HISTÓRIAS DE VIDA E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO
Inês Ferreira de Souza Bragança e Lúcia Velloso Maurício Faculdade de Formação de Professores da UERJ (FFP/UERJ) e Universidade Estácio de Sá (UNESA)
O presente texto coloca em evidência discussões em torno do tema “Histórias de vida e práticas de formação”, trazendo uma reflexão a respeito dos caminhos trilhados pela abordagem das histórias de vida nas ciências humanas e sociais, no campo educativo e, especialmente, na formação de professores, apontando para o entrelaçamento entre práticas de pesquisa e formação. Em um primeiro momento, mergulhamos em definições que vêm da História, da Antropologia, da Psicologia-social e da Sociologia, para a compreensão de conceitos e abordagens de investigação e formação que se desdobram no campo educativo. Na seqüência, apresentamos, ainda, experiências vividas em processos de formação inicial e contínua de professores pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação: Memória e História das Escolas de São Gonçalo. O Núcleo toma como uma das referências a abordagem (auto) biográfica, e, aqui, destacaremos, nomeadamente, experiências que envolvem a história de vida na perspectiva de projetos, os diários, as biografias educativas/narrativas de formação e os memoriais.
1. História de vida nas ciências humanas e sociais e no campo educativo: definições e interfaces
Narrar histórias pessoais e coletivas é uma prática propriamente humana que revela o lugar fundamental da partilha na construção dos modos de ser e estar no mundo. Observamos, assim, que a narrativa, apresenta-se como possibilidade de partilha e compreensão do sentido da vida e da história nas práticas sociais, mas também podemos vê-la no percurso da Filosofia, da literatura e como abordagem teórico-metodológica nas ciências humanas e sociais. Esta perspectiva, que conta com longa trajetória, foi trazida, nos anos
2 oitenta, para a formação de adultos e, posteriormente, incorporada de forma fértil às práticas de investigação e formação de professores. O estudo da literatura tanto das ciências sociais, como do campo educativo nos leva a observar a pluralidade terminológica que envolve o uso do método (auto) biográfico. Se por um lado a pluralidade de expressões e ênfases indica a polifonia e a riqueza de possibilidades metodológicas, por outro deixa a advertência de definir com mais clareza as opções teórico-metodológicas, já que essas expressões trazem a marca de diferentes perspectivas que precisam ser explicitadas. Buscamos, em diálogo com diferentes autores, trazer indícios dos fios condutores de diferentes perspectivas, visando uma sistematização de conceitos que ajude a situar as possibilidades e desdobramentos das mesmas em práticas de formação. Na matriz literária encontramos a origem de termos muito utilizados - biografia e autobiografia, gêneros utilizados desde a Antiguidade Clássica. Lejeune propõe a seguinte definição de autobiografia:
“des récits écrits par l´individu concerné lui-même (ce qui exclut les biographies), présentés comme directement référentiels (ce qui exclut les romans) et portant sur une vie entière ou sur l´essentiel d´une vie (ce qui exclut à la fois les souvenirs d´enfance, les récits détachés d´épisodes de la vie adulte et les journaux intimes) ”. (1986, citado em Pineau e Le Grand, 1993, p. 31) “… a autobiografia é a narração retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria vida, quando põe a tónica na sua vida individual e, em particular, na história da sua personalidade”. (Lejeune, 2003, p. 37)
Esta definição nos ajuda a demarcar aspectos importantes. A autobiografia é uma produção escrita do próprio sujeito sobre si e tem como referência sua trajetória existencial, enfocando, assim, a vida de forma ampla, ou seja, não aborda fragmentos, mas busca a expressão da totalidade ou o essencial da vida. Referindo-se às histórias de vida, Josso (2002, p. 20) também defende que uma especificidade dessa abordagem é a busca de enfoque sobre a 1
globalidade de vida e não sobre determinados aspectos . Perspectiva também assumida por Araújo e Magalhães (2000, p.13) que definem a história de vida como “a narrativa solicitada a uma pessoa por quem pretende recolher as suas memórias de experiências, percursos e as subjectividades, abrangendo o período da sua vida desde os primeiros tempos até o momento em que decorrem os encontros”, reforçando o carácter global das histórias de vida.
1
Segundo Josso (2002, p. 20), o trabalho com “fragmentos” caracteriza a perspectiva de “projectos temáticos”.
