “trazidos de casa” (da velha Itapera) já haviam acabado, e as roças não estavam prontas ou não conseguiam suprir o consumo doméstico. ––– Seu João Grande: Todo mundo tinha a sua vaca pra comer seu leite, tinha sua criação pro mode matar em caso de necessidade. Feijão, ninguém comprava. Sobre agricultura, ninguém se preocupava, né? E então, depois dessa mudança, tudo se acabou: acabou a criação, acabou a alimentação. Então, a gente se acha aqui numa situação muito precária. [...] Tivemos muito gado, muita criação, e com essa mudança aí, pronto! Aí, acabou com tudo, a gente ficou sem condições. [Seu João Grande tem 65 anos. Morou em Itapera até a idade de 30 anos, quando se mudou para Aldeia, junto com a esposa e filhos. Com a formação do lago, foram para a Itapera nova. Grifos meus.] Uma retirada insólita
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Ao contrário das enchentes tradicionais do rio São Francisco, associadas a um tempo de abundância e excesso, com fartas colheitas de peixes e plantas, a enchente da barragem iniciou um período de perdas, de fome e destruição. No passado, assim que o rio retornava ao seu leito normal, também os camponeses voltavam do retiro, reiniciando a vida no povoado, reconstruindo casas, ampliando suas redes de pesca e suas lavouras. Apesar de todo o trabalho excepcional, e de algum desperdício, podiam contar com todas as vantagens de uma enchente alta. Com a desmancha da mandioca do rio e da mandioca de chuva, havia muita farinha “depositada”; os lameiros aumentavam, mais férteis e produtivos; as lagoas transbordavam de peixes. A vida social ficava mais intensa, circulava mais gente e mais dinheiro, havia mais festas e diversão. As enchentes altas do passado abriam um período de fartura e abastança: ciclos excepcionais de abundância generalizada. A enchente da barragem, ao contrário, invertendo o curso do rio, afundou-os num tempo de miséria e desolação: ciclo excepcional de penúria generalizada.
5. Mediação cultural e política A descrença na formação do lago, na inusitada enchente anunciada pelos técnicos do Estado, não é um caso único e isolado, restrito aos camponeses de Sobradinho. Em vários estudos sobre a construção de grandes barragens e seus efeitos socioculturais, autores como Colson (1971) e Ackermann (1973), que trabalharam com outros grupos sociais e com perspectivas teóricas diversas, também observaram o descrédito na subida das águas noticiada pelos técnicos, aliado à mesma convicção generalizada de que eles, na verdade, cobiçavam suas terras45 – aquela suspeita “intenção grileira” do Estado, como vimos anteriormente. “Em 1958, os Tonga do distrito de Gwembe [na Rodésia], da chefia Chipepo, desafiaram a ordem governamental de deixar suas casas no vale do rio Zambezi, que seria brevemente inundado pela barragem hidroelétrica de Kariba. Em sua maioria, os Tonga não acreditavam que a barragem pudesse criar um vasto lago. Eles pensavam que estavam sendo forçados a mudar para deixar a região para os europeus.” (Colson, 1971: 23. Grifos meus). No entanto, ainda que documentem a descrença no evento anunciado, nenhum dos autores procura entender o seu significado. Como 214 A enchente que o rio encheu pela barragem
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vimos, este é o problema central, que demanda pesquisa e análise: a descrença na subida das águas incide de modo imprevisto e decisivo no rumo dos acontecimentos. Não é, portanto, algo que possa ser desconsiderado, esquecido como mero detalhe etnográfico, idiossincrasia nativa. Por outro lado, os autores que mencionam os equívocos gerados pela “fraca comunicação entre técnicos e relocados”, como Scudder, Takes e Fahim, tratam da questão como se fosse um problema meramente pedagógico, que seria resolvido através do aprimoramento das técnicas de trabalho com a “população atingida”: “[...] é recomendável aproveitar ao máximo a oportunidade proporcionada pela realização do censo [sobre os futuros relocados] para fornecer às pessoas o máximo de informações possíveis sobre a barragem e suas consequências inevitáveis. Isto é da máxima importância: de fato, há numerosos exemplos indicando que as pessoas frequentemente não podem acreditar que serão desalojadas e se recusam a deixar a área até sua inundação. Filmes e fotografias de barragens construídas em outros locais podem ajudar a convencê-los.” (Takes, 1973: 722). Não se trata de uma questão pedagógica, mas de um problema cultural, de comunicação entre ordens culturais distintas, que atribuem significados diversos a um mesmo acontecimento. Em Sobradinho, ocorreu um episódio exemplar, que ilustra muito bem a “eficácia pedagógica” de equipes técnicas providas de filmes e fotografias. Encarregadas de convencer a população rural a optar pelo Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, as equipes sociais da CHESF e da ANCARBA prepararam uma série de slides do local do Projeto e dos produtos de suas terras. O episódio foi mencionado pela diretora da Divisão de Relocação de Populações da CHESF.46 Reuniram camponeses de um povoado no salão da escola local para projetar slides da última safra em Serra do Ramalho, com imagens de sacos de feijão, abóboras e melancias ali produzidas. No meio da exposição, ergueu-se um camponês, indignado: – “Quero ver qual é o lugar que produz uma melancia desse tamanho!” A responsável pelas equipes sociais da CHESF, desconcertada, findou achando muita graça na reação do “caboclo”: projetadas na parede, a uma certa distância, as abóboras e melancias pareciam imensas, com o tamanho de uma mesa. Novamente aqui fica evidente o descompasso cultural entre técnicos e camponeses, e as acusações mútuas não escondem o desentendimento: à “ignorância” do camponês corresponde a “má-fé” do técnico.47 Uma retirada insólita
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Além de ser um problema de ordem cultural, a comunicação entre camponeses e técnicos é um problema político. Na região da barragem de Itaparica, onde a CHESF também promoveu um processo de relocação da população ribeirinha, foram muito eficazes as informações veiculadas pelo movimento sindical de trabalhadores rurais sobre a experiência de Sobradinho, que serviu como um exemplo a não ser seguido.48 Organizados em sindicatos, os camponeses de Itaparica exerceram forte pressão sobre a CHESF pela definição de um plano de reassentamento (Pandolfi, 1986), lutando contra a repetição daquela desastrosa “solução de emergência”. Todo o processo de esvaziamento da área de inundação e reassentamento da população desalojada em Sobradinho (1972-78) ocorreu numa conjuntura política adversa a movimentos reivindicatórios. Num governo militar autoritário, a região do reservatório foi decretada Área de Segurança Nacional. Foi somente após a formação do lago, e já instalados nos núcleos rurais, que os camponeses começaram a se organizar para enfrentar o Estado com demandas coletivas, exigindo reparações dos “prejuízos da barragem”, sobretudo a perda dos rebanhos na retirada, e a reavaliação das indenizações recebidas por suas casas e roças. A partir de 1977, a Diocese de Juazeiro e a organização sindical (FETAPE) desenvolveram um trabalho político junto aos camponeses reassentados na borda do lago.49 “Há seis, há oito anos atrás, nós não sabia o que era sindicato, nós não sabia o que era INPS. Essas comunidades [Associações de Moradores] foi um ajudo da Diocese.” (Nelito vaqueiro). Em campanha pelas eleições de novembro de 1978, partidos e grupos políticos também entraram na área. Em Sobradinho não houve nenhum intermediário político que pudesse traduzir aqueles dois códigos mutuamente ininteligíveis. Os camponeses não tinham parâmetros nem memória para avaliar as implicações do processo a que estavam sendo submetidos pela força do Estado.
