Tatiana Faia
SÃO LUÍS DOS PORTUGUESES EM CHAMAS e outros textos
Capa e pormenores gráficos João Alves Ferreira Paginação José Pedro Moreira maio de 2016 Enfermaria 6 enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com
© Tatiana Faia ISBN: 978-989-691-474-5 Depósito Legal: 407711/16
Índice
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A cidade Sáurio A ocupação temporária Comédia O vivido Cassandra, Lucky Jim Chá com Minotauro O acto de não saber O rapaz cortado ao meio O casaco São Luís dos Portuguese em chamas A ordem Os amigos Johannes Gordon Here’s looking at you, kid Hotel Agamémnon A cabeça A morte de G. Maria Eduarda O trabalho O acordo São Luís dos Portugueses em chagas
In the end you can't save your soul and life by thought. But if you think, the least of the consolation prizes is the world. Saul Bellow, The Adventures of Augie March
Antigone: Lack of funerals makes everyone commit suicide. In Better Book Titles
A cidade Tal como desperdiçaste a tua vida aqui, neste canto minúsculo, destruíste-a em qualquer outro lugar no mundo. Kavafis, “A cidade”
A cidade não tinha espaço para todos. Dependendo do fluxo de gente, para que alguns chegassem, outros tinham de se ir embora. Todas as vagas estavam bem contadas. Os que chegavam, julgavam ter atingido o cume do mérito, a palavra génio passava-lhes frequentemente pela cabeça, sobretudo quando se viam ao espelho. Os que partiam, esses tinham aprendido muitas coisas. A palavra “génio” entretanto banalizara-se ou abandonara o seu vocabulário. A primeira coisa que os que chegavam faziam era evitar os olhares dos que partiam. Raramente havia comunicação. Os que partiam passavam por um período em que eram isolados e deixavam de ter contacto com a população geral. Os que chegavam entendiam que tinham recebido um prémio. E quando não existe nada num lugar que não as nossas ambições, ele não pode deixar de ser o ideal. Assim diziam: nunca ninguém amou esta cidade tanto quanto eu. Era verdade. Era também um engano, um truque, que tanto podia servir para preparar a sua alegria quanto o seu sofrimento. As cabeças são máquinas tão imperfeitas, nunca apreciaremos o suficiente as suas zonas cinzentas. Uma percentagem dos que partem guardam da cidade uma nostalgia feliz, que à medida que o tempo avança se transforma numa vaga saudade. Sobre eles, talvez seja melhor dizer que as impressões guardadas não dependiam da cidade. Era uma gente que interiormente se tinha exposto o mais possível, avançado o mais possível, mergulhados constantemente na tentativa de encontrar o que eles próprios eram. 7
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Podia ter sido esta cidade ou outra qualquer, não era o que estava do lado de fora que os ia explicar. Mas a cidade separava os seus habitantes, aos poucos, discretamente, entregava-se ao trabalho de os segregar. Entre estes havia aqueles que nunca tinham sido tocados por nada do que aprenderam. Eram pessoas que tinham todas as respostas mesmo antes de começarmos a conversar. Na verdade, não havia conversas, havia argumentos. Intermináveis debates académicos. Quando eles finalmente se calavam e um imenso silêncio reinava, podíamos entender que também nesta cidade havia o cheiro das latrinas públicas, particularmente misturado com o da comida preparada à noite em roulotes ao longo das ruas principais, a solidão dos néons, de onde escorria uma chuva suja, ruas mal calcetadas, e acima de tudo isto um cheiro que era uma mistura de calor, suor, sangue, sémen, que em partículas se agarravam à pele, tornadas em espessa camada, segunda pele, só de andarmos uns minutos na rua, porque às vezes quase não havia espaço para nada, nem mesmo para respirar, só esta espessura sem rosto de todas as presenças anónimas, exceptuando quando um braço cego interrompeu esta impressão e seguiu riscando no vazio das paredes vermelhas de um dos bairros dos emigrantes dois corpos nus e entrelaçados, nem homem nem mulher ou sem se poder entender ao certo, mas tentando ver-se um ao outro, não ver mais nada, tão sós agora como no princípio e tão sós como alguma vez vamos ficar. Uma cinematografia primitiva, quase rupestre, que mudava consoante o ângulo de que a olhássemos, agredindo-nos com uma nostalgia vulnerável de contacto humano, nesta cidade tão cheia de proximidades. No outro extremo estavam todos aqueles para quem tudo o que tinham aprendido se tornara agora parte deles. Havia neles alguma promessa, uma centelha de calor, a ideia de que algumas coisas valem pelo nó, abrem um caminho de regresso que não é bem uma vontade de se ver ao espelho. Deles não está8
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vamos à espera, a sua alegria surpreendia-nos sempre, e precisávamos desesperadamente dela. Eram capazes das invenções mais loucas. Estes eram os que iam ser sempre livres, os que podiam criar qualquer coisa, porque estariam sempre à escuta, e sempre dispostos a começar de novo. Eles não vinham para a cidade à espera de que este fosse o seu lugar. Muitas vezes acontecia partirem a qualquer altura, sem qualquer aviso. Estar vivo perto deles custava um pouco menos. Aquela categoria de pessoas que faz parte da nossa vida e vai sendo cada vez mais rara: a terra inteira, não só esta cidade ou outra cidade qualquer, seria um deserto sem elas. Na sua resistência a uma ideia de propriedade, de alguma forma eram uma espécie de comunistas, discretamente detestados pela ordem vigente na cidade. Parecia-lhes estranha a ideia de um homem ter o direito natural a um lugar, a arrumar-se numa hierarquia. Iam e vinham e tinham a cabeça cheia de ideias e estavam sempre à procura de alguma coisa. Vim a acreditar que no fundo o seu verdadeiro lugar era apenas o modo seguinte de se irem embora. O seu lugar era a razão seguinte para partir, o que explica porque não sofriam tanto com a precariedade das condições na cidade. Eles tinham estado sempre preparados porque no princípio viram que isto era o que ia ser e aceitaram-no. Na noite em que pegaram fogo aos edifícios oficiais da cidade, nenhum de nós teve dúvidas de que seria possível cheirar a gasolina nas suas roupas. Quando bateram às nossas portas, quando se esconderam nas nossas caves, limitámo-nos a não lhes fazer perguntas. Já então eles estavam sozinhos e iam sempre estar sozinhos, e isto não é uma tentativa de explicar o nosso amor. Havia aqueles que estavam só cansados e queriam regressar aos lugares de onde tinham partido. Eram um pouco como os outros. Na cidade, tinham a impressão de que todas as outras possibilidades trazidas por outros lugares se estavam a destruir. Uma suspeita que se confirmava assim que atravessavam os limi9
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tes da cidade. Vinham e iam-se embora tendo aprendido o que não eram. Ao fim de uns meses, alguns deles carregavam consigo uma raiva impaciente, uma desconfiança, uma atitude defensiva. Gostávamos muito deles. Não muito. Isso é desonesto. Demasiado, gostávamos demasiado deles, com o amor dos que vão ficar sempre sós, e essa foi a cicatriz que a nossa vida na cidade nos deixou. Sobretudo porque sabíamos que eles eram meio doidos e podíamos agora entender melhor a sua dor, que foi a coisa que eles nos deram, e a única coisa que levámos da cidade. Estes eram os que desconfiavam de que iam desperdiçar a sua vida neste canto do mundo, que ela não podia ser redimida em qualquer outra parte. Eles foram os que nos disseram, mesmo que soubéssemos, mesmo que pudéssemos ter adivinhado, teríamos feito tudo igual.
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Sáurio
“O que aqui podia comunicar pôs-se antes à conversa.” Foi tudo o que Antónia disse antes de fechar a janela. O snapp rápido dos caixilhos quando ela trancou o ferrolho e eu estava para me pôr a andar outra vez, que nem havia volta a dar-lhe. Estávamos à conversa e ela foi-me cortando todas as linhas. Atirou-me umas palavrinhas como uma esmola, hesitante, palavras humilhantemente simpáticas e educadas e desligou-se de mim como se nunca estivéssemos estado enleados. O pequeno dinossauro de plástico repousava sobre a mesa de vidro, os dois olhos pintados de verde brilhavam opacos, demasiado para fora de todo o resto do corpo, verde também, verde t-rex. Eu articulei a palavra sáurio e engoli em seco. Sáurio. Mulher estás a ouvir-me, eu queria gritar. Aos vinte sete anos eu sou um homem melodramático. A minha comunicação com o mundo está interrompida. Eis uma expressão de que me socorro frequentemente, “interromper a comunicação com o mundo”. Saio e levo a tartaruga a passear presa pelo pescoço com um fio de lã vermelho, como na escola, quando aprendia a escrever e me prendiam a mão esquerda para que não escrevesse com ela. Como me explicaram, com a esquerda Caim matou Abel. Aos seis anos de idade eu não tinha uso para um Abel morto, mas Caim parecia-me homem de actos, palavra ligada à mão. O que quer que matar fosse, parecia promissor. Daí sempre ter sido homem de escrever a duas mãos. Foi enquanto desdobrava este argumento da minha destreza ambidestra, a minha dualidade ambivalente, afinal, qualquer homem tem qualquer coisa de especial, que ela me atirou com 11
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um “tu és um Galahad do raio que te parta”. Eu embeveci infinitamente. “Galahad” logo seguido de “raio-que-te-parta”, absolutamente maravilhoso. A destreza verbal desta mulher, a sua impecável esgrima vernacular, digo-vos, só cava mais fundo o meu amor. Não sei o que lhe faça. Às vezes a ternura é tanta que sinto vontade de atirá-la pela janela. Só a custo me reprimo e ponho as minhas coisas em ordem. “Como assim Galahad?” “O príncipe perfeito”, diz-me ela de volta, com um risinho malicioso. Desconfio que estou a ser gozado, mas ela é tão difícil de entender que posso não estar certo. Sinto que para aqui jaz um continente que eu nunca vou chegar a ver completamente. Tenho vontade de desatar a ronronar desalmadamente. Quero saber mais. “Fala-me desse Galahad”. Reprimo a curiosidade. Sou um reprimido. Não. Não é isso. Há esta tensão entre os pensamentos e as coisas a acontecerem à minha volta. Elas acontecem tão de repente. Eu avanço tão devagar. Eu cá dentro e o real lá fora, não afinamos pelo mesmo compasso. E suspeito que há muito nos pensamentos que seja feito de ritmo, daí Anne ter-me soprado ao ouvido, Reality is a sound, you need to tune into it, not just keep yelling. Eu amo Anne absolutamente, Anne que nunca me amará de volta, que não sabe que eu existo e que, no entanto, de longe me envia o seu amor e não quer saber. Eis o trabalho de um grande escritor, que no fundo é o que Anne é. Quanto a pensamentos, gostaria de me declarar um homem de acção. É o meu único brio. Eu continuo a gritar, à espera de que diante de mim a realidade se afine. Senhor, eu não sou digno. Se alguma coisa nos pensamentos é feita de ritmo, o ritmo é o que está em redor ou é o que pulsa cá dentro? Antónia disse uma vez: “é fácil amar tudo o que tem um pulso”. Mas, Galahad, explica-te. Ela toda enigmas. “Princípe perfeito”, e sorri. Claramente, o que ela queria dizer, o que talvez não fosse o que ela hoje precisava de dizer, é que nem que fosses o último homem 12
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vivo na terra eu te fodia. Se ao menos, era o que Alice costumava dizer, a mente fosse mais exacta e eficaz. O que me passa pela cabeça não permanece, eu estou disposto a deixar os meus pensamentos ir, a não me apegar a eles, como a nada de resto, eu pareço largamente descontinuo, desengonçado, desarticulável. Eu posso ser explicado e imediatamente a palavra que me explica apropria-se de mim, ao género dos mitos que se contam sobre mestres espadachins, certos samurais que com um só golpe de espada podem desmontar um corpo inteiro nas suas várias partes. Imagina toda a arte posta nisto. Toda essa arte verdadeiramente artesanal, sem cifras, sem comandos eléctricos. Hoje arrastei-me pela biblioteca na minha camisola de lã com um buraco na manga e vi os dois volumes da concordância de Ovídio, dois livros gigantescos e engoli em seco, atirei os ombros para a frente, pousei a testa sobre as lombadas. Pensa em toda a arte que pode um homem se for deixado sozinho com os seus pensamentos. Alone with your thoughts, alone with the great pressure of your imagination, é um verso de Inger Christensen. Inger Christensen sabe coisas. Não é lida entre nós que chegue. Imaginei que estamos contidos dentro da pressão deste verso e arranjamos uma maneira de viver. Mas lado a lado não conseguimos respirar, a temperatura vai subindo e nós transpiramos, estendemos as mãos, tacteamos a cara um do outro, tentamos falar. Tanto tempo que passamos a dançar isto. Eu ia dizer, uma vez cheguei a uma aldeia no meio do nada, noite escura, onde só havia um único restaurante aberto e estava a haver um casamento. Implorei ao dono que me deixasse sentar na esplanada e me deixasse comer e beber alguma coisa. Ele acedeu. Era uma noite de Verão. O noivo era um músico que tocou durante a maior do tempo em que eu estive ali sentado. Os homens dançavam entre si, e as mulheres entre as mulheres, e depois uns diante dos outros, de mãos dadas e braços no ar. A noiva permaneceu sentada junto dele. Ambos riam. Eu ergui a minha caneca de 13
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vinho e na noite daquele porto no meio do nada disse baixinho, à vossa. Porque tanta coisa pode correr mal que pelo menos isto podia ser à deles. Os noivos que deixaram um estranho entrar na sua boda. Destra. Direita. É a única coisa que sei que nenhuma mente é. Não tenho tido noites assim que cheguem, aqueles que têm enchido as minhas noites com a sua falsa indignação são secretamente os mais filhos da puta de todos, os que abrem a porta para que a ordem se sancione. Porque daqui tenho-os ouvido falar, mas são tão inofensivos e na verdade não há nada que estejam dispostos a fazer senão falar. Os seus desejos são enfadonhos, não da ordem da beleza, mas da autoridade. E há homens que terão sempre necessidade de ter inimigos. As palavras às vezes nem chegam para começar. Uma linha do Joker de Heath Ledger: “alguns homens só querem ver o mundo a arder”. Mas considera isto. Por um momento. Antes e depois de todo o barulho, de todo o lixo. Um homem deixado sozinho com toda a pressão da sua imaginação. Eu sei que no fundo do medo está vivo o meu corpo que pesa, e esse é o único começo. Kafka!, interrompe-me Antónia. E eu devagar transformo-me em dinossauro, a fundura de uma sílaba a martelar ao canto da boca. Verde, com escamas, mas mantendo os óculos de massa e um sorriso disponível. Aqui, mas do outro lado, ela desprezame porque sabe que as minhas palavras de homem acontecem completamente. É aí que a grande pressão continua depois de mim. Chega.
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A ocupação temporária
No n.º 122 de Marlborough Road, na parte velha do Grandpont, um dos apartamentos é alugado a um ritmo mais ou menos semanal. O resto do prédio tem inquilinos permanentes, mas não o nº 1. Não existe qualquer anúncio que identifique o edifício como arrendamento de curta duração e o motivo pelo qual estou a par desta informação é porque vivo no andar acima. Não percebi isto de imediato e desconfio que o motivo pelo qual me levou tanto tempo a perceber que uma das casas no prédio onde vivo não tinha um inquilino regular foi porque me mudei no princípio da Primavera e esta altura coincidiu com a ocupação do andar por uma sucessiva horda de falantes de espanhol. Entre Junho e Julho, coño foi a palavra mais ouvida e eu assumi que naturalmente se tratava da mesma família. Embora se trate de um prédio muito recente, o que significa que está a salvo dos dois problemas mais frequentes nas casas inglesas, bolor e má isolação do calor, de alguma forma, tendo sido bem sucedidos nisto, os deuses da construção resolveram tramar-nos assobiando para o lado na parte do isolamento acústico. Despedidas de solteiro é um motivo comum para o arrendamento da casa. Não é raro estar prestes a entrar no prédio e dar com um coro de raparigas de minissaia, perucas ou capacetes de viking na cabeça. A procissão normalmente é liderada pela rapariga cujo papel na cerimónia é carregar o boneco ou boneca insuflável. Uma vez, eu à procura da chave da mochila e um destes grupos está a entrar pela outra porta (o edifício tem duas entradas) e uma delas grita-me de um modo que se ouve na rua toda, apontando para outra das raparigas, “She never had 15
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a cock in her mouth, not one single time in her entire life! Can you believe it?” Eu viro-me para ela e dou-lhe a resposta que me é possível perante tão extraordinária revelação, atirando-lhe um prolongado coño. Devo notar que o vizinho de cima é muito menos tolerante do que eu a este espetáculo de humanidade diversificada, pelo que não dá para esta horda assombrar o prédio durante muito tempo. Às onze da noite ele chama a polícia e tudo termina. O boneco é desinsuflado, as vozes convertem-se num sussurro, e rapidamente as raparigas caem no torpor da sua própria embriaguez. Se viermos a entrar em casa a essa hora, é possível vê-las pela janela. Caídas como soldados derrotados nos sofás e pelo chão. De manhã vêm os dois rapazes que limpam a casa, e todos os traços da sua presença serão apagados da carpete. Posso vê-las porque nas casas os pisos térreos têm sempre os cortinados corridos para deixar a luz entrar. É possível atravessar um bairro inteiro depois de entardecer vendo cada pessoa perdida na sua rotina. Duas casas mais abaixo há um menino que aprende a tocar violino com o irmão mais velho. Os dois rapazes na sala, de pé, enquadrados no seu ritual. Há os quartos do hotel Ethos, um hotel gerido por búlgaros, vazios nesta altura do ano, com as camas feitas, as luzes por algum motivo acesas, lugares entretidos com a sua espera. Há sempre alguém a caminho, no meio da sua viagem, perdidos como quando não é possível vir até um lugar sem nos perdermos um pouco de nós, chegarmos um pouco estonteados, um pouco estranhos. Espantados no meio da rua com os nossos casacos pesados, de nariz no ar, a tentar perceber ao certo onde estamos. Há as janelas da igreja ao lado, no princípio da Primavera alguém partiu um dos vitrais com uma pedra, o ministro errou desorientado pela rua à procura de informações. Isto passou-se na mesma noite em que roubaram uma bicicleta do quintal comum nas traseiras do prédio. “The devil is among us,” foi o que o ministro me disse, abanando a 16
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cabeça, e foi repetindo a mesma frase à medida que se afastava, com o mesmo assentir de cabeça. É bom quando o coro da igreja ensaia, porque a rua se enche de música e poucas coisas têm tanta força como um coro de gente a cantar. Na casa periodicamente alugada há por vezes os hóspedes alemães. Os hóspedes alemães normalmente vêm em família e não raro vêm para deixar os filhos na universidade. Ficam mais ou menos uma semana ou dez dias até encontrarem alojamento para os rebentos ou estes estarem instalados num college e depois partem nos seus SUV. Houve uma vez um par de mulheres do Leste, muito provavelmente avó e neta. Levantavam-se cedo e muitas vezes tinham longas conversas pela noite fora. Riam-se ou discutiam, a mais nova escutando a mais velha, tentando argumentar. Em tom desafiante ou conciliatório. Havia nelas muita teimosia e determinação e muita reciprocidade pelo meio. Há as festas de aniversário. Não há muito para dizer sobre as festas de aniversário, exceptuando que são uma variação sobre as despedidas de solteiro, incluindo o vizinho do andar de cima de telefone em riste como um sniper agarrado à sua arma, às onze da noite ele dispara e tudo acabará. Ele podia só ser grumpy, ou ser só um homem com uma linha telefónica em casa, mas assim é um homem com o seu poder. E de vez em quando vêm os amantes. Os amantes são furtivos, normalmente ficam por uma noite e partem. Não é costume fazerem muito barulho. Exceptuando uma vez, em que acordei com a impressão de que os bárbaros estavam finalmente a chegar. Corri a persiana e olhei lá para fora com os olhos míopes. Nada. Pus os óculos, vim à janela da sala. Nada ainda de Hunos no horizonte. Foi então que percebi que o barulho vinha do piso térreo. Mas era apenas um par. E não eram tanto os gemidos ou os gritos, mas o facto de que ela se ria extremamente alto. Um riso entre o perdido, o nervoso e o desafiante. 17
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O vizinho de cima lembrou-se de mostrar complacência pelos amantes e absteve-se de chamar a polícia porque sem dúvida se tratava de um modo de humanidade demasiado próximo. Mas uma onda de pânico tomou o prédio de assalto. Se a coisa se repetisse na noite seguinte, ponderou-se o bilhete anónimo, atirado para baixo da porta. Mas eles ficaram apenas por uma noite e desapareceram, ninguém os viu, ninguém sabe quem eles seriam ou o que foi feito deles. Há uma ou duas semanas veio o jovem casal de imigrantes italianos. Ligavam à família todos os dias por skype. Ele telefonava à mãe (mamma, à Torino) como se não fosse skype e como se o telefone fosse uma invenção que ainda não tivesse chegado a Inglaterra. A mãe respondia-lhe de volta como se a sua voz tivesse de atravessar os Alpes, os Apeninos, contornar os Urais, sei lá eu mais o quê, chegar ao canal da Mancha e finalmente descer a M40. O seu rapazinho posto cá deste lado, sozinho com a sua jovem mulher, tão longe das colinas do Piemonte que o viram crescer. Depois ligavam à mãe dela (mamma também, mas não consegui perceber muito bem onde). O conteúdo da conversa era repetido a ambas as famílias. Há bolognese para o jantar. A casa é segura e não é longe do centro. Ainda não encontrámos nenhuma casa decente, mas amanhã vamos ver mais duas. É, os preços são altos, mas continuamos à procura, mas não estejam preocupados, alguma coisa há-de aparecer. Depois as conversas de telefone com a família acabam e vem aquele silêncio súbito, que é quando se percebe que estamos sozinhos noutro país, numa sala estranha, com a nossa vida a mudar depressa e connosco a fingir que está tudo vigiado, que podemos segurar o travão. Os primeiros dias como emigrante, a solidão, o susto e a excitação desses dias. Tudo fantástico, não fosse eu ter um balde homérico de neoanálise para ler e ter estes dois a palrar intermitentemente acima da minha cabeça. Ela era leitora de Saramago. No parapeito da janela, que 18
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neste prédio são baixas e têm um espaço onde nos podemos sentar, vi-a a ler La Caverna na edição da Einaudi. No último dia em que eles ocuparam a casa ela estava quase a acabar o livro, que de manhã tinha ficado no parapeito, no último punhado de páginas com o marcador puxado para fora, faca perdida, atirada para a travessia das páginas, concentrada na narrativa que continua a avançar sucessivamente, acontecimento após acontecimento, tentando seguir o fio de Ariadne do enredo, de onde vem a expressão que aqui importa, tentar não perder o fio à meada.
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