3 A biografia traz a presença do outro que recolhe informações e registra uma trajetória de vida, também na busca de globalidade. Tanto a autobiografia como a biografia focalizam a história individual, contudo em uma perspectiva dialética, compreende-se que o individual está posto em um processo coletivo de constituição. Roussiau et Bonardi (2002), em artigo sobre o lugar que a memória social ocupa no campo das representações sociais, afirmam que a relação entre memórias individual e coletiva proposta por Halbwachs permanece referência na medida em que os dois tipos de memória fundamentam-se em enquadramentos sociais. A lembrança individual se apóia nos quadros da memória coletiva e esta permite retorno ao passado no intuito de conformá-lo ao pensamento e às representações do presente inseridas na sociedade atual e no seu grupo de pertença. Para que a imagem de um objeto possa representá-lo, é necessário que ela seja comum a um conjunto de indivíduos, portanto, social. Os autores consideram que o conteúdo de uma representação social – normas, valores, crenças, imagens, opiniões, atitudes – é concebido com referências ao passado. Nesse sentido, a narrativa é sempre plural e deve buscar a intensidade das mediações sociais e contextuais que dão sentido à trajetória estudada. Araújo e Magalhães (2000, p.13) analisam as complexas relações entre a história de vida escrita com a participação do/a investigador/a (biografia) e a autobiografia. Se há uma perspectiva metodológica nitidamente diferenciada, as fronteiras são porosas, pois “a margem de autonomia da pessoa biografada é grande e que lhe compete seleccionar os acontecimentos e dar relevo às experiências que pode ou quer transmitir”. A presença do/a investigador/a não deve bloquear a emergência da subjetividade do entrevistado. Nesse sentido, a história de vida assume os contornos de um intenso diálogo. Daniel Bertaux sublinha a diferença ente autobiografia e narrativa de vida, sendo a primeira um trabalho do sujeito feito a partir de uma narrativa escrita e autoreflexiva, priorizando um olhar sobre a globalidade da vida, já a narrativa de vida assume a forma oral e é fundada no diálogo entre o investigador e o sujeito, focalizando as experiências por meio de um “filtro”. (1997, p. 34) O conceito de “filtro” é interessante no sentido de indicar que efetivamente a narrativa de vida prioriza o trabalho com os fragmentos da vida que são orientados em função do objeto de estudo e dos movimentos da memória do que reconta sua vida. O referido autor destaca três funções das “narrativas de vida” no contexto da investigação: a função exploratória, quando o pesquisador não tem familiaridade com o tema e as narrativas constituem uma etapa inicial de recolha de dados; a função analítica, que constitui o processo de recolha e análise das entrevistas e de outras fontes; e a função
4 expressiva, quando ocorre a publicação integral da narrativa, destacando-se nesse caso a função de comunicação. (ibid., p. 46) A preocupação com a ênfase no contexto, bem como com a validação do trabalho biográfico, engendrou uma perspectiva etnobiográfica, na qual a biografia constitui apenas uma das etapas do processo de investigação sendo complementada por um conjunto de outros procedimentos. “… O narrador não é um sujeito isolado, faz parte de vários grupos, de uma sociedade e de uma cultura precisas. É preciso que todas essas dimensões sejam restituídas” (POIRIER, ET AL. 1999, p. 38). Poirier et al. (ibid.) analisam a etnobiografia como uma modalidade de trabalho no campo metodológico, afirmando que seu ponto de partida consiste na perspectiva de que as histórias de vida não constituem um produto acabado, mas o ponto de partida de um conjunto de outros procedimentos metodológicos que vêm no sentido de complementar a investigação. Como o narrador faz parte de uma cultura, de uma sociedade e de vários grupos, a etnobiografia procura reconstituir essas mediações. Busca, assim, uma perspectiva global que envolve: uma história de vida, contextualizada do ponto de vista sóciocultural, analisada criticamente pelo narrador, colocada em debate pelos membros do grupo e “confirmada pelos procedimentos clássicos do inquérito