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Destino das 11.853 famílias atingidas pelo reservatório de Sobradinho e reassentadas pela CHESF (cf. Anexo I)
Total do Reservatório, ou seja, 8.619 famílias que saíram da Área Rural + 3.234 da Área Urbana: 70% permaneceu na BORDA DO LAGO (8.283 famílias): 3.851 famílias foram para as “Novas cidades” de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado; 2.655 para os “Núcleos de reassentamento”, os quais reproduziram integralmente antigos povoados ribeirinhos ou aglutinaram mais de um: 19 em Sento Sé, 4 em Casa Nova, 2 em Remanso (Anexo II); 1.777 ficaram na “Caatinga” (famílias que não moravam na beira do rio, mas que foram atingidas pelo lago, cujo destino foi administrado pela CHESF). 19% optou pela SOLUÇÃO PRÓPRIA (2.282 famílias): 1.385 famílias foram para “Áreas vizinhas” (cidades e povoados a montante ou a jusante da barragem), com recursos fornecidos pela CHESF; 897 para “Outras áreas” (como São Paulo ou Belo Horizonte). 9% (1.026 famílias) foi para o PEC-SR; 2% (262 famílias) com destino “Falecido ou Ignorado”.
Destino das 8.619 famílias que saíram da Área Rural (cf. Anexo I) 62% permaneceu na BORDA DO LAGO (5.378 famílias): 2.653 famílias foram para os “Núcleos de reassentamento” (49% das 5.378); 1.751 para a “Caatinga” (33% das 5.378); 974 para as “Novas cidades” de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado (18% das 5.378). 24% optou pela SOLUÇÃO PRÓPRIA (2.047 famílias): 1.292 famílias foram para “Áreas vizinhas”; 755 para “Outras áreas”. 12% (1.013 famílias) foi para o PEC-SR; 2% (181 famílias) com destino “Falecido ou Ignorado”.
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1. Estrofe do “Aboio da barragem”, tirado pelo vaqueiro Nelito. Registrado em Itapera, agosto de 1985. 2. Estrofe do romance “O Rabicho da Geralda”, coletado em Casa Nova, 14/11/1949 (Souza, 1980: 95). 3. [na caatinga] “Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.” (Cunha, 1979: 165-6). 4. A faveleira (Cnidoscolus phyllacanthus; sin. bot. Jatropha phyllacantha) é uma árvore “espinhenta, lactescente e com pelos urticantes, de 4-8 m de altura, dotada de copa alongada ou arredondada e rala (Foto abaixo). Tronco curto e ramificado desde a base, mais ou menos cilíndrico, com casca fina, lenticelada e quase lisa, de 20-35 cm de diâmetro. Folhas alternas, simples, membranáceas, sinuosa, de bordos profundamente lobados e terminados em pequenos espinhos, com pelos urticantes de até 1 cm, glabras em ambas as faces, brilhantes, concolores, de 8-16 cm, sobre pecíolos igualmente espinhentos de 1-2 cm. Inflorescências em cimeiras axilares, com flores unissexuais de cor branca. Fruto cápsula tricoca, deiscente, recoberta por pelos urticantes, com 3 sementes. […] suas folhas e ramos novos são considerados de valor forrageiro. As sementes fornecem óleo comestível, porém ainda sem aplicação commercial. Floresce entre agosto e dezembro; frutos maduros entre dezembro e fevereiro. Ocorrência: Estados do Nordeste brasileiro até o norte de Minas Gerais, na caatinga. É particularmente frequente no Vale do rio São Francisco.” (Lorenzi, 1992: 92).
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5. À listagem de Silva, Pierson (1972a: 170) acrescenta outras árvores características da caatinga, como o juazeiro (Zizyphus joazeiro), a jurema (Mimosa hostilis), a quixabeira (Bromelia sertorum), o pau-pereiro (Geissospermum vellosii), o mulungu (Erythrina velutina), a macambira (Bromelia laciniosa) e a palmeira ouricuri (Cocus coronata), além dos cactos quipá (Opuntia inamoena), palmatória (Opuntia monacantha) e icó (Capparis ico). 6. A árvore favela da caatinga ficou conhecida pelos morros com habitações improvisadas que adotaram o seu nome, inicialmente, o “Monte da Favela”, ao sul do arraial de Canudos (BA), acolhendo canhões e soldados em campanha, e o próprio Euclides da Cunha, redigindo sua caderneta de campo (o diário da guerra), abrigado sob uma tenda; logo depois, o morro da Providência, no centro do Rio de Janeiro, onde aqueles mesmos soldados também se instalaram. A partir de então, como sabemos, o nome “favela” estendeu-se aos demais morros cariocas, igualmente ocupados com barracos e casebres. Associada aos soldados que destruíram o sertão de Canudos, a favela entra em cena novamente como signo de um engenho da cidade, que destruiu o sertão de Sobradinho. Teria o Conselheiro antecipado esse trágico destino em suas visões proféticas? 7. Euclides da Cunha (1979: 115) reproduz os dizeres de profecias encontradas no arraial de Canudos (anotadas em pequenos cadernos), que até hoje nos assombram: “Prenunciavamse anos sucessivos de desgraças: ‘...Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão’.” (Grifos meus). 8. Depoimento da diretora da Divisão de Relocação de Populações da CHESF (Recife, junho de 1985, op. cit.). 9. Como sabemos, Kathrein Tallowitz (a Catarina) fez pesquisa de campo em Itapera, entre agosto e outubro de 1977, um pouco antes na inundação do povoado. 