Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio'

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As Abelhas Produzem Sol 2015



Um marinheiro = dois marinheiros Mãe, amiguei-me de um marinheiro e agora vou com ele para terra peço-te que, enquanto isso, te mantenhas à superfície ou venhas a ela sempre que possas. Trouxe-me um girassol, o caule e o pulso seguro pareciam um só. É um marinheiro terra-tenente que me diz que o mar parece um deserto, e agora fui comprar linha dourada e faço um lenço bordado para lhe dar – mãe, ele vai para terra firme, para o meio da terra firme, uma cidade perigosa, os vícios humanos, drogas, tentações, passo o dia a costurar a renda no lenço: os três pastorinhos, uma aparição mariana, os doze passos da vida de Zapata, todas as figurinhas que me ensinaste a bordar, Não faltará uma pomba com as duas patas partidas – Símbolo de quê? – Vai perguntar o meu marinheiro, sou um Coala, mãe, e ele é uma árvore, e então abraço-me a ele, e o tempo passa e passa até que um cartógrafo venha fazer um mapa do tempo que será a nossa toalha, na nossa mesa da cozinha, a casa humilde mas aportuguesada onde todos serão bem-vindos e onde haverá pão para todos, um pão para cinco ou um pão para cinquenta, mas sempre um pão.

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Sei que sou agora também um marinheiro porque um marinheiro é sempre igual a dois marinheiros. Espera uma carta minha, nela vou contar-te tudo o que se passa nesse mar onde agora caminhamos, esse estranho mar cheio de pó, pode ser o Arizona, Oaxaca ou o vale de Arouca, mãe, um dia eu e o marinheiro que também sou eu vamos nadar até ao meio dessa água enquanto isso peço-te: não te deixes ir ao fundo vamos levar um pequeno coala e a árvore a que se agarra com sangue de pirata e seiva de pirata também dentro dele a música vai bombear o sangue para todo o corpo, vais segurar-lhe os dedos finos, as tuas memórias já lhe estão ancoradas no peito, dentro dele memórias que nadam como cavalos marinhos no sangue azul da nossa família sem nome ou história vais ver nos olhos dele os olhos da tua mãe e nas palavras dele um eco que dança. Peço-te, mãe, enquanto estiver em terra firme não te deixes ir ao fundo… Vai trazer-te uma caixa, lá dentro um girassol, uma granada e duas asas, enquanto isso anda à superfície muitas vezes: Que te puxe uma memória do futuro, que te puxem uns olhos que também são teus.

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As abelhas produzem sol I O ar está carregado de ferro e eletricidade, está húmido, da janela vejo que falam dois amantes, vão carregados de luz nas duas partes, cada um leva dela a parte que os voltará a unir, veem um homem que urina na parte exterior do elevador do metro, no cimento fica a mancha um pouco abaixo do grafiti que apareceu há poucas semanas, numa mancha de fundo cor-de-rosa onde está escrito a negro que tudo passa e tudo é prova. O planeta gira mais um pouco até que a luz chega aqui vinda do fundo, cortada por dois prédios e chega depois toda, num riso cheio, numa onda e depois noutra e noutra maior, a luz vem com os homens que vão descer rápido para o metro. Ainda está carregado, passam as camionetas na avenida, vindas dos bairros de oriente, carregadas das pessoas que são trabalhadores no ocidente, na outra parte da cidade, o movimento que não se detém. Agora em sentido contrário os carros que passam no verde, o elétrico ligado aos ferros e as pessoas que vão neles nas duas direções, o movimento impessoal dentro dos carros agora que chove e que a luz digna conduz para sul, para norte, no cruzamento que vejo da janela como um ponto – a luz que se dirige em todos os sentidos e trabalha, digna, trabalha, o semáforo verde e o vermelho ordena o trânsito e quando não funciona – já assistimos a três acidentes na mesma noite – a luz que regula o trânsito, vermelha verde vermelha, a luz que direciona, prevê, cuida, a luz que é homem e colocou a luz que trabalha, a luz que o homem criou. E agora na minha cama sinto o coração central do movimento, a luz que colocou outra luz para dirigir a luz, para criar a luz, não outra mas a mesma, a extensão do homem, o animal de riso cheio e que se estende, ouvimos a sirene, o cuidado – a polícia, as ambulâncias – quando ele se suspende, se abeira, se ri, vemos os reflexos rápidos, talvez num pequeno apartamento acima do nosso alguém esteja a escrever sobre a Supra Realidade