etnográfico”, ou seja, a realização de outras técnicas de investigação que viriam no sentido de complementar a pesquisa. Para a História, a perspectiva das histórias de vida vem no bojo de uma abordagem metodológica específica – a História Oral, em que a construção do conhecimento histórico tem como referência, não apenas os documentos escritos, mas a participação e o ponto de vista dos sujeitos envolvidos nos eventos e contextos históricos. Nesse aspecto, o foco pode recair na totalidade da vida do sujeito ou em momentos específicos e funda-se, essencialmente, na narrativa oral. O estudo da história de vida não apresenta, a princípio, um fim em si mesmo, mas focaliza contribuição que esta pode dar para compreensão de determinados fatos, momentos ou contextos históricos. Paul Thompson (1998) analisa o caminho percorrido pela História Oral no interior da própria História, destacando um período inicial de ênfase na tradição oral, a emergência e a hegemonia do documento escrito e o retorno da narrativa oral como fonte historiográfica. Observamos, assim, uma pluralidade de expressões e ênfases que indicam a riqueza de possibilidades metodológicas do enfoque que, tomando sua origem fundacional na Antiguidade, talvez possa ser chamado, de uma forma mais genérica, de (auto) biográfico. Destacamos, no presente estudo, as expressões História de Vida, Narrativa de Vida, Etnobiografia e História Oral. Observamos, em cada uma delas, o foco em diferentes campos do conhecimento, sendo as três primeiras mais comuns no âmbito sociológico e a última
5 referida especificamente ao campo historiográfico. Notamos, também, na variação das expressões, ênfases diferenciadas no processo metodológico de desenvolvimento das abordagens de investigação. Na “História de Vida”, percebemos foco na temporalidade; na “Narrativa de vida”, ênfase na expressividade e na necessidade comunicação da vida no processo de investigação, por meio do trabalho com relatos. Já a “História Oral” focaliza, essencialmente, o depoimento como fonte da investigação histórica. No estudo de diferentes modalidades de histórias de vida, Pineau e Le Grand, destacam categorias que podem favorecer nossa análise. São elas: as mídias, os atores/autores, o objeto a exprimir - a vida, os objetivos a seguir e a temporalidade (1993, p. 34). As histórias de vida são construídas tendo a base de um suporte material, passando, inicialmente, das narrativas orais ao texto escrito e, na contemporaneidade, à profusão de recursos tecnológicos que vem tornando cada dia mais sofisticadas as possibilidades de memória externa. As histórias de vida contam sempre com atores, os que trazem a vida para a narrativa e aqueles que se colocam como autores que podem ser os próprios sujeitos, no caso da autobiografia, ou sujeitos externos que fazem o registro, no caso das biografias. O objeto a exprimir é a própria vida em suas tramas e caminhos; os objetivos a perseguir são diferenciados de acordo com os atores e autores e o recurso da temporalidade apresenta-se a partir de diferentes recortes e limites em função dos objetivos propostos. As histórias de vida, tanto no campo histórico como sociológico, assumem múltiplos desdobramentos, constituindo formas metodológicas diferenciadas e tendo como referência seus aportes conceituais que se desdobram em possibilidades metodológicas no campo educativo e sobre as práticas de formação. É na efervescência paradigmática, que trouxe a discussão do sujeito em sua singular complexidade social, que as pesquisas em educação foram sendo permeadas por um enfoque que procurou recuperar a reflexividade humana e filosófica dos processos de construção do conhecimento em educação. Analisando o desenvolvimento dessa perspectiva, Nóvoa (2002, p.9) destaca que foi no âmbito de discussão sobre a educação permanente que o aporte (auto) biográfico colocou-se como possibilidade metodológica. A crítica à ênfase tanto no modelo escolar como forma hegemônica do processo de formação, como na infância como idade específica deste processo, encaminhou a discussão para os processos de educação permanente, valorizando-se a educação ao longo da vida, bem como a aprendizagem como movimento que envolve também a vida adulta.
