(CONTIGO AO OUVIDO)
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caderno 2 contigo ao ouvido junho de 2014
Caderno 2 contigo ao ouvido Editores: José Pedro Moreira Paulo Rodrigues Ferreira Tatiana Faia Capa: João Ferreira Alves
© Os Autores. Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercialSemDerivações 4.0 Internacional. ISBN: 978-989-691-272-7 Depósito Legal: 377058/14 2014 Enfermaria 6 Fyodor Books Avenida Óscar Monteiro Torres, n° 13B, Campo Pequeno, 1000 Lisboa enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com
ÍNDICE Amadeu Baptista
Nâzim Hikmet, em frente, de novo, ao Monte Mludag Andreia C. Faria Luiza Neto Jorge Catarina Santiago Costa Corola César Rina Vindicación de la poesía (y de tantas otras cosas) Daniel Francoy Falésias Dirceu Villa Vergonha Duarte D. Braga Emanuel Amorim Fernando Guerreiro Isabel Milhanas Machado
Der Himmel über Berlin Ясная поляна Sem saber Little poor rich girl Gastos
João Miguel Henriques Três poemas húngaros João Moita É o tempo da abundância e da paz sobre os campos Poucas vezes mais farei esta viagem José Manuel Teixeira da Enumeração: August in Paris Silva Luís Ene Chão, interrogação, planeamento, fama, cegueira, persistência, razão Manuel A. Domingos Contra o optimismo Miguel Cardoso Escalas Lembrei-me de Jean Genet Nuno Brito Flan Napolitano Patrícia Lino I am asking you with all my mouth Caleidoscópio
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Paulo Kellerman Paulo Rodrigues Ferreira
Arquivo Tamanho foi o ódio e a má vontade Glória humana O nome que no peito escrito tinhas Raquel Nobre Guerra «Há dez anos que escrevo o mesmo poema» Rui Almeida O homem que acena ao longe Samuel Filipe A pausa Sideral Tatiana Faia O trabalho Victor Gonçalves A democracia por vir Do basquetebol Victor Heringer Sebastianópolis abandonada György Petri / João Inverno de 80 Miguel Henriques et al Para alcançar um lugar ao sol (trad.) Nick Laird / Hugo Pinto Poluição luminosa Santos (trad.) Alba Da beleza Retrato do artista enquanto piada Salvatore Quasimodo Auschwitz / João Barcelos Coles (trad.) Cassandra Jordão Entrevista a um talento nunca publicado
66 67 69 71 73 75 76 79 81 84 88 92 98 99 104 106 107 108 111 113
NÂZIM HIKMET, EM FRENTE, DE NOVO, AO MONTE ULUDAG Amadeu Baptista para Vitor Silva Tavares
Aquela que traz a lua maravilha-me, venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara – fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso, e sei que não há carcereiros que me tolham o passo, nem prisioneiros que não possam libertar-se. A ronda cinge o cárcere, o meu povo, no seu intenso turco, tenta erguer-se da infrene dominação que o subjuga, mas, entre os muros, o meu sonho vem dessa lua que esta mulher me entrega quando ponho os meus olhos nos seus e escuto o que me diz como se estivesse a ouvir o coração. Escuto-a e uma peça de prata toca a minha cabeça, e assim ando a monte, assim a noite é um vasto vidro despolido onde transito quando o silêncio cresce nas masmorras de Bursa e embranquece cada um dos meus cabelos por esta sedição inominável. Não, não sou um fugitivo a correr as sete partidas do mundo – quem me vigia sabe que sou um poeta e que todas as palavras me pertencem, da Anatólia a Hatay, de Istambul a Adana. Ah, em Adana vi o cavaleiro turco em busca dos mortos, de espada desembainhada, erguia a bandeira vermelha e perguntava pelos gregos,
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6 os gregos que dormem na terra da Anatólia, a acusá-los sardonicamente, porque se deitaram ao lado dos turcos que morreram na terra onde as magnólias florescem sobre os telhados das casas. Ali recitei o Corão, balouçando-me nos joelhos, para a frente e para trás, depois do muezim entoar o azan – que os meus pés descalços, a sua planta calosa, mostrem por onde andei e como, em menino, ouvi canções de embalar, poemas mevlevis, e deixei de ser crente na esperança divina, porque tudo o que faço está para além de qualquer recompensa, para além do temor do castigo, e trago comigo um revólver carregado na algibeira das calças, de que sou incapaz de me servir, enquanto canto. Pela causa posso cegar, ficar coxo, estropiado, submergir pelos piores pesadelos, aguentar os nevões e o frio da avenida Tverskoi, discutir com o amigo Maiakovski a envergadura dos versos, ir de Tiflis a Kars, depois a Gálata e Pera, depois a Ankara, a enfrentar o Tribunal Especial, e ser condenado ao segredo, essa cúpula de alvenaria no meio da prisão com grades de ferro na janela, mas sem vidraça, onde o chão é de cimento e neva dentro da cela, e onde, a qualquer momento, posso voltar ao grande exílio, posso voltar à avenida Srasnoi, onde bato os pés sobre a neve e Fédia Seis Dedos, da bacia do Volga, regateia comigo o tamanho dos peixes como se regateasse o tamanho da fome dos seus doze anos sujos e esfarrapados, a quem, com um sorriso, ofereço o meu último cigarro,
a lembrar-me da nudez das coisas, da raiva, das mulheres de Alepo e de Salónica, para, por fim, trocar com ele o pequeno peixe que lhe dei em sigilo por outro um pouco maior. Vá, agora, pergunta-me quem sou, afirma comigo que há anjos incaptáveis e que nas estrelas arde o surdo movimento do mundo, diz que nelas arde o implausível, e aos camaradas de Esmirna nada mais resta do que a corda em que os enforcaram e os ossos brancos pelo flagelo da amargura, enquanto eu me pergunto como se enlaçam os destinos, que rumor magnético das pedras nos une às platibandas que crescem sobre o mar – dentro das pedras há pulsações, entranhas vivas, sedimentações de sangue, de humores, tal como nos homens há alegria e tristeza, e nostalgia, mas nenhum tirano há que me pacifique, nenhum déspota com o seu gorro escarlate, a sua cara estúpida, as suas 800 concubinas. Silencioso e concreto, o cavaleiro vermelho avança, venha ele de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara, e eu, tal como ele, estou em toda a parte, a abrir buracos nas rochas, a abrir buracos nos buracos, a abrir o peito à afeição peculiar que me adensa o sangue e mantenho em favor de quem vai comigo, e olha a lua, e sofre da fome universal dos que nada mais têm que um desconcertante sonho de pão na aridez implacável do deserto,
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8 o pão que pertence à maioria, mas a maioria não tem – digo que estamos de costas, que disparam sobre nós quando estamos de costas, que o tapete está deitado de costas quando dorme, que a casa, adormecida, está deitada de costas sobre o mundo, digo que o mundo está adormecido de costas, tal como as acácias estão adormecidas de costas na calçada, tal como os olhos das janelas, dos telhados, da luz oblíqua que os toca, tal como aquela que traz a lua e me maravilha, venha ela de onde venha, com a falha clara na fieira dos dentes a iluminar-lhe o sorriso. Não nascera ainda e já a miséria me era insuportável, a vaidade asinina seguia os carreiros de gravilha da Europa, ia Abdul Aziz, senhor do Império Otomano, ao lado de Napoleão III, em Paris, e eu via tudo, Abdul Aziz cevava-se ao passar revista aos vinte e cinco milhares de tropas no Arc d’Étoile, com as roupas europeias verde-escuras e o fez rubro na cabeça, com a sua fraqueza, a sua idiotice, a sua ignorância, filho de uma mãe prepotente, mas chefe de uma grande realeza, bastando-lhe mover um dedo para mover marinhas e exércitos, com o poder de vida e de morte sobre milhões, a comer, a dormir e a espreguiçar-se, enquanto um exército de cobradores de impostos espoliava o povo, a esborrachar-lhes as caras contra as barras, porque aqui é assim,
um homem rouba um pão e cortam-lhe a mão direita e a perna esquerda, e pregam-no na praça para servir de exemplo. Agarro-me ao concreto, estou a nascer, os meus ossos estão, ainda, em formação, quando tiver dentes porventura alguém mos partirá, esta viagem é extravagante, não se sabe o que decide a sorte de um poeta, serei um cão, uma raposa, uma cegonha, nunca se sabe o que será um poeta quando alguma coisa falta ao mundo, e, entretanto, passam uns anos na minha juventude e morre-se, morre-se de verdade em Gallipoli, entre os cadáveres dos turcos só há o ar pestilento, só há as moscas grossas e verdes num enxame terrífico a sobrevoar os corpos contorcidos, apodrecidos, enquanto o que resta é só a ignorância dos poderosos, a sua ganância, a sua sede incomensurável de domínio, a acomodarem-se em sedas, a encomendar gráceis iluminuras de minaretes e príncipes, de palmares e princesas, enquanto a artilharia sobe de tom, sobe sempre de tom, com os francos e os ingleses a morrerem-nos à frente dos olhos, embora a nossa derrota pareça iminente e todos acabemos a tirar piolhos das costuras das fardas e, para os cadáveres que se amontoam, haja e não haja setenta e duas virgens para nos dar prazer. Assim aconteceu mais tarde, aquando da invasão dos gregos, que tudo querem de nós, querem, afinal, Bizâncio, o seu antigo mundo, querem negócios estes negociadores implacáveis que são capazes de negociar com quem lhes assassinou a mãe,
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10 querem terras, um nunca acabar de terras que dizem pertencer-lhes, o incêndio a alastrar em 1922, a fuzilar-nos: a dominação fará de nós não mais que estrangeiros na terra onde nascemos, uma terra de sultões e de paxás, uma terra de linces desapossados de tudo, enquanto, nas trincheiras, cheira a cadáveres, cheira a cordite, cheira a merda, cheira a mijo e a suor, e chega ao auge o desejo de matar, nas granadas de estilhaços, no zunido das balas, no baque das bombas, no seu ronco mortífero, enquanto a realeza, longe da planície de Divrin, longe dos soldados sem rosto que só o cavaleiro de gorro vermelho sabe quem sejam, se banqueteia com as escravas circassianas, georgianas, eslovacas, núbias, e fumam o nagrilé, e mandam que lhes preparem o banho, o chá de maçã, o café preto, enquanto Salónica está perdida, e está perdida Esmirna, e Creta, e o mar, e o mais que nos roubarem. Eu ardo, afirmo-vos que ardo, pressenti que só se ardêssemos a treva se dissiparia, de cabo de guerra a paxá Musfatá Kamal será Atatürk, herói dos Dardanelos, pai dos turcos, genocida dos arménios, envio-lhe uma carta para que seja revogada a injustiça que sobre mim recaiu enquanto homem e cantor resistente, mas não me sento à sua mesa redonda, serei poeta continuadamente,
a cela é um vasto território de quatro metros quadrados de betão, um universo para o meu poema e, por isso, todas as noites invento um sopro para a noite, um sopro ardente, e nunca há noite, e sei que não há carcereiros que me tolham o passo, nem prisioneiros que não possam libertar-se, ainda que me queiram enforcar, quem sabe se numa árvore igual à de Guernica, calcinada pelos bombardeiros alemães, ou algum arbusto rasteiro de Adis Abeba imolado pelos italianos – se escravo sou, digo que todos os escravos são virtuosos, pedintes, pregoeiros que sejam, cavaleiros marcados pela guerra e pela morte sob todas as formas, embiocados na máscara mortuária que a todos consome e que nenhum dervixe rodopiante pode harmonizar, um poeta, pese embora a malária e a disenteria, cantará para sempre. Ah, o negrume da minha cela é luminoso, os mortos mordem-me os pés, vejo-lhes o coração a bater nos peitos destroçados, vejo as feras que os consomem e tomo partido, estudei na universidade comunista e vou na grande onda que ulula, e berra, e vocifera, e canta – levanto-me pelos mortos, invectivo as forças obscuras, castigo a infâmia para além do inimaginável, e o impensável é a queimadura da violência, o rufo das granadas, a rajada das armas, o estrondo dos tanques, os esquadrões em linha como arganazes
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12 domesticados a degolar à baioneta, a amontoar cabeças em cestos de vime, a lançar gasolina sobre uns quantos camponeses capturados, uns quantos deserdados, a tocar-lhes o lume, a violentar-me, a mim, que nunca estive na guerra, mas nela estive todos os dias da minha vida. Vá, afirma comigo o que ambos sabemos, diz que és a nuvem que eu sou, que o comboio nos leva, que batemos às portas consecutivas do mundo, que depende de nós repartir o pão que não temos, que os melhores dias são os que ainda não chegaram, que é fácil esperar pela morte, assim como é fácil abrir as grades pelo lado de dentro, ainda que pelo lado de dentro, tal como pelo lado de fora, se possa erguer um arrazoado de pistolas automáticas e haja carrascos por toda a parte – até dentro de ti, montanha. Ah, aquela que traz a lua maravilha-me, venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara – fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso: e estou em greve de fome, a modelar na prisão as estacas que se plantarão no globo, e sei que as crianças levantarão os estores para que a luz circule à superfície da terra, e com o luar chegue a luz da humanidade; os estores, tal como as estacas, são negros, tal como a luz que aqui há, mas em Bursa aguardo como um cargueiro ancorado, virão as crianças e entregar-lhes-ei o coração, este pobre coração talvez derrotado pela arteriosclerose, a nicotina, as dores de fígado, o infortúnio,
mas sempre vermelho como uma maçã, sempre vermelho nas mãos das crianças que me sorriem do mundo, crianças já nascidas e crianças por nascer, enquanto eu morro em Moscovo, com o luar no rosto, essa luz que entretece a manhã e vem de ti, amada.
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LUIZA NETO JORGE Andreia C. Faria Resta o espaço aberto na parede para a escrita da infância, da ferrugem A música a chiar como fogueira triunfal, a alumiar o cerzir-meias, a pobreza e os finos pulsos de gato em que lambes as cinzas A moldura humana oxida. O teu rosto apela à dissidência, deixa expostos os fios do circuito, o pressuroso e fundo sinal – raiz na oval do cérebro –, e todos os poemas te fecham sob a agulha e sob as pálpebras Dizem que é má a sonoplastia nacional – afogamentos, um assobio de vozes submergidas Assim, por erro técnico, desencadeia-se uma possibilidade: a criança e o livro aberto na terceira dimensão, tu, na sombra geológica da perdida plumagem, o animal que mais te lembra é o pavão, o de mil olhos depostos fazendo da curiosidade resguardo e manutenção Nesse ângulo irrealizável
explicas – bizarria sem vaidade – o que a vida excede no mistério do teu último poema (A partir do filme de João Roque para a RTP, 1982)
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Catarina Santiago Costa
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COROLA Catarina Santiago Costa As crianças amassavam a carne firme a membrana estaladiça os seus pequenos órgãos ampliavam-se perante os meus olhos nus que as perfilhariam todas. Negava que daqui a nada a corola se abriria exibindo estigma e estilo apesar do céu negro de insectos e pássaros.
César Rina Recuerda que tú existes tan sólo en este libro, agradece tu vida a mis fantasmas, Luis García Montero
Las siguientes reflexiones no me pertenecen. Como todo en esta vida son producto de notas y lecturas, de experiencias y conversaciones. Lo importante de las ideas no son su autoría, sino la movilidad que alcancen y el poso que transmitan. Aprendí lo siguiente de Rilke, Margarit, unos cuantos poemarios subrayados y las lecciones de Luis García Montero. Creo en la utilidad de la poesía como acto de contestación ante un mundo que no espera. No sólo se trata de un empeño por la belleza. Implica un grado de rebeldía en el momento en que los versos se comprometen con las personas, con sus inquietudes y sus anhelos. Además, la belleza – entendida como perfección – necesita de un tiempo que nuestras calles adolecen. Implica tomarnos en serio, detener el reloj y profundizarnos. Esa búsqueda no es fructífera en las rebajas de los centros comerciales ni en los encuentros de idolatría. Precisan de una intimidad, de una soledad que por sí sola es revolucionaria. Es decir, la poesía como aprendizaje y como terapia. Hemos colmado nuestro espacio de objetos vacíos. Planes y redes que tienen como principal objetivo alejarnos de la soledad, apagar las voces interiores y escondernos de nosotros mismos. Los poemas requieren un arduo proceso de escritura y una especial sensibilidad en la lectura. Para entenderlos hay que esforzarse palabra maldita en la ética del consumismo sin espera. No permite la relajación de los sentidos. Por eso los best sellers
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VINDICACIÓN DE LA POESÍA (Y DE TANTAS OTRAS COSAS)
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colman las estanterías. Uno puede leerlos sin prestar demasiada atención. Renuncian al detalle en aras de la velocidad. Tampoco son buenos tiempos para los artesanos. La dedicación, la filigrana, han perdido su sentido en nuestro mundo homogéneo. Creo en la victoria de las creaciones lentas y ahí, la poesía, se erige como baluarte de la lentitud. Inventamos la civilización para ganar tiempo. Todos los progresos técnicos nos han permitido ahorrar horas y sin embargo, no conozco a nadie con demasiado tiempo libre. Cuantos más minutos nos regala la ciencia, más tiempo necesitamos en el trabajo o en los transportes. La lectura de un poema implica la renuncia del reloj para conseguir un espacio propio, atemporal, de silencio y reflexión. La interpretación viene precedida de un ejercicio e introspección, personal, en el que el abanico de experiencias del lector busca sentido a los versos. Se trata de intensidad. Los poemas no dan la menor tregua a la relajación, contienen la respiración desde la primera palabra. La poesía ha de ser exacta y concisa. Busca la complicidad. No describe historias imaginadas, sino que se sienta tranquilamente con el lector a tomar un café y compartir impresiones a partir de las experiencias personales. No hay mejor manera de combatir un mundo cada vez más conectado y menos relacionado. Un horizonte líquido donde las personas tienen una importancia relativa y están sujetas a los intereses y necesidades de cada momento Creo en los poetas porque me han hablado del misterio en un mundo que cada vez cree tener las cosas más claras. Lo incomprensible, lo oculto, es tachado de mitológico. Por estos motivos ha triunfado el consumo de ocio basado en los receptores pasivos, sin tiempo ni ganas para dudar. Los versos dejan intuir horizontes desconocidos que atraen al ser humano capaz de percibirlo. Por ello nuestra felicidad Light, la de las respuestas claras y las sesiones de psiconálisis, ha fabricado una imagen negativa del misterio.
