Odysseas Elytis, O Monograma

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Odysseas Elytis

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O Monograma {tradução de Tatiana Faia}



Odysséas Elytis

O MONOGRAMA tradução de Tatiana Faia


O Monograma Odysséas Elytis título original: το Μονόγραμμα publicado pela primeira vez em L’Oiseau, 1971 tradução de Tatiana Faia

Enfermaria 6 janeiro de 2015 Fyodor Books Rua do Loreto, 13, Sobre Loja, Lisboa enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com


Odysséas Elytis

O MONOGRAMA



Índice O Monograna I.......................... 9 II.........................10 III....................... 12 IV........................14 V......................... 17 VI........................19 VII......................21 Tatiana Faia – Nota..23



Hei-de lamentar-te sempre – ouves-me – a ti sozinho, no Paraíso



o monograma

I O destino, como um agulheiro, há-de virar noutra direcção as linhas das mãos O tempo há-de conceder um momento Então como, desde que os homens se amam Há-de o céu imitar as nossas entranhas E a inocência golpear o mundo Com a agudeza de escuridão da morte

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II Lamento o sol e lamento os anos que hão-de chegar Sem nós e canto os outros que desapareceram Se isto é verdade Os corpos conversados e os barcos a arranhar docemente As guitarras a cintilar debaixo de água Os «acredita em mim» e os «não» Uma vez no ar outra na música Os dois pequenos animais, as nossas mãos Que secretamente procuraram trepar uma sobre a outra O vaso com o gerânio nos portões abertos E os pedaços de mares a juntarem-se Para lá das sebes, para lá das vedações A anémona que ficou na tua mão E por três vezes em três dias tiveste medo da púrpura, ali no cimo das quedas de água Se estas coisas são verdade canto A trave de madeira e a tapeçaria quadrada Na parede, a sereia com a trança desfeita O gato que nos viu na escuridão 10


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Uma criança com o incenso e com a cruz encarnada Na hora em que anoitece na inacessibilidade das rochas Lamento a veste em que toquei e o mundo chegou atÊ mim.

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III Assim estou a falar de ti e de mim. Porque te amo e em amor sei Como entrar como a lua cheia De todo o lado, em direcção ao teu pé pequenino nos lençóis intermináveis Como colher jasmins - e tenho o poder De soprar como o vento e carregar-te adormecida Por passagens cheias de luar e pelas secretas arcadas do mar Árvores em transe com a prata de teias de aranha As ondas ouviram falar de ti Das tuas carícias, dos teus beijos Como num sussurro dizes o «quê» e o «eh» Em redor do pescoço da enseada Sempre nós a luz e a sombra Sempre tu a pequena estrela e sempre eu a escura nau Tu sempre o porto e eu sempre o farol à direita A parede molhada do cais e o brilho nos remos Lá no alto na casa com os pátios cobertos de videiras As roseiras atadas e a água que regela 12


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Tu sempre a estátua de pedra e sempre eu a sombra que cresce A persiana meio aberto tu e o vento que a abre eu Porque eu amo-te e amo-te Tu sempre a moeda e eu a devoção que a reembolsa. Tanto noite, tanto o rugir no vento Tanto a gota no ar, tanto a quietude Em redor o mar déspota Câmara do céu cheia de estrelas Tanto o teu menor sopro Que não tenho mais nada Nas quatro paredes, o tecto, o chão, Gritar por ti e acertar-me a minha própria voz Guardar o teu cheiro e os homens enfurecerem-se Porque os homens temem o que não foi tentado e o que é estrangeiro e é cedo, consegues ouvir-me?, É ainda cedo neste mundo meu amor Para falar de ti e de mim

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IV É ainda cedo neste mundo, ouves-me, Ainda não amansaram as feras, consegues ouvir-me?, O meu sangue desperdiçado e a minha faca aguçada, consegues ouvir-me?, Como carneiro correndo através dos céus Quebrando o rasto das estrelas, ouves-me Sou eu, consegues ouvir-me? Amo-te, consegues ouvir-me? Abraço-te e levo-te e visto-te O branco vestido de Ofélia, consegues ouvir-me? Onde me abandonas e onde vais e quem, consegues ouvir-me?, Segura a tua mão acima da destruição Das chamas enormes e da lava vulcânica E virá o dia, consegues ouvir-me?, Em que nos hão-de sepultar, e um milhão de anos mais tarde Quando formos fósseis reluzentes, consegues ouvir-me? Para serem polidos pela indiferença, consegues ouvir-me?, Dos homens E quando ela nos lançar em milhares de pedaços 14