Nesse contexto, encontramos contribuições de diferentes pesquisadores: na Universidade de Genebra com Pierre Dominicé, Marie-Christine Josso por meio do trabalho
6 com o conceito de Biografia Educativa e em Quebec com Gaston Pineau, onde as histórias de vida colocaram-se como possibilidade de pesquisa-formação e de autoformação. Com um aporte específico no pragmatismo de John Dewey, nos Estados Unidos da América, Donald Schon trabalha conceitos ligados à reflexão sobre a prática profissional como caminho de construção do conhecimento, abordagem amplamente difundida nas pesquisas em educação. Tanto os recursos da biografia educativa quanto o conceito de autoformação contribuíram para o desenvolvimento da abordagem (auto) biográfica que foi se manifestando em uma multiplicidade teórico-metodológica de trabalhos no âmbito educativo. Podemos destacar especialmente a ênfase na formação de adultos, na formação inicial e contínua de professores e em projetos ligados à formação profissional. No contexto dos anos oitenta e noventa, a literatura educacional passa a olhar o professor como “uma pessoa” e é esse movimento de viragem que veio trazer a potencialidade das histórias de vida para o campo da formação de professores. (PINEAU E LE GRAND, 1993, p. 18; NÓVOA, 2002, p. 9; JOSSO 2002ª, p. 19) Em um esforço de sistematização desses trabalhos, Nóvoa (1992) encontra grandes linhas, a partir dos objetivos e dimensões que cada abordagem privilegia. Quanto aos objetivos destaca trabalhos: (a) essencialmente teóricos, relacionados com a investigação, (b) essencialmente práticos, relacionados com a formação e (c) essencialmente emancipatórios relacionados com a investigação-formação. E, quanto às dimensões, o enfoque sobre: (a) a pessoa, (b) as práticas e (c) a profissão. Visando articular a síntese desenvolvida anteriormente às investigações e práticas de formação, apresentamos abaixo dois quadros que ressaltam conceitos e perspectivas metodológicas para que possamos visualizar, de forma mais objetiva, os desdobramentos no campo específico da formação de professores.
7 Abordagem (auto) biográfica: diversidade de aportes teórico-metodológicos no campo 23 das ciências sociais e humanas D.M.
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Cam6 po
Síntese conceitual
Abrangência participantes
de Abrangência / narrativa
atores
Casos múltiplos Autobiografia e Biografia
Literatura
História Oral
História
História de Vida
Sociologia
Etnobiografia
Sociologia
Narrativa de Vida.
Sociologia
Biografia educativa ou Narrativa de Formação
Educação
A autobiografia é uma produção escrita do próprio sujeito sobre si e a biografia traz a presença do outro que recolhe informações e registra a trajetória de vida. A pesquisa focaliza a contribuição que a história de vida específica pode dar para compreensão de determinados fatos, momentos ou contextos históricos. Abordagem teóricometodológica de origem sócio-antropológica que focaliza a vida, em suas tramas individuais e coletivas, como um locus privilegiado de compreensão dos processos humanos e sociais. Abordagem metodológica que toma as histórias de vida como um dos recursos em um conjunto de outros procedimentos que complementam a investigação. Foco sobre aspectos da vida de uma pessoa ou grupo de pessoas, relativo a uma prática social. Perspectiva metodológica que se apropria das histórias de vida no campo educativo, especialmente ligado à formação de adultos. Relato das experiências que ao longo da vida se constituíram para o sujeito de maneira formadora.
da
Recurso / mídias
/temporalidade
Casos únicos
Temática
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Fonte: Josso (2002a, p. 15-20), Muñoz (1992, p. 49-55), Pineau e Le Grand (1993, p. 12), Plummer (1989 , p. 15-38) e Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut (1999, p. 38-41). 3
O preenchimento dos quadros revela a leitura da investigadora sobre o conjunto de trabalhos analisados, indicando as tendências percebidas. Observamos, contudo, a possibilidade de múltiplas conjugações e diferentes desdobramentos que se dão no contexto específico de cada proposta de investigação ou de investigação-formação. A marcação de mais de uma opção em um determinado eixo pretende indicar que na abordagem citada é possivel conjungar diferentes perspectivas ou atuar de diferentes formas. Por exemplo: o fato de conjugar abordagens orais e escritas.
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Desdobramento metodológico. Em todos os desdobramentos metodológicos citados a participação do investigador pode ser diretiva, semi-diretiva ou partilhada. 6 Campo disciplinar de origem. 5