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ou a rechear o forno, a hippie e o cão a dormir. O nosso núcleo a ser formado dentro de ti, a continuação impessoal da luz. Agradeço o dia. As manchas de sol no homem e a dignidade da luz, caminhamos com decisão em todos estes movimentos que nos cruzam, o prédio vê-se de fora sem chamar qualquer atenção. Tocamos, acendemos pontas, temos na boca o animal invencível que tudo acende, o que nomeámos em todos os cruzamentos, que chamamos sobre todas as formas, o que regula, o que cria: o que acelera. Dois manifestos, uma carta de pedido de emprego, a jamaicana que sai a chorar do serviço de emigração, os dois chineses exaltados. Difícil imaginar que o movimento seja a nossa casa, na cama entre a estrela-almofada entrelaçamos as pontas num mesmo movimento. O verde, o vermelho, o verde outra vez, há também o amarelo, a mancha azul e vermelha silenciosa que às vezes, a meio da noite, nada no nosso quarto quando as patrulhas dos polícias param em frente da loja de conveniência. A estrela abraçada, as várias pontas que se cruzam, as células riem-se, as pontas cruzam-se e nadam na cama, ainda no cruzamento do sono com a vigília, as nossas células riem-se e dentro delas a luz trabalha e cresce. O verde, o vermelho, o verde outra vez. Em ondas o azul e vermelho do carro patrulha. Subtraído o vermelho, no fim fica só uma mancha azul. Eu ouvi pela primeira vez Mahler no carro de um poeta que partiu. Ainda que a música procurasse reproduzir o movimento do mar, a luz vinha em ondas cada vez maiores. A nadar em estrela na cama A Dignidade de que falava Pico.

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Os beijos que vais dar À Gisel

Na entrada e na saída do metro, nas carruagens, rápidos, longos, os beijos que vais dar na praia, na montanha, no carro, as mãos que vais dar, rápidos, longos, o Sol que tantas vezes se vai ver a ele próprio nos teus olhos, os beijos no elevador, no carro, na faculdade, que vais dar, as mãos rápidas, os braços que te vão abraçar, os sinos passados, fotografias, as torres que vais subir, os espelhos todos em que te vais ver, segura, extremamente segura, linda, feia, obcecada, feliz, vazia, cheia, gorda, magra, dando-lhe as costas, experimentando vestidos, feliz, sentindo que a vida é um mergulho, dando a volta, que não há tempo, que há muito tempo, extremamente feliz, a euforia, o tédio, o que vais ver e dar, os sonhos abandonados, os sonhos realizados, a salitre depois do mergulho, o sol que vai ficar sempre dentro de ti e que tantas vezes se vai ver ao espelho em ti – e dentro, a corrente de vida segura, a felicidade extrema, a felicidade-mergulho ou a felicidade-estrela, as portas que vais abrir, a vida com todas as suas pegadas, dias vazios, dias citrinos, dias de chumbo, de calor ou de frio – mas dias de ganhar sempre e ganhar sempre contra ninguém, vais sentir neve nos olhos, neve nos pés, abraços nos polos, abraços no centro, um olhar para cima que te vai libertar, sentir-te protegida, abraçada, ter recordações que te vão magoar, que te vão fazer mais forte, que vais ter que esquecer, os beijos que vais dar – no metro, rápidos na subida do autocarro, atrás, dentro, fora dos prédios, a chuva e o vento que te vai bater, todas as cores que vais vestir, todas as formas que vais tocar, sentir, modelar, guiar e ser guiada, pela estrela ou como estrela. Mas pensa, guarda e mantém, em todos os momentos, que está sempre ao teu lado o Capitão Soninho, ao lado de todos os beijos e de todas as páginas que vais virar, marcar, reler, saltar rápido, comer – páginas, capítulos marcados, sublinhados,