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Para escribir poemas se precisan tres elementos claves que me permiten, en la mayoría de los casos, confiar en el emisor. En primer lugar, es necesario vivir intensamente, sentir sin barreras, creer en la importancia de las sensaciones. También se acompaña de un profundo conocimiento de sí mismo, sin más compañía que las voces recriminatorias del silencio. Sólo pueden hacer poesía aquellos que han aprendido a escucharse. Por último, el poeta se vale de otras lecturas para encajar su concepción del mundo en la tradición literaria. Esto evidencia un trabajo previo de lectura y comprensión, sin relojes ni alarmas. De entrada, el lector-escritor de poesía no teme adentrarse en un mundo de sensaciones no siempre agradables. Los poemas son siempre el fiel reflejo de lo que uno ha vivido, pensado o entendido. Están íntimamente ligados al amor. Pueden compararse a las cajas negras de los aviones, almacenando todas las experiencias en un pequeño frasco. La poesía surge del proceso por el cual una persona profundiza en sí mismo en busca de las palabras clave que transmitan una sensación. Representa palabras sin rostro, un refugio donde el poeta puede explicarse sin dar la cara. Literatura es una palabra latina que significa el arte de escribir y leer. Sin embargo, poeta viene del griego poietés, es decir, el que hace o crea. Este significado no tiene relación con la escritura. La poesía es anterior al texto, ya que su esencia es primitiva. Es una forma de vida, un modelo de comprensión del mundo y del amor – aquella ciudad que uno nunca termina por conocer-. Se puede ser un gran poeta sin haber leído ni escrito nunca un verso. Las librerías están llenas de falsos poetas. El engranaje de los versos nada tiene que ver con la preparación intelectual o el sistema educativo. Van de lo particular a lo universal. Aluden a sensaciones que sienten por igual todos los seres humanos, independientemente de cuestio-
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nes sociales, culturales o económicas. Son más profundos que todos los métodos y teorías. De esta manera la poesía se concibe como un modo de vida más que como un oficio reglado, por más que los malos y ególatras lo nieguen. Mi abuelo, pastor de cabras en las Hurdes de posguerra, analfabeto, recitaba coplillas sin el ánimo de ser escuchado o aplaudido. Sus pareados emergían de las horas de soledad en el monte, y las palabras sólo pretendían ayudarle a conocerse. Creo en la poesía porque renuncia a la originalidad. Sólo hay novedades en las formas porque el mensaje, como ya hemos mencionado, ataca a los instintos primitivios, obviando su racionalidad. Trabaja con matices para desentrañar problemas que nos afectan a todos. No se trata de una escritura en vertical. Hace referencia al tratamiento personal del mundo con la lengua. La verdad en poesía no es una cuestión de principios, sino de logros. El poema debe ser convincente, capaz de llegar al mayor número de personas posible para construir, entre el lector y el verso, una concepción común. Creo en la poesía porque siempre es justa. Todos los versos que transforman la percepción del mundo del receptor son buenos. No hay favoritismos ni contratos editoriales. La poesía no se nutre de dinero ni de halagos. Se convierte en realidad en el mismo momento de ser pronunciada. El poeta no habla de lo quiere, sino de lo que necesita decir. Utiliza los versos como válvula de escape, lo que le permite conocerse a sí mismo y navegar con brújula por la memoria. Creo en los poemas que toman una instantánea perfecta con palabras, en los que fotografían un sin fin de sensaciones, experiencias, sentimientos e intuiciones. El poeta construye un edificio perfecto en la que cada columna es vital para sustentarlo. Pero además, le sirve de comunión íntima, con todo el sentido litúrgico que se quiera. De la nada, como un demiurgo, modela el barro y da vida a lo inerte. Una construcción donde el juego y el azar eligen en cada circunstancia las
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palabras adecuadas. Esto significa que cada poema tiene su propia dirección, existe antes de ser nombrado y sus caminos son incontrolables. Por último, defiendo la poesía porque revaloriza los sentimientos en unos tiempos malos para el amor. Los poemas permanecen, anclan las sensaciones en un para siempre que nuestra sociedad líquida no está dispuesta a aceptar. Sometidos al consumo objetos obsoletamente programados, tememos las sensaciones, los esfuerzos y los compromisos que puedan hacernos perder tiempo y dinero.
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FALÉSIAS Daniel Francoy Lembra-me uma estátua de Afrodite afogada – ruína intocada de um cemitério que permaneceu submerso enquanto o vento soprava falésias e do areal apagava os nossos passos; como se, devido a um acidente climático, um mar secasse e revelasse o que jaz: a ossada de um navio naufragado e também você, devolvida a mim como os mortos de Pompéia. Está próxima. Escuto-a a respirar mas chego a temer o impulso de acariciá-la como se o seu abrir de olhos fosse transformá-la numa destas criaturas que um deus desfez em sal para a purgação de uma sede malsã. Vejo-a. Escuto-a e pesa a suspeita – mármore sobre o peito – de também estar submerso. Ouço-a e depois o vento sobre a erva rasteira pelas alamedas do condomínio. No outro lado da parede, irrompe um choro de criança. É o térreo. A escada aos andares de cima está sobre o teto e cada passo ressoa como que vindo da madrugada absoluta. A insônia é uma encruzilhada de rios que lentamente secam: o ontem
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ainda preso à pele, mas não como cicatriz, não como gota de orvalho – na superfície da epiderme como algo banal (outra nódoa de gordura no casado puído) enquanto velo o seu torso a se encher e a se esvaziar: seguidamente, inesgotavelmente, como se a mim fosse dado contemplar, grão após grão, como se forma o infindo areal em que nos achamos.
VERGONHA
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Dirceu Villa velhas palavras de doces à mesa, curtos abraços apertados, tanto afeto. roseira enlaçando paredes com tinta velha e musgo vivo: nós nos damos aos outros liqüidamente. nós nos entregamos em pele, no pulso do peito, nos espinhos que coroam a cabeça torta, no olhar que penetra indiscreto – e sem escolha sobre ser indiscreto. composto equilíbrio, desvelo, coerência, nos custa o ser inteiro, e não poroso, o ser um rosto e não disfarce: mãos sem a perícia do cristal, mãos inexpertas, de partir, da iminência cinza desse medo, desse mundo que não queima e vira pó (e outro mundo após), desse mundo sempre aquecido de constância e de saber, onde o terror é o acrobata em risco de cair, é o raio cego que corta em dois o azul, com nuvens fechando o semblante do céu, esse assassino de segredos. nós temos joelhos e visão interna, temos amor entornado do jarro delicado que se quebra. temos vergonha. temos um dia que se encerra.
DER HIMMEL ÜBER BERLIN
para ulf stolterfoht «alguns vieram em auxílio do céu» disse ulf através da sra. waldrop através de mim. caem os muros diante desse telefone-sem-fio ou haviam caído antes por obra de tradução, política e marretas, e eis o céu novamente. em auxílio dele eis a teologia que fabrica nuvens brancas sem as manchas que lhe punham canaletto e cuyp. do céu como paraíso em heaven vem o sopro da teologia tomista. rupturas aparentes, não no muro, mas na parede de escolástica, ou – permitida a licença poética – nas palavras hermeticamente fechadas dos livros da lei, tão pouco prática. anjos alçam o céu, que ne nous tombe pas sur la tête, que não suma sob co2. alguém engasga em socorro do céu.
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Dirceu Villa
ЯСНАЯ ПОЛЯНА
Duarte D. Braga
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Duarte D. Braga O buda dialético desta era reside ao fundo de um bosque de bétulas. Partilha a herdade com súcia e meia de camponeses sujos. A candura de uma criança e o trato de um gigante egoísta. Disse-me para voltar pra casa e reescrever os breviários, reflorestar o mundo calcinado pela Inglaterra. De que me serve compor um motete para os caídos? Em casa fomos sempre todos franciscanos desde a rainha santa, que aprendeu com arnaldo de vilanova alguns truques alquímicos que fariam furor. Deixei-lhe um postal ilustrado com os túmulos de alcobaça, prometi para breve uma tradução francesa duns versos do afonso lopes vieira, que afiancei o melhor vate do sol-posto, e pensei cá para comigo: da próxima, já não vamos ter encoberto no oriente. Será na amazónia ou no líbano que o supra-camões, novo buda dialético, virá, breves anos transcorridos, instaurar uma teocracia na poesia portuguesa, redefenestrar os espanhóis e fazer novos autos de fé nos cerebelos.
SEM SABER Emanuel Amorim
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Senta-te nessa cadeira, não tenhas medo, não te vou fazer mal. Não estou zangado contigo, não te preocupes. Estou apenas um pouco desiludido, não esperava isto. Não esperava que traísses a minha confiança desta maneira. Não estou chateado. Sabes o que provocaste, correcto? Pensaste nas consequências? Diz-me, pensaste? Sabias o que podia acontecer? O que iria acontecer se abrisses a boca? É importante prevermos o que podemos causar se dissermos certas coisas, se fizermos certas coisas. A isso chama-se responsabilidade e tu já és crescido. Com onze anos tens de sentir o que é a responsabilidade. Não tens desculpa, já não és uma criança. Tens idade para compreender as consequências. Tens idade para pensar por ti mesmo. Pensaste? Pensaste antes de falar com a tua mãe? Ponderaste? Colocaste em perspectiva? Hesitaste? Não estou chateado contigo, apenas desiludido. Esperava lealdade da tua parte. Sabes o que isso é? Esperava que não me traísses desta forma, que não me deixasses ser apanhado desprevenido, completamente de surpresa. Falei contigo, fui sincero contigo. Confiava cegamente em ti. Não estou chateado, mas penso que agiste mal, que fizeste a coisa errada. Não entendeste que nem sempre a verdade é o melhor caminho. Não entendeste que a mentira é necessária, tão necessária quanto a verdade. Tens uma ideia muito formatada do mundo – o bem e o mal, o certo e o errado e essas tangas que passas a vida a ouvir nas aulas, na televisão e na boca da tua mãe. Aposto que ela te pressionou, que ela puxou por ti. Chantageou-te e cedeste. Já não tens idade para ir atrás da conversa dela, mas foste. Achaste que estavas a fazer o bem, quando estavas apenas a destruir algo bonito, algo que era muito bonito, mas que não estava bem, não estava temporariamente bem. Se tivesses acreditado em mim, em breve tudo voltaria a ser como
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era quando tudo estava bem. Não esperaste, foste impaciente e agora estamos os dois na merda. Não estou chateado contigo, não posso estar chateado contigo. Julgaste que estavas a fazer o bem, tomaste um partido, o partido da pessoa que achaste que estava a sofrer. Fizeste-o em consciência? É só nisso que tens de pensar. O resto é duro, mas todos nós nos habituamos. Vais ver que sim. Não desligues, deixa-me falar contigo, espera, dá-me só uns minutos. Estás a ouvir-me? Sim? Olha, não te preocupes, não te preocupes mesmo. Tudo tem o seu fim, a vida é mesmo assim. O casamento dos teus pais já não andava bem, não podia andar. Quando conheci o teu pai, ele era um homem triste, infeliz, que não sabia o que se passava com a tua mãe. Ela faz coisas que ninguém compreende, não achas? Eu sei que ela é tua mãe, mas tens de admitir que o que ela faz é muito difícil de aguentar sem perder a cabeça. E o teu pai nunca a perdeu, sempre tratou muito bem a tua mãe. Não penses que ele fez tudo isto para a magoar. Percebes que ele sentia muita culpa? Há um fim para tudo… Ele não podia aguentar mais. Sentia-se muito sozinho. Foi por isso que nos conhecemos. Foi por ele se sentir sozinho que me encontrou, não achas? Nada acontece sem haver uma razão, entende isso. Nada acontece porque sim. A tua mãe não queria saber do teu pai, só se preocupava com as suas paranoias. O teu pai contou-me cada coisa de brandar aos céus. O que esperavas que ele fizesse? Que vivesse infeliz o resto da vida? Casatrabalho-casa-trabalho e nem um pouco de felicidade? Era isso que querias para o teu pai? Não te preocupes, querido. Tudo vai ficar bem, confia em mim. O teu pai está muito magoado, mas vou falar com ele, vou dizer-lhe que tu és um bom menino e que não fizeste por mal. Dá-lhe um tempo, deixa-o recuperar em paz. Vais ver que ele te perdoa. Eu vou falar com ele, vou dizer-lhe para te deixar vir dormir a nossa casa sempre que quiseres. Podes vir todos os fins-de-semana.
Não quero que voltes a falar com ela. Não quero saber o que ela te disse. Não quero que voltes a falar com ela. Não posso consentir que o meu filho fale com a mulher que ajudou a destruir o meu casamento. Não posso permitir isso, não tenhas ideias, tu nunca mais vais falar com ela. Ela não é tua amiga, ela fez-nos mal, percebes? Vais ignorá-la sempre que quiser falar contigo. Diz-lhe para vir falar comigo, que não tens autorização para falar com ela. Que ela fale comigo que vai ver como elas mordem. Não voltes a falar com ela, ouviste? Levanta a cabeça, não fiques assim. Só preciso que me prometas que não voltas a falar com ela. O teu pai que faça o que quiser, agora é livre para fazer o que quiser e aposto que se vai meter na casa dela. Ele não se portou bem comigo, nem contigo. Não te sintas culpado, ele é o único culpado, foi ele quem causou tudo isto. Agora somos livres. Não te sintas culpado, nunca te sintas culpado. Fizeste a coisa certa, fizeste mesmo a coisa certa. Acredita que doeu muito ouvir o que me contaste, mas estou feliz por teres contado, por teres estado a meu lado. Agora sei que nunca me faltarás, independentemente de quem me quiser fazer mal. Isso é tão bom, não imaginas. É tão bom saber que o meu menino gosta de mim. Não chores, não vale a pena chorar, agora somos só nós, só nós dois e mais ninguém nos fará mal. Vamos ser muito unidos e assim mais ninguém nos fará mal. Ninguém me fará chorar como ele fez e não vou deixar que ninguém te faça chorar como estás a chorar agora. Ouviste? Eu sei que posso confiar em ti, eu sei que és um bom rapaz, que gostas da mãe como a mãe gosta de ti. É tão bom, não é? Abraça-me, dá-me um abraço, não chores mais, não vale a pena, vamos estar sempre juntos.
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Podes vir sempre que quiseres. Faço-te um bolo. Sei que gostas muito de bolos. Ele disse-me. És guloso, tal como ele. Aposto que gostas de bolo de chocolate e noz. Aposto que vais gostar do meu bolo de chocolate e noz.
LITTLE POOR RICH GIRL (1965) Fernando Guerreiro
Fernando Guerreiro
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1. Da reversibilidade (coincidente) do céu e do inferno no mesmo filme. Na primeira parte, em flou contínuo, o zoom da câmara trabalha a matéria da imagem – o rosto adormecido que parece vindo de Sleep. Revolve-o em profundidade ou amacia-lhe as superfícies. A ausência de definição da figura permite esse trabalho substancial sobre a imagem. E a imagem, aqui, com o seu carácter massiço de «matéria-forma»(ou «informe») – o seu registo é o da «metáfora-deformação» a que se refere Jean Epstein –, adequa-se à noção de Imagem-Tempo de que falará Deleuze. A «duração» constitui afinal a substância, profundidade (como em Orson Welles), da imagem. Dilatando os poros da pele, os contornos da figura, o tempo acentua o efeito de branqueamento geral que trabalha o modelo das Odaliscas de Ingres por uma anamorfose que evoca tanto o (quase) nu de Kiki de Montparnasse em L’Étoile de Mer de Man Ray/ Robert Desnos (1928) como os corpos derramados das fotografias de Bill Brandt (nos anos 50). Daí, também, a sua perfeita junção à música: se esta sensibiliza, eleva as formas da imagem (a sua dimensão figural mas não figurativa) ao registo lírico, a imagem, como uma caixa material de ressonância, dá substância e permite ouvir, como se fosse pela primeira vez, a música. Evidencia a «filosofia» (e a ética) do pop americano dos anos 50/ 60 – de que emanam as canções dos Everly Brothers (disco que se ouve na primeira parte do filme). Relação de tal modo «co-substancial» que, percebe-se, o «vazio» a que a primeira das canções se refere («Hello emptiness / I think I could die», de «Bye Bye Love»)
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constitui o princípio estruturante, vazio cheio?, da própria estética do filme. Como Jean Epstein observa em 1921, num ensaio sobre a «nova poesia» (melhor, a «poética geral») desses anos (La Poésie d’Aujourd’hui. Un nouvel état de l’intelligence, La Sirène), existe uma relação substancial entre, por um lado, o estado de «fadiga», nervosismo inerte, provocado pela repetição obsessiva de imagens/ figuras e a presentificação (opacificante) de materiais e dispositivos, e, por outro lado, o carácter alucinatório (objectivado e ampliado no Grande-plano do cinema) e «pontilhista» (de uma dissipação sensorial quase táctil) do novo sensualismo estético (já que o cérebro, as suas formações e figuras, constituem, antes de mais, para os autores deste período, efeitos das sensações=sentidos). Fazendo da «fadiga cerebral e intelectual um factor capital do desenvolvimento da civilização» moderna e da nova estética (de que o Cinema, «arte espontânea», constituía então um bom catalizador ), Epstein refere-se tanto a um efeito de nivelamento («applatissement») produzido pela saturação dos sentidos (como no pop, «tudo é projectado conjuntamente, lado a lado, no mesmo quadrado do ecrã»/ «nada deve vir perturbar a monotonia desse efeito de relevo [hiper-real?] exclusivamente cerebral» [hiper-imaginário?] [145]), como ao efeito de alucinação das imagens sobre o fundo pregnante dessa anestesia=esvaziamento dos estímulos («imagens-afecto» que dariam «não um objecto mas a emoção específica desse objecto»[165]), o qual, por seu turno, nos ligaria ao que ele designa por «vida vegetativa» («um estado passivo de inteligência sucedendo-se, intermitentemente, a momentos de actividade cerebral completa e lúcida»[155] [traduzimos]). Assim, movendo-se pelo quarto, o corpo quase que se indistingue do fundo, também branco, emanando ou regressando momentaneamente a ele: deste modo, quando se despe, sempre em flou, é como se se desfolhasse para dentro,
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deixando ver o caroço do tule: o núcleo duro da roupa interior (soutien e slip, escuros) que, por contraste, o visibilizam. Ao fim e ao cabo, um verdadeiro simulacro (Lucrécio), película que se solta, despega, da própria matéria (substância) imaginária-real do fantasma. O corte abrupto para a segunda parte do filme – introduzido pela imagem da faixa de carne branca surpreendida entre o negro da roupa interior, a que agora se acrescenta a luva de uns collants negros – transporta-nos para outro cinema, o do nervosismo (no sentido em que, para Epstein, referindo-se a Chaplin, o «nervosismo» era «fotogénico» [Bonjour Cinéma, 1921]). Assim, quando Edie atende o telefone (e este filme é A Voz Humana [Cocteau] de Warhol), refere-se a si própria na terceira pessoa, como «she» («Yes, this is she»). Também a música muda (depois de «What have they done to the rain?», na versão do Kingston trio, temos as Shirelles e, por fim, «It ain’t me babe», na dupla versão de Bob Dylan e Joan Baez), ao mesmo tempo que o definido do preto e branco objectiva sem complacência o «teatro da pele» e as «instáveis metamorfoses» (Epstein) que perturbam a superfície quase diáfana da carne: como uma lente, um olho inumano, o Grande-plano dá-nos a ver o «drama em directo» das convulsões do corpo, tanto as escaras da pele e a penugem entre as sobrancelhas como o movimento quebrado da voz e do corpo («no ecrã, a qualidade essencial do gesto é nunca se completar», observa ainda Epstein [Poésie: 172]). E de facto, o «negro» (das roupas) acentua o branco da pele, ao mesmo tempo que joga com as sombras da parede: agora, a imagem (o cinema?) surge como uma caverna onde se encontram e de que se procuram soltar, evadir, as formas= figuras. Passagem do onirismo branco do flou («all I have to do is dream», ouve-se noutra das canções dos Everly) ao inferno=pesadelo (do quotidiano) das sombras («Are you
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gonna to wake up?», exclama Edie , dirigindo-se à entidade – Chuck Weiss ou a câmara [Warhol] ? – com que dialogará até ao fim do filme). Fassbinder, em certa medida, vem daqui: nele encontramos um mesmo olhar (des)subjectivado, clínico (o que não quer dizer «limpo»), frio, mas que trabalha (no sentido do francês «labourer») directamente sobre a carne (como em Stan Brackhage [Autopsy – The act of seeing with ones own eyes, 1971]), não a sua abstracção. Porque o espelho, sim, aqui encarna, opacifica . Se na primeira parte, frente ao «tocador», tínhamos o reflexo flou do modelo – esbatendo e neutralizando-se quaisquer contornos, linhas de definição precisos (já que aqui, como pretendia Epstein, ver=idealizar e as imagens são «ideias de ideias», (idée)2 [Bonjour Cinema]), agora, quando Edie se maquilha frente ao espelho temos três elementos presentes e não dois, dado que a sombra se inscreve como a dobradiça, a zona de fractura dos dois mundos, o real e o ideal=imaginário. Dois cinemas, portanto; tempos e registos diferentes: o mudo e o sonoro. A sua aproximação, colagem, aprofundando e evidenciado o hiato/ descontinuidade que entre eles existe, acaba por visibilizar os interstícios (das matérias, processos) e corporizar (dar-lhe volume, substância) o invisível. O trabalho das formas do corpo de Edie Sedgwick e do filme de Andy Warhol designa e situa-se nesse não-lugar (ou esse lugar-não) da radical inconciabilidade entre formas=imagens e corpos=real em que o cinema se inscreve e, de diferentes maneiras, revolve e exacerba na procura de um impossível contacto («tuchè»). A verdade do cinema, a haver uma, é a da alucinação e as suas imagens, se conseguidas, o resíduo (testemunho) disso.