10. Seu Zé Chico (65 anos) morava na beira do rio São Francisco, na área inundada pela Usina Hidrelétrica de Itaparica, localizada 400 km abaixo de Sobradinho. O diálogo transcrito foi exibido no Programa Meio Ambiente Urgente, dedicado a essa barragem, cujas comportas seriam fechadas em quatro meses (fevereiro de 1988). Exibido na TV Bandeirantes, do Rio de Janeiro, no dia 29/11/1987, domingo, 21 horas, está disponível no site http://www.youtube.com/watch?v=chmZ1GTKxLo (acessado em maio/2013). 11. O Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho, da CHESF, abrigava a Divisão de Relocação de Populações e a Divisão de Desapropriação, encarregada das indenizações (Jucá, 1982: 284). 12. Há duas datas diferentes para o início do represamento parcial do rio São Francisco: dezembro de 1976 (CHESF, 1980: 2) e fevereiro de 1977 (Congresso Nacional, 1982: 263). O represamento total do rio começa em dezembro de 1977. O reservatório de Sobradinho leva cerca de um ano e meio para encher. 13. Sigaud (1986: 26-32) analisa o processo de esvaziamento da área de inundação: a resistência dos camponeses em sair da beira do rio e a indefinição do Estado acerca de seu destino. 14. Das 1.013 famílias da área rural que foram para o PEC-SR, 64% (652 famílias) saíram de Casa Nova; 29% (296) de Sento Sé; 4% (35) de Pilão Arcado; 2% (21) de Remanso; 1% (9) de Juazeiro (Anexo I, p. 217). 15. Em Casa Nova, 23% das 2.847 famílias que saíram da área rural optaram pelo PEC-SR (Anexo I, p. 217). Para Duqué (1980), essa opção foi vista pelos camponeses como uma forma
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de se livrarem da dominação dos grandes fazendeiros, que controlavam o acesso aos lameiros. No entanto, essa explicação requer uma análise mais cuidadosa, pois sabemos que os camponeses do velho povoado ribeirinho de Barra da Cruz (Mapa VII, p. 258), que haviam saído de Casa Nova, permaneceram apenas três anos no PEC-SR, onde não se adaptaram, como muitos outros. Quando decidiram retornar, conseguiram terras na borda do lago, com o auxílio de um dos maiores fazendeiros de Casa Nova. 16. Em outro trabalho (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987: 270-1), analisamos as consequências da indefinição do Estado em Sobradinho, de sua imprevidência durante o processo de esvaziamento da área de inundação: no início, a borda do lago era uma alternativa para um número limitado de mil famílias (ou 1.426, segundo a ANCARBA), e não 2.653 famílias oriundas da área rural, que foram afinal reassentadas nos núcleos. Estudos encomendados pela CHESF indicavam que a borda seria inviável para a agricultura (baixa fertilidade dos solos, etc.), exceto em algumas manchas de terra destinadas apenas à agricultura de chuva (em nada equivalente aos lameiros). Para lá seriam destinados os mais pobres e de menor nível educacional (conforme relatório do Banco Mundial datado de novembro de 1974). A maior parte da população deveria ser instalada no PEC-SR, onde havia terras férteis. “Atrasos no PEC, a oposição das elites políticas à saída de seus eleitores, a relutância da população em ser deslocada para longe do rio, a pressão do Banco Mundial condicionando os financiamentos ao assentamento da população, e a necessidade de promover a inundação da área para cumprir o cronograma das obras civis, precipitaram a transferência para a borda do lago, transformando assim o que seria a alternativa para alguns numa solução de emergência para a maioria. Até 1975, a CHESF havia evitado a alternativa borda do lago para forçar a opção pelo PEC-SR, pressionada pelo Banco Mundial e por diversos órgãos do Governo, inclusive o INCRA.” (idem. Grifos meus). Como solução de emergência, o assentamento na borda do lago não obedeceu àqueles critérios de melhores áreas para agricultura. 17. Duqué (1984: 30) integrou a equipe de ação comunitária da ANCARBA (1974) e a equipe social da CHESF (1975 a nov./1978). Suas observações sobre o trabalho dos técnicos da área social em Sobradinho são verdadeiros depoimentos de quem acompanhou todo o processo de “esvaziamento da área de inundação”, “incluindo estudo prévio, planejamento, transferência propriamente dita e assentamento das famílias”. 18. Num total de 8.619 famílias que saíram da área rural, 5.378 famílias (62%) permaneceram na Borda do lago, das quais 2.653 famílias (49%) foram para os Núcleos de reassentamento; 1.751 (33%) ficaram na Caatinga; 974 (18%) nas Novas cidades/sedes municipais (Anexo I, p. 217 ). No município de Sento Sé, onde fica Itapera, esse número é ainda maior: 65% (2.343 famílias) de um total de 3.597 famílias da área rural, das quais 69% foi para os Núcleos de reassentamento (1.620 famílias); 20% para as Novas cidades (458); 11% ficou na Caatinga (265 famílias). Ao contrário de Remanso, onde a caatinga é “situada de gente”, em Sento Sé esta área sempre foi fracamente ocupada. Daí que seja o município da borda do lago onde menos gente optou pela Caatinga, e com o maior número de Núcleos na borda: 17 em Sento Sé; 4 em Casa Nova; 2 em Remanso (Anexo II, p. 219). Sigaud (1986: 26-32) analisa cada uma das opções oferecidas pela CHESF, em diferentes momentos, à população urbana e rural, conforme consta do Anexo I (p. 217): “Borda do lago” (núcleos, caatinga e novas cidades), “Solução própria” e “PEC-SR”, alertando-nos que a “Solução própria” também foi guiada pelo “desejo de permanecer junto ao rio”.