8 Diversidade de procedimentos técnico-metodológicos em práticas de investigação e formação D.M.
7
Questionário biográfico Trabalho com documentos pessoais
Entrevista biográfica
História de Vida em Grupo
Seminário de História de Vida
História de Vida na Perspectiva de Projeto Memoriais
Diários
Síntese da proposta
Abrangência de participantes / actores Casos Casos múltiúnicos plos Enquete, por meio de X questionário, com questões de natureza biográfica. Utilização de documentos X X e outros recursos que possam complementar e, em certos casos, constituir o recurso básico de uma pesquisa fundada no aporte (auto) biográfico. Entrevistas abertas, semi- X X estruturadas ou estruturadas, onde o investigador estabelece uma relação com o entrevistado, relativamente à sua trajetória de vida ou com enfoque em determinada temática específica. Trata-se de biografias X cruzadas, onde os sujeitos são associados em diferentes intensidades à pesquisa Trabalho com um grupo de X formação no qual os participantes narram, de forma oral e escrita, suas histórias na presença dos outros participantes. Enfoca uma determinada X X temática, um determinado eixo para abordar um itinerário, de acordo com os objetivos propostos. Documento de natureza X X autobiográfica, onde o narrador retoma sua trajetória de vida, a partir de objetivos previamente definidos. Registro reflexivo e X X cotidiano de práticas profissionais e/ou de formação.
Abrangência da narrativa /temporalidade TemáGlobal tica
Recurso / mídias
Participação investigador
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Directiva
S.D.
do P.
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A forma de organização dos quadros, bem como a marcação das diferentes ênfases indica apenas uma das leituras possíveis, a partir das referências bibliográficas citadas, o que sinaliza que esta é uma dentre tantas outras formas de sistematização. Esta observação é importante, pois reafirma a polifonia teórica e a diversidade metodológica nesse campo de estudos, movimento que pode ser observado tanto nos trabalhos ligados às ciências sociais de forma geral, como também os especificamente focados sobre a formação docente. 7 Desdobramento metodológico. 8
Semi-diretiva.
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Partilhada.
9 Bueno, Chamlian, Sousa e Catani (2006, p. 388) trazem importante contribuição ao estudo das histórias de vida no campo educativo, por meio de ampla revisão de literatura com enfoque sobre o período de 1985 a 2003, privilegiando os temas “formação de professores” e “profissão docente”.
Belmira Bueno (2006) registra que, se por um lado, a intensificação do
uso desta metodologia contribuiu para renovar a pesquisa educacional, particularmente sobre formação de professores; por outro, percebe-se a ausência de interlocução entre estas pesquisas e outras da área; alerta para a imprecisão conceitual em grande parte dos trabalhos, que a autora atribui à diversidade de expressões empregadas como se fossem sinônimas ou de sentido consensual e à desconsideração pela história das histórias de vida e pelas diferentes concepções que são utilizadas em diversos campos do conhecimento, redundando em pesquisas com pouco rigor.
2. Histórias de vida e práticas de formação docente
Neste segundo momento do texto, focalizamos práticas de formação docente ancoradas na abordagem (auto) biográfica. Indicando sentidos e potencialidades da referida perspectiva, trazemos, inicialmente, uma reflexão a respeito da relação entre representações e memórias dos professores sobre suas práticas educativas e de como constituem fatores significativos para a análise de processos educativos e de formação; a seguir, apresentamos alguns desdobramentos do trabalho com histórias de vida em processos de formação inicial e contínua de professores, nomeadamente, as biografias educativas / narrativas de formação e memoriais. A representação social constitui uma forma de conhecimento, um saber prático, que se refere exatamente à experiência a partir da qual ele se produz e serve para agir sobre o mundo (JODELET, 1989). A representação simboliza e interpreta o objeto, substituindo-o e atribuindo-lhe sentido. É uma construção e expressão do sujeito que se dá através de processos cognitivos e psíquicos, com a particularidade de incorporar, na análise dos processos, a pertença e a participação social e cultural do sujeito. Segundo Jodelet (1989), a representação social é sempre representação de alguma coisa e de alguém, na qual as características do sujeito e do objeto se manifestam. As interações sociais vão criando consensos, ou representações, que constituem verdadeiras “teorias” do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). Os sujeitos, no nosso caso professores, ao relatarem seus processos de formação, suas práticas educativas, suas histórias de vida, através de depoimentos orais ou escritos, em