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2. Edie Sedgwick depois do incêndio no Chelsea Hotel. Um cigarro que se iluminou – e então, logo de seguida, a noite apagou-se. De tanto arder, fulminou: tudo. Só às cicatrizes de Andy Warhol comparáveis, as suas rugas. Com as mãos entrapadas. Um cigarro já de novo nos lábios. A cara chamuscada, embrulhada num cobertor. Um rosto por onde o que se passou já foi vivido há muito. Um rosto do fim do mundo, vindo da noite e que contudo ainda nos ilumina com as labaredas do seu incinerado susto. Il a beaucoup appris, celui qui a souffert. Angel face. Incinerado rosto. Lágrima de rimmel quando se silencia (quando todo ele se revolve sobre si) o rosto. A lágrima é o sangue (o néon) do rosto. Não o de Cristo mas o do rimmel. Não o da cultura, mas o da fotografia. Não o do saber, mas o da morte – e o da vida. Não o do belo ou o do estético mas o do sublime, em que tudo se perde e ilumina. Make-up, antes ainda de tirares a roupa. Como quem compõe uma quadratura para o círculo. O make up, assim, é o que vem antes do rimmel. Rouge and colourig, incense and ice,/ perfume and kisses,/ eyeliner,/ yellow and greene,/ can love be made all of this? Make-up. Transformer. Lou Reed. Ou então, o poema insensato de Patti Smith: I don’t know how she did it/ Fire She was shaking all over/ It took her hours to put her /make up on. But she did it/ Even the false eyelashes. She/ ordered gin with triple limes/ then a limousine… But she did it. Para que a pose não só coincidisse mas constituisse o momento mais relevante da fotografia. Aquele em que se aplica o gelo (She ordered gin with triple limes) sobre a ferida. A pose (the false eye-lashes, the make up) da fotografia. O que fixa a fotografia. A sua forma rescapada de novo. Vinda de onde nunca teria saído. Do negro mais oculto. Do negativo que aqui se positiva. Como uma incinerada cinza. Por dentro ardida, por fora explosiva. E que com a sua simples presença, nos ilumina ou curtocircuita. O informe – no próprio momento em que
3. Edie Sedgwick atravessou o hall do Chelsea Hotel e nua correu para o parque (frio) apenas com um manto de peles e sem precisar do conforto dos sorrisos. É preciso ter (e perder) muito para assim se agarrar à pele, beber vodkas como quem incendeia o destino e para trás deitar cápsulas e cálices de noite e angústia. Será publicável este segredo? E restituível a poesia? Uma mulher fez de fera a sua pele e já não precisa de a tirar quando tem de sair para ir a qualquer sítio. Talvez a rapariga que sai do carro saiba muito mais do que há para saber (viver?) sobre tudo isto. Mistérios da pele, coisas pequenas – quando das páginas da Vogue de súbito explode (implode?) o (im)possível.
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um máximo de depuramento da forma foi atingido e em que, então, dispensando (desperdiçando) todos os seus outros ornamentos, como uma forma gratuita ela nos é oferecida. Este último cuidado, em relação a si mesma e aos outros, que a leva a retocar-se, em escombros, para a fotografia. Para a efeméride do dia seguinte – que algum jornal, numa folha interior, fixa. (Negativos, 1988)
GASTOS Isabel Milhanas Machado
Isabel Milhanas Machado
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Para a Mãe, que leu as palavras antes de eu as escrever Mão em contra Um dia olhar para trás e ver a estrada percorrida em contra-mão. O coração prestes a saltar, a pedir licença para expulsar todos os inconvenientes trazidos por meses (contei-os hoje contigo) passados numa espécie de tenda. Uma tenda montada no seio de um universo reduzido a leis e conversas de café. A tenda tão bem apetrechada de sonhos, conversas, descobertas ritmadas por tempos e acordes diferentes. Os meus, os teus. E aquela voz que, como hoje, sussurra ao meu ouvido palavras escritas para tu as leres. Oiço cada uma delas e apetece-me carregar um quadro branco, vazio, às costas, onde poderás contribuir com sonetos e didascálias ainda por inventar. A estrada segue em contra-mão, meu amor. E a tenda tão bem montada. Contigo ao meu ouvido. Enleado Tentei bater-lhe. Beijo-o mas ele vive enleado e temos nada que dizer ou adivinhar. Aceitas-me namoro? Entender-nos-íamos, a gente quase não sabe. A tua vida, sigo-a. Contemplava-me e disse-me certa vez: vens para o telhado? Encurtamos caminho e despia-me, a aguardente a tirar a gravata, tomava banho, esperava. Era uma época e havia semanas. As velhas benzem-se «tudo perdido» para nós e, ah, sonhos vagabundos, bandeira igual a igreja, um Avô respondão e corneteiro pôs à
janela objectos bonitos, frutos que não merecem pedidos de desculpa. Éramos pobres
Até qualquer dia Tantos gestos. Comer pão com morcela a subir a calçada, a barbicha ruça lendo o jornal, ver surgir ruas transversais e beijar na manhã clara as sonolências antigas. Ali, operários amigos perguntam onde vamos. É o oficio conjunto, alvo da felicidade: comer e beber, de mãos atadas, sexos juntos: emprego para a vida. Até qualquer dia! Era o Primeiro de Agosto.
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Éramos pobres. Lembro a luz baça na mesa-de-cabeceira. Quer entrar e inclina-se. Chega e apaga, aconchega-me a roupa no pavor de ficar só. Quarto onde dormíamos, habitado por nós até manhã. Vamos sair desta vida e ingressar noutra, levar pastéis de bacalhau, não largar as mãos; aparecerão todos (rasto que as mãos deixam) no palácio real iluminado. E a voz de dentro: aceitas-me casamento?
TRÊS POEMAS HÚNGAROS João Miguel Henriques I I am mainly an idiot you are almost beautiful
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Robert Creeley
eu julgo que és quase bonita ao ver-te duplicada na janela imunda de um comboio de inverno ajeitas dois fios do teu cabelo metes a mão à cara, porventura a cheirar nos dedos o almoço conferes o bilhete, o telefone o conteúdo da mala não sem peso toda a soma de últimos valores de boa passageira infrequente é que és mesmo quase de se amar mirando a paisagem desolada comigo, o maior dos idiotas suspeitando de repente alguma morte vagão quinze, pela tarde körmend-szombathely
II
nas cercanias de szatta que é nome de nítida aldeia tanto achado como perdido nos desvios do bosque escuro onde testei a resistência de pau lançado a tronco e peito à fúria dos dias III tu agora és dos montes entre os bosques e eu já das largas avenidas tu da casa onde arde um grande fogo e eu, além rio, do quarto esconso tu agora buscando o mais da vida e porventura eu do mal o menos reclamando à solidão o fraco lucro de todas essas coisas já sabidas que aligeiram assim uns quantos dias que lhes dão enfim uma corzinha como a música, bons almoços olhos lentos, alguma poesia enganos de contas a meu favor
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caçar não sei e já confesso: fraquejo de arco em punho sou mão de lenta lança recolho só à flor da erva o fruto de baga rubra ossadas de musgo e ouro galhos para uma fogueira
É O TEMPO DA ABUNDÂNCIA E DA PAZ SOBRE OS CAMPOS João Moita
João Moita
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É o tempo da abundância e da paz sobre os campos. Vejo-os ao olhar nítido da minha fome. As sombras estendem-se sobre eles como os rios no seu leito e eles são à superfície a agonia da paisagem. É o último dia de agosto, a tarde desce com o verão. Ainda se ouvem nas árvores os últimos pássaros e a agitação da folhagem esconde tantas asas quanto aquelas que ainda ferem o meu coração. Estive pronto e não parti.
POUCAS VEZES MAIS FAREI ESTA VIAGEM João Moita
Ambos os textos retirados de Fome (inédito)
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Poucas vezes mais farei esta viagem. A erva cresce com o trigo, as flores despontam, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol. O pó repousa nas covas abandonadas pelo vento ou soergue-se desamparado no topo das colinas onde o tojo se inclina para os precipícios. Na povoação, desmoronam-se as pedras sob a cal, o sustento dos homens. Há frutos que se arredondam segundo geometrias bárbaras, apurando o gosto. E os insectos com a sua azáfama insone, divididos entre beleza e deslumbramento. E a areia dos caminhos, mais batida que o dorso de um cavalo, é a crina desta paisagem. Em breve deixarei de passar por aqui. Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.
ENUMERAÇÃO: AUGUST IN PARIS José Manuel Teixeira da Silva
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a) No papel em branco, começar por estabelecer a teoria das três cidades (no mínimo): aérea, ao nível dos cais, subterrânea. Ir para lá do sítio onde sempre caminham os nossos pés, aquele que vem nos mapas dos turistas, muito dobrados sobre si próprios. Quem sabe, contar depois, com falsa ingenuidade, (mas será difícil…) uma história que tentasse nada disso esquecer. Nada disso e tudo o mais. Recapitulando. Primeira cidade: nas torres o lugar suspenso das nuvens, as ruas e as praças como um brinquedo frágil e sofisticado, com um trânsito preciso, cuidadoso; segunda: uma cidade mesmo junto ao rio, percurso solitário e errático de cais, largando os negócios do corpo e da alma uns metros acima; terceira: uma imensa plataforma subterrânea, túneis e túneis entrecruzando-se, esgotos, colónias de ratazanas e uma necrópole que murmura um silêncio com demasiada terra e raízes. b) Adenda à teoria de Paris: ter em consideração os torvelinhos atmosféricos, a edificação da tempestade em Montmartre e os grandes gestos das árvores ao vento, o modo como vemos outras coisas, protegendo os olhos. c) O abstracto do metropolitano, pontos sobre um mapa, passar e tornar a passar sob lugares de orientação do nosso destino, nós da vida, centros do mundo a que nunca realmente subimos, onde haveria uma história e seríamos, enfim, muito felizes. d) No metro, os pedintes são os verdadeiros parisienses, com uma retórica muito precisa e bem treinada: «Moi, Jean-François, 44 ans, dis bonjour...».
e) As línguas estrangeiras no país estrangeiro, por toda a cidade os jornais em estranhos alfabetos. Mas o que quer dizer o mais comum dos olhares?
g) Como fotografar um grande monumento, digamos, a Torre Eiffel, se não captando fragmentos, silhuetas, sombras entre árvores? Voltamos-lhe as costas, e nem nos apercebemos de que acabou de acender as suas luzes. h) Qual a presença (por exemplo) do amado Atget nesta viagem? Comprar muitos postais de Paris a preto e branco, perdermo-nos neles. A cidade fica por trás, lançando a grande sombra, uma luz indefinível, soltando um trânsito urgente. i) Fotografar: retirar edifícios, pessoas, desperdícios que perturbam o enquadramento, colocar lá o fotógrafo que vem de fora, sonhando Paris. Cruzamo-nos com os velhos trapeiros e ferros-velhos da cidade, remexem nos fios desengonçados das coisas, erguem depois essa poeira dourada que atravessa os olhos. j) A experiência de ser retratado em Paris por um fotógrafo – a pose, marcar o território em terra estranha. Gravidade imponderável de nós próprios sobre os músculos, e no ar dos que sabemos que assistem e sabem também que sabemos que assistem.
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f ) A pergunta que apenas não se formula, questão de educação. O que é uma cidade, a luz feita de reflexos e sombras, a respiração que respira diferente em cada mulher, em cada homem, a dispersão sábia e ocasional de pontes e cais? Em que alínea caberá esta pergunta: a abrir, em conclusão, no centro de uma abóbada, no fundo dos poços de quintais, esses que ainda aparecem nas velhas placas fotográficas?
k) A presença física das pessoas, a sua pública respiração íntima, face a face, os olhos alheios. O metropolitano percorre as distâncias entre faíscas de atrito e velocidade, e atira assim os corpos, para que apenas se encontrem no centro mais remoto da cidade.
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l) As memórias prévias de Paris, leituras, suposições de suposições, mas agora a luz crua das praças, as súbitas arcadas de sombra oferecem-nos os momentos felizes em que nos perdemos. Ver então de novo o mundo pela primeira vez. m) Também nos cabe caminhar alucinadamente em direcção à Gare du Nord, como numa fuga feita de cenários eles próprios mutáveis, sucessivas esferas de vida em expansão, labirínticos mercados encadeados e, ao fundo, os painéis quase imóveis do tempo da cidade muito antiga. n) A procissão dos monumentos no bateau-mouche, à noite. Um turista italiano cantarola «La Vie en Rose», rodeado pela família, e grita com sotaque «C'est Paris, C'est Paris». Ignora a brisa que agita a pele das águas do Sena e, quando o barco regressa e rodeia a Île Saint Louis, o vento cresce subitamente, desalinhando o filme feérico do primeiro percurso. o) A visita inexistente ao grande museu. Não poder ir, acompanhar depois o edifício por fora, num dia em que estava, afinal, fechado, imaginando tudo. O mesmo que entrar, escolher uma ou outra sala, com gente apinhada entre os quadros, cercando as estátuas, retendo fragmentos, de acordo com a lógica do movimento dos grupos de turistas? Ficar na casa emprestada, com o pé inchado, a folhear o livro sobre os castelos do Loire, que nos deixaram por perto, como quem não quer a coisa. As persianas estão semicerradas e não conseguimos ir abri-las. A luz da cidade dardeja pelas frestas, espectáculo não adivi-
nhado nas margens do Sena, junto ao Louvre, onde se folheia também álbuns sobre os castelos do Loire.
q) Fica aqui a Sainte-Chapelle. O lugar de pedra e vidro cerca-nos com ondas sucessivas de silêncio há tanto tempo desenhadas pela luz. Esperam longamente alguém que parece não chegar. r) Outra adenda à teoria de Paris: o Père-Lachaise, a cidade dos mortos. É necessário comprar um guia nas papelarias das vizinhanças, desdobrá-lo a custo por entre a acumulação de lápides, troncos, minúscula vida vegetal, ferrugens que enferrujam, sentimentos amalgamados, últimas palavras. Andavam à procura do crematório, não conseguimos ajudar, alguém comentou: «parece que se desfez em cinzas». s) Arredores longínquos de Paris. Soissons: uma praça com o célebre soldado desconhecido, a piscina do município, um mercado à sombra gigante da catedral, com mimosos toldos às riscas e, à saída, algumas caravanas improvisadas junto ao rio e aos pontões. O velho tio é agricultor diligente de um jardim caótico, que vai bordejando de garrafas que bebeu com critério e brilham agora ao sol, atraindo e espantando os pássaros; na divisão dos fundos, comenta os retratos da terra natal sobrepostos na parede. Ao regressarmos de comboio, o caderninho de gatafunhos fica cheio de enumerações que os outros passageiros espreitam com desconfiança pelo canto do olho.
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p) Nos grandes armazéns, com reproduções de cartazes coloniais ou sob cúpulas «arte nova» de veios delicados e exóticos, estendem-nos papelinhos embebidos de qualquer coisa que não se vê, e dizem-nos: «são essências de Paris». Também nos oferecem uns mapas com a linha do metro e, nos cruzamentos, desenhos dos principais monumentos em perspectiva.
t) O «Cabinet Fantastique» e o «Palais des Mirages» do Musée Grévin. O maravilhoso ingénuo de um outro século, os orientes datados, os sobressaltos hoje risíveis, mas a primitiva angústia quando se apagam as luzes e uma tempestade inteira pode desabar.
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u) Alguém já escreveu sobre os pequenos mundos fechados das galerias e passagens comerciais do século xix, o seu conforto feito de um delimitado labirinto de lojas e corredores. Há objectos dentro de caixas que estão dentro de caixas e, envolvente, o rodar dos astros que riscam as clarabóias. v) A súbita tempestade de Verão abate-se sobre Paris – a trovoada e a chuva de enorme evidência física, a ventania provocando confusão na esplanada, entrando pela sala do restaurante, partindo copos, recordando a ancestral geografia do lugar, montes, vales, escorrências, a vasta teoria das nuvens da cidade. w) Modelo das aproximações a um lugar – túneis e túneis dos arredores, depois uma espécie de febre de edifícios, colunas de electricidade. Queremos chegar, enfim, ao centro, mas perguntam-nos qual é ele, já passámos. Os centros são apenas os arredores de outros centros e começaremos por algum lado, imaginando uma primeira ordem das coisas. x) Reler (são meros exemplos) o Spleen de Paris, Baudelaire que também fala imaginativamente de Lisboa; ou o Livro das Passagens de W. Benjamin. Encontrá-los primeiro na cidade da biblioteca. y) Banda sonora: nomeadamente, «April in Paris», por Frank Sinatra, na década de 40 (2:41).
z) Matsuo Bashô: «Para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo; mas as noites reclamam um agasalho; a chuva, uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento, tinta e uma pena. E as prendas que não se podem recusar... As dádivas estorvam os viajantes.»
«Segundo as leis dos peregrinos budistas, é proibido revelar pormenores sobre aquilo que os olhos vêem neste monte; por isso não continuo.»1
1 As citações de Matsuo Bashô provêm de O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, na versão de Jorge de Sousa Braga (Casa Matilde Urbach, 1987).
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«Ao visitar muitos lugares cantados em velhos poemas, quase sempre as colinas se achataram, os rios secaram, os caminhos desapareceram, as pedras se cobriram de hera e árvores novas substituem as velhas e veneráveis.»
CHÃO, INTERROGAÇÃO, PLANEAMENTO, FAMA, CEGUEIRA, PERSISTÊNCIA, RAZÃO Luís Ene Chão
Luís Ene
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Os seus poemas eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer, outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e afinal morresse. Era por isso que escrevia, foi tudo o que declarou. Interrogação O homem perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido embora os prédios. Planeamento Um homem amputou o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo. Fama Declarava sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre, com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.
Cegueira Um homem avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.
Entrou na rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída. Razão Admirava todos os poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele não tinha essa capacidade, era completamente louco.
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Persistência
CONTRA O OPTIMISMO Manuel A. Domingos para a Ana Catarina Martins e Vasco Bento A base do optimismo é simplesmente o terror. Oscar Wilde I don't believe illusions 'cos too much is real The Sex Pistols
Manuel A. Domingos
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§ Leio algures: «As pedras são degraus de outros caminhos...». Nunca fui muito com este género de ideia. Pedras são pedras em qualquer parte. Não acredito que exista alguém que goste de caminhar por um caminho cheio de pedras. Podem ser muito optimistas e mais tarde pensar que são «degraus de outros caminhos...». Mas, enquanto percorrem o caminho, duvido que não pensem: «Ora aqui está uma boa merda.». § Não foi necessário ler Cândido de Voltaire para saber que sou pessimista. O optimismo nunca me atraiu. Sempre o considerei sem sal. E vendo bem as coisas é. Por exemplo: a chamada grande literatura é, toda ela, pessimista. Onde é que existe optimismo nos livros de Kafka, Dostoievski, Céline, Mishima, Hemingway, Faulkner, Cossery, Bernhard? Não me lembro. O mundo é irremediavelmente absurdo e está irremediavelmente condenado. E a esperança? A esperança é outra coisa. Talvez um dia fale sobre ela. Mas não associo esperança a optimismo. Um pessimista pode ter esperança. É possível. Só que a esperança não o cega. Por outras palavras: um pessimista é alguém que tem os olhos bem abertos.