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Nas águas um por um, consegues ouvir-me? Eu conto as minhas amargas pedrinhas, consegues ouvir-me? E o tempo é uma grande igreja, consegues ouvir-me? Onde outrora as imagens Dos santos Choraram verdadeiramente, consegues ouvir-me? Os sinos dobram alto, consegues ouvir-me? Atravesso um vau profundo Anjos esperam com velas e fúnebres salmos Eu não vou a lugar nenhum, consegues ouvir-me? Um de nós apenas ou ambos, consegues ouvir-me? Esta flor da tempestade e, consegues ouvir-me? Do amor De uma vez por todas a apanhámos E não tornará a ser flor em parte nenhuma, consegues ouvir-me? Noutra terra, noutra estrela, consegues ouvir-me? Não existe chão, não existe ar Que tenhamos tocado, o mesmo, consegues ouvir-me? E nunca nenhum jardineiro teve tanta sorte Que tivesse gerado de semelhante inverno e de semelhantes ventos de norte, consegues ouvir-me? Semelhante flor, só nós, consegues ouvir-me?, No meio do mar, Apenas pelo desejo do amor, consegues ouvir-me? Erigimos uma ilha inteira, consegues ouvir-me? 15


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Com grutas e cabos e fragas em flor Ouve, ouve Aquele que fala no meio das águas e aquele que chora – ouves? Sou eu que chamo e sou eu que choro, consegues ouvir-me? Amo-te, amo-te, consegues ouvir-me?

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V De ti falei em tempos antigos Com amas sábias e soldados rebeldes De onde vem a tua tristeza feroz O brilho da água que no teu rosto cintila E porque, diz-se, tenho de vir até ti Eu que não quero o amor mas quero o vento Mas quero do mar descoberto e vertical o galope E ainda ninguém tinha ouvido falar de ti Nem o ditamno nem o cogumelo selvagem Nas terras altas de Creta, ninguém Só deus concede e conduz a minha mão em direcção a ti Aqui, ali, cuidadosamente a toda a volta Da margem do rosto, da enseada, do cabelo Na colina que ondula para a esquerda O teu corpo na atitude de um pinheiro sozinho Olhos orgulhosos e diáfana Profundidade, na casa com uma velha cristaleira De rendas amarelas e madeira de cipreste Sozinho espero para ver onde primeiro hás-de aparecer 17


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Ao alto na varanda ou sob as pedras do jardim Com o cavalo do santo e o ovo da páscoa Como um mural destruído Grande como te quis a pequena vida Para conter numa pequena vela o efervescente brilho vulcânico Assim nunca ninguém terá visto ou ouvido Nada acerca de ti na devastação de casas delapidadas Nem o antepassado sepultado no extremo do jardim De ti, nem a velha com todas as suas ervas De ti, só eu e talvez a música Que expulso de mim mas que regressa mais forte De ti, o não crescido peito de doze anos Virado para o futuro e para a vermelha cratera De ti, um odor acre encontra o corpo E como um alfinete fura até chegar à memória E aqui o solo, aqui as pombas, aqui a nossa terra antiga

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VI Vi muitas coisas e à minha mente a terra parece mais bela Mais bela na respiração de ouro A pedra afiada, mais bela O escuro azul dos istmos e os telhados que pontuam as ondas Mais belos os raios onde passas sem pisar Invicta como a deusa de Samotrácia sobre os cumes do mar Assim eu te vi e isso basta Porque tudo e o tempo serão exonerados No rasto da tua passagem A minha alma como um golfinho verde segue em frente E brinca com o branco e com o azul Vitória, vitória onde fui vencido Antes do amor e próximos No hibisco, na flor-de-maracujá Vai, vai e deixa-me perder-me Só, e deixa o sol ser como recém-nascido que seguras 19


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Só, e deixa-me ser como pátria que se lamenta Como a palavra que enviei para por ti segurar a folha do loureiro Só o vento forte e só o perfeito Seixo sob a pálpebra da profunda penumbra O pescador que pescou e de novo lançou ao tempo o Paraíso

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VII No Paraíso assinalei uma ilha Semelhante a ti e uma casa junto ao mar Com uma cama larga e uma porta estreita À profundidade lancei um eco Para que a cada manhã me veja quando acordo Em parte para te ver passar através das águas Em parte para te chorar no Paraíso

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Nota procurei o branco até à tensão extrema do negro... Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí) Manuel Resende (trad.), Assírio & Alvim, 2004.