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19. Depoimento do engenheiro João Paulo Maranhão de Aguiar (5/04/1982, apud Jucá, 1982: 206-7). O discurso oficial da CHESF sobre a barragem de Sobradinho está consagrado no livro CHESF, 35 anos de História (Jucá, op. cit.), que reúne entrevistas com os diretores da Companhia na época da realização da obra (“Programa de História Oral”, Acervo CEHIBRA/ FUNDAJ). 20. “[...] a equipe de ação comunitária da ANCARBA entrou na área com toda a convicção de ser representante desta forma de salvação que é a modernização. [...] o técnico de base permanece convencido de que ele encarna a razão e o progresso.” (Duqué, 1980: 301-2). 21. Consultei apenas as notícias de jornais veiculadas pela CPI das Enchentes do rio São Francisco após Sobradinho (Congresso Nacional, 1982: 265-6), as quais só cobrem o início do enchimento do lago (fevereiro e março de 1977) e a inundação da margem direita do rio. 22. Cronograma das obras da barragem (Congresso Nacional, 1982: 263): início da construção do acampamento: set./1972; início das obras civis da barragem, com as primeiras indenizações: junho/1973; desvio do rio pelo sistema extravasor: julho/1976; início do represamento parcial: fev./1977 ou dez./1976 (CHESF, 1980: 2); início do represamento total: dez./1977; início da geração de energia: 25/9/1979; inauguração da barragem: maio/1978 ou março/1978 (Congresso Nacional, op. cit., p. 115); inauguração da eclusa e usina: junho/1980; conclusão das obras: final de 1981. 23. Documentados pelo movimento sindical (CONTAG, 1979) e pela Igreja (CPT, 1979), os prejuízos dos camponeses de Sobradinho também constam da CPI das Enchentes (Congresso Nacional, 1982: 260-84). Para uma análise de sua “descapitalização cumulativa” durante o processo de relocação promovido pela CHESF (dos povoados ribeirinhos aos núcleos de reassentamento), vide Sigaud (1986: 46-53). 24. Os camponeses de Itapera sempre lembram da Irmã Joana, que os auxiliou nos primeiros anos no novo povoado na borda do lago. 25. Como vimos no Capítulo II, os lameiros do ilhote da Veneza eram disputados pelos povoados de Itapera, Andorinhas, Favela e Caldeirão, na margem direita do rio, e Marcos, na margem esquerda (Mapa V, p. 248). O novo povoado de Marcos consta do Mapa VI (p. 256). 26. Em 1952, já se falava no desenvolvimento de técnicas de antecipação da cheia : “Hoje, os criadores já estão mais bem informados, as cheias são previstas e eles podem socorrer os animais a tempo.” (Macedo, 1952: 10). As notícias sobre a cheia eram obtidas principalmente pelos grandes criadores de gado, mas havia todo um circuito de divulgação dessas informações, no qual manter boas relações com fazendeiros devia ser crucial. 27. Estrofe da toada “A Moenda Virô”, dos remeiros do rio São Francisco. Coletada por Souza (1980: 25) em Sítio do Mato (30/8/1949). 28. Todos esses lugares ficam no município de Sento Sé, na margem direita do rio (Mapa VII, p. 258). Mais próximos da barragem, os velhos povoados ribeirinhos de Piçarrão e Piri inundaram antes de Itapera; bem mais afastados, “rio acima”, Andorinhas, Tombador, Retiro de Baixo e Retiro de Cima inundaram depois. A “área de Itapera” ficava entre a “área de Andorinhas” (acima) e a “área de Tombador” (abaixo), como vimos no Capítulo II. 29. Entrevista realizada em Recife, junho de 1985 (op. cit.). 30. Depoimento de um camponês da área do reservatório de Sobradinho, apud Congresso Nacional, 1982: 261.
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31. Depoimento da diretora da Divisão de Relocação de Populações da CHESF (Entrevista realizada em Recife, junho de 1985). 32. Dados disponíveis na tabela “Distribuição dos lotes agrícolas na área do reservatório de Sobradinho, 1976 a 1985” (CHESF, 1985, Pasta Arquivo 40). 33. Em outro trabalho (Sigaud, Martins-Costa & Daou, 1987), analisamos as implicações sociais da localização diferencial das terras distribuídas pela CHESF e a retomada do processo produtivo na borda do lago, tendo como referencial empírico os novos povoados de Itapera (onde centrei minha pesquisa) e Brejo de Dentro (estudado por Daou), ambos no município de Sento Sé. 34. “A rigor, o que a CHESF fez foi providenciar terras para colocar a população em locais indicados pelos camponeses, os quais, via de regra, estavam situados em pontos na caatinga próximos ao povoado que seria inundado. Assim se compreende, por exemplo, porque as melhores áreas em termos de solos agriculturáveis do município de Sento Sé, que eram as áreas dos rios Verde e Jacaré e a mancha da fazenda Castela, não tenham sido utilizados para a construção dos núcleos de reassentamento e a distribuição dos lotes agrícolas.” (Sigaud, Martins-Costa & Daou, op. cit., p. 271. Grifos meus). 35. Os núcleos de reassentamento de Quixaba e Bazuá, no município de Sento Sé (Mapas VI e VII, p. 254-58) aglutinaram camponeses de Mundo Novo, Carpina e Campinas, dentre outros lugares. Em Quixaba, há 9 famílias de Mundo Novo, 5 de Carpina e 24 de Campinas; em Bazuá, 48 de Mundo Novo, 3 de Carpina e 1 de Campinas. 36. Para uma análise da descapitalização cumulativa dos camponeses durante o processo de transferência dos povoados aos núcleos de reassentamento, vide Sigaud (1986) e Sigaud, Martins-Costa & Daou (1987). 37. A reconstituição desse “primeiro ano da barragem” em Itapera baseia-se nos dados da pesquisa de Catarina (Tallowitz, 1979: 34-40), realizada entre os meses de agosto e outubro de 1977, um pouco antes da inundação do povoado. 38. “Durante os meses de julho, agosto e setembro [de 1977], mantidas as condições de sempre, os homens e mulheres do povoado teriam produzido muito mais redes de pesca. Neste ano, contudo, os homens estavam ocupados em produzir telhas para a construção de novas casas, após a relocação.” (Tallowitz, op. cit., p. 37). 39. “As indenizações tinham sido baixíssimas, via de regra. Na maioria dos casos, tinham sido pagas um ano antes e, portanto, já tinham sido gastas pelas famílias. Algumas famílias só tinham recebido 5 ou 6 mil cruzeiros por suas casas [...] outras, apenas 500 ou mil cruzeiros. Muitos teriam necessitado bastante desse dinheiro, porque nesse ano não tinha sido possível plantar à margem do rio e nas ilhas, por causa da ocasional subida das águas após o fechamento das comportas: o nível do rio tinha subido como sempre, mas daí não tinha recuado. Por essa razão faltava comida. [...] Quem, em 1977, tivesse colhido bastante, guardou farinha de mandioca, feijão e milho para o tempo da mudança e depois. [...] [as famílias que haviam perdido a última colheita] tinham mal o que comer no outono, quanto mais guardar para o ano. A falta dos alimentos básicos mais simples, como farinha de mandioca e feijão, significava, porém, que precisavam gastar 10 e 40 cruzeiros, juntos 50, com alimentos que uma família de oito pessoas consumia em dois dias. Só esses alimentos necessitariam de 750 cruzeiros mensais. Como, contudo, pelos motivos acima citados, nenhum produto podia ser vendido, essas famílias contemplavam o espectro da fome.” (Tallowitz, op. cit., p. 34-40. Grifos meus).