§ Não acredito que a leitura de Nietzsche ou Schopenhauer tenha influenciado o meu inerente pessimismo. Li-os pela simples razão de estar na moda, de ser aquilo que era esperado de mim. Andar com O Anticristo no bolso de umas calças de ganga rafadas fez milagres junto das raparigas mais susceptíveis. Vestir o preto, também. Mas voltemos ao meu pessimismo. Não sei qual será a sua razão, origem. Sinceramente, não me interessa. Mas sei que é inerente. § O meu pessimismo explica-se sem dificuldade: a minha total descrença na bondade humana. É claro que há excepções: conheci, na minha curta vida (trinta e seis anos até ao momento em que escrevo estas linhas), pessoas muito boas, altruístas até à medula (embora ainda não tenha resolvido em mim a questão entre altruísmo e egoísmo, pois considero-os indissociáveis, numa relação simbiótica). O oposto também é verdadeiro: pessoas más não faltam. Conheci umas quantas e suplantam, sem dúvida, as boas. Exemplo: éramos crianças e jogávamos à bola no parque infantil do bairro. Sempre que
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§ Os pessimistas são sempre mais criticados do que os optimistas. Se um pessimista chama a atenção para possíveis obstáculos na vida, há logo alguém que exclama: «Ai! És tão pessimista!». Mas o contrário não se verifica. Ninguém diz: «Ai! És tão optimista!». Ou: «Lá vens tu com o teu optimismo!». Os pessimistas são discriminados. São acusados de ver obstáculos em tudo, quando na realidade isso (o facto de ver obstáculos) só traz vantagens: os pessimistas são mais rápidos a desviarem-se deles. Os optimistas não. Tropeçam, caem, lamentamse, depois vão ler Paulo Coelho e esperam, com isso, aprender a «caminhar».
uma bola ia parar a um certo e determinado quintal, surgia uma faca – vinda não sei de onde – que a rasgava. Quem é que rasga, destrói, uma bola com a qual crianças brincam? Lá no bairro não havia só essa criatura. Havia uma outra, muito mais cruel, que, para além de rasgar bolas, também cortava as asas às crias dos pássaros que apanhava a fazer ninho nas «suas» árvores e no beiral da «sua» casa. Vi tudo isso com os meus próprios olhos.
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§ Se tentasse justificar o meu pessimismo, com uma base filosófica, seria incapaz. Ainda não li o suficiente para estabelecer um «programa» – algo que parece ser muito necessário para resolver tais questões e para que os outros nos levem a sério. No entanto, penso que ele, o meu pessimismo, é indissociável da minha precariedade existencial: saber que a vida é um milagre e saber que ela é um absurdo. Viver nesse limbo. § Pessimismo pressupõe sofrimento? Há quem acredite que sim. Cioran acreditava que se podia ser pessimista sem sofrimento. Para defender a sua posição, Cioran estabeleceu algumas linhas de pensamento. Uma delas é deveras interessante: com as desilusões criar um sistema. O sistema do pessimista é baseado nisso mesmo: nas suas desilusões. É claro que poderemos contra-argumentar dizendo que para ter desilusões o pessimista teve, em primeiro, que ter ilusões. É um argumento válido, com o qual não concordo. A desilusão é, no pessimista, sempre a priori. § O discurso político português (principalmente do Governo e de alguns representantes do Estado) foi invadido pelo optimismo. E isso deixa-me a pensar. Como considero que
todo o discurso político é falacioso, considero o optimismo – inerente ao discurso – falacioso. É claro que esta ideia aplicase, também, a qualquer tipo de optimismo. Pois o optimismo é isso mesmo: uma falácia.
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§ Por que razão o pessimismo? Porque o optimismo assim me obriga. O optimismo (que eu atrevo-me a designar de hipócrita) mais não é do que um mecanismo coercivo. O optimismo, nomeadamente aquele patente no discurso político, só serve um propósito: acalmar a massa, submete-la a uma vontade que é, muitas vezes, pouco clara. Todo o discurso optimista é falacioso. Ao contrário do optimista, o pessimista não recusa a realidade tal como ela é. Assim, ser pessimista, escolher o pessimismo, é um acto de resistência.
ESCALAS Miguel Cardoso Se desci a poços foi por não saber fazer palas sobre os olhos nem outros truques de visionário e abat-jour
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Porque largar a infância era ir na direcção inversa dos túneis vastos que me deixara na vista Era arranque em bruto para o alarme das idades que descem cruzando-me com rimbaud em sentido contrário deixando cair lâminas de barbear pelos bordos e levando às cavalitas poetas gastos nortes de áfrica de hugo pratt a cores tatuados nas costas da mão para o caso de se cansar de cadernos e delúgios Se subi a postes foi pela mesma razão exacta porque o chão era extenso e que viesse depois a gravidade dizer-me onde estava que ano era e onde aplicar as ligaduras Entretanto publicado em Fruta Feia, Douda Correria, Maio 2014
LEMBREI-ME DE JEAN GENET Miguel Cardoso Lembrei-me de jean genet mas já não se pode passar visita a giacometti Com um ligeiro inclinar do pescoço fiz o que pude dei o braço a torcer a todos os deuses menores
Estou certo que dispensaria cadeiras e estaria solto em sítios os dentes estariam mais espaçados a simpatia do pó seria evidente Levanto-me Não sou jean genet não sou giacometti nem sequer morri Suponho que estou aqui mas se me tocassem desfazer-me-ia.
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Há umas décadas atrás seria tão ágil de veias tão leve gasto e ventoso
FLAN NAPOLITANO1 Nuno Brito
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Os satélites azuis giram à volta do átomo, tornam-se cor de baunilha quando adormecem sem deixar de girar. À volta do núcleo são quentes como animais, adoçam a pele que é um começo… À volta do núcleo as células riem-se, como marinheiros na luz molhada. Na rota que fazem, a luz bombeada por um sol interno, um grande sol central. O sangue bombeado pelo coração. A tua pele sabe a luz – dizia Crocodilo mais tarde. Cada vez mais quente a pele procura outra pele: um limite maior, um começo. Podia adivinhar a obsessão seguinte e no ato de a prever, evitá-la. Um novo caminho com uma obsidiana quente no bolso. Violeta de Gand vê o homem do outro lado da rua. As manchas (Porquê?) Na pele e debaixo na carne. É uma observadora atenta, está a criar um homem porque o vê. Sente segurança… A corrente do sangue que avança seguro. Na sua respiração sente a respiração do homem que está do outro lado. Debaixo da sua pele os satélites azuis: dançam se o núcleo dançar, fogem se o núcleo fugir, morrem se o núcleo morrer. Riem-se, agora riem-se com mais força. A tua pele sabe a luz… Se giravam à volta do átomo era porque aí queriam estar – o mesmo era dizer que eram completamente imprevisíveis, honestos e livres: entregues aos braços, habitavam o desejo desde o núcleo, soprados de vida – tudo aquilo que gira dentro, que nos liga ao que está fora. Os satélites azuis, nos 1 A personagem principal deste texto é desenvolvida no conto: «Crocodilo: Narrativa de duas faces como as moedas do Vaticano» em Créme de la Creme: Porto, 2011.
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músculos dos remadores do navio de Argo. Cada estrela, um remador que avança pelo céu e debaixo da pele. A constelação agora debaixo da pele. O navio de Argo seguro na corrente sanguínea. Os astros dentro do corpo, só mensageiros de um Sol cada vez maior –A mensagem era só a chegada de cada mensageiro – O chegar seguro de cada mensageiro. A sua rota também mensagem. Não diziam nada quando chegavam. Uma constelação mulher, a luz azul da saia. Pontilhado o seu corpo no céu. Se ela quiser entrar no barco que avança pede aos remadores que parem. Acende um arco iris debaixo da pele. Uma galáxia homem aproxima-se. O fio das estrelas que forma a ereção. A cauda dos cometas mais acesos. Ali uma galáxia autista, minga se ninguém a vier salvar. Os remos do navio de Argo avançam como ambulância. Quem a lamber dirá que a pele sabe a luz, a uma janela sempre aberta, a suor, a partida, a estrada, ao sal da potência humana. Um olfativo diria: nunca os satélites dançaram tanto – Nunca as células se riram tanto – A mesma dança no corpo, a mesma dança no céu. Viu-se ao espelho, mas num homem – Quando os olhos são o espelho da alma e os amigos o espelho de deus. Não o vidro trabalhado para refletir, o eco das formas e cores que lhe apresentam. Um homem – Ali à frente, a comer um flan napolitano – Entre uma paragem de autocarros, a banca de um vendedor de batatas fritas. O óleo quente, a ferver – Parece uma explosão. Eu sou aquele (Pensa Violeta de Gand). Eu sou aquele (enquanto olha para Crocodilo) quero que ele esteja dentro de mim. Temos países, economia, controlo ideológico da economia, alguém que a controla – Segue leis, ouço as vozes daqueles que as fizeram. Mas quero que ele esteja dentro de mim.
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Um pudim negro. Os dentes brancos do roedor – Podia ser uma alegoria – Desenvolvê-la – Ser seduzida pela minha ideia. Aceitar o chamamento de um brinquedo interno e aí ficar – na injeção paralisante, inibidora que é esta minha ideia. Parece que estou a nadar, mas estou a tornar-me uma concha – A pérola sedutora da minha ideia. Fecho-a e neste fechar (ao mundo) não ver o espelho. Fechar lento. Giro à volta do que quero. Ali a linha dos satélites a formarem um veio azul. A potência do pulso. O meu coração gira à tua volta. E na sedução desta frase adormecer. Prever o futuro é unicamente construí-lo. O homem com manchas na cara é agora o meu espelho. Despersonalização, identificação: O sentimento de pertença a um núcleo… Há um novo animal que seduz: um homem que chamaram Crocodilo. Acabou de sair da prisão. (começa a fábula) Submergem os seus olhos nas águas sujas de uma vida estanque, uma história imóvel, breve, toda a potência bloqueada (uma vida menor). Olhos desvitalizados, seguem um pathos natural que ele parece não controlar: inibir toda a potência, submergi-los, afogá-los numa memória, a consequência natural. Não que se fechem para sempre, só que pareçam sempre fechados – Abertos só para dentro. Eu sou ele (Pensamento de Violeta). Vagueia o Crocodilo entre a barraca das batatas fritas e a paragem de autocarro. Submergido num lago interno. Estanque – comer, ir para um novo sítio, começar do zero. Violeta observa-o. Presa potente, sente os satélites mudarem de cor, vermelho-deserto, giram, giram mais rápido, mudam de cor, na expansão do desejo estão mais quentes – Eu sou a expansão do meu desejo, habito-o. Observa o seu espelho – eu sou ele. As suas manchas na pele (feitas de mudança) – por isso na prisão chamavam-lhe crocodilo. É assim: Meteu-se com gente errada. Os satélites parados, inibidos – mas agora dança numa água nova – satélites de água giram à volta dos átomos da água – Giram e por isso são água.
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Crocodilo avança por uma estrada que não existia quando ele entrou na prisão (ou então surgiram novas casas, novos locais comerciais e agora não a reconhece). Caminha ninguém o espera. Pode ir para uma casa onde tem familiares num grau afastado, ir a casa de antigos amigos, pedir um emprego a este ou aquele. Vai até à central de camionetas. No caminho vê uma casa pintada de cor-de-rosa, uma cruz no telhado ao lado de uma antena enferrujada (parece um filtro). É um tabernáculo, uma sede de seita religiosa com contornos obscuros, um germinal de fantasmas aborrecidos nas reuniões de domingo. Sai música de dentro do tabernáculo – E na parede está escrita uma frase – És pó e pó voltarás a ser – Crocodilo olha para a frase pintada a negro no fundo cor-de-rosa. Os seus astros aceleram, satélites rápidos, há tanto tempo não sentia isso. Ri-se sozinho, descontrolado, há tanto tempo que não se ria e agora um riso animal, sincero, cheio. A expansão torna-o doentio, ri-se sozinho. (fábulas mas com pessoas, os animais mais honestos – até o falso moedeiro era honesto) e aqui Crocodilo ri-se. Riso paralisante, assimbólico embora dentro dele possamos ver uma alegoria nova. Riso que se torna negro e duro como um pudim negro. Quero comer este pudim com os meus dentes brancos – mas este pudim está fora de prazo. Foi feito no tempo de Homero. E eu com tanta fome. Eu que sou pó e vou voltar a ser pó só quero comer este pudim negro (é o meu destino – procurar todas as trevas – comer os pudins mais negros). Procuro os pudins mais antigos, cozinhados nas águas estanques do Nilo. Germinal de bactérias do Antigo Império. Pudins negros onde não entra a luz, onde não há nenhuma esperança. Pudins obscuros, completamente negros. Preciso de botas negras para comer este pudim. Tenho fome de negro. Posso entrar nesse tabernáculo com um único livro sagrado, carcomido, as páginas amarelas. Obsessão, sair
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dela. Entrar no templo e trincar os braços gordos dos fiéis – É um crocodilo de instintos rápidos. E ali, a dois quilómetros da prisão, o pastor dessa igreja telefona para a polícia. E no mesmo dia voltar à prisão. Ideia sedutora a da perda. Ou então continuar a caminhar. Começar uma vida nova. Ou então ser pó (e voltar a ser pó) comer o pudim negro feito de pó (o pó mais negro) e a água suja da literatura mais morta. Pudim negro e alegórico de tudo o que é Antigo e mau. O pudim dos erros humanos. O pudim cozinhado pelos piores traidores, falsificadores de moedas, ladrões, piratas alexandrinos, assaltantes de pirâmides, traficantes de relíquias, homens que destroçaram e acabaram com outros homens, o pó mais negro dos homens mais negros. Na parede cor-de-rosa, a frase cada vez mais viva, como um néon bailarino, as letras dançam. Mas Crocodilo – resumo: era um cocainómano, foi preso por assaltar uma carrinha de transporte de valores. À Prisão vinha vê-lo a sua irmã. Uma vez por semana. Trazia-lhe algum dinheiro que dava para continuar a consumir. Mas a irmã trazia cada vez menos dinheiro. Ele fazia pequenos trabalhos, limpar as celas dos outros, ir-lhes fazer recados. Um feudalismo dentro da prisão. E aí começa a fábula, Já estava a dever muito dinheiro. Isso aumentava a dependência. E o aviso, uma semana para pagar. A sua irmã vem, pede-lhe dinheiro, mas não tem. A irmã agora tem de olhar pela vida dela. Não consegue o dinheiro da dívida dentro da semana. Implora-lhe. Nesse mesmo dia vê o que acontece aos que não a liquidaram. Água a ferver em cima do corpo, os devedores castigados no pátio da prisão. O grande balde de ferro. A água a ferver. Os gritos. Falta um dia, está desesperado, amanhã vão chamá-lo. Nesse dia um ultimato, diz que vai fazer tudo, pede mais dois dias. Não consegue dormir. Chamam-no, levam-no para o pátio, despem-no. A partir desse dia e pelas queimaduras com que ficou no corpo, a pele áspera, as manchas para sempre, passaram a apelidá-lo de crocodilo. Mais dois anos e
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quatro meses e saiu. Aí estava em frente ao tabernáculo religioso. Continuou até à central de camionagem. Entrou num autocarro aleatório. Chegou ao destino. Não reconheceu pelos vidros a cidade onde tinha chegado. Resultava bem. Saiu da central, caminhou pela cidade. Contou as moedas que tinha no bolso. Estava ao lado de uma paragem de autocarro. Viu a vendedora de pudins, na barraca ao lado da paragem. Flans napolitanos, tinha fome, comprou um. Estava com o copo de plástico na mão, o pudim a meio. O pudim da cor do sol. Do outro lado da rua o sangue ri-se ao chegar aos dedos: Antecipa já a chegada de outros dedos. Crocodilo prevê que alguém vem falar com ele. Violeta de Gand observa-o – ele sou eu. É o meu espelho, um reflexo, também eu. Ali o crocodilo a comer o flan, Fora de prazo talvez, mas de um passado melhor: um flan renascentista da cor do sol. O caramelo torrado a derreter na boca de Crocodilo. A baunilha parecia drogá-lo. Os satélites de dentro a girarem mais rápido. Do outro lado da rua, a mulher que o observa como alguém que já lhe pertence, que é seu, e vê naquele momento algo que já passou há muito tempo na vida dos dois. O flan napolitano, o seu sabor transformado na memória.
I AM ASKING YOU WITH ALL MY MOUTH Patrícia Lino I am asking you with all my mouth deita por favor a minha cabeça no teu colo Preciso de um lugar onde pousar os olhos
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Estou de pé à porta do teu quarto perdi todas as coisas inclusive a voz Ao reclinar-me sobre os móveis reparo que esqueci todos os volumes de Marx que me pediste para te sublinhar apenas Éluard com o indicador Éluard vai explicar-te o porquê de seres um jardim onde se vem para morrer ou para ouvir jazz How much do you love Thelonius? How much do you love Mingus? Who the hell do you love the most? Preciso urgentemente de fechar os olhos durante as horas em que se formam os círculos os círculos os círculos vês os círculos os círculos as horas em que fixas na minha pele as equações pelas quais as flores abrem um espaço no quintal Escuta estou muito perto de ser uma árvore às traseiras do teu prédio na Macedónia no Haiti ou em Xangai Vim até aqui para acabar no centro alado da cama
na quadratura da mesa da tua cozinha no parapeito de um sofá amarelo torrado Estou aqui como nunca estive na camada viva da terra e há as leis os períodos de uma matemática confusa e ilimitada Repara por exemplo como são húmidos os meus olhos Pregados nos teus
Vim dizer-te que encontrei nas tuas pernas o andamento de uma criança intemporal que o amor me paralisou as mãos com que desenhei o funcionamento do universo E o universo não era mais que uma ária de Bach cruzando-se com o redemoinho dos teus dedos quando arrumas os cabelos acima da testa
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Listen, a lake is a body of relatively still water of considerable size localized in a basin, that is surrounded by land understand?
CALEIDOSCÓPIO Patrícia Lino
Patrícia Lino
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A circunferência que a urina do meu cão faz num passeio onde não acontece mais nada a não ser o diâmetro que a urina do meu cão faz. A suspensão coloidal das nuvens no trânsito. O número de habitantes de Singapura (新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]). Estar de joelhos onde acabem as tuas costas. A cor azul dos teus atacadores no tapete da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles. Andar para trás na Pan-American Highway. Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths e um moinho de vento? São ambos processos de fragmentação: please please please let me get what I want Os solavancos homéricos do autocarro no Bonfim e os bigodes alados da motorista da SCTP. Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar. O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C. Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger na caixa. «Só plantará um jardim de cabeça para baixo aquele que não ler a Historia plantarum.» Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido corpóreo. I'm refering to Nonsense botany. Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste, por que não haveria eu de te sorrir na fila do metro? A primeira nódoa na camisa foi a tua boca.
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A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro numa praia de nudistas. O movimento centrífugo que os mamíferos desenham antes de deitar-se. Aprender que o amor não é um rondó: ninguém quer ouvir-nos cantar desde que Elisabeth pariu Schiller. A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas. O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther. A minha festa de aniversário em 1999. A tua saia. Tu. O último massacre do Sudeste Asiático que era um jornal. Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha, que rodopiava. O lavatório, o queixo. E os olhos no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literatest mirror than me?
ARQUIVO1 Paulo Kellerman
Paulo Kellerman
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– Se alguma vez escrevesse um livro, chamava-lhe «Arquivo». – Porquê? – Porque um livro é precisamente isso, um arquivo. Um arquivo de ideias e pensamentos, de ilusões, de fantasias, de segredos, de disfarces, de medos e esperanças. Percebes? Como se fosse um legado, uma herança; como se fosse um testamento de sentimentos e emoções. Algo concreto que se deixa ao outro, para que ele use ou não. Uma dádiva. – Por acaso, não concordo com essa perspectiva. – Não? – Nem por isso. Penso que não gostaria que a minha herança para os outros fosse um arquivo. Um arquivo é sempre algo extático e definitivo, não achas? E um livro também, por acaso. Sabes que preferia deixar como legado? Um caderno em branco, um caderno vazio, um caderno novinho; um caderno, para que o outro o pudesse preencher como desejasse, construindo o seu próprio arquivo. Preferia deixar possibilidades e não arquivos.