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limpos, abandonados, livros que vais esquecer numa paragem, num autocarro, ou que vais querer incendiar, poemas que vais deixar em sítios a que não voltas – acidentes voluntários ou involuntários, conquistas, perdas que não existem, ajustes – páginas rápidas, demoradas, relidas, reescritas, apagadas, riscadas, escritas nas margens, escritas no fundo, escritas por cima: sempre escritas por cima com o privilégio de renovar, em várias cores e fundos. Em muitos espelhos te vais sentir desejada, sozinha, cheia, desejada com mais força, um diadema verde, o cabelo liso, puxado para trás, apanhado, comprido, curto, pintado, frisado nos dias de verão e a mudança percetível e palpável na libido do planeta que sempre gira sem que nos demos conta enquanto mudam ainda mais rápido as linhas da tua mão, a cada nascimento e decisão – endireitar umas, fortalecer outras, encaminhar, orientar – encaminhar com mais força a vitória, que se for verdadeira, nunca aceitará que haja um único homem derrotado. E em todas elas vais sentir o Capitão Soninho ao teu lado, a dar-te a segurança quando mais precisares de segurança e a dar-te o sono quando quiseres dormir, a vigília quando mais precisares dela. Calor, segurança e milagres quando deles precisares. Sempre, o Capitão, com a estrela debaixo do braço, nos caminhos, túneis, autoestradas, carris, funiculares, elétricos, desertos, decisões, Caminho enfim: num único símbolo resumido; em todo ele, em todos eles, o Capitão ao teu lado com a estrela debaixo do braço e nos seus olhos refletidos os beijos que vais dar – enquanto o Sol se vê a si mesmo, em nova e maior escala, como quem nada nos teus olhos, vindo em raios rápidos outra vez enquanto dormes. Escrevo rápido contigo no colo.

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Flan napolitano Os satélites azuis giram à volta do átomo, tornam-se cor de baunilha quando adormecem sem deixar de girar. À volta do núcleo são quentes como animais, adoçam a pele que é um começo… À volta do núcleo as células riem-se como marinheiros na luz molhada. Na rota que fazem, a luz bombeada por um sol interno, um grande sol central. O sangue bombeado pelo coração. – A tua pele sabe a luz – dizia Crocodilo, mais tarde. Cada vez mais quente a pele procura outra pele: um limite maior, um começo maior. Podia adivinhar a obsessão seguinte e no ato de a prever, evitá-la. Um novo caminho com uma obsidiana quente no bolso. Violeta de Gand vê o homem do outro lado da rua. As manchas (porquê?) na pele e debaixo na carne. É uma observadora atenta, está a criar um homem porque o vê. Sente segurança… A corrente do sangue que avança seguro. Na sua respiração sente a respiração do homem que está do outro lado. Debaixo da sua pele os satélites azuis: dançam se o núcleo dançar, fogem se o núcleo fugir, morrem se o núcleo morrer. Riem-se, agora riem-se com mais força. A tua pele sabe a luz. Se giravam à volta do átomo era porque aí queriam estar – o mesmo era dizer que eram completamente imprevisíveis, honestos e livres: entregues aos braços, habitavam o desejo desde o núcleo, soprados de vida, tudo aquilo que gira dentro, que nos liga ao que está fora. Os satélites azuis nos músculos dos remadores do navio de Argo. Cada estrela um remador que avança pelo céu e debaixo da pele. A constelação agora debaixo da pele. O navio de Argo seguro na corrente sanguínea. Os astros dentro do corpo, só mensageiros de um Sol cada vez maior – a mensagem era só a chegada de cada mensageiro – o chegar seguro de cada mensageiro e a sua rota também mensagem.