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Além de ser gasto com o próprio sustento, o dinheiro das indenizações pode ter viabilizado a migração temporária para São Paulo, como vimos na análise da formação dos grupos de vizinhos de lotes. 40. “Aos lavradores que concomitantemente exerciam a pesca, foi-lhes dito que não poderiam pescar [no rio] nos meses de nov./dez./jan. A justificativa foi que a produção de peixe não deveria ser abalada. Os pescadores estavam ouvindo essa conversa pela primeira vez na vida: ‘Anos a fio nós pescamos aqui, nossos pais e avós também pescaram anos a fio, nunca os peixes diminuíram. Como é que agora, de repente, vão diminuir?’ Para não pescarem, foilhes prometido um salário compensação. Como me disseram, não tinham certeza de que iriam realmente recebê-lo. [...] Muitos lavradores, entretanto, ainda tinham ilusões quanto a esse aspecto do futuro. Quando eu perguntava, davam como resposta que acreditavam poder continuar a pescar como até então.” (Tallowitz, op. cit., p. 34-40). 41. Estrofe do “Aboio da Barragem”, tirado pelo vaqueiro Nelito. Itapera, agosto de 1985 42. Entrevista realizada em Sento Sé, em agosto de 1985, no local de sua residência. 43. Logo após a mudança para a Itapera nova, Mano foi trabalhar em São Paulo, onde permaneceu por cinco anos, retornando regularmente ao povoado, para trazer dinheiro e visitar a família. Diana, sua esposa, com dois filhos pequenos, ficou morando com os pais, enquanto administrava a construção da nova casa e o preparo do lote de borda que haviam recebido da CHESF (roçar, cercar e arar), contando com a ajuda de pessoas da Família (algum irmão ou filho de irmão). 44. A “precisão” é vivenciada por pequenos produtores no nordeste do Brasil como um momento excepcional, em que precisam comprar os alimentos que normalmente produzem. Para contornar essa situação difícil, recorrem à venda ou autoconsumo da criação (galinhas e perus); à venda de cabras ou porcos, “quando a situação de emergência estende-se por um período maior” (Heredia,1979: 100-4). A barragem de Sobradinho abriu um período longo e coletivo de precisão. 45. Sobre a barragem de Kariba (50 mil desalojados), no rio Zambezi, entre Zambia e Rodésia, ver Colson (1971); sobre a barragem de Assuã (100 mil desalojados), no rio Nilo, entre Egito e Sudão, ver Fahim (1970: 12) apud Scudder (1973: 712). 46. Depoimento da diretora da Divisão de Relocação de Populações da CHESF (Entrevista realizada em Recife, junho de 1985). 47. “Além do obstáculo da linguagem, as atitudes e esforços dos administradores são frequentemente mal interpretadas. Isso pode ser claramente percebido no reassentamento núbio [ao norte da barragem de Assuã, no Egito], por exemplo, em relação aos agentes do serviço de extensão agrícola, que são vistos como supervisores ignorantes em assuntos que os núbios assumem conhecer melhor.” (Fahim apud Scudder, 1973: 712). 48. Vinculados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE). Também no rio São Francisco, a barragem de Itaparica (Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga) entrou em operação em junho de 1988, cerca de dez anos após Sobradinho. Até 1986, o plano de reassentamento da população não havia sido definido pela CHESF (Pandolfi, 1986). 49. Sobre o trabalho político na área de Sobradinho, ver Duqué (1980), Sigaud (1986) e Machado (1987).
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“Eu morava em minha terra Não faltava nada não Tinha minhas vacas de leite Carne, tinha a precisão Vaquejava o meu gado Montado no alazão Depois dessa barragem Agora a coisa mudou Eu perdi meu alazão O meu gado se acabou Eu fiquei no meio do mundo Meu coração sofredor Eeeê-hêeê! boi, ó boi, eeeê boi, hêeê! Ô, saudade, volta pras águas de lá!” Nelito, estrofes do “Aboio da Barragem”, 1985.
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O mundo às avessas Epílogo
Volto àquele encontro com a velha senhora de Itapera. Na primeira vez que nos vimos, ela me perguntou, apreensiva, se haveria “outr’arretirada”, insistindo em não querer “arretirar de novo”. Na segunda vez, indagou mais ainda, ampliando a dúvida, afoita em antecipar meu intento, quem sabe na esperança de que assim se efetivasse o que tanto almejava: “Veio pra secar o rio, né? Vai secar?”. Assim como a CHESF havia invertido o rio e segurado as águas, invadindo a caatinga e transvertendo a retirada, nada impedia que exercitasse uma vez mais o seu poder, afundando o novo povoado ou livrando o antigo das águas, fazendo o rio secar. O regresso à Itapera de antes não lhe parecia impossível. De todas as pessoas que conheci em Sobradinho, a velha senhora não foi a única a vislumbrar a vazante que traria de volta a sua terra. Camponeses de mais idade, acima de 50 anos, desconfiavam, ainda, da enchente da barragem, de seu suposto caráter irreversível. ––– Dona Eunice: Ainda hoje eu peço a Deus: se o rio vazasse, minha filha, eu ia m’imbora pra minha terra. Agora, não sei, assim, diz o povo que nunca seca mais? ––– Seu Afro (marido de Dona Eunice): Seca nada! A esperança de que o rio secasse foi reforçada pela grande vazante do lago, ocorrida em 1984, seis anos após o fechamento das comportas, quando o nível do reservatório baixou quatro metros. Com o recuo das águas, ressurgiram, desfigurados e capengas, velhos povoados e cidades ribeirinhas, e os camponeses, comovidos, retornaram aos locais de origem, perambulando, a pé ou de barco, por suas ruas fantasmas. Muitos pensaram que o “tempo da invasão do rio” havia enfim se encerrado. Mas o lago insistiu em sua gula e voltou a subir. Em 1985, quando estive em campo pela primeira vez, a Itapera nova encontrava-se novamente junto ao lago, mas todos comentavam a “grande vazante” do ano anterior, que os deixara “no meio da caatinga”, com sérias dificuldades de abastecimento de água. O lago havia recuado cerca de dois quilômetros. Era essa a distância que as mulheres percorriam diariamente para buscar água ou tomar banho, lavar roupas e utensílios domésticos. Uma retirada insólita