1 Texto inspirado numa fotografia de sonja valentina.
TAMANHO FOI O ÓDIO E A MÁ VONTADE Paulo Rodrigues Ferreira
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Uma senhora chorava a meu lado pelo marido estracinhado por um comboio. Ela ainda ouvia o estalar dos ossos e sentia o fedor e os salpicos/ pedaços do marido que lhe tinham saltado para o vestido e conservava a imagem daquele corpo irreconhecível (carne, ossos, tripas, líquidos amarelados e muito vermelho por todo o lado) que não poderia ser o do esposo ou o de um humano. «Foi aqui que o meu marido morreu.» Antes desta frase, preparava-me para a conversa com o terapeuta, rabiscando três ou quatro palavras ridículas no caderno (ainda que o terapeuta repita que nada é ridículo): Imperfeição, medo da rejeição, decepção, vergonha: evitar a exposição, competição, medo de cometer erros, medo de falhar e de não ter valor, nunca serei bom o suficiente, como fugir da vergonha? negação, insegurança: culpar os outros e a mim próprio, raiva, intolerância. Adoraria permanecer calado a escutar as observações do doutor sobre a minha personalidade megalómana e obsessiva e incapaz de cumprir contratos e compromissos. «E então?» Qualquer frase minha suscita um «e então?» do doutor. Descobri a cura para o cancro, e então?, leio Joyce, e então?, tenho as mulheres que quiser mas só quero a minha, e então?, fui abandonado pelos meu pais, e então?, só consigo pensar em sexo, e então? Tinha os olhos pregados a uma mulher de pernas cruzadas. Fascinam-me fêmeas que saibam escolher as meias e os sapatos certos. Provocadora, desafiando-me, fingindo estar atenta ao telemóvel – na minha mente, as mulheres sempre provocadoras, suplicando puxões de cabelo, dentadas na nuca, palmadas nas nádegas, iguais a uma mãe grotesca, a minha mãe, capaz de fornicar com qualquer um –, a mulher fardada de hospedeira deixava-me na disposição de sair na estação em que ela saísse e agarrá-la por trás num beco
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e rasgar-lhe as vestes. Intelectual saído da casca, volta para a carapaça. Atleta, atira-te de cabeça. Ideias contraditórias ou, parafraseando o terapeuta, ambivalências. O macaco controlado pela obra literária que traz no bolso. Esfumaram-se-me as costumeiras obsessões assim que ouvi a frase da mulher do suicida. O macaco e o intelectual fundiram-se num coscuvilheiro ou sujeito de cérebro mirrado que não resiste à questão: «Por que motivo se matou o seu marido?» O marido sofria de esquizofrenia, ouvia vozes, dizia que existia um eu dentro de um eu que falava e o protegia, e que existia um outro eu que às vezes o impelia a protagonizar as piores asneiras, como espancar arrumadores de carros ou cuspir em pratos de restaurante ou apodar a sogra de vaquinha, e que existia ainda um outro eu que muito raramente abafava os outros eus e desligava a máquina e fazia o homem desmaiar. A mulher não encontrava melhor explicação para o desaparecimento do marido: um eu que sufocava os outros, uma parte dentro do indivíduo que abafava diferentes personalidades coexistentes dentro de um corpo, que neutralizava qualquer sentimento, desde o amor à raiva. A hospedeira de pernas cruzadas continuava a mirar-me de esguelha, eu cogitava numa forma de ser um cidadão honesto que, simultaneamente, conseguisse amparar as dores de uma viúva, sovar uma hospedeira numa esquina e responder aos «então?» do terapeuta. Escrevinhei no caderno: Eu sou eu e outro e outro e outro e todos e nenhum eu por na verdade ser aquele que sonhei, aquele só existente numa utopia, isto é, num mundo ou realidade inconcebível. Mais tarde, o terapeuta colocar-me-ia duas questões: a) «Por que razão não consolou a viúva de maneira a que ela sentisse que se preocupava com ela?»; b) «O que o atraía na hospedeira?» Responder-lhe-ia protegido pela máscara de pedra que só tiro à noite, durante os pesadelos: «Por indiferença, por me atraírem aquelas que se me mostram altivas ou convencidas.» E então? Sentir-me um macaco a transformar-se em algo ainda pior do que um macaco. E então? Trago um sapato da hospedeira no bolso. E então?
GLÓRIA HUMANA Paulo Rodrigues Ferreira
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Reverdecer. Não me ocorreu outra palavra naquele momento. Regressar à juventude com outro corpo e sem as doenças e as tragédias a que me expuseram. Poderia ter dito renascer. Sair do ventre de outra mãe. Resumir os meus desejos num vocábulo, eis o exercício a que infinitamente voltamos nas nossas consultas. O doutor e eu. Negamos o destino, gozamos com a leitura dos astros. Aprendemos, ou melhor, aprendo o valor do eu, do pequeno eu. Reaprendo a mimar a criança e a mudar o pai/ cassete que em mim se impôs como lei. Fundir a cor verde com os raios solares e nascer esquecido do sofrimento. Ser eu mas outro. Reverdecer pareceu-me a escolha certa. Não tive tempo para grandes reflexões. «Diga, diga.» Nem respiro por causa da sua mão, dos seus dedos trementes, do som das pancadas dos seus dedos no tampo da mesa. O doutor põe-me em sentido. «Hera, verde esperança a galgar a parede branca.» O terapeuta espera que responda sem matutar. «O seu problema é no coração», afirma ele, mentiroso, artista da charlatanice. Saio do seu consultório revoltado comigo mesmo. «Se lhe pregasse uma focinhada, queria ver onde meteria o ego, o superego e o id», penso. Se deixasse de obedecer a determinadas convenções, levaria uma existência mais tranquila. Se me livrasse das convenções sociais. Preservo o canastro do doutor que me suga quarenta por cento do ordenado. Isto é ser homem? É no café do Cardoso que exumo os meus fantasmas, é nesta instituição de caridade que, esvaziando copo atrás de copo, resolvo os meus problemas, os tais problemas do coração. Para isso muito contribui a anafada Vanessa, tão generosa a dar à anca quanto a emprestar o ouvido. «Dá-me uma razão para continuares a ir às consultas», pede
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a imberbe, sábia em tantas matérias mas tão ignorante em termos de baixas médicas e de atendimento ao público. Não me apanham de novo naquele supermercado. Atender pretos, chineses, ucranianos e velhos tesos. Vim ao mundo com uma missão, ainda não descobri qual, mas certamente não consistirá em passar oito horas dentro de um centro comercial a ser insultado por todos e mais alguns. O Cardoso, ou melhor, o filho do Cardoso, o Cardoso Júnior – o sénior finou-se há uma mão cheia de anos –, meu camarada desde os tempos de liceu, sugeriu-me mais do que uma vez que deveria comprar uma caravana e lançar-me estrada fora arranhando as cordas de uma guitarra e arrebicando os dias que me restam, que são muitos, com cuecas de mulher de todas as cores, tamanhos e feitios. Sacar o melhor de mim, a minha intenção ao dizer reverdecer foi enfatizar esta necessidade de libertar o melhor de mim. Libertar o melhor de mim que nunca existiu. «Percebeu, doutor?» O homem sair de si mesmo, superando a angústia e o medo, abdicando do monismo – não é monismo ou monista, é mono: macaco, macambúzio, estúpido, bisonho, sensaborão. Do deveria ao gostaria vai uma distância considerável. De tanto ser corrigido, aprendi a não dizer devo, deveria, ter, tenho, teria. Não me posso. Não gostaria (eis a forma como se evita uma depressão: com um gostaria em vez de deveria ou teria) de ficar preso a sonhos, a meros sonhos impalpáveis. Quero a Vanessa, mas não só a Vanessa, todas as Vanessas, e não só as Vanessas, as Marlenes, e não só as mulheres, quero dinheiro. Mais: quero ser eu.
O NOME QUE NO PEITO ESCRITO TINHAS Paulo Rodrigues Ferreira
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Dançavas com ele. A tua face tombada no ombro dele. Esfregavas-te nele ou ele em ti. Aquela manápula peluda descia-te pelas costas. Outro whisky. Mais um copázio para suportar a visão. Encha até cima. Sem pedras de gelo, volte a encher. Isto não é para meninas. Por falar em meninas, podia chorar. Pregado ao balcão, via-te gingar feliz da vida com outro homem. Aperaltara-me a conselho de uma amiga tua, comprara camisa azul bebé, último berro da moda macho alfa, despachara aquela cárie que me deformava o sorriso e espetara brilhantina na guedelha, para quê?, para te pedir uma oportunidade. Quimeras. Está tão escuro, não vejo, não. Dançavas com outro e eu não dançava com ninguém, eu sem parceira que te fizesse frente, sem parceira nenhuma, condenado até à eternidade a não ter outra parceira, esparramado no balcão, enchendo-me de bebida na esperança de ganhar balanço para te roubar com um soco ao orangotango. Como me esqueceste? Foi ontem que me chamaste porco e mentiroso. Parece que foi ontem. Esqueceste-me tão depressa. Foi ontem que me ligaste dizendo que me desejavas como se nunca me tivesses tido. Que me tinhas ofendido a quente e que o universo nos juntava. Fiz triste figura na discoteca: acendi um cigarro que me abananou, levei um merecido par de tabefes do porteiro por fumar em lugar proibido e ainda me ajoelhei chorando e cuspindo sangue à beira de uma sanita a transbordar de fezes. Não viste nada disto. Dançavas com outro. A noite inteira agarrada a outro. Num táxi com outro pela noite fora. Retesei-me à vossa passagem e entornei uma gargalhada para cima do barrigana sentado a meu lado, um impulso levou-me a fingir que estava feliz e que era indiferente à tua existência.
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Nem devem ter reparado na minha presença, tão cinzento que ando, que sou. Saíram de braço dado e desinchei, o ar saiu-me todo, fiquei balão vazio, raquítico. Devem ter tomado banho e dormido juntos e trocado juras de amor. Dancei o resto da noite de garrafa colada ao peito, arrotando em honra do teu novo namorado e da minha interminável infelicidade. Escrevo-te uma carta. Que sejas. Que tenhas uma boa vida. Risco. Que encontres aquilo que querias. Risco e rasgo o papel. Desisto da carta, a água está fria, o rio arrefece à noite, constipo-me, ninguém quer saber das minhas constipações. A dona da pensão, deveria ter mais consideração por esta senhora, é a minha única família. Duzentos euros por mês e torradas todas as manhãs. Reverberar. Li num jornal. Bela palavra para incluir numa carta. A lua reverbera uma luz tão linda que só faltas aqui tu para que. Para que nada. Amo-te, não te disse, não te cheguei a dizer que te amava e agora é tarde, tens outro, danças, dormes com outro, partilhas o teu chuveiro com outro. Fazes-lhe aqueles olhos de chinesa? E aquelas covinhas nos cantos da boca, também lhas mostras?
«HÁ DEZ ANOS QUE ESCREVO O MESMO POEMA» Raquel Nobre Guerra Há dez anos que escrevo o mesmo poema no mesmo café. Esta ideia arrumada nesta cadeira triste todos os dias no mesmo sítio. Até que me venham bater à porta ando meio distraída nisto. Falam-me da barbárie e dos seus irmãos brutos mas ninguém falou ainda da flor de Coleridge nem das pernas melancólicas dos meus amigos.
Exceptuando isto talvez não se morra e ninguém desça à guerra e ao medo senão pelos livros. Penso no amor e exceptuando isso está frio e a mudança de hora e a jukebox e contar-te os meus medos porque penso nisto há dez anos que penso nisto. Cruz na porta da tabacaria e o teu cabelo cortado à escovinha. Há dez anos que desconfio do mesmo poema
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Exceptuando isto penso no imenso com os dentes. Penso num serviço de chá e numa porta de serviço. Penso num chão absoluto no petróleo e na lixívia. Penso na tua cabeça enunciativa e és um Rolls às nove e meia da noite para toda a parte comigo.
forma inteira do homem para diante e de diante para o abismo E poder ser livre e fumar na cama com a excitação de arder numa linha. É que Sócrates nunca escreveu. Milton ao menos fingia. No fim de contas caía bem. Um Kropotkin e uma bica. E convicção ser do teu signo. Porque uma coisa nos atraía. Fome não era adição. Erecção não era cinismo. Porque havia motivo para risos.
Raquel Nobre Guerra
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Tu nunca te atrasaste. Tu nunca te mataste. Porque enfim não mentiste que há dez anos que escreves o mesmo poema tu que só queres o sol para descê-lo para descê-lo ilha dos amores no mesmo corpo no mesmo casaco apoiado à esquerda do meu braço. Texto publicado em 40xAbril – homenagem a José Mário Branco, Abysmo, Lisboa, 2014
O HOMEM QUE ACENA AO LONGE Rui Almeida O homem que acena ao longe Reconhece a demora e espera Ainda que veja nada mais além das sombras. E fala enquanto acena, diz O que entre riso e memória lhe escapa, Talvez dor ou sono, homem parado
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Longe, insistindo na fragilidade de um gesto Repetido. E quando fala não lhe escapa O que pensa: «pode a morte resvalar Para mais tarde, mais fundo, revelar-se Teatro na cave do mundo, cena No escuro, longe do centro?»
A PAUSA Samuel Filipe
Samuel Filipe
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Não são previsíveis mudanças essenciais. Aceita-se um rumo definitivo e não se imagina o que possa gerar perturbação. Ao alterar-se o batimento cardíaco esperas que o motivo não exceda o susto. Agradeces a estabilidade ainda que isso implique o fim da emoção. As emendas passam a ser pontuais, as condutas estão todas mais ou menos alinhadas umas com as outras e mesmo falar em plural, condutas, pode ser excessivo. Lembro-me do dia em que comecei a tomar boas decisões. Não o vou recordar agora. Esse momento merece uma atenção particular. Mas uma das boas decisões que tomei foi, simplesmente, ser prático. Era evidente que devia cortar com algo do meu passado porque isso me ajudaria a manter o controlo. No trabalho que me dava o sustento resolvi, por exemplo, encontrar o meu lugar. Fiz o correcto, gerei confiança em quem devia e num período de tempo mais curto do que era regra promoveram-me a motorista de um dos camiões do lixo. Para a dureza do trabalho, ainda assim, estive demasiado tempo como peão, o nome que damos a quem anda a pé, com o carrinho e a pá e a vassoura. Sabia que quanto mais cedo me habituasse menos resistência oporia e menos duro seria e foi isso que fiz. E então promoveram-me a motorista. Trabalhava todos os dias das onze horas da noite às seis da manhã. É de um desses turnos que quero falar. De uma dessas noites longas e frias mas também repletas de companheirismo. Uma das razões que me permitiram ascender a motorista – penso – foi nunca me ter metido nos sindicatos. Não tenho sequer um carácter inconformista – e não o digo com orgulho. Uma das vitórias dos sindicatos foi conseguir uma pausa de trinta minutos a meio do turno, uma pausa oficial. A direc-
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ção aceitou impondo a condição única de que os horários de trabalho avançassem quinze minutos. E assim passamos todos a sair quinze minutos mais tarde. O pessoal dos camiões era fixo e eu trabalhava com dois colegas. Durante a pausa um deles tinha por hábito encontrar-se com outros companheiros escalados umas ruas mais a norte. Às vezes dava-lhe boleia e ficava o Carlos comigo, estacionávamos ao lado do depósito de água. Ligávamos o rádio e ficávamos ali a escutar as chamadas telefónicas que faziam ouvintes de um programa nocturno. Se não for por obrigação, não há muitos motivos que te levem a estar acordado às três da manhã em casa, e nenhum, decerto, chega a ser remotamente edificante. Algumas chamadas eram hilariantes e deixávamos quase sempre o rádio naquela emissora. Comentávamos as histórias e era realmente divertido. O Carlos punha as botas em cima do tabliê e descascava amendoins atirando as cascas pela janela. Uma dessas noites apareceram uns miúdos. Não deviam ter muito menos que a idade do Carlos. Já os tinha visto ao longe: dois rapazes e duas raparigas. Empurravam-se, depois abraçavam-se, davam pontapés no que encontravam pela rua. Quando chegaram perto do camião começaram a apontar e um dos rapazes colocou-se exactamente à nossa frente, rindo-se, fazendo caretas, apertando o nariz e depois movendo a mesma mão diante da cara. O Carlos subiu o volume do rádio mas o rapaz não desistiu e os outros três, provavelmente pisando o monte de cascas de amendoins, riam-se desde o passeio. Por fim, o Carlos abriu a porta e de um salto desceu do camião. Eu segui-lhe o movimento e também desci. O rapaz estava agora em frente ao Carlos gesticulando e insultando-o com todo o tipo de apodos. Avançou um passo e o rapaz empurrou-o sem que Carlos oscilasse um só centímetro. Sabia que aquela pausa estava condenada e não me pude mexer. Carlos respondeu ao empurrão com um murro certeiro no peito e toda a força do impacto se concentrou no rosto
do rapaz. Tinha lido algures que uma pancada no peito pode ser mais mortífera que na cabeça e foi nisso que pensei. O rapaz caiu ao chão e não mais se levantou, as raparigas arrojaram-se ao corpo inerte e gritaram. O segundo rapaz estava ao telefone tentando precisar o sítio onde nos encontrávamos. Enquanto Carlos desaparecia rua abaixo lembrei-me de alguns comentários que proferira ao escutarmos uma ou outra chamada telefónica. Parecia que ainda o estava a ouvir. Não os vou aqui lembrar; também os silenciei na altura do julgamento. A dada altura perguntaram-me se em alguma ocasião tinha sido necessário admoestar ou repreender Carlos. Respondi que não, nunca, e essa é a verdade absoluta. Não me passou pela cabeça duvidar um só momento do que conhecia, do que sabia do meu ex-colega. Talvez ele apenas não tivesse tido ainda a sorte de tomar as boas decisões. Talvez ainda fosse muito jovem. Desejei que todos nascêssemos ensinados. Desejei-o com fúria.
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SIDERAL Samuel Filipe
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Estando o termómetro avariado a chegada do tempo quente prova-se, um ano mais, através dos engarrafamentos na marginal. Levo três t-shirts e dois calções. Roupa interior dobrada e acomodada. Acabo de ganhar um prémio que dá para passar os meses de estio em Zagora, apenas interessado em mim e o resto que se lixe. Uma t-shirt a enxugar, outra vestida e a terceira à espera da sua vez. Quantos serão capazes de uma ousadia como a minha? Estava praticamente sem dinheiro e devia conseguir o bastante para comer, pagar as contas e todas essas necessidades que fazem de ti um gajo responsável e maduro e também totalmente refém dos humores alheios. Não foi o que fiz, pensar em pequeno. Nunca faço o que é esperado. Dei várias voltas a um bairro que fica perto da estação, onde os bares cheiram a mofo e a fritos, onde param muitos senegaleses. Dei umas quantas voltas ao quarteirão. Não fui a nenhum casino. Nota após nota e logo moeda após moeda, depositei-as nas ranhuras correspondentes de uma tragaperras, e os velhos e as perras olhavam e eu continuava na minha. Não parava de largar dinheiro. Primeiro de um envelope que a minha mulher me tinha dado, o ordenado da quinzena. É cozinheira. Devia agradecer ver-se livre de mim. Depois da minha carteira e finalmente das calças, as últimas moedas saídas directamente dos bolsos traseiros das minhas calças gastas e confortáveis. Olhei em redor; ganhava, e depois? Bastava de expectativa. As moedas caíam na bolsa de canguru da máquina. Pedi um saco de plástico. A máquina estava atestada, os primeiros sons, ruído metálico, reproduzido sem variações, monótono, proporcionado a quem estivesse à volta, o som da inveja; olhei
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triunfante, esforçavam-se por ignorar-me, à altura dos meus joelhos, gajo alto, tombavam as primeiras moedas de dois euros; pareciam pelar as paredes onde eram vertidas, saltavam chispas, e moedas caíam sobre moedas e finalmente o som abafava-se. Pedi segundo e terceiros sacos, preferia reciclados, por favor, já me punha arrogante com o dinheiro repentino. Só havia de plástico grosso. A miúda, detrás do balcão, estendeu-me o saco sem me prestar a menor atenção. E não parava de jogar. Digo jogar para facilitar o entendimento bacoco, estava finalmente a recuperar o que me pertencia, apenas resgatado de um modo extraordinário. Aquilo que havia de ser meu, às mãos me havia de chegar, dizia o Saramago depois do Nobel. Também nunca perdi essa certeza e quando entrei naquele covil adivinhava a hora; porque não merecia sorte diferente. Cheirava a mofo, a desleixo, o ambiente que respirava sem cuidados. Uma vez entrei no casino e andei tenteando, atemorizava-me com os jogadores concentrados e em silêncio, as luzes a piscar, os sons agudos das máquinas multiplicavamse em todas as direcções, quase perdia o equilíbrio não fosse um banco alto; o que se passou no casino foi de uma avareza inclassificável; mais tarde senti nojo, comportei-me como se a todo o momento o céu se abatesse e precisasse de protecção que só podia ser adquirida com o pouco que sobrava depois de pagas as contas e alimentado o gado, se alguém espera alguma recompensa é necessário abandonar tudo de uma vez e sem olhar para trás. Bagagem de mão onde não cabe mais que o tecido suficiente para tapar o peito e as costas. Cobrir metade dos braços e metade das pernas. E depois volto. Para onde irei? E viver como sempre vivi, como sei viver, antes da tragaperras começar a bolçar moedas. Sobrevivendo e forçando o momento sideral que de novo altere a sorte da forma mais transitória possível. Porque eu sou grande e mereço que a fortuna seja piedosa, riqueza caída do céu, apenas um passo à minha frente.