10 memoriais ou em outros meios, expressam suas representações dos processos que vivenciam ou que já vivenciaram. Seus relatos são perpassados por valores, crenças, conhecimentos que orientam suas ações, revelando a si mesmos e a seus grupos de pertença nos objetos que descrevem. Pesquisar as representações de professores a respeito de suas práticas permite conhecer o sentido que atribuem a elas, possibilitando compreender porque agem de certa maneira ou porque incorporam determinados parâmetros e não outros, viabilizando a proposição de diretrizes passíveis de serem adotadas como suas e de seu grupo. Jedlowski (2005, p.87) define memória coletiva como um “conjunto de representações relativas ao passado que cada grupo produz, institucionaliza, cuida e transmite por meio da interação de seus membros”. Distingue de memórias comuns porque estas não dizem respeito a grupo e sim a recordações que participantes de uma sociedade partilham com outros pelo fato de terem sido expostos às mesmas circunstâncias e mensagens. Neste caso não há necessariamente interação, as pessoas se lembram de fatos comuns por terem sido marcadas por eles através da televisão ou de algum outro tipo de meio de comunicação social. Conclui-se que as histórias de vida são tecidas por meio de recordações individuais que repousam sobre memórias coletivas ou comuns, constituídas de representações reveladoras de identidades grupais. Segundo Conneton (1993 apud SÁ, 2005, p. 73), memórias pessoais designam “aqueles atos de recordação que tomam como objeto a história de vida de cada um (...), que se localizam num passado pessoal e a ele se referem”. Para o autor, as memórias pessoais são sociais pela sua construção e pelo seu conteúdo, mas se constituem na pessoa e se referem ao seu passado, mesmo que seus conteúdos sejam fatos sociais, culturais ou históricos de que tenha participado, testemunhado ou ouvido falar. A memória é entendida como “uma rede complexa de atividades, cujo estudo mostra que o passado nunca permanece uno e idêntico a si, pois é constantemente selecionado, filtrado e reestruturado por questões e necessidades do presente, tanto no nível individual como no social” (JEDLOWSKI, 2005, p. 87). Sá (2005) utiliza o termo memória social para designar o conjunto dos fenômenos ou instâncias sociais da memória. Justifica o adjetivo social porque parece ser o mais adequado para abranger o campo da memória na sociedade e também por observar que, de forma espontânea, o termo já vem sendo preferido na literatura sobre memória em sociedade. A memória social, incorporada nos relatos pessoais, revela as condições para exercício do magistério. Sobre a formação necessária para desenvolvimento dessas práticas educativas Denice Catani (2006) afirma que
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Por enquanto, o reconhecimento óbvio da necessidade de bem formar os professores para garantir o futuro das novas gerações, de bem remunerá-los para criar condições de trabalho: eis o cenário onde tudo parece estar por ser feito. (CATANI, 2006, p.79)
A autora lembra que, na década de 80, em pesquisa que buscava responder que saberes seriam mais produtivos para a formação do magistério, constatara grande decepção das candidatas a professoras pelo caráter pouco prático dos conhecimentos que adquiriam. Hoje considera, apoiada em Certeau, que cultura e comunicação alimentam-se de relatos. E se pergunta que relatos estamos favorecendo com a formação que é desenvolvida junto aos professores. Sugere que o aprendizado para a docência deveria fazer parte de um projeto de formação humanística mais enérgico nas relações cognitivas, éticas e estéticas e menos pretensioso nos aspectos didático-pedagógicos. Bueno (2006), em análise do Programa PEC-Município, avaliou curto o prazo previsto para que os professores adquiram outro perfil. Lembrou que é preciso tempo para incorporar determinados habitus às práticas, e isto tem implicações significativas no caso dos professores, pois sua ação pedagógica é marcada pela urgência e improvisação, que são colocadas pelas precárias condições de trabalho. A intuição que orienta suas práticas mobiliza saberes que se consolidam através do habitus. A autora enfatiza que a formação do professor começa antes de sua entrada nos cursos de magistério, pois imagens e representações estão enraizadas em experiências da infância ou na convivência com indivíduos da própria escola. Apesar destas considerações, Bueno reconheceu que a escrita de memórias proposta pelo Programa desempenhou papel importante entre as práticas que favorecem ao professor reinventar a si mesmo, pois auxiliam-nos a perceber
Os fatores que entram em jogo na produção da vida escolar, da qual eles tomam parte ativa. Pois, é nesse plano que a profissão docente ganha sentido para eles, é nesse contexto que eles podem subverter normas e modelos que não lhes fazem sentido, reinventando a si mesmos e a própria escola, mesmo que parcialmente. (BUENO, 2006, p. 232) Observamos, assim, tanto na reflexão anterior quanto na revisão de literatura da área, que a utilização do aporte (auto) biográfico, em contextos de formação docente, é um caminho que, se por um lado exige cuidados epistemológicos, por outro, tem se mostrado potente e instituinte. O “Núcleo
Vozes da
Educação: Memória e História das Escolas de São Gonçalo” desenvolve, ao longo de onze anos, uma proposta de pesquisa-formação que dialoga com diferentes perspectivas da abordagem (auto) biográfica na prática de formação docente, articulando ensino, pesquisa e extensão. Partimos da compreensão de que o processo de investigação é intensamente dialógico, partilhado, constituindo fonte de aprendizagens e formação para todos aqueles que vivem a intensidade da experiência.