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Não diziam nada quando chegavam. Uma constelação mulher, a luz azul da saia. Pontilhado o seu corpo no céu. Se ela quiser entrar no barco que avança pede aos remadores que parem. Uma galáxia homem aproxima-se, o fio das estrelas que forma a ereção. A cauda dos cometas mais acesos. Ali uma galáxia autista minga se ninguém a vier salvar. Os remos do navio de Argo avançam como ambulâncias. Quem a beijar dirá que a pele sabe a luz, a uma janela sempre aberta, a suor, a partida, a estrada. Um olfativo diria «nunca os satélites dançaram tanto» – nunca as células se riram tanto –, a mesma dança no corpo, a mesma dança no céu. Viu-se ao espelho, mas num homem – quando os olhos são o espelho da alma e os amigos o espelho de deus. Não o vidro trabalhado para refletir, o eco das formas e cores que lhe apresentam. Um homem – ali à frente, a comer um flan napolitano – entre uma paragem de autocarros, a banca de um vendedor de batatas fritas. O óleo quente, a ferver – parece uma explosão. Eu sou aquele (pensa Violeta de Gand). Eu sou aquele (enquanto olha para Crocodilo), quero que ele esteja dentro de mim. Temos países, economia, controlo ideológico da economia, alguém que a controla – segue leis, ouço as vozes daqueles que as fizeram – mas quero que ele esteja dentro de mim. Um pudim negro. Os dentes brancos do roedor – podia ser uma alegoria, desenvolvê-la, ser seduzida pela minha ideia. Aceitar o chamamento de um brinquedo interno e aí ficar, na injeção paralisante, inibidora que é esta minha ideia. Parece que estou a nadar, mas estou a tornar-me uma concha: a pérola sedutora da minha ideia. Fecho-a e neste fechar (ao mundo) não ver o espelho. Fechar lento. Giro à volta do que quero. Ali a linha dos satélites a formarem um veio azul. A potência do pulso. O meu coração gira à tua volta. E na sedução desta frase adormecer. Prever o futuro é unicamente construir 98 | nuno brito


o futuro. O homem com manchas na cara é agora o meu espelho. Despersonalização, identificação: O sentimento de pertença a um núcleo… Há um novo animal que seduz: um homem que chamaram Crocodilo. Acabou de sair da prisão. (começa a fábula) Submergem os seus olhos nas águas sujas de uma vida estanque, uma história imóvel, breve, toda a potência bloqueada (uma vida menor). Olhos desvitalizados, seguem um pathos natural que ele parece não controlar: inibir toda a potência, submergi-los, afogá-los numa memória, a consequência natural. Não que se fechem para sempre, só que pareçam sempre fechados – abertos só para dentro. Eu sou ele (pensamento de Violeta). Vagueia o Crocodilo entre a barraca das batatas fritas e a paragem de autocarro. Submergido num lago interno. Estanque – comer, ir para um novo sítio, começar do zero. Violeta observa-o. Presa potente, sente os satélites mudarem de cor, vermelho-deserto, giram, giram mais rápido, mudam de cor, na expansão do desejo estão mais quentes – eu sou a expansão do meu desejo, habito-o. Observa o seu espelho – eu sou ele – as suas manchas na pele feitas de mudança, na prisão chamavam-lhe crocodilo. É assim: meteu-se com gente errada. Os satélites parados, inibidos – mas agora dança numa água nova –, satélites de água giram à volta dos átomos da água. Giram e por isso são água. *** Crocodilo avança por uma estrada que não existia quando entrou na prisão (ou então surgiram novas casas, novos locais comerciais e agora não a reconhece). Caminha, ninguém o espera. Pode ir para uma casa onde tem familiares num grau afastado, ir a casa de antigos amigos, pedir um emprego a este ou aquele. Vai até à central de camionetas. No caminho vê uma casa pintada de cor-de-rosa, uma cruz no telhado ao lado de uma antena enferrujada (parece um filtro). É um tabernáculo, uma sede de seita religiosa com contornos obscuros, um germinal de fantasmas aborrecidos nas reuniões de domingo. Sai música de dentro