O TRABALHO Tatiana Faia Nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos. Jorge de Sena, «Mar de Pedras»
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Só ficando cego posso fazer o meu trabalho. É a única maneira. Levei algum tempo até perceber que era a única forma de isto poder resultar. Mais tarde pode dar-se o caso de alguém vir dizer que eu percebi isso mais cedo do que quando vos informei. Que empatei ou adiei esta declaração. Mas não é verdade. É possível que tenha não querido ver, o que, tendo em conta as circunstâncias, até é adequado. A única maneira de continuar, é ficar cego. Estou a dizer. Não é que seja preciso cegar completamente. Mas é preciso ir ficando, sendo que no fim, quando o trabalho estiver acabado, estarei, como consequência desse processo, completamente cego. Comecei por perder algumas cores, agora estou na fase em que cores e perspectivas se somem. Escapam-me, pequenas linhas de luz que me escapam. A minha mulher, por exemplo, ela canta na sombra, alcandorada, a sua voz dura, não a cor que ela veste, o corpo dela na varanda mais baixa, uma sombra cortada contra a praia mais ao fundo. Eu tenho tempos de ter sido o homem que a viu, mas as cores vão-se perdendo. Não são já tão nítidas. Escolhamos um dia aleatoriamente. Ontem, por exemplo. Virei-me para o lado e fiquei a ver da janela o vulto que se aproximava subindo a rua. Só quando ele estava mesmo sobre a janela, um soldado de cabelo talvez amarelo, ele riscou o fósforo, a garrafa no seu barro opaco com as flores posta sobre o parapeito acendeu-se, uma parte das cores não estava lá, nunca se propagaram na refracção da luz, ele olhou
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para mim, eu vi-lhe o nariz, as orelhas grandes, era um rosto sem olhos, sem idade. Nunca cheguei a entender, enquanto podia ver nitidamente, exactamente o que é a cor. Abrupta, a mão bateu contra o vidro. Ele fez este gesto porque não pode dizer se eu estou já completamente cego e é até possível que esta cara me lembrasse do meu rosto se eu a pudesse ver (e eu conheço-a, a memória do meu rosto é completamente nítida, vejo-a melhor agora, a minha memória de todas as imagens, de resto, é agora muito mais aguda). Ficámos a olhar-nos, a piscar os olhos no crepúsculo. Podia ser que noutro tempo nos pudéssemos ter sentado um diante do outro e que a beleza de um espantasse o outro. Eu sentado no meu banco, do lado de dentro da loja, ele do lado de lá, com o braço a afastar a coronha da espingarda do vidro. Imaginei que podia ser ainda um rapaz, ou podia ser que fosse cara de barba feita, que melhor me enganasse. A água corria nos vidros e era já tarde e digo-te mesmo que não sei. É como te estou a dizer. É preciso que cegue. Para ver, há todas as coisas que deixarei de ver. Quando comecei, pensei que este era só o meu trabalho, que nada me ia ser tirado. Não que alguém me tivesse prometido alguma coisa, ou que me tivesse pedido alguma coisa, não foi isso, nada disso. À medida que o tempo foi passando, fui fazendo concessões de todo o tipo. No princípio, talvez que fosse apenas o medo de ficar sem trabalho. O que acontece a um homem a quem tiram o trabalho ou àquele que o perde? Na minha cabeça o som de duas sílabas, ca-sa, assim, divididas por um hífen e eu caindo no interstício, com uma nuvem de pó a levantar-se e as fundações da estrutura a partirem-se frágeis como os ossos de um velho e mesmo até o meu corpo a sumir-se, a acabar-se de repente, na margem de um passeio qualquer, numa qualquer beira de estrada, sem cinematografia nenhuma, na sarjeta mesmo. Sem trabalho, não és parte da estrutura, ou a estrutura rejeitou-te, não podes comprar o teu pão. O teu contrato social. Para um solitário como eu, o pão é
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o único laço que me une à sociedade a que pertenço. Repara que é como eu posso ser tolerado pela estrutura. Eu nunca pus a pergunta de outro modo. O que acontece a um homem com trabalho? Eu falo a mesma língua, sou pago com o mesmo dinheiro, fui educado nas mesmas escolas e tenho a mesma religião, ainda que nenhuma pátria valha ou explique o meu amor. Este corpo não tem de verdade idioma, hino, bandeira. Posto noutro sítio, aprenderá outra língua. E outro remédio não terá que escrever-se nela. E como qualquer outro, tenho cuidados com os que me rodeiam. Tenho por eles cuidado. Nesta mesa, com um canivete, alguém riscou «nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos». Antes de mim, andou para aqui um leitorzito de Jorge de Sena. Leitor. Como eu. Talvez o país que me resta seja isto. Cara e olhos e talvez óculos e sentado sobre a janela, ora atento ora desatento. Muito pouco diferente de mim, talvez. Os dedos dela, por um instante, pararam sobre a minha testa. Eu nunca a vi. Ela tocou-me, foi só isso, mais nada. Sofrimento nenhum nisso. Sofrimento em nada. Por um instante ameaçou o meu limite, qualquer coisa se abriu nesse lugar. Como eu. Talvez a única coisa que eu seja. O que guarda a narrativa. É por isso mesmo preciso que vá ficando cego. É a única maneira de conseguir fazer isto. Quando comecei, isto era só mais um trabalho. Mas à medida que o tempo foi passando, fui-me sentindo cada vez mais desligado de horários, entidades patronais, colegas, escritório. O trabalho começou a andar comigo. Não que tanto dele gostasse que ofício fosse. Não é um desses casos. Antes isto. É necessária a troca, versão civilizada do sacrifício. E a troca é este luxo. O que eu não posso. Todo o meu amor inteiramente.
A DEMOCRACIA POR VIR Victor Gonçalves
Victor Gonçalves
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Eduardo Lourenço (que admiro muito, autografou o meu Labirinto da Saudade) disse há pouco tempo, noticiado pelo jornal Público (23/01/2014), que necessitávamos de uma «revolução democrática e eufórica». Disse ainda, entre outras coisas, que a democracia era «a mais difícil das utopias que se inventou». Ora, a «revolução democrática e eufórica» parece um baile de palavras, cada uma dançando para seu lado. Como pode haver uma revolução que mantenha a democracia? Se vivemos em democracia, a existir uma revolução (alteração radical do statu quo político) temos de projectar um regime político inverso. E o «eufórico», que sentido lhe dá Lourenço? A revolução seria uma festa, onde os destronados festejariam com os novos senhores? Claro que a utopia democrática é difícil de realizar (até de antecipar em palavras, como mostra o experimentalismo de Eduardo Lourenço), mas é nisso que é imperativo trabalhar, a utopia deve estar presente em cada gesto de aperfeiçoamento que aqui e agora vamos inscrevendo na história. Para desenvolver um pouco mais um Labirinto da Democracia, convoco, mudando de inspirador, Jacques Derrida. Ponto de ordem: não tenho qualquer vontade de polemicar, quero somente pensar um pouco mais livremente a ontologia da Democracia. Por «ontologia» entendo a condição sine qua non de existência de alguma coisa, o «ser» de qualquer coisa; é neste sentido que afirmo «estar em Portugal» e não «ser português», a minha nacionalidade é acidental. Daí defender que não há democracia; mais: não deve haver, no sentido de uma coisa-em-si petrificada na sua essência. Aliás quando isso acontece, esvanece-se, perde grande parte da sua vitalidade, pode até desaparecer.
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Na argumentação que se segue socorro-me de Derrida: Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993); Politiques de l’amitié (idem, 1994); e, principalmente, Voyous (idem, 2003). Para ele, a democracia tem uma doença intrínseca que a ataca sistematicamente, segundo intensidades e modalidades variáveis. Chama-lhe «doença auto-imunitária» («auto-immunitaire»), porque a democracia segrega necessariamente nela mesma elementos que a põem em perigo, chegando a ameaçar a sua existência, muitas vezes conjurados através de decisões radicais conducentes ao suicídio. O exemplo paradigmático é o da Algéria de 1992 (na possibilidade dos islamitas ganharem as eleições, interrompeu-se o processo democrático, uma moratória que de certa forma ainda dura). Para se imunizar, proteger contra os agressores (internos ou externos), a democracia tem, no limite, de escolher o suicídio. Só isso, por exemplo, teria evitado a subida ao poder dos modernos totalitarismos nazis e fascistas, de direita e esquerda. Desta forma, as democracias têm de traçar limites à sua própria condição democrática, têm que limitar o exercício democrático, o que em boa verdade se deve chamar «contradição nos termos». Pensar nisto provoca uma certa perplexidade, mas a imposição de interditos faz parte dos sistemas democráticos, nem que seja o da idade (por que só é permitido votar aos 18 anos em Portugal?) e da nacionalidade (por que se impede um estrangeiro recentemente imigrado de votar nas nossas eleições?). Em abstracto, trata-se de renovar a velha pergunta grega: «quem é digno de ser democrata, e a partir de que critérios?» É assim que para Derrida a democracia existe apenas na diferença que constantemente vai constituindo com o ideal democrático: todas as democracias são impuras, inadequadas em relação ao modelo desenhado na areia ou nos olimpos idealistas. Daí o conceito de «democracia por vir» («démocratie à venir»), orbitando num quase vazio, diz Derrida, em contí-
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nuo movimento assimptótico em direcção a um ideal. No limite, a democracia seria um não-regime, puro pragmatismo sem eidos, de uma plasticidade irredutível. Ou pelo contrário, o conceito, ou sintagma, «democracia por vir» denota uma outra forma de democracia? Derrida não é claro, mas avança a possibilidade de a «democracia por vir» designar o que está totalmente disponível para acolher o primeiro que chegue («le premier venu»), o incondicional da alteridade, o estrangeiro mais estranho (passe a redundância). Sabendo da impraticabilidade política desta sugestão, Derrida difere então no tempo essa nova democracia, dizendo que no presente ela deve ser pensada como promessa, uma promessa messiânica, embora sem qualquer messias (messianismo como espécie de estrutura sem figuração, Derrida chega mesmo a falar de uma «messianidade sem messianismo» – «messianicité sans messianisme» –, para se afastar das tradicionais teleologias). Só a promessa de ser incondicionalmente inclusiva (em 1943, Derrida, recorde-se, foi banido da escola pública francesa por ser judeu) e de viver sem restrições a vontade de justiça, permite que a democracia ultrapasse o mero utopismo retórico, se constitua como uma boa diferença em relação aos códigos estabelecidos, seja a protecção para a sua tremenda imperfeição. Tanto mais que o «por vir» não remete somente para um futuro histórico, sempre adiado, apresenta-se como lança crítica e condição do que hoje acontece. Por outro lado, Derrida nunca propõe que a democracia por vir resolva o problema da doença auto-imune de que falei acima, esta contradição deve antes ser aceite, discutida, mas sem qualquer proposta de purificação que trouxesse a perigosa coerência lógica à prática político-ética. Cabe-nos, pois, a responsabilidade intransmissível de todos os dias, nos gestos mais singelos e até secretos, prepararmos a vinda da democracia por vir. Para evitar a pequena acusação de sebastianismo requentado, direi que isso se pode
fazer em dois horizontes práticos: 1) questionar os códigos de exclusão que a compõem (registo alargado que inclua premissas de éticas animal e ambiental); 2) combater os factores que a podem levar ao suicídio, i.e., transformá-la numa ditadura mais ou menos disfarçada. Noutros termos, precisamos de cuidar e desenvolver as promessas de igualdade (não apenas humana, repito-o) e de liberdade («querer a própria liberdade é querer os outros livres», Simone de Beauvoir).
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DO BASQUETEBOL Victor Gonçalves
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1) O Basquetebol tornou-se um desporto global, disseminado pelos americanos a partir da 1.ª Guerra Mundial (não prometo rigor científico, quero-me livre para uma escritura impressionista), mostrou adaptar-se bem às culturas onde os jogos populares vivem da relação bola/pé ou, noutro nível estrutural, do disparo de qualquer substituto simbólico e físico das bolas de canhão, contra o adversário (resquício claro dos campos de batalha pré-modernos), como o Rugby e já o Futebol, o Ténis também, embora com essa aristocracia fingida de usar uma catapulta (raqueta) em vez de directamente o corpo, e não invadir explicitamente o campo do adversário. O Basket tinha tudo, até pelo nome (cesto), para cair no ridículo e afogar-se nas risadas dos homens, e algumas mulheres de barba rija. Claro que os Marines eram tipos bem vistos, com aquele à-vontade de quem confia em Deus e masca pastilha elástica. Tinham também mais e melhores cigarros e chocolates. Foi, portanto, fácil, com esta batotice, transformar um jogo de bola saltitona e cestos de verga rotos num desporto respeitável. 2) Na segunda metade do século xx, com a fabulosa determinação americana para o divertimento de massas (permitindo alterações sucessivas nos regulamentos do jogo para o tornar mais espectacular e a permissão dos espectadores comerem e beberem alarvemente nas bancadas), a vantagem de ser um jogo indoor e o aparecimento, no último quartel do século, de jogadores fabulosos (os que conheço melhor: Wilt Chamberlain, Karrem Abdul-Jabbar, Larry Bird, Magic Johnson, Moses Malone, e, já na viragem para o nosso século, Shaquille O’Neal e o magnífico Michael Jordan), tudo isto bem enquadrado
pela relação entre NBA e Televisões (contratos de transmissão mas também esquemas de recrutamento que facilitam um equilíbrio relativo entre meia dúzia de clubes) e uma passagem bem conseguida de jogadores brancos para jogadores negros, aumentou exponencialmente a atractividade do jogo.
4) Isso não invalida que seja um desporto extraordinário: praticado com regularidade desenvolve quase todo o espectro biomecânico dos jogadores, exige uma inteligência táctica muito superior à do futebol, níveis físicos elevados (apesar da recuperação após cada jogo ser mais rápida do que em desportos com esforço físico contínuo e prolongado) e uma cultura de equipa que mesmo quando deixa brilhar as estrelas é bem superior à de outros desportos colectivos, onde alguns
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3) Em Portugal ficámos, contudo, presos a uma profunda modéstia, apesar do impulso que a chegada dos «retornados» das ex-colónias deu à modalidade na década de 70/80. Hoje vai-se jogando, há miúdos talentosos, alguns clubes bem organizados, zonas do país onde a prática e a formação inicial tem um certo fulgor («Margem Sul» e à volta de Aveiro), mas o Futebol moldou de tal forma os nossos jogos de pensamento e de emoções, facilita tanto a conversa de ocasião, é tão eficaz a produzir gritaria e cânticos de louvor à porrada e à sexualidade mais bestial, é tão profícuo no insulto, tão fácil de usar em guerrinhas políticas, tendo, além disso, por preguiça e seguidismo, a comunicação social constantemente «em cima do acontecimento», com horas e horas de discursos sem sentido e de espuma no canto da boca sempre que os comentadores se digladiam em torno da justiça dos resultados. Lembramo-nos do jogador Lisboa, um «extremo» de qualidade europeia; de uma ou outra equipa (Benfica, Porto, PT); mas no resto, o Basket apenas obtém o favor de uma nota de pé de página no grande circo mediático e mental da cultura lusa.
elementos se podem desconectar do plano táctico (Cristiano Ronaldo joga por si, no Andebol há jogadores que só atacam...). Costumo aconselhar os pais preocupados com o sofãsismo e a obsessão multimédia dos filhos a porem os rebentos no Basket, parece-me ser um dos melhores sítios para retornarmos ao way of life grego do «corpo são em mente sã». Relembro que este slogan era muito mais do que uma mera sugestão de fitness, para os gregos clássicos a vida sem desporto, sem teatro, sem guerra e sem política seria um erro.
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5) Servem os 4 pontos anteriores para chegar ao mais importante: dar-vos a conhecer que também eu jogo o meu Basket, numa equipa multicultural e multianual (variam bastante as idades, as profissões, os interesses, os gostos...), aos Sábados de manhã no Estádio Universitário de Lisboa. Rondamos os dez jogadores e somos «treinados» pelo Pedro Marques. Parte da minha semana é pontuada por esse porto de abrigo onde sei que terei o prazer de correr e saltar, passar e lançar (encestando às vezes) uma bola. Chamo-lhe a «minha metafísica da felicidade», que se transforma em física hedonista quando chega a hora do treino (se a filosofia fosse assim teríamos mais praticantes). Claro que também obtenho prazer noutros gestos físicos da vida, no Ténis (que pratico imediatamente antes), nas caminhadas, nos abraços, nas mesas com comida ou bebida, na tagarelice... mas no Basket o corpo tem de dançar, os tiros têm de ser precisos (no lançamento ao cesto emerge a angústia e a coragem do caçador primitivo, por vezes recompensada), os passes exactos. Ataca-se já preparando a defesa, não há repouso, cada fragmento do jogo deve ter a intensidade máxima do presente e projectar desde logo o futuro próximo. No Basket joga-se com o tempo, i.e., mergulha-se nele para evitar as quebras da compartimentação passado/presente/futuro. Um jogador que se esqueça de defender quando ainda só está no início do lançamento é um mau jogador. E na defesa, o «cada
um defende o seu» é apenas o início de algo de muito mais complexo, de constantes trocas e entreajudas, de laxismos astuciosos e estratégicas pressões de 2/1. A arte de defender está infinitamente mais desenvolvida no Basket do que em todos os outros desportos que conheço. Por exemplo, é impossível ser, como no futebol, um bom defesa sem uma inteligência de contexto e de previsão muito elevadas. Não basta ter talento físico e resiliência, é preciso ser um quase filósofo do desarme ou pelo menos da perturbação sistemática.
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5.1) Mas fujamos do angelismo. Algumas vezes, juntando a natural imperfeição humana com pequenos egoísmos (espontâneos ou não), o treino agride o horizonte ético que em geral o cobre (mesmo se, com Michel Serres, se aprende mais ética no desporto do que em qualquer manual de bom comportamento). Assim acontece em todos os desportos, não fossem eles constituídos por jogos onde se ganha e perde. Os gregos, competidores inveterados, gostavam da vitória na derrota, e vice versa, isto é, que a tragédia se inscrevesse no jogo. José Mourinho criou uma espécie de nova lógica da justiça: «é justo quem ganha». Ora, também nós, no Basket de fim de semana que adoramos jogar, por vezes nos desentendemos (uma outra forma de dizer que cada um entende para seu lado). Mas é raro, porque somos crescidos (eu lidero o clube do Basket grisalho) e sabemos relativizar o irrelevante, mas também, talvez sobretudo, porque Pedro Marques, treinador e estrela da companhia (joga para lá do nosso campo de possibilidades, mas como dança com a bola não lhe levamos a mal, nem temos inveja) sabe abafar os pequenos arrufos, orientando os desorientados e esvaziando as energias vingativas que às vezes se levantam (num jogo, o caos aparece quando se acumulam demasiadas forças vingativas). Claro que alguns leitores julgarão que este panegírico ao treinador traz água no bico, talvez, mas esses intérpretes revelam claramente falta de fair play.