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Três anos depois, houve um novo recuo excepcional do reservatório de Sobradinho. Em fevereiro de 1987, quando retornei a campo, no suposto “tempo da cheia”, presenciei a maior vazante do lago desde sua formação: a cota estava sete metros abaixo do nível normal. Itapera encontrava-se novamente perdida no meio da caatinga. Convidada pelas mulheres para apanhar água no rio, percorremos cerca de três quilômetros até alcançar a beira. Entre o lugar das casas e o lago, a caatinga afogada emergira das águas. Morta. Imóvel. Num calor abrasante, ofuscadas pela crueza da luz, atravessamos um mar sombrio de carcaças vegetais e troncos esqueléticos aos pedaços, podres e ressequidos, embaralhados a perder de vista. Um cenário desolador. Fomos arranhadas por espinhos e perdemos o rumo. Todas as direções pareciam iguais. Ficamos indo e voltando, gritando por socorro, até que Mano e Jayme conseguiram nos encontrar. Quando finalmente chegamos no local almejado, uma antiga pedreira da caatinga, agora na beira do rio, estávamos diante de uma vegetação semiaquática, triste e solene, que afundava aos poucos a galhada esparsa até sumir de vista. Foi divertido ficar conversando dentro d’água, sentados no galho mais alto de um pé de umbuzeiro, cercados de decrépitas favelas. Um pouco mais adiante, havia uma pequena ilha: era o Ariá, um dos locais de retiro da Itapera velha. O imenso recuo das águas produz situações bizarras. Os lotes de borda foram cercados segundo o padrão tradicional, com a frente aberta, tomando-se o rio-lago como uma barreira natural. No passado, a frente era considerada uma extensão natural de cada roça: à medida que o rio vazava, os cultivos avançavam, acompanhando o surgimento dos lameiros. As roças podiam aumentar na direção do rio, através do plantio do capim zozó, que segurava a lama trazida pela correnteza. Atualmente, esta regra de uso do espaço esbarra no insólito de situações em que lotes situados nos dois lados de um braço do lago, com a ausência das águas, ficam face a face. As grandes vazantes abrem a frente das roças, deixandoas à mercê dos rebanhos. É prática comum criarem algumas cabeças de gado dentro dos lotes de borda, do mesmo modo como faziam nas roças de terra firme do passado, dividindo-os ao meio: de um lado, as plantas; do outro, o gado. Com a frente das roças desprotegida, o gado solto tornase uma ameaça para as roças vizinhas, e fonte de conflitos. Os problemas são mais graves com os novos vizinhos: os fazendeiros que se instalaram na borda do lago. O loteamento agrícola de Itapera
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tem muitas fazendas em volta, que também ficam com a “frente” descoberta quando secam as águas. Os camponeses são obrigados a improvisar cercas para impedir a invasão do gado. Atualmente, a área da vazante é palco de inúmeros conflitos, que são intermediados pela Associação de Moradores de Itapera. Ao contrário do que ocorria no passado, quando cada lugar tinha seu próprio território, agora precisam lidar com vizinhos novos e dessemelhantes, num espaço ambíguo e mutante. Os camponeses procuram acompanhar a beira, como sempre fizeram, recuando junto com o lago, em busca das pequenas faixas de terra úmida. Ao contrário do velho rio, o lago não tem correnteza e não remonta as terras. Mesmo assim, ainda que não formem lameiros, são as terras mais valorizadas e única alternativa à agricultura de chuvas ou irrigada.
Lago de Sobradinho na região da Itapera nova, agosto 1985.
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Em fevereiro de 1987, durante o imenso recuo do lago, muitos camponeses de Itapera estavam instalados em barracas junto à borda, vigiando seus cultivos, e reclamavam da “invasão” de sua vazante por plantadores itinerantes de cebola, oriundos de Belém de São Francisco (Pernambuco), 280 km abaixo de Sobradinho. Desde a formação do reservatório e o deslocamento para os novos povoados, os camponeses continuam a ser surpreendidos por situações insólitas, como as vazantes extraordinárias do lago. Nada parece muito definitivo. A vida na Itapera nova sofre mudanças intermitentes. Esse período pós-barragem (1977-87) só pode ser descrito, agora (1988), a partir de tendências e avaliações provisórias. Não há profundidade histórica para afirmações mais conclusivas. A perplexidade ainda é a expressão mais acabada desse momento.
E o São Francisco passo a passo vai cumprindo a profecia “Eu já vi um gato ler e um grilo sentar escola, nas asas de uma ema jogar-se o jogo da bola, dar louvores ao macaco. Só me falta ver agora acender vela sem pavio, correr p’ra cima a água do rio, o sol a tremer com frio e a lua tomar tabaco!...” João Guimarães Rosa, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, Sagarana, 1964, p. 356. “Tá chegado aquele tempo, né? Que o Padre, o que fundou a igreja lá de Remanso, falou como se fosse no fim dos tempos: o rio ia correr pra cima. Que era a coisa que a gente mais duvidava! Como é que as águas ia correr pra cima? E não correu de lá para cá, que afundiu tudo? Afundiu tudo!” (Seu Esmeraldo). São os camponeses mais velhos que lançam mão de antigas profecias para tornar inteligível o momento presente, inserindo-o no fluxo 230 O mundo às avessas
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do tempo. Muito antes de ocorrer, a enchente da barragem já havia sido anunciada por padres e anacoretas sombrios, em suas pregações pelo sertão: “O Conselheiro que passou em 32, em 33, chamava Severino de Carvalho, e ele dizia que a enchente de cima não fazia medo. A que fazia medo era a enchente de baixo! Ele dizia: ‘Olhe, meus filhos, não tenham medo da enchente de cima. Tenham medo da enchente de baixo, porque a enchente de baixo, de lá pra cá, é que vai fazer precisão’.” (Dona Eunice). As profecias evocadas falam de uma inversão da ordem normal das coisas. O rio correr ao contrário significa que o mundo está às avessas. A caatinga, que só conheciam como limite, tornou-se residência permanente. O novo local de retirada é agora o lugar das casas. A beira, ao invés de se deslocar para o alto, rumo à caatinga, estancando junto ao retiro, apenas recua, mansa, em direção ao antigo leito do rio. Ao invés das enchentes grandes do São Francisco, agora há grandes vazantes do lago, como a de 1987. Se os camponeses ainda saem de seus povoados seguindo o mover do rio, não é mais em busca do alto e do seco, mas do baixo e do molhado. Abandonam as casas no pico da seca e montam barracas na beira incerta do lago, fugidia vazante de caatinga abissal. Os cemitérios, antes no mais seco dos lugares, a salvo do rio em seus alcances supremos, repousam n’água, submersos ou ilhados. A caatinga, aberta e sem limites, ignota, incomensurável, foi cercada e esquadrinhada, repartida entre loteamentos e fazendas. Não há mais caminhos nem carreiros para os homens se perderem, embrabecerem. Nelito, o nosso vaqueiro, perdeu seu alazão. Hoje, percorre de bicicleta os corredores que conduzem da casa à roça, um lote perdido entre cercas e espinhos. Não há mais rio, nem lameiros, nem caatinga solta, sem dono, mundo afora. O mundo ficou sem sertão.
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Gráficos (Fonte: CHESF, 1983)
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Gráfico X. Anos de enchente alta (Outubro 1928 a Outubro 1976)
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Meses: Outubro 1928 a Outubro 1976 (Indicados apenas os anos com descarga média mensal > 7.000 m3/seg.)
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Gráfico I. Enchente alta de 1949
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1949 1947 1948
Meses: Setembro 1947 a Setembro 1949
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Gráfico II. Enchente alta de 1946 e 1947
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1947 1945 1946
Meses: Setembro 1945 a Setembro 1947
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Gráfico III. Enchente alta de 1943
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1943 1941 1942
Meses: Setembro 1941 a Setembro 1943
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Gráfico IV. Enchente alta de 1945
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1945 1943 1944
Meses: Setembro 1943 a Setembro 1945
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Gráfico V. Enchente alta de 1957
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1957 1955 1956
Meses: Setembro 1955 a Setembro 1957
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Gráfico VI. Enchente alta de 1929
out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1930 1928 1929
Meses: Outubro 1928 a Setembro 1930
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Gráfico VII. Enchente alta de 1931
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1932 1930 1931
Meses: Setembro 1930 a Setembro 1932
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Gráfico VIII. Enchente alta de 1963
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1963 1961 1962
Meses: Setembro 1961 a Setembro 1963
Descargas médias (1.000 m3/seg.) 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0
Gráfico IX. Enchente alta de 1952
set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set 1953 1951 1952
Meses: Setembro 1951 a Setembro 1953
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Desenhos e mapas
Mapa I. Desenho da Itapera velha feito por Mano 236
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Casa de Farinha
Curral
Casa de vizinhas
Becos
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“Folha 3”
Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano. Parte 1/3 238
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(Os itinerĂĄrios marcados com letras, de a atĂŠ h, foram acrescentados posteriormente)
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Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano. Parte 2/3 240
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“Folha 1”
(Os itinerários marcados com letras, de a até h, foram acrescentados posteriormente)
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Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano. Parte 3/3
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“Folha 2”
(Os itinerários marcados com letras, de a até h, foram acrescentados posteriormente)
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Rio São Francisco (canal)
Roças de Itapera para cima
Roç para
Ilha Ilha da Itapera E2/E3
E3 Roças de Andorinhas
Área desocupada
Roça de Brás
Rio São Francisco (braço)
Roças de Andorinhas
Andorinhas
Ilhote Área das de mulhe- jurema res
Barra do Sem-Sem
Itapera
15 14 13
12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1
Roça de Manoel (Andorinhas)
Terra firme
Terra firme
D4
Barranco e espinhos
Sem-Sem
Mapa IV. Localização das roças na ilha e na terra firme. 244
Roça de Brás
Roças de Itapera para cima
R It
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E4 Ilha da Itapera
ças de Itapera ra cima
Ilha do Tombador
Roças de Itapera para baixo
Cocundo Grande
E2/E1
Roças de Chico Lampião Área vazia
Roças de Tombador
Área vazia/barranco
Barra
Barra do Cocundo
Roças de Tombador
D1 Itapera
2 1
Área de jurema
1 2
3
4 5
Lagoa da Porta
e Brás
e para cima
Roça de Domingos Roças de Itapera para baixo
E1
6 7 8 9 10 11 12 13
Tombador
14 15
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Lagoa Lagoa do do Sem-Sem Sem-Sem
Fotografia Fotografia aérea aérea da da região região da da Itapera Itapera velha velha 246
Tabuleiro Tabuleiro
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Ilha da de Itapera Itapera
Itapera velha
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Marco
Remanso
Ilha da Veneza Veneza Andorinhas
Lagoa do Sem-Sem
Aldeia
Mapa V. Carta Topogrรกfica de 1959. 248
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Em destaque: รกrea desenhada por Mano. Povoados: Itapera, Andorinhas, Aldeia e Umbuzeiro. Ilhas: da Itapera e da Veneza. Lagoas: do Sem-Sem e do Saco. Locais de retiro: Taboleiro e Ariรก. Cidade: Remanso.
inhas
Umbuzeiro Ilha da Itapera
Itapera
Taboleiro Ariรก
Lagoa do Saco
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Remanso
Mapa V ampliado. Carta Topogrรกfica de 1959. Parte 1/2 Aldeia
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Limite da รกrea desenhada por Mano
Ilha da Veneza
Veneza
Andorinhas
Lagoa do Sem-Sem
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Ilha da Veneza
Andorinhas
Itap
Lagoa do Sem-Sem
Taboleiro
Mapa V ampliado. Carta Topogrรกfica de 1959. Parte 2/2 ร rea desenhada por Mano.
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Umbuzeiro
Ilha da Itapera
Itapera
boleiro Ariรก
Lagoa do Saco
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Rio São Francisco
Mapa VI. Área do reservatório de Sobradinho. 254
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Reservat贸rio de Sobradinho Cota 392,5 metros
Fonte: SEPLANTEC/CAR, 1983.
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Rio São Francisco
Mapa VI ampliado. Área do reservatório de Sobradinho. (centrada na região da nova Itapera). 256
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Reservat贸rio de Sobradinho Cota 392,5 metros
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Remanso novo MUNICÍPIO DE REMANSO
MUNICÍPIO DE CASA NOVA
Remanso velho
Andorinhas velha Aldeia velha
Pascoal velho
Andorinhas nova
Aldeia -PascoalLimoeiro novo
Itapera velha
Itapera nova
Estrada asfaltada Estrada de terra
Sento Sé novo
Riacho dos Paes novo
Limite municipal
Riacho Paes ve
Núcleos de reassentamento
[ Piri, Mundo Novo, Carpina, Campinas
Antigos povoados de Barra da Cruz, Intãs, Núcleos selecionados
Mapa VII. Localização dos novos povoados de Aldeia-PascoalLimoeiro, Itapera, Riacho dos Paes, Quixaba, Piri e Bazuá. 258
MUNICÍPIO DE SEN
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DE CASA NOVA
Borda do lago cota 392,5 metros Para Petrolina (PE)
Barra da Cruz
Riacho dos Paes velho
MUNICÍPIO DE SENTO SÉ
Intãs
Carpina Campinas Mundo Novo Piri
Bazuá
Quixaba
Para Juazeiro (BA)
Sento Sé velho
Piri novo
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Página 268. Acima: Lote agrícola na borda do lago de Sobradinho, com destaque para motobomba usada na irrigação de roças de cebola. Itapera, agosto de 1985. Abaixo: Mano, Diana, Juninho e Ana Luiza nas obras de abertura do canal de irrigação que vai fornecer água aos lotes de sequeiro de Itapera (1.040 ha), em fevereiro de 1987. Página 269. Acima: Beira do lago na Itapera nova, em agosto de 1985. Seu Canuto, Ana Luiza, Diana e os meninos no local onde as mulheres apanham água, lavam roupas e utensílios domésticos. Abaixo: Neonélia, Dona Isaura e Seu Domingos (seus pais), rodeados de familiares. Itapera, fevereiro de 1987. Página 270. Acima: Diana, Dona Isaura e crianças diante da casa de farinha na Itapera nova (agosto de 1985). Abaixo: Ana Luiza, Diana, Marisa e as crianças em frente à casa de Mano e Diana na Itapera nova, agosto de 1985. Página 271. Acima: Diana abraçada com o pai entre seus familiares. Itapera, fevereiro de 1987. Abaixo: Diana, Juninho, Jayme e Mano, fevereiro de 1987.