12 Uma das vertentes do trabalho centra-se na implantação de núcleos nas escolas buscando promover o resgate da memória e da história da educação de São Gonçalo. O Projeto atua especialmente na organização de núcleos de memória nas escolas, envolvendo seus sujeitos (professores/as, alunos/as e comunidade) no levantamento da história da educação pública contida nas fontes documentais existentes nas próprias escolas, bem como no registro de relatos orais (TAVARES, 2007). Tomando a história de vida na perspectiva de projeto, buscamos constituir espaços-tempos para narrativa de suas histórias de vida pelos professores, as memórias sobre a escola nas tramas do passado e do presente, em um entrelaçamento entre vida pessoal e profissional. Os encontros abrem a possibilidade de uma polifonia narrativa. Nas diferentes dinâmicas, que envolvem a literatura, vídeos, fotografias, objetos de memórias e outros, cada professora procura lampejos do passado - o encontro com a profissão docente, a formação acadêmica na escola normal, a importância de pessoas que se tornaram referência na trajetória de vida e profissão. Partilhamos histórias de vida de mulheres que, enquanto tecem a “colcha”, fiam e desfiam a vida. No contexto da formação inicial de professores, levamos a abordagem (auto) biográfica para as salas de aula do Curso de Pedagogia e das diferentes licenciaturas que se concentram na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, especialmente por meio de diários, biografias educativas / narrativas de formação e memoriais. No campo curricular “Prática de Ensino/Estágio Supervisionado”, os alunos registram em diários, reflexivamente, tanto os acontecimentos significativos dos encontros realizados na Faculdade como as vivências no cotidiano da escola. Já as biografias educativas / narrativas de formação consistem no relato de acontecimentos que, ao longo da trajetória de vida, constituíram experiências significativas de formação; assim, articulando essa perspectiva com a dinâmica de seminários, os alunos são convidados a construir um roteiro narrativo prévio, apresentá-lo oralmente aos colegas para, posteriormente, elaborar, então, o texto que é socializado e refletido coletivamente pelo grupo. Os memoriais de formação também consistem em outro caminho trilhado. A pesquisa empírica de memórias comuns também pode ser viabilizada através do estudo de memorial acadêmico, definido como “uma narrativa autobiográfica da vida intelectual e profissional, escrita em resposta a uma demanda institucional” (PASSEGGI, 2006, p. 205). A autora o desdobra em duas modalidades: o memorial descritivo, que é uma reflexão individual referenciada em edital, e memorial de formação, que constitui um trabalho de conclusão de curso. Tanto um quanto outro têm caráter público, fazem parte de processo avaliativo e tornam-se documentos institucionais que podem ser consultados. Como narrativa,
13 o memorial tem seu foco na comunicação, mas pode ser utilizado como fonte de investigação O memorial de formação conta com a participação de um orientador. É necessário lembrar que a dimensão (auto) avaliativa do memorial se sobrepõe, como preocupação de formandos e orientadores, à sua dimensão (auto) formativa, subjacente ao processo de reflexão, mas que, mesmo oculta, é inseparável do processo narrativo do memorial. Este caráter do memorial deve ser levado em consideração para que o discurso para o outro, característico de processos avaliativos, seja identificado e contextualizado. Por exemplo, uma pesquisa com memoriais para conclusão de curso de atualização de professores da rede pública de Educação Básica de São Gonçalo indicou que as professoras contratadas redigiram seus memoriais preocupadas com a renovação de contrato para o ano seguinte. Para finalizar, retomando a análise desenvolvida por Nóvoa (1992) a respeito da natureza dos trabalhos produzidos nesse campo, enquanto centrados na investigação, na formação ou na investigação-formação, buscamos a intensidade de práxis de investigação e de formação que, dialeticamente articuladas, potencializem caminhos emancipatórios de formação docente partilhada, que, espera-se fertilizem as práticas educativas.
Referências bibliográficas
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