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do tabernáculo, e na parede está escrita uma frase: És pó e pó voltarás a ser. Crocodilo olha para a frase pintada a negro no fundo cor-de-rosa. Os seus astros aceleram, satélites rápidos, há tanto tempo não sentia isso. Ri-se sozinho, descontrolado, há tanto tempo que não se ria e agora sorri um riso animal, sincero, cheio. A expansão torna-o doentio, ri-se sozinho. (fábulas mas com pessoas, os animais mais honestos, até o falso moedeiro era honesto) e aqui Crocodilo ri-se. Riso paralisante, assimbólico embora dentro dele possamos ver uma alegoria nova. Riso que se torna negro e duro como um pudim negro. Quero comer este pudim com os meus dentes brancos, mas este pudim está fora de prazo. Foi feito no tempo de Homero. E eu com tanta fome. Eu que sou pó e vou voltar a ser pó só quero comer este pudim negro, é o meu destino, procurar todas as trevas, comer os pudins mais negros. Procuro os pudins mais antigos, cozinhados nas águas estanques do Nilo. Germinal de bactérias do Antigo Império. Pudins negros onde não entra a luz, onde não há nenhuma esperança. Pudins obscuros, completamente negros. Preciso de botas negras para comer este pudim. Tenho fome de negro. Posso entrar nesse tabernáculo com um único livro sagrado, carcomido, as páginas amarelas. Obsessão, sair dela. Entrar no templo e trincar os braços gordos dos fiéis. É um crocodilo de instintos rápidos. E ali, a dois quilómetros da prisão, o pastor dessa igreja telefona para a polícia. E no mesmo dia voltar à prisão. Ideia sedutora a da perda. Ou então continuar a caminhar. Começar uma vida nova. Ou então ser pó (e voltar a ser pó), comer o pudim negro feito de pó (o pó mais negro) e a água suja da literatura mais morta. Pudim negro e alegórico de tudo o que é antigo e mau. O pudim dos erros humanos. O pudim cozinhado pelos piores traidores, falsificadores de moedas, ladrões, piratas alexandrinos, assaltantes de pirâmides, traficantes de relíquias, homens que destroçaram e acabaram com outros homens, o pó mais negro dos homens mais negros. Na parede cor-de-rosa a frase cada vez mais viva, como um néon bailarino as letras dançam. Mas Crocodilo, resumo: era um cocainómano, foi preso por assaltar uma carrinha de transporte de valores. À prisão vinha vê-lo a sua irmã. 100 | nuno brito