SEBASTIANÓPOLIS ABANDONADA Victor Heringer É tamanha coisa o Rio de Janeiro da boca para dentro Gabriel Soares de Sousa
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I De madrugada mataram um rapaz aqui na rua. Os vizinhos me disseram que ele foi tirado da cama aos berros, todo mundo ouviu. Aí atiraram nele. Morreu de pijama, quase na altura da avenida da praia. Não tinha família, pelo menos isso – os vizinhos disseram. Assim ninguém sofre. Anteontem (23/05/2013) deixaram a cabeça de outro rapaz no colo da estátua do José de Alencar, ali perto do Lamas. Tenho o hábito de acenar para a estátua quando passo por ela. É quase sempre uma saudação morna – vivemos perto um do outro, olá, eu te reconheço e reconheço a cidade porque você está sentado aí há mais de um século. Raramente passamos da troca de cortesias. Anteontem eu acenei para uma cabeça decepada. Mal consegui almoçar. A estátua é verde. Tem uns olhos entediados, as coxas magras de quem passa muito tempo sentado. Um caderno quase caindo da mão esquerda. Parece exausta. Sempre achei que era um cansaço arrependido: José foi petrificado assim para expiar a culpa daquelas sete cartas de 1867, nas quais defendia a escravidão: «A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito». II A coisa é que desisti da escrita de um poema longo sobre o Rio de Janeiro, intitulado Sebastianópolis, que era como o
povo do tempo de Alencar chamava a cidade. Teria sido um livro inteiro, tinha já suas quarenta páginas de sotaque carioca e ladainha de mal-amado. Mas venho me irritando com os versos que escrevo. Já nem sei pular linha. Acho que não sou mais poeta. Quando resolvi abandonar o poema, o ponto branco apareceu no meu olho, no canto superior direito do olho esquerdo, um círculo esbranquiçado. Fui dormir às dez da manhã. Sonhei com areia fria em cima de areia fria, sonho de insone, que foi interrompido pela luz insistindo na janela. Levantei, abri a porta da frente e lá estava o sol, boiando pálido no céu, irredutível em cima de um prédio de escritórios. Fazia frio. Eram onze horas da noite, mas parecia tardinha. Minha mulher me examinou e não viu mancha, palpitações, nada. Diz que não tem como eu ficar cego porque sou jovem demais, mas quando fecho os olhos o ponto leitoso ainda está lá, afogado no fluido lacrimal. Não me deixa dormir. Enfim, do meu péssimo poema, só fiquei gostando mesmo do samba que persegue o garoto o tempo todo, pelas vielas, no carnaval da Lapa, em casa, na praia do Flamengo. O samba é um monstrengo com voz de falange:
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Eu sou o samba, eu sou. Flagelo das cem sarjetas. Tambor dos mil tristonhos. Patrono das alvoradas preto Dioniso. Barulho dos homens.
Areia quente. Festa difícil. O resto é imprestável. Tenho muito medo de ficar cego.
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III Numa mesa do Lamas, há meses. Cinco amigos, minha mulher e eu. «Só é bambambã quem já virou mesa no Lamas», escreveu Manuel Bandeira em 1931, no tempo em que o café era vizinho de um açougue e metia medo nas moças de família. O açougue já não existe e entre nós ninguém é bambambã. Somos calmos. Não temos certeza da existência dos óvnis, dos congressistas ou das moças de família. Quando dá ou quando alguém nos pede, sorrimos. O aluguelaço expulsou três dos nossos, mas ninguém mais tem saúde para canções de exílio. Sobre a mesa: bife com batatas da Prússia, sanduíche de pernil e chope mulato. Nós sete temos teorias sobre a cidade: (1) O Rio só existe porque inventamos histórias sobre ele, o que faz da arquitetura a mais sólida das ficções; (2) A cidade é uma ferida insustentável, o poeta é uma ferida insustentável, o poeta é uma ferida insustentável tropeçando noutra ferida insustentável; (3) O ano inteiro, e por toda parte, a gente encontra confete pisado. É necessário mapear essas explosões fora de época, catalogar os confetes, para entender de verdade o Rio de Janeiro; (4) Em toda cidade existe um homem que tem cara de pescador, mas nunca viu o mar. É quase impossível achar esse um-homem nas cidades litorâneas, mas ele existe, está aqui. Se o encontrarmos, ele vai saber nos explicar o Rio de Janeiro. (5) «A cidade é um órgão nosso», diz meu amigo, mastigando o pernil. «Estamos doentes. O Rio é o nosso estômago,
Foi nesse açougue pardo, no comércio da carne morta, entre filés, postas e cubinhos, que nasceu a cidade. Veio ao mundo obesa, velha e fanha – «o Rio de Janeiro já nasceu cidade» (Vivaldo Coaracy, 1964). Filha de Cão com a Virgem Maria, sob os auspícios de Dom Sebastião, o Rio nasceu no dia 14 de abril, e não no 1.º de janeiro, como afirma a historiografia.1 1 CASTRO, L. (Org.). Cancioneiro de Sebastianópolis, 2012. p. xxvii. 14 de abril é a data de aniversário de L.
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onde aperta quando a gente está amando e onde nasce a náusea.» Penso nas montanhas da Guanabara, na silhueta deitada que dá boas-vindas a quem chega pelo mar, o pé indicando a entrada da baía. (6) Tão baqueado é o estômago do carioca. Quase cinco séculos a digerir um só gigante de pedra. A teoria de L., minha mulher, é a favorita de todos. Segundo ela, (7) a cidade do Rio é fanha e gosta de cantar de madrugada pelas ruas. Anteontem a ouviram no Méier, trasanteontem na Tijuca, hoje quem sabe teremos sorte. L. fundou um grupo de estudos para analisar o que a cidade canta. Publicaram o Cancioneiro de Sebastianópolis no ano passado: cantigas pornográficas, batidões viróticos, árias desdentadas, sambas absolutos, choros, tudo anotado e impressionante. O Rio de L. é uma velha gorda, preta e branca, papas e papas e mais banhas. Tem cabelos de palmeira e água de coco nas veias, mãos de sapólio e boca de navio de alto calado. Uma teta ela atira aos passantes, para seduzi-los, a outra ficou escondida para sempre na Guernica do Picasso. Na introdução ao Cancioneiro, L. explica que a cidade é filha do Diogo Cão, navegador do tempo de João II e mestre nas ciências carnificinas. Diogo Cão roubou do rei do Congo a arma mais preta e lhe deu a alma mais branca. Veio fugido para o Rio e aqui, no largo do Machado, fundou um açougue. Vem daí o nome do lugar: Cão exibia o machado roubado na fachada da loja para assustar os escravos.
É um mito de fundação extraordinário. «Sabe como o Rio canta?», L. um dia me disse. Foi há muito tempo. «Como nos filmes velhos do nosso país». Dublada por artifício, gravada à parte e dessincronizada. Foi nesse dia que me apaixonei por ela. Foi quando perdi o pudor dos sambas. Comecei a escrevê-los sem música, na esperança de que a cidade os aprendesse e de repente L. ouvisse algo de meu na voz fanha de Sebastianópolis, em Madureira ou na Barra da Tijuca. Não há nada meu no Cancioneiro. L. se apaixonou por mim, mas por outros motivos. Já não faço versos. L. é em preto e branco: nos cabelos pretos uns fios brancos, no corpo branco uns fios pretos. É emagrecida de tanto andar pelos bairros perseguindo a cidade. Mora na Tijuca. Fala pouco – os ouvidos sempre atentos – e tem olhos distraídos, olhos de Clara Bow. Tem dez anos a mais do que eu, por isso caminha como se alguém a perseguisse, zebra na savana. L. ouve tudo antes de todos.
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IV Eu tinha desenhado num guardanapo o mapa que me protege e agora o explicava aos meus amigos. Nenhum de nós tem certeza da existência dos orixás, mas todos dizemos ter o corpo fechado. Cada um carrega um amuleto para nos guardar do mal, de cuja existência, aliás, duvidamos. Disse a eles que meu corpo é protegido por Ogum à testa, Oxum nos ombros e Xangô na mão direita. Este, portanto, é o meu amuleto, o meu corpo:
«E na esquerda?», L. perguntou. Na esquerda está todo o resto. Meus amigos acharam graça. São amáveis comigo, que sou o caçula da turma. Pedimos mais uma rodada de chope. Falamos um pouco sobre Deus, mas Deus é monótono como o ronco de um marido exemplar. O verdadeiro transe é o nosso. O nosso é que é o silêncio grávido. V Não sei onde foram parar os nossos amigos. Passaram-se duas semanas e o ponto branco ainda está aqui, ensolarando meu olho. Não durmo mais. Preencho as madrugadas contando os tiros e imaginando os mortos. Há muito ruído de obras também, britadeiras, muitas sirenes, carros e caminhões. O dia é eterno no Rio de Janeiro. Daqui de cima, consigo enxergar os craqueiros no parque do Flamengo, chupando suas garrafas de plástico – a pedrinha da droga no fundo, com um pouquinho de água de sarjeta. Eles vivem olhando para cima, como se o sol nunca se pusesse. Quando passa alguém, atacam. Tiros. De novo. L. dorme perfeitamente no quarto. Ninguém mais dorme no Rio de Janeiro. Victor Heringer
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INVERNO DE 80 Györgi Petri tradução de João Miguel Henriques et al. Terei quarenta e nove no final da etapa que agora começa. Não sei que padrões de cuecas, que bugigangas estarão então na moda. Terá passado já muito tempo desde o tempo em que fui jovem. Esse homem desgastado terá ainda compromissos? Quais? Em que língua lerá o jornal? Dormirá com a mesma mulher que hoje acorda ao seu lado?
György Petri
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PARA ALCANÇAR UM LUGAR AO SOL Györgi Petri tradução de João Miguel Henriques et al.
«O que é que pagas?», perguntou atrás de mim a voz catarrosa de uma mulher. Era uma voz jovem. «Peça lá», respondi, voltando-me para ela. Nas minhas costas estava uma mulher de mais ou menos cinquenta anos. Cabelos outrora castanhos claros, gordurosos, colados à cabeça, as gengivas arruinadas, os lábios gretados, os olhos
99 João Miguel Henriques et al. (trad.)
Era uma noite de verão como as outras. Eu andava de tasca em tasca. Talvez estivesse a beber no Nylon, ao lado da estação de comboios, junto à Ponte Margit (ou será que a ponte já tinha sido demolida?). Não sei, pode ser que andasse pela Praça Boráros. Essas andanças duravam sempre até de manhã ou mesmo dois dias, e levavam-me a lugares sem nome. Em todo o caso, estava sentado a beber num sítio qualquer. (Naquele tempo eu ainda bebia de tudo, os jovens não são esquisitos.) Ainda não me punha a ler nas tascas, não, não, ainda não me enterrava em livros e revistas, ainda não pregava os olhos ao tampo da mesa. Ainda não ficava nervoso quando os outros falavam comigo.
György Petri
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raiados de veias, de um azul marinho1, camisola sintética branca amarelada, calças castanhas, sapatos de praia encontrados no lixo. Pediu uma mistura de álcool e uma imperial. Sem comentários. «Estou aqui para uma nota de vinte», disse. Fiquei surpreendido. O preço era incrivelmente barato (já naquele tempo o era). Eu conhecia os preços da Praça Rákóczi. Vinte forints não era preço que se visse. A mulher não teria tido sucesso na Praça Rákóczi, nem em qualquer outra praça. Mais lógico seria ela pagar para ir para a cama. Inclusivamente mais do que estava a pedir. Mas era isso que ela queria. «Anda lá, apetece-me», disse ela, «estou cheia de vontade.» Nunca fui capaz de ofender a feminilidade de uma mulher (só quando esse foi declaradamente o objectivo). Mas neste caso… fui com ela; achei que tinha de ser. É que nesse tempo sentia-me acossado e turvo como lama revolvida e apenas experimentava alguma falsa superioridade nessas tascas e casas de pasto entre os verdadeiros miseráveis da privação e desabrigo. Arrastou-me durante muito tempo por uma rua longa, e depois abraçou-me. Foi embaraçoso, mas faz parte do negócio. 1 Que disparate. Tu é que tens os olhos azuis marinhos. Os dela? Sei lá. Como água sulfurosa numa banheira. Só queria oferecer qualquer coisa a esta criatura desafortunada, como por exemplo a cor dos teus olhos, uma palavra rara, para ela não ficar tão repugnantemente lastimável e eu parecer mais inteligível.
101 João Miguel Henriques et al. (trad.)
Abracei-a também, atracámos a uma cave, havia muitos degraus para descer, a uma luz de origem desconhecida. A cama. Uma pocilga de peças encardidas de algodão. Não se despiu, apenas baixou as calças. «Era assim que eu fazia quando fodia atrás dos arbustos», Disse sem pejo. Por mim tudo bem. Também tirei apenas as peças indispensáveis e atirei o casaco para o chão. Mais vale sujo que amarrotado. «Beija-me». Tudo bem, era inevitável. A boca cheirava a ranço, tinha os lábios escamados, a língua e o céu da boca secos, como se a minha língua remexesse numa lata de sardinhas vazia, para depois vir a cortar-se na borda afiada. Fiquei com medo de logo vomitar na boca dela, mas à conta disso apeteceu-me rir às gargalhadas, com as lágrimas a derramarem-se sobre a sua grossa pele, até eu conseguir dominar os movimentos peristálticos. Entre pernas, era estreita e seca. Pouco se alargava e em caso algum ficaria molhada. «Espera», disse ela, e com os dedos esgravatou numa margarina aberta. Esfregou-se lá por dentro, uma e outra vez. «Também vais comer daqui?» «Há algum sítio onde possa lavar-me», perguntei mais tarde. Apontou para a ponta de um cano. A água esguichou e fiquei com as calças cheias de lama, como se me tivesse mijado todo. «Faz parte», murmurei. Ainda tinha uma nota de cinquenta. Ela abanou a cabeça: «Disse que era vinte, o preço não é esse. O que eu mesmo preciso
é de uma nota de vinte». «Então dá-me troco», respondi, «não vês que não tenho vinte?» «És estúpido ou quê?», disse ela. «Se pudesse dar troco de cinquenta, é porque não precisava da tua nota de vinte», disse logicamente. E no momento seguinte ficou com a boca aberta. Encolhi os ombros («se és assim tão orgulhosa»), Meti a nota de cinquenta no bolso, apanhei o casaco e subi as escadas às cegas. Para alcançar um lugar ao sol, onde o fato bege e a camisa branca resplandeçam, por degraus entalhados rumo à limpeza, aí, onde o vento silva, a espuma branca crepita, numa absolvição lúgubre, numa recriminação indiferente, degraus de náusea, subcaves que recusam consumir-se, madrugada de verão, mil novecentos e sessenta e um.
Nota
György Petri
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György Petri (1943-2000) nasceu em Budapeste, onde estudou Filosofia e Literatura, sem porém ter completado o curso. Entre 1975 e 1988, os seus poemas foram considerados «politicamente inaceitáveis», devido à atividade do poeta na oposição democrática. Petri foi editor do jornal subversivo Beszélő e também, já depois da queda do muro, do jornal Holmi. Recebeu vários prémios literários pelos seus volumes de poesia, entre os quais o prémio Attila József em 1990 e o prémio Kossuth em 1996. Três dos seus poemários foram publicados através do samizdat, prática de edição e distribuição clandestina de livros e outros bens culturais que haviam sido proibidos pelos governos dos partidos comunistas nos países do bloco de leste.
Em maio de 2012, professores e alunos dos cursos de catalão, espanhol e português da Universidade de Szeged (Hungria) reuniram-se durante três dias na Casa Húngara dos Tradutores, a Casa Lipták, na cidade de Balatonfüred. Aí, na companhia de dois poetas e tradutores convidados, leram, discutiram e traduziram para as referidas línguas poemas de três autores húngaros da segunda metade do século xx. Um desses poetas foi György Petri e este é o resultado desse trabalho, dirigido pelo poeta e Leitor da Universidade de Szeged João Miguel Henriques, no que foi secundado pelos seus alunos Róbert Antal, Sára Czérnay, Gergő Hajzer, Kata Kosiczky, Eszter Mólnar, Barbara Szöllősi e Vera Lacsán.
João Miguel Henriques et al. (trad.)
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POLUIÇÃO LUMINOSA Nick Laird tradução de Hugo Pinto Santos És o santo padroeiro de qualquer outro sítio, sofres de jet-lag e bebes sumo de maçã, observas, da janela do sexto andar, uma piscina em formato de rim exactamente da cor do azul de Hockney. Suponho que conheça a vida pelo lado esquerdo, e, nos últimos tempos, é como se me tivesse esquecido de alguma coisa na noite – acordo sozinho e gelado, ainda agarrado ao meu lado. Todos os dias, a maré da noite chega e a atmosfera recebe uma profundidade de campo dos satélites, a cama de rede da lua, aviões que fundeiam em Heathrow.
Nick Laird
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Acima da poluição luminosa, por entre estrelas que vogam nesta noite, poderá haver outro trânsito – migrações de garça e de grou, as suas meadas espectrais são símbolos que convergem, setas, sistemas meteorológicos, flotilhas brancas rumando firmes em direcção ao seu sustento de Verão. Um milhão de lençóis que se agitam.
Quem sabe como conseguem. Os guias de navegação podem ser a memória, pontos de referência, ou as mais luminosas constelações. Talvez o ferro no seu sangue detecte o magnetismo do Norte. Quem dera que um te levasse um amuleto, um recado num post-it, num bilhete, um pormenor que documentasse este instante de autocomiseração – a sua Solidão Órfica, com Cão. Progressos? Nada de extraordinário, mas a morte da casa fará do teu regresso algo como um anti-clímax, violação de propriedade. De Nick Laird, On Purpose, Faber and Faber, 2007
Hugo Pinto Santos (trad.)
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ALBA Nick Laird tradução de Hugo Pinto Santos Vai para casa. Há semanas que não durmo sozinho e preciso de me estender sobre os lençóis até encontrar não o calor mas a perda. E é essa falta que me vê agora tão gordo e nada satisfeito – com isso quero eu dizer-me incapaz de dureza ou de amabilidade. Incapaz de falar a homem ou animal, Não conseguiria deixar que me visses assim tirado pelo avesso, o que quer dizer que o que importa é lá estar. Não aqui. Se soubesses o suficiente, saberias que é na remoção que se é amado. Levanta-te. Leva-te até à noite. Percorre ruas que jazem contrárias e se atravessam a si mesmas numa prece por sombra, depois luz.
Nick Laird
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De Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005
DA BELEZA Nick Laird tradução de Hugo Pinto Santos Não, não poderíamos fazer a lista dos pecados que não nos podem perdoar. Aos mais belos não falta uma ferida. Começa a nevar permanentemente. Para os pecados que não nos podem perdoar, as palavras são maravilhosamente inúteis. Começa a nevar permanentemente. Os mais belos sabem disto. As palavras são maravilhosamente inúteis. São as malditas. Os mais belos sabem disto. Deixam-se ficar por ali com a falta de naturalidade de uma estátua.
e, portanto, a sua tristeza é perfeita. Aos mais belos não falta uma ferida. Quando endurece, é decorada com a cara deles. Não, não poderíamos fazer a lista. De Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005
107 Hugo Pinto Santos (trad.)
São os malditos, e, portanto, a sua tristeza é perfeita, delicada como um ovo poisado na palma da mão. Quando endurece, é decorada com a cara deles
RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO PIADA Nick Laird tradução de Hugo Pinto Santos E no entanto chacina pode ser o plural riso... Javier Rodrigues Rodrigues
Foi assim que me contaram a história: um inglês, um irlandês e um escocês que desciam a Union, chacinados, com grande espalhafato, e o resto é uma lenta ascensão seguida de queda. Eu fumava, enquanto ia passando os olhos pelo copo embaciado, o relógio de mergulho, o anúncio da Guinness por trás do gim, e vi três rostos que num esgar pronunciam: O teu gajo entra num bar, com balcão de ferro... au. *
Nick Laird
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A meio do caminho haverá desejos, esposas, ilhas desertas em silêncio, tribos da selva, pelotões de fuzilamento, últimos pedidos e génios engarrafados em jogos infantis. No fim, vêem-se os frascos marcados pela maré, abandonados a um fumo táctil, os fios eléctricos descarnados do ar que pende como mordaças a puxarem burros para trás, que à partida já não eram nada de especial. Portanto, por favor, nada de aplausos, de risos, e, por favor, nada de aplausos.