O Monograma (1972) é enquadrado mas não imediatamente precedido por duas obras maiores de Odysseas Elytis (Prémio Nobel da Literatura, 1979), Áxion Esti (1959) e Maria Nefeli (1978). O poema partilha temas com ambos. Enquanto Áxion Esti é uma obra que a espaços se identifica com convenções de uma poesia de louvor, isto torna-o uma espécie de poema nacional cum grano salis, porque Áxion Esti é ao mesmo tempo profundamente centrado nas figuras individuais que o habitam. O Monograma é um longo poema de amor, codificado na poesia de lamento, lírico em tom, de alguma forma lembrando Dante – os amantes e o lamento no paraíso, a mulher dominando a paisagem. E no entanto, não há tanto ruptura como continuidade entre as duas obras, porque é o mesmo sopro que lhes dá origem, e este sopro seria uma visão ética do indivíduo no espaço, da sua relação com ele. 23


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O Monograma é lírico em tom mas está firmemente ancorado na memória e na paisagem grega. O poema cresce de memórias de infância até ao presente e, naquilo que tem de lamento, de alguma forma transcende este dois eixos temporais, o que em grande parte cria a profundidade narrativa do poema. Por outro lado, estes temas olham para a frente, para a composição de Maria Nefeli (já a ser escrita na época em que O Monograma é produzido). Em português Áxion Esti encontra-se traduzido na Assírio & Alvim por Manuel Resende (Lisboa, 2004) e esta é a única tradução completa (em estado publicado) de uma obra dele. Existe uma tradução da obra completa de Elytis em inglês da autoria de Jeffrey Carson e Nikos Sarris (The Collected Poems of Odysseus Elytis, Johns Hopkins University Press, 1997). Jeffrey Carson assina uma longa introdução geral à vida e obra do autor, onde é possível encontrar uma análise mais pormenorizada de O Monograma. * Em tempos tive a oportunidade de assistir a uma conferência de um discípulo de Eugenio Montale sobre Eugenio Montale. A sala encontrava-se, como é costume nestas ocasiões, cheia de académicos, que muito infelizmente, por um tique de 24


nota

profissão que por vezes é difícil de controlar, confundiram o discípulo de Montale com um académico especializado em Montale que, portanto, se dirigiria à sua audiência no registo próprio desta condição. Mas ele tinha convivido com o homem e não com a abstracção e queria apenas dar testemunha da sua imensa dívida, quase de filho, para com o mestre. O seu objectivo não era debater aspectos de edição da obra completa ou especular sobre o destino póstumo e subsequente recepção da obra, tanto em Itália como no estrangeiro. Deu-se o caso da desilusão do auditório rapidamente se ter propagado para uma postura predatória e foi desta posição que o grupo se entreteve, tanto antes como depois da conferência, a demonstrar a suprema ignorância do discípulo de Montale acerca de questões vitais da obra do mestre. Serve este pequeno excurso e, por extensão esta nota, para dizer que convivi demasiado tempo com este poema de Elytis. Para mim o acto de o traduzir identifica-se mais com o tipo de postura intelectual do discípulo de Montale do que com o ânimo que conduziu a discussão daquele grupo de estudantes naquela tarde de Inverno. Primeiro porque não sou uma leitora especializada de Elytis e segundo porque o meu conhecimento de Grego moderno é o de um classicista que consegue ler o texto original acompanhado de um dicionário e de outras traduções. 25


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O Monograma é um dos poemas alguma vez escritos em grego mais difíceis de traduzir e o seu grau de dificuldade chega para causar convulsões ao mais experiente dos tradutores. A minha primeira tentativa de uma versão/recriação incompleta do poema foi feita em 2011. Há textos que são como as primeiras casas que os amantes dividem, vivem connosco demasiado tempo, nós continuamos a mudar de sítio e eles continuam a viajar debaixo da nossa pele. Há pontos em que a nossa experiência altera e redefine até ao ponto da ruptura o primeiro significado que eles tiveram para nós. No meio disto há qualquer coisa, uma concentração ou uma forma de ternura, que se afina profundamente. Assim esta é a minha segunda tentativa de tradução e é apenas isso. Este que é, na minha opinião, um dos poemas maiores do séc. xx europeu. Construído sobre uma ideia quase platónica de amor, ele aponta para uma das grandes forças que percorrem a obra de Elytis (e como ele a de todos os outros escritores a sério, os melhores escritores) – é sobre humanidade. Tatiana Faia Oxford 21-22 de Dezembro de ‘14

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