Uma vez por semana. Trazia-lhe algum dinheiro que dava para continuar a consumir. Mas a irmã trazia cada vez menos dinheiro. Ele fazia pequenos trabalhos, limpar as celas dos outros, ir-lhes fazer recados. Feudalismo na prisão. E aí começa a fábula, já estava a dever muito dinheiro, isso aumentava a dependência. E o aviso, uma semana para pagar. A sua irmã vem, pede-lhe dinheiro mas ela não tem. Agora a irmã tem de olhar pela vida dela. Não consegue o dinheiro da dívida dentro da semana. Implora-lhe. Nesse mesmo dia vê o que acontece aos que não a liquidam. Água a ferver em cima do corpo, os devedores castigados no pátio da prisão. O grande balde de ferro. A água a ferver. Os gritos. Falta um dia, está desesperado, amanhã vão chamá-lo. Nesse dia um ultimato, diz que vai fazer tudo, pede mais dois dias. Não consegue dormir. Chamam-no, levam-no para o pátio, despem-no. A partir desse dia, e pelas queimaduras com que ficou no corpo, a pele áspera, as manchas para sempre, passaram a apelidá-lo de Crocodilo. Mais dois anos e quatro meses e saiu. Aí estava em frente ao tabernáculo religioso. Continuou até à central de camionagem. Entrou num autocarro aleatório. Chegou ao destino. Não reconheceu pelos vidros a cidade onde tinha chegado. Resultava bem. Saiu da central, caminhou pela cidade. Contou as moedas que tinha no bolso. Estava ao lado de uma paragem de autocarro. Viu a vendedora de pudins na barraca ao lado da paragem. Flans napolitanos, tinha fome, comprou um. Estava com o copo de plástico na mão, o pudim a meio. O pudim da cor do Sol. Do outro lado da rua o sangue ri-se ao chegar aos dedos: antecipa já a chegada de outros dedos. Crocodilo prevê que alguém vem falar com ele. Violeta de Gand observa-o: ele sou eu. É o meu espelho, um reflexo, também eu. Ali o crocodilo come o flan, fora de prazo talvez, mas de um passado melhor. Um flan renascentista da cor do Sol. O caramelo torrado derrete-se na boca de Crocodilo. A baunilha parece drogá-lo. Os satélites de dentro giram mais rápido. Do outro lado da rua a mulher que o observa como alguém que já lhe pertence, que é

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seu, e vê naquele momento algo que já passou há muito tempo na vida dos dois. O flan napolitano, o seu sabor transformado na memória.[1]

[1] A personagem principal deste texto é desenvolvida no conto: «Crocodilo: Narrativa de duas faces como as moedas do Vaticano» em Créme de la Creme, Porto, 2011.

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Pink cigarette À Anezinha. Quero impregnar-me de gente, de paisagem portuguesa. Luiz Pacheco

Nesta terra as mulheres crescem à sombra, como os cogumelos, o musgo ou a razão, em ponto de cruz a saudade vai sendo domesticada, o mais honesto e obediente animal puxado por uma trela dourada feita de medo e outras coisas que ligam o seu viso tem a expressão de todos e é nestas caras quentinhas que descem ainda as lágrimas de Eros mudando por dentro o nome do continente, outra cara, possível começo sem nome, sem coisa nenhuma, é às vezes o sal que cai destas caras que tempera o prato, porque todo o sal não chega para compensar o amargo que veio morar para a boca cansada de saber que a linguagem não chega porque eles fugiram, cada um em seu barco: os filhos. Nesta terra as mulheres crescem à sombra e têm sombra nos olhos, que o eco veio pintar a lápis de cor por cima da paisagem humana que se aloja debaixo de tudo o que a alma espelha, veias, artérias, vasos, curvas fininhas que o tempo vai moldando a anatomia rasgando o cosmos à escala humana, soprando-o para longe

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transbordo que a sede cria, e enquanto as filhas vão ao poço, sol, risos, perfeita anatomia as sombras crescem. Pequeninas rendinhas em baús terços, santinhos, livros de areia, um dente de leite o fio de ouro a que está ligado, e são de sombra os seus gestos porque quando se movem são os braços de outros que ganham vida e retiram à paisagem a natureza para pôr nela a arte, a civilização, a linguagem e a vitória a mais alemã invenção, e o seu sorriso é uma espécie de deus e quanto mais se enrola na paisagem mais deus é até parece que a razão dorme dentro delas, e a razão dorme dentro delas – o capitão do navio dá-lhes duas opções ou embarcam no barco do amor ou embarcam no barco do amor mas vão ter ainda de o criar para o atravessar, e partir as árvores, da madeira, fazer o barco e calafetá-lo e dar-lhe um nome, e batizá-lo, porque tudo aquilo em que se toca também se é a sede vai-lhe toda para os olhos, urgente era que as sombras saíssem, como o fumo adocicado dos pulmões para dentro doutros pulmões. Estas mulheres seriam modelos se as estátuas de sono não dormissem dentro delas se não fossem só alma, o planeta chama-as do centro, as rugas vão rasgando a sua pele mas elas riem pouco, e há poucos jovens estão todos no meio da Europa, Lisboa, Porto em Lisboa está a arte e no Porto está a arte e no Couço está a arte e em todo o lado está a arte se não fossem só alma teriam visto mais vezes o mar não são filhas da revolução nem são filhas de ninguém 104 | nuno brito


os seus filhos estão todos na taberna e são mais velhos que elas à noite estas sombras limpam com um guardanapo o beiço dos velhos porque lhes desce azeite pelos queixos, e esses guardanapos podiam ser a página cem de uma História Contemporânea, edição de luxo, a meio da investigação os eruditos folheavam o guardanapo em Lisboa onde está a arte ou no Porto onde está a arte. Exportamos marmelada para a Austrália ou para os armazéns de retalho da capital que importa se toda a geografia é interior? Enquanto dormem até de deus são mães e entre as suas pernas as almofadas (penas de pato, segredos ou outros novelos). As suas casas são feitas de queda, de verticais os muros ganham contornos, a mais cara renda que são os dias a vir formas breves, novas formas, dias que incham parecem areia soprada pelo fogo com que se faz o vidro e se embacia o espelho um dia também ele será inventado pelas mãos quentes de um artesão etrusco antes mesmo de haver as moedas para o comprar e que levarão os nossos filhos para longe, para o Canadá, Luxemburgo, Cantões, nos navios, nas bagagens, nos aviões, todos com o seu preço calafetado por dentro e por fora, impregnado na paisagem claves de sol pontilham a paisagem, por cima do trigo, a picotado. As sombras destas mulheres às vezes são música, entra nos búzios não só por nos lembrarem que elas provêm do sol,

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como tudo o que parte, mas por nos erguerem como o caule de um girassol, a sua voz é a sua seiva, está dentro da nossa espinha, é o nosso equilíbrio uma balança onde se pesam as palavras que ficaram por dizer. Futura-te também a rede quer dormir mas não é da natureza das redes dormirem e a rede pede que lhe cortem as pontas, que tragam uma tesoura, e alguém corta as pontas, mas as pontas crescem com mais força, como uma estrela-do-mar, a tesoura é também informação e acrescenta-se à rede, tudo é soma nesta nova anatomia Coisas que entram abre as portas, vem muita gente atrás e todos querem entrar em ti, entrar é ser gente, crescer é ser rede, homens e redes nunca dormem verdadeiramente. Em Manchester as fábricas enchem-se de música, e no Couço cresce o trigo dos latifúndios e todos estes homens precisam de equadores ao mesmo tempo que precisam de polos e todas estas mulheres precisam de um pouco mais de calor não só para deixarem de ser sombras mas para saberem que por descarrilarem se fazem novos caminhos nas carruagens vai este gado já não de ferro nem de vento são os caminhos em que é feita a viagem sem pontes de aço, betão ou de cimento, só ultrapassagem. No Portugal dos Pequeninos os filhos que se vão perder em todos os continentes das suas perdas novos filhos nascerão: filhos da revolução. Qual? na natureza nada se apaga na natureza não existe amanhã mas o homem põe a manta da civilização por cima da natureza 106 | nuno brito


e por baixo da manta fica o escuro e alguns animais sem expressão às vezes fica também o riso, a razão fica a sobrevoar a manta e ficam mulheres debaixo da manta danças primitivas, ecos, sonhos, capitães de mar nenhum ficam também debaixo da manta a razão de ser da literatura, definir poesia é dar as mãos só a gente e paisagem não desce para baixo da manta da razão e as mãos aquecem agora mais.

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Ajax ou deus pastoral Um lugar para a sede onde não haja água, só desejo de a ter e por isso vínculo, só as saias da sede que alguém desenhou a subirem devagar uma mão de homem, sede do seu joelho sobe as coxas A mão procura a parte mais quente da sede todo o corpo pede novas formas de beber entre as pernas da sede o homem lambe o seu sexo a saia curta ficou à cinta, por baixo dela a cabeça o homem lambe a sede – ambos são seres personificados a cuequinha de algodão para o lado pode ser no miradouro do Adamastor onde Churchill pediu para sair do táxi – olhou para a nuvem com a boca aberta bebeu um bocado da chuva mas queria beber a nuvem toda, como disse o taxista, cheio do sonho americano, se eu fosse homem estava agora com uma ereção só de ver Churchill a olhar para Almada. Enquanto os submarinos passam o Canal da Mancha, todos os ministros no bunker, ele foi comprar charutos a Picadilly, deve estar a chegar, não deve estar em Portugal a beber nuvens, o Fim da Guerra precisa dele e a Paz também precisa dele. Com a boca cheia de chuva olha para Almada, para o ponto onde vai estar o Cristo Rei, está lá só um homem que é uma estátua de sono, substitui-se por outra estátua, 108 | nuno brito


mete-se uma saia – relva na cabeça, um bocado de gel – e vira-se a estátua para a América. Não existem eles nem nós: se virmos o desenho que faz no espaço-tempo este prazer, por baixo da saia o tornozelo-sede – os dedos-sede, sem filtros ligados por um fio de Mão Aberta – a mão sede onde dorme um helicóptero um inseto suicida que choca com outros no ar quando há fogo cruzado – tenho medo porque tenho mãos – a nossa Possibilidade inclui essa Voz que nos chama. Antes de entrar no táxi Churchill olha para o relógio – seis e meia –, Portugal a acordar, vê as traseiras de uma pastelaria espreita pelas frinchas , os pasteleiros com as grandes seringas culinárias a injetarem o creme dentro das bolas de Berlim e dos éclaires, dos outros bolinhos como o mais perverso voyeur da indústria alimentar espreita os pastéis de nata a saírem do forno todo ele treme de euforia ao ver os bolos de arroz a serem amassados, os bolinhos húngaros de chocolate e manteiga. *** A mão da sede, em jeito de abandono, pede ao homem: Traduz o meu corpo para a linguagem dos rios, se me queres dar um prazer verdadeiro, traduz tu Ajax ou Deus Pastoral que sabes todas as línguas que estás entre todos os povos, traduz tu Ajax ou deus pastoral

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a minha sede em água as linhas da minha vida em rios da minha medula faz nascentes de ribeiros frescos – põe dois pastores em cada lado e um guarda-rios mais a sua família feliz e o doce lar em que habitam e que eles velem a minha descida pelas montanhas –, desço por ti, fertilizo-te a terra dos meus joelhos faz barcos, das rótulas as velas, dos ossos dos dedos: canoas, o tronco seco e do meu sopro os que nela andem e que neles remem. Que os aldeões vejam o rio engrossar o seu leito na medida proporcional da sua sede e na medida proporcional da sua sede abram poços, traduz, pois, Ajax ou deus pastoral os meus olhos negros em poços fundos, para que eles venham com os seus baldes beber-me um pouco mais e a sede que sou eu esteja neles e que a procura que é a sede, e és tu e todos, esteja entre nós, fontes límpidas de Minos, rio seguro que nós somos a descer contínuo, no fundo deles põe um mar tradu-lo do leite do meu sexo quando me lambes e dás prazer Ajax ou deus pastoral – tu tradutor que me lambes vês agora o mar que criaste do teu desejo vês essa onda que te molha os pés, coalha-se em espuma é só uma onda que ri, um pouco atrás no paredão num banco atrás dos namorados alguém me desenhou para velar por ti.

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As abelhas produzem sol II As pessoas segregam futuro queremos aquilo que as pessoas segregam: a vigília das montanhas, o vento mais quente do sul, a manhã húmida e a certeza da expansão, os raios de sol e o riso como ponte a parte mais quente da sede antes de haver água. As abelhas produzem sol o Sol produz açúcar as pessoas segregam futuro, Queremos aquilo que as pessoas segregam.

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