* De cada vez que uma rodada transforma o vidro no choque sólido da chuva, e o pub gera as suas bolsas de ar, encolhe os ombros e cria raízes, há uma ovação até às casas de banho. Um caralho qualquer, um gordo, leva um soco na pança e é atirado para dentro de um Corsa. Inesperado ferimento de bala, a lua surge para inundar o parque de estacionamento. Outro qualquer que discorra sobre piadas e o inconsciente, outro qualquer que se refira à sorte dos irlandeses. * No espesso relvado à esquerda da relva bem aparada, o mesmo homem que entrou no bar está ali, dobrado de riso.
o último a ser visto no azul de céu de um fraque, escarranchado no grande ecrã do seu Samsung. O mais certo é que ninguém se meta com ele.
109 Hugo Pinto Santos (trad.)
A palhaçada do seu rosto rude, cor de casca de ovo, está prestes a romper num esgar,
* À luz do dia, a lua declina no céu como uma gota de condensação e, em sinal de respeito, tiram-se bonés de golfe que anunciam lendários nomes locais, depois alguém tosse, desliga a musiquinha do relógio de pulso. O segredo da boa comédia. O modo como o horizonte quase intercepta a língua da lua, esticada para a comunhão, como uma piada por momentos esquecida. De Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005
Nick Laird
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AUSCHWITZ Salvatore Quasimodo tradução de João Barcelos Coles Lá em baixo, em Auschwitz, longe do Vístula, amor, ao longo da planície nórdica, num campo de morte: fria, fúnebre, a chuva na ferrugem dos postes e os enredos de ferro dos recintos: e não há árvore ou pássaros no ar cinzento ou acima do nosso pensamento, mas inércia e dor que a memória deixa ao seu silêncio sem ironia ou ira.
111 Salvatore Quasimodo
Tu não queres elegias, idílios: só razões da nossa sorte, aqui, tu, branda aos contrastes da mente, incerta a uma presença clara da vida. E a vida está aqui, em cada não que parece uma certeza: aqui escutaremos chorar o anjo o monstro as nossas horas futuras badalar o além, que é aqui, em eterno e em movimento, não numa imagem de sonhos, de possível piedade. E aqui as metamorfoses, aqui os mitos. Sem nome de símbolos ou de um deus, são crónica, lugares da terra, são Auschwitz, amor. Como de súbito se esfumou em sombra o querido corpo de Alfeu e de Aretusa!
Daquele inferno aberto por uma inscrição branca: «O trabalho vos libertará» saiu o fumo contínuo de centos de mulheres empurradas fora dos canis ao amanhecer contra o muro do tiro ao alvo ou sufocadas gritando misericórdia à água com a boca de esqueleto sob os chuveiros a gás. Encontrá-las-ás tu, soldado, na tua história em formas de rios, de animais, ou és também tu cinzas de Auschwitz, medalha de silêncio? Ficam longas tranças fechadas em urnas de vidro ainda cerradas por amuletos e infinitas sombras de pequenos sapatos e de xales de hebreus: são relíquias de um tempo de sageza, de sapiência do homem que se faz medida de armas, são os mitos, as nossas metamorfoses.
João Barcelos Coles (trad.)
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Nas planícies onde amor e pranto apodreceram e piedade, debaixo da chuva, lá em baixo, pulsava um não dentro de nós, um não à morte, morta em Auschwitz, para não repetir, daquela cova de cinzas, a morte.
ENTREVISTA A UM TALENTO NUNCA PUBLICADO Cassandra Jordão Encontrámos o escritor numa tasca suburbana de boca colada ao gargalo da garrafa de cerveja e a atirar tremoços ao empregado de mesa – animal em vias de extinção conhecido pelo farto bigode, pela sovaqueira suada e por um linguajar cravejado de anedotas e de salpicos de asneirola. Conversava-se sobre o Benfica. O escritor, adepto do Porto, assume-se como um exilado. Um azul no meio de vermelhos, como diz.
É uma notícia em primeira mão. O escritor frequenta discotecas. Não me interprete mal mas está a fazer confusão. Eu não frequento discotecas. Detesto discotecas. Detesto tudo. Só estou aqui porque um homem precisa de sair à rua.
113 Cassandra Jordão
Antes de mais, obrigado por nos ter recebido. É uma honra podermos falar consigo. Permite que gravemos a conversa? Permito, permito. O prazer é todo meu. Não estou nada habituado a dar entrevistas. Não gosto de aparecer em público. Não gosto do público. Nem de jornalistas. Nem de nada. Para ser sincero, só aprecio cerveja, putas e este dinossauro farfalhudo (aponta para o empregado de mesa). Mas quando recebi o seu telefonema, senti que não poderia recusar. É daqueles sentimentos que não consigo explicar. A última vez que fui acometido por um destes sentimentos foi na semana passada, dentro de uma discoteca, quando esmurrei um sujeito que se roçou em mim na pista de dança.
Mas acabou de afirmar que esmurrou alguém numa discoteca. É verdade. Esmurrei, pois. Estava com uma febre. Não vou a discotecas. Vou só àquela. Gosto de ler no meio da confusão. Ou melhor, detesto ler. É tudo medíocre. Detesto mediocridade. Não leio nada. Mas costumo ler o jornal na discoteca. Lê autores contemporâneos? Por quem me toma? Só leio clássicos. Esses valteres hugos mães e tordos não me dizem nada. A literatura está morta. E está morta há muito tempo. Antes ainda havia tipos com classe. Há uns anos atrás. O pessoal acha que quando os nossos pais eram novos a malta era toda zéquinha mas isto era muito melhor. Há uns vinte anos atrás ainda se dizia umas coisas sobre livros. Havia textos interessantes nos jornais. Gente com classe Agora não há nada. Tudo lixo. Mas isto vem ainda mais de trás. A literatura acabou com a morte de Homero. Depois de Homero o dilúvio. Sabia que Homero era cego?
Cassandra Jordão
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Há quem diga que Homero não existiu... Tolos, todos uns tolos. Então quem escreveu a Ilíada? Fui eu? Foi a menina? Sejamos sérios. Se for para brincadeiras, vou-me já embora. Tenho mais que fazer. O Porto joga às sete e ainda tenho a patroa toda a escaldar, à espera que o gelo lhe esfregue o lombo (coça os testículos e pigarreia). Que autores mais o influenciaram? Acho que fui eu. A minha maior influência sou eu. E este povo. O povão. Não esses pavões do governo, gatunos. Choro no meio desta malta. Esta cerveja inspira-me mais do que essa malta das políticas e das letras. Até me cheira a ranço só de pensar em certas aves raras. O primeiro-ministro, já reparou nele? Passou ao lado de uma grande carreira de actor, ao lado
do La Féria. La Féria. Que nome de pardal. Agora que penso nisso. O mundo está perdido. Sabe o que lhe digo? O verdadeiro escritor não se pode perder em leituras. Esses mandarins premiados. É tudo treta e mediocridade. Já leu Beckett? Aquilo é uma mistela. Não lê nada para além da sua própria obra? Leio, leio. As notícias. Leio o jornal todo o santo dia. O Correio da Manhã. Nos dias mortos, entretenho-me a fazer palavras cruzadas ou a traduzir certas notícias para francês. É importante manter o cérebro activo. Esta trampa (olha para a garrafa de cerveja) não presta, não tem vida, é como a cultura portuguesa, não tem vida. O povo é que me impressiona. Então não é que houve um gajo que matou a família e anda a monte. Se um gajo desses me aparece à frente, nem sei, olhe, derreto-o ao murro. Também escreve ao murro? Bem, se é para brincar, o artista sai já de cena. Escrevo com as ferramentas mais actuais. Tiro notas de tudo. O meu método é muito simples. Escrevo em guardanapos, em bilhetes de autocarro. Já escrevi em notas de cinco euros. Depois passo tudo para o computador.
115 Cassandra Jordão
Revê muito? Ai se não revejo. Revejo tanto que ainda não tenho qualquer obra publicada. Sou um escritor sem obra e orgulho-me disso. Quero ser famoso, sou. Nem preciso de publicar. Quais Gonçalos Tavares ou Lobos Antunes. Eu escrevo e apago. Ainda lá tenho uma mão cheia de manuscritos mas preciso de relê-los. Sei que acabarei por apagar o que escrevi. Odeio tudo. Não há solução. O melhor seria morrermos. Cair um meteorito. Acabar com a Terra. A vida não presta.
Mas aquele manuscrito que nunca foi lido por ninguém tem fama de ser promissor. Ai, que temos azar. Sobre os meus manuscritos ninguém fala. Não os dou a ler a ninguém porque ninguém os saberia ler. Mentira (esboça um sorriso). Esse tão badalado manuscrito foi lido por uma puta ucraniana. Não é que a tipa não me disse que não sabia ler português? É como lhe digo, já não se pode confiar. Estamos ali e não estamos. Uma miséria. Diz-se que a Penguin anda atrás de si. É verdade? (Encolhe os ombros) Querem artista, paguem. Os carros bebem gasolina, eu bebo cerveja. Tudo isto é pago. Para si faço de borla. A menina é bonita. Quer performance? Atente (o escritor aplica uma bordoada na nuca de um cliente sentado não muito longe, recebe um soco e cai no chão. É reanimado com um copo de whisky que, segundo se diz, é a única coisa capaz de tirá-lo do mundo dos mortos). Gostou? Sou capaz disto e muito mais. Depois venham-me falar do Hemingway.
Cassandra Jordão
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A sua fama de arruaceiro vem de longe. Lembra-se do momento em que enveredou por esta via da devassa? Foi em 1996, com o chapéu do Poborsky ao Baía. Bebi tanto, tanto que, não sei, parece que descobri Deus. O Deus da bebida e da cigarrada. A minha vida mudou por completo. Comecei a frequentar bordéis. Ia para a cama com tudo o que mexia. Pratiquei cunnilingus com uma senhora de setenta anos. Vê a profundidade disto? Uma senhora de setenta anos sem a dentadura metida. Isto é como Herman Hesse encontrar Buda. Acontece uma vez em mil anos. E a mim aconteceu-me muitas vezes. Ou seja, fartei-me de ver budas desdentados. Onde escreve? Em qualquer sítio. Prefiro sítios cheios de gente, como esta tasquinha. Também escrevo no sossego do quarto. Escrevo
no cinema. Escrevo nas pernas das mulheres. Nos seios das meninas do striptease. No papel higiénico. Nos meus braços. Escrevo onde for preciso. Escritor que é escritor não se deixa embaraçar. Porque escreve? Escrevo porque é tudo uma merda. A escrita é a minha religião. Os burgueses têm o trabalho, eles são como gado e precisam do trabalho senão desorientam-se. Eu tenho uma vocação superior, uma religião, que é a escrita. É na escrita que me elevo e é na escrita que me realizo. Mas você é uma jornalista, nem sei para que é que estou a falar disto consigo. Você não percebe nada de escrever, do que é o processo criativo. Uma burguesa, é o que você é. Os jornalistas são todos medíocres. As dores do parto. O que eu sofro. Você não faz ideia do que eu sofro. (O autor esconde a cara entre as mãos. Emite um som que parece ser o de um soluço, ou talvez o de uma assoadela vigorosa.) Ai que eu sofro tanto! (O artista acaba a cerveja que tem no copo e diz para o empregado:) Traz aí mais uma que estou a sofrer!
117 Cassandra Jordão
Falou em trabalho. Exerce alguma profissão? A vida não se ganha, vive-se. Já lhe disse que sou um artista e que vivo para escrever. Antes tinha a ilusão de que um tipo podia ter o seu trabalhinho e depois vir para casa escrever – também já tive as minhas ilusões. Mas depois percebi que isto é uma profissão a tempo inteiro. Mais do que uma profissão, é um sacerdócio. Não tenho tempo para mais nada, tenho de ser escritor sempre, a cada momento do dia. Até a dar uma à patroa sou escritor, ouviu? Tou ali em cima dela a fazer um poema. É assim que me vem muita da minha poesia. E o chuveiro, então, é do melhor que há para a poesia. Às estou no duche e tenho de ir a correr para o quarto porque me vem um poema. E já me acontecer voltar para acabar
de lavar a cabeça e de me vir outro poema, e a correria toda outra vez, com medo que o poema desapareça. A minha mãe viu-me a sair esbaforido da casa de banho e até me perguntou se a botija tinha acabado. Ela não compreende. Nem tenho tempo para me enxugar, assim todo molhado é a coisa mais fácil escorregar e partir a cabeça. Um homem corre perigo de vida. Mas há que sofrer pela arte. Já tentei pôr um caderno ao lado da banheira, mas aquilo molha-se tudo… Ninguém me compreende. A minha mãe quer que eu arranje um trabalho. Mas eu não tenho tempo para ter um trabalho. Preciso de tempo para escrever, e para escrever preciso de ler, e para ler é preciso tempo...
Cassandra Jordão
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A leitura é então importante para si? Há pouco dizia-nos que... A leitura é essencial. Essencial, ouviu!? Só esses escritores de hoje em dia é que não lêem. Antes os escritores eram homens de letras, agora são macacos tatuados que vão à televisão. Eu leio tanto. Às vezes sinto que tenho a tola a rebentar com tanta informação. O meu cérebro parece uma locomotiva a devorar carvão. Pimba Homero, pimba Dante, pimba Saramago. A minha mãe bem me diz para eu não ler tanto, mas eu sou assim, aos três e aos quatro de cada vez. Depois tenho de ir à discoteca, claro, não porque goste da discoteca, mas porque é preciso deitar o fumo cá para fora de alguma maneira, senão a locomotiva rebenta. Mas eu odeio discotecas, apesar de achar que as discotecas têm uma vocação social, sabia? As discotecas mantêm o burguês a salvo de adolescentes com cio, eles vão todos para a discoteca e o burguês pode sair à rua. Já viu como era isto sem discotecas? Uma mulher não podia sair à rua sem ser violada. Era como na Índia. Sim, as discotecas são essenciais… Mas onde é que eu ia? Estava a falar de leitura...
Li o… Não leu nada, para que é que me está a tentar enganar? A juventude de hoje não lê nada, são todos estúpidos. Planeia publicar um livro em breve?
119 Cassandra Jordão
Sim, sim, eu leio muito. Mas na maioria das vezes dou comigo a pensar «Isto afinal é uma merda. Será que estou maluco e isto é muito bom ou que é toda a gente estúpida e eu estou certo?» Leio uma página ali para o Gervásio (O artista aponta para o empregado que nos sussurra que, para que fique registado, se chama António), ainda noutro dia fiz isso. Li-lhe um poema de Herberto Helder e disse-lhe «Houve lá, não achas que isto é uma merda?» Ele olhou para mim com este olhar de coruja ganzada. Mas ele não é palerma nenhum. Eu li o poema outra vez. «Então, diz lá o que achas?» Ele tentou safar-se a dizer que tinha de ir tirar uma cerveja, mas eu não o deixei ir. «Queres apanhar nos cornos? O que achas?» «Desculpe mas não percebi nada.» Aí está! O povo é que sabe, já Tolstoi dizia, e Tolstoi não era parvo nenhum, apesar de ser bastante sobrevalorizado. Aquilo não se percebe nada! O povo! A minha esperança está no povo. No olhar do Gervásio («É António», sussurra-nos o Sr. Gervásio) eu vi que afinal tinha razão. Os académicos enlouqueceram nas suas bibliotecas, porque se afastaram do povo e deixaram de ser gente a sério. As aranhas fizeram a cama nas suas cabeças. É triste chegar a esta conclusão, mas, no fim de contas, toda a gente é estúpida. Andam todos a ser enganados. Ali o Gervásio também é estúpido. Mas esta gente simples está ligada a uma inteligência colectiva que não se engana. Como as formigas, está a ver? Ou as abelhas, ou as manadas de búfalos a correr, a correr, a correr na pradaria. A inteligência da espécie de que Schopenhauer fala. A menina leu Schopenhauer?
Oiça, isso não depende de mim. Eu sou o artista, eu escrevo. Quem quiser publicar que venha bater à minha porta. Mas publicar não é coisa que me interesse. Publicar é estúpido. Mas aí a culpa é dos editores. Antes os editores eram gajos com classe, gajos que liam e escreviam. Agora é só badamecos que não sabem nada. Capas medonhas. Livros para analfabetos. Putanhices coloridas. Só querem explorar o artista. Mas a mim é que ninguém explora. Já pensou em publicar os seus livros próprios livros? Hoje em dia é bastante fácil com as novas tecnologias. Podia, por exemplo, começar um blogue… Não me fale em blogues! Quando oiço falar em blogues dá-me logo a volta à tripa! Isso é tudo uma merda, isso tudo o que se faz, isso é tudo para encher a vista. Conheço uns tipos que escrevem e que têm um blogue. Mas aquilo é medonho. Só choraminguices confessionais, poemas que nunca mais acabam. E depois aquilo é feio. Não se consegue ler bem. Acha que um escritor a sério escreve num blogue? Está a ver o Saramago a escrever num blogue? Isso da internet é uma moda que passa. Sabe onde está o futuro? O futuro está na rádio. Na rádio, sabia? A menina é muito bonitinha mas não percebe como isto tudo funciona. Estou a ver que tenho de lhe dar umas lições. Tenho o carro estacionado nas traseiras, não quer ir um bocadinho comigo para o banco de trás?
Cassandra Jordão
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Não acha que está a ser simplista? Esta entrevista é para um blog e… O quê?! Ai isto não é para um jornal a sério? Está a gozar com a minha cara? Então você não é do Público? A entrevista será publicada num blogue chamado Enfermaria 6...
Nem do Expresso? Não. A Enfermaria 6 é... Nem do Jornal de Negócios? Não. A… Nem mesmo do Jornal da Região? Não... Foda-se, está-me a enganar, a menina está-me a enganar! Eu logo vi que era uma medíocre. Você bem que me tentou seduzir com esse decote mas eu vi logo que era uma medíocre. A tentar aproveitar-se de mim! Eu aqui a perder o meu tempo consigo! Tudo decadência e podridão! (A gritar:) O artista não é respeitado. Armam armadilhas ao artista para o atrair para fora da sua caverna. A menina é uma grande aranha, é o que a menina é! Eu estava tão bem na minha caverna! Mas você quer humilhar-me (O autor levanta-se) A menina veio aqui só para gozar comigo!
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Nisto vimo-nos na necessidade de dar por concluída a entrevista. Exaltado, o entrevistado bateu violentamente com o punho na mesa, tendo, de seguida, agarrado-se à mão e gemido entre urros: «Gervásio, traz o gelo! Já fodi outra vez a mão!» O Sr. Gervásio, perdão, António, abordou-nos junto à porta, quando nos tentávamos pisgar dali o mais rapidamente possível, e confessou-nos que o episódio não era invulgar, que era, aliás, «certinho sempre que o Porto perde». «Mas não se preocupe», acrescentou, «daqui a uns dias ele já está bom. Sabe, ele até que não é mau rapaz, mas tem estas manias…» Para enormíssimo espanto desta pobre escriba que, não obstante chamar-se Cassandra, nada adivinha, o contacto com o maior talento nunca publicado não acabaria naquela tasca. Chegada a casa, a entrevistadora estranhou que os seus dois cachorrinhos de
raça caniche ladrassem como se tivessem visto o diabo. Mais espantada ficou quando encontrou o grande talento literário despido em cima da sua cama. «O artista disse que quer ser pago.» Foi o fim do mundo. Os cães ladravam, o artista, com os cães a mordiscarem-lhe as nádegas, corria nu atrás desta desgraçada Cassandra. Acorreram os vizinhos sobressaltados com a chinfrineira e a polícia e as forças especiais destacadas pelo manicómio local. Enfiaram o grande talento numa camisa de forças. A confusão era tanta que, mesmo amarrado, o artista concedia autógrafos a médicos, enfermeiros e polícia com a boca.
Cassandra Jordão
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www.enfermaria6.com
Caderno 2, publicado pela Enfermaria 6, foi composto em caracteres Adobe Caslon Pro, e impresso na Várzea da Rainha Impressores em papel Coral Book Creme 80g, durante o mês de junho de 2014. Uma versão digital desta publicação encontra-se disponível em www.enfermaria6.com, em cujo blogue os textos que a compõe foram previamente publicados.