Samuel Beckett A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP (tradução de Hugo Pinto Santos)
Samuel Beckett
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP tradução de Hugo Pinto Santos
Título original: Krapps’s Last Tape Pela primeira vez publicado na Evergreen Review 2.5 (Verão de 1958) 2014 Enfermaria 6 Fyodor Books Calçada Nova de São Francisco, n° 6, loja 3, Chiado, 1200-301 Lisboa enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com
Samuel Beckett
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP
Uma noite, muito tarde, no futuro. O refúgio de Krapp. À boca de cena, a meio, uma pequena mesa, cujas duas gavetas se abrem em direcção à assistência. Sentado à mesa, virado de frente, i.e., fronteiro às gavetas, um velho de aspecto cansado: Krapp. Calças pretas desbotadas, apertadas e demasiado curtas para ele. Colete preto coçado, quatro espaçosos bolsos. Um pesado relógio de corrente. Camisa branca, sebenta, aberta no pescoço, sem colarinho. Umas insólitas botas brancas, sujas, tamanho, pelo menos, 45, muito estreitas e bicudas. Rosto pálido. Nariz vermelho. Cabelo grisalho em desalinho. Barba por fazer. Muito míope (mas sem óculos). Duro de ouvido. Voz roufenha. Entoação distinta. Caminhar laborioso. 7
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Sobre a mesa, um gravador com microfone e umas caixas de cartão com bobines de fita gravada. A mesa e o espaço imediatamente próximo sob forte luz branca. O resto do palco às escuras. Krapp mantém-se, por momentos, imóvel, suspira profundamente, olha o relógio, apalpa os bolsos, tira um envelope, volta a pô-lo lá, apalpa, tira um pequeno molho de chaves, ergue-as até aos olhos, escolhe uma chave, levanta-se e dirige-se até à dianteira da mesa. Abaixa-se, destranca a primeira gaveta, espreita para ela, remexe lá dentro, retira uma bobine de fita, examina-a, repõe-na no lugar, tranca a gaveta, destranca a segunda gaveta, espreita, mexe nela, tira de lá uma grande banana, olha-a, tranca a gaveta, volta a pôr as chaves no bolso. Volta-se, avança até à extremidade do palco, pára, agarra na banana, descasca-a, deixa cair a casca aos pés, enfia a ponta da banana na boca e permanece imóvel, olhando fixamente diante de si. Por fim, morde a ponta da banana, vira-se de lado e começa a andar de um lado para o outro na beira do palco, sob a luz, i.e., não mais do que quatro ou cinco passadas para cada lado, comendo, pensativamente, a banana. 8
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Tropeça na casca, escorrega, quase cai, recobra, agacha-se e examina a casca, por fim empurra-a com o pé, ainda agachado, até à extremidade do palco, rumo ao fosso. Volta a passarinhar, acaba a banana, volta para a mesa, senta-se, mantém-se um momento imóvel, suspira profundamente, tira as chaves do bolso, ergue-as até aos olhos, escolhe uma chave, levanta-se e encaminha-se para a dianteira da mesa, destranca a segunda gaveta, tira dela uma segunda grande banana, olha para ela, tranca a gaveta, repõe as chaves no bolso, vira-se, caminha para a extremidade do palco, pára, agarra na banana, descasca-a, atira a casca para o fosso, enfia uma ponta da banana na boca e permanece imóvel, olhando para o vazio à sua frente. Por fim, tem uma ideia: põe a banana no bolso do colete, com a ponta a espreitar, e vai, tão depressa quanto consegue, para o fundo do palco, às escuras. Dez segundos. O estampido sonoro de uma rolha. Quinze segundos. Regressa à luz, trazendo um livro-mestre, e senta-se à mesa. Poisa-o na mesa, limpa a boca, e as mãos na parte da frente do colete, junta-as, com elegância, e esfrega-as. 9
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KRAPP (Rapidamente). Ah! (Dobra-se sobre o livro, folheia-o, encontra a entrada que quer, lê.) Caixa… trrrês…. bobine… cinco. (Levanta a cabeça e olha fixamente em frente. Com gosto.) Bobine! (Pausa.) Bobiiiine! (Sorriso feliz. Pausa. Dobra-se sobre a mesa, começa a examinar e a remexer nas caixas.) Caixa… trrrês… três… quatro… dois… (com surpresa) nove! Meu Deus!… sete… ah! A sacaninha! (Pega na caixa, olha para ela.) Caixa trrrês. (Poisa-a na mesa, abre-a e olha para a bobine dentro dela.) Bobine… (examina o livro)… cinco… (examina as bobines)… cinco… cinco… Ah! O estuