Primeiro capítulo de «Fome»

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FOME



Jo達o Moita

FOME


Fome João Moita Capa e apontamentos gráficos: João Alves Ferreira © João Moita ISBN: 978-989-691-386-1 Depósito Legal: 393517/15 junho de 2015 Impressão: Várzea da Rainha Impressores, S. A. Enfermaria 6 Fyodor Books Rua do Loreto, 13, S/L, Lisboa enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com


Índice 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 31 32 33 34 35 36 37

I «Semeio em ti» «Os conjurados estão na traição» «Aquele a quem recusaste o viático» «Quando a sombra descer sobre os vitrais» «Como o armazém desmantelado» «O mundo é a tua vigília» «São eternos em vozes falíveis» «Sento-me à tua mesa e emudeço» «Cingi o sangue ao coração» «À força de êxtases» «A descrença celebra o seu apóstata» «Na garganta de Isaac sinto já…» «Plantaste o desterro na casa…» «Em instâncias da penúria» «Quando Deus vier com as suas dragas» «Onde Deus pousa a mão» «Vi a tua pomba persignar-se e…» «Privo-me» «Do talento de amar os deuses» II «Não escrevia para não roubar tempo…» «Um gesto decidido que não traia» «Começar com minuciosa caligrafia…» «Diário é o vício e as quedas súbitas…» «Os pássaros preferem as árvores» «Se falham o primeiro voo» «À beira do caminho»


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«Campos cultivados pelo labor da fome» «No estendal, a ousada lingerie…» «Uma consciência tranquila dorme…» «Quando me distendo e apago» «Da linguagem da posse» III «Este é o meu valor, e, na fronteira…» «Meu enxoval apodrece nas arcas…» «Os mastins dormiram esta noite» «A esta hora lavram na pele as…» «A tarde traz uma aragem doce» «Procedia-se à transumância» «Édipo, o enigma és tu mais…» «Sentado ao fogo, junto de minha…» «Sob os auspícios de uma noite…» «A proeza dos teus votos ressoa nas…» «Fiquei em silêncio até já ter dito tudo» «E a paz é o hausto» «Aquele que regressa dos lugares…» IV «Os cães ladram com o bafo quente» «O verão prepara o seu armistício» «É o tempo da abundância e da paz…» «Os campos extasiados de luz, «Sopra o vento grávido de pólen e de…» «Com um coração tão vasto quanto…» «Quando o osso do sol atinge os…» «Está uma manhã tão escura» «O rio galgou as margens» «Poucas vezes mais farei esta viagem» «A morte não terá, certamente…»


I



Semeio em ti porque és fértil em desolação e tardio sobre os campos. Onde te lavro é que me privo.

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Os conjurados estão na traição como eu sobre estas águas que se abrem onde não vens: fiz-me uma sede de sustento, quero intacto o coração.

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Aquele a quem recusaste o viático abjura os regressos. Não há perjúrio nos seus lábios sem provimento.

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Quando a sombra descer sobre os vitrais, insinuarás o corpo na cruz tangida: não espero contemplar a defecção. Pelo timbre da carne arfando na madeira ardente saberei se a culpa leveda nódulo a nódulo mais perto de um sangue.

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Como o armazĂŠm desmantelado Ă beira do caminho, assim estĂĄs tu a ver-me passar, despojado de ti mesmo.

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O mundo é a tua vigília. Levas milénios acordado, velando a tua esperança. Velas, teus acólitos seguram as tuas pálpebras. Esperas o impossível: que se erga da terra um rumor que embale.

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Sendo tu dos Profetas a certeza, Dizem que quem te fere profetizes Camões

São eternos em vozes falíveis aqueles que se orlam do teu sangue. Quem te fere é que profetizas: teus Profetas só têm a certeza de que não vens.

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Sento-me à tua mesa e emudeço. Não soube esboçar nenhum gesto que não derramasse a oferenda, não soube servir a gratidão: a abundância não prodigou em mim. Sento-me à tua mesa e emudeço. O vinho fermenta no meu coração, mas aquele que trai sabe guardar um segredo. A minha sede não te denuncia. Sento-me à tua mesa e emudeço, e o embaraço do meu silêncio é que te espia. Quando não te pressinto é que resvalo em ti.

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Cingi o sangue ao coração. Nada temas quando vieres reclamar o meu corpo: deixo-te a vianda, guardo a traição.

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À força de êxtases, a fé podou o amor. Quando veio o desejo, brincámos com a fome dos corações.

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A descrença celebra o seu apóstata, reclama o seu arado: chegará o tempo da sega, mas cultive-se primeiro o amor, essa deformação. Se espigar, haverá fome por mantimento e uma colheita tardia para distração.

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Na garganta de Isaac sinto já avermelhar-se a minha faca – serás tu, Senhor, o sustento da minha culpa. Como a suportaria se a minha fé não fosse maior do que tu?

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Plantaste o desterro na casa dos teus irmãos. Vê como apodreceram as enxergas e se racharam as cadeiras onde repousaste de uma longa viagem. São as bênçãos do hóspede ao partir, deixando o cálice vazio. Todos os que te receberam abastardaram a solidão.

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Em instâncias da penúria, a tangente da fé.

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Quando Deus vier com as suas dragas, já nós sondámos tudo, já tudo esgotámos. O mundo não é reserva da sua fome, nós é que somos.

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Onde Deus pousa a mão, arredam-se ervas e pedras e é lisa a terra, que nada absorve: guarda as tuas tintas.

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Vi a tua pomba persignar-se e levantar voo. Preso no bico, o viático que arrancou à boca do teu filho. A ti retornam os mantimentos, senhor dos rogos e da abundância. Fecha os olhos à minha abstinência.

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Privo-me, vivo por inteiro a minha vida mitigada pela fome. Quando vieres, a minha fraqueza será sinal para o teu reconhecimento, e o meu silêncio um céu para a debandada dos teus ventos.

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Do talento de amar os deuses eximam o meu coração: eles que amem a culpa, eu amarei a privação.

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