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Sobradinho “O homem chega, já desfaz a natureza Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar O São Francisco lá pra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia Do beato que dizia que o sertão ia alagar O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão. Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir Debaixo d’água lá se vai a vida inteira Por cima da cachoeira o gaiola vai subir Vai ter barragem no salto de Sobradinho E o povo vai-se embora com medo de se afogar O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão Vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado, Sobradinho Adeus, adeus, adeus...” Música de Sá e Guarabyra, 1977.
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 2
“Folha 3”
“Folha 1”
“Folha 2”
Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
15mm
L. = Lagoa
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 2
“Folha 3”
“Folha 1”
“Folha 2”
Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
15mm
L. = Lagoa
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 2
“Folha 3”
“Folha 1”
“Folha 2”
Mapa II. “Desenho velho” feito por Mano (mapa do antigo território de Itapera, hoje submerso).
Mapa III. "Desenho velho" esquematizado (feito por Jayme).
15mm
L. = Lagoa
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 1
O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
COLEÇÃO TERRITÓRIO, AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS
Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita
Uma retirada insólita
Ana Luiza Martins Costa
COLEÇÃO TERRITÓRIO AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS n.4
IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 1
O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
COLEÇÃO TERRITÓRIO, AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS
Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita
Uma retirada insólita
Ana Luiza Martins Costa
COLEÇÃO TERRITÓRIO AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS n.4
IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho
Uma retirada insolita_Capa_120713-AAFF:open 12/07/13 14:01 Página 1
O mundo do sertão e a obra de João Guimarães Rosa direcionam seu percurso. É formada em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS/UFRJ, 1989), onde desenvolveu a pesquisa de Mestrado que deu origem a este livro, orientada por Lygia Sigaud (in memoriam). O sertão do rio São Francisco despertou seu interesse pelas viagens de Guimarães Rosa através dos campos gerais, levando-a a escrever “João Rosa, viator” (tese de Doutorado em Literatura Comparada, UERJ, 2003), “O mundo escutado”, “O olhar do viajante”, “Cadernetas de viagem” e “Homero no Grande sertão”. É autora do roteiro de Buriti, filmado com o vaqueiro Zito nas veredas de Minas; coautora da pesquisa e roteiro do longa-metragem Mutum, uma adaptação da novela “Campo geral” (a estória de Miguilim, do Corpo de baile). Pesquisadora visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa (2003-5); bolsista da Biblioteca Nacional (2006-7); fez uma residência na Escola Francesa de Atenas (jun./ago. 2008), em estudo sobre a obra de Rosa e a épica homérica. Trabalha atualmente como pesquisadora independente.
Uma retirada insólita recebeu Menção Honrosa no Concurso Brasileiro de Teses Universitárias e Obras Científicas em Ciências Sociais, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1990.
A observação etnográfica desenvolvida na pesquisa de Ana Luiza Martins Costa provoca uma reconfiguração do conhecimento das ciências sociais aplicadas ao estudo de barragens. Dela derivam os fundamentos de uma crítica ao modelo analítico até então prevalecente, segundo o qual os camponeses, por ignorância ou idiossincrasia, não acreditam na veracidade das notícias de que a construção de uma barragem inundará suas terras. No caso de Sobradinho, um conflito cognitivo esteve subjacente, sugerindo explicação distinta. Vigorou ali a crença camponesa de que seu saber sobre a ecologia dos rios é superior ao dos técnicos, evidenciando que sua suposta ignorância é a manifestação legítima da desconfiança e da falta de crédito no discurso técnico e empresarial. Aurélio Vianna Jr.
COLEÇÃO TERRITÓRIO, AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS
Esta coleção reúne os resultados de pesquisas e debates desenvolvidos no Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O ETTERN dedica-se ao estudo dos modos de apropriação do território e dos ambientes, considerando a diversidade de atores envolvidos no processo de produção social do espaço. São focalizadas, em particular, as dinâmicas conflituais que constituem sujeitos coletivos e configuram contextos históricos em que os territórios são apropriados material e simbolicamente.
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013
Ana Luiza Martins Costa
Uma retirada insólita
Uma retirada insólita
Ana Luiza Martins Costa
COLEÇÃO TERRITÓRIO AMBIENTE E CONFLITOS SOCIAIS n.4
IPPUR
O presente livro registra uma das mais bem sucedidas pesquisas sobre as transformações nos modos de vida que resultam da construção de barragens. A pesquisa antropológica realizada por Ana Luiza Martins Costa junto aos camponeses deslocados pelo enchimento do lago de Sobradinho é um exemplo das descobertas que se pode fazer quando o pesquisador relaciona-se com os atores no terreno, sem perder de vista o caráter relativo de sua inserção e as perturbações criadas por sua presença nos rituais quotidianos. Emerge, então, uma questão cada vez mais pertinente em tempos de disseminação de políticas empresariais que buscam mapear as condições de organização social das populações atingidas, quando da apropriação do território por grandes projetos de “desenvolvimento”: como “assuntar tudo” no universo do campesinato ribeirinho, para realizar pesquisa social, sem ser confundido com técnicos de empresas e órgãos governamentais, cuja presença no local para a realização de estudos de topografia e situação fundiária é fortemente associada à destruição das condições de vida de milhares de famílias? Eis que, ao longo do processo de pesquisa, a elaboração conjunta de um desenho do antigo território (mapa nativo) promoveu um retorno reflexivo sobre a vida de antes da barragem. Contrastando as formas pretéritas de apropriação do espaço com a experiência traumática de sua transformação pela construção da barragem, os camponeses constroem suas vias de acesso às realidades presentes. Expressam, assim, como a perda de espaços com valores distintos – vazante e caatinga – significa a perda de seu mundo, a perda de um mundo. Henri Acselrad, Professor do IPPUR/UFRJ
Rio São Francisco Barragem de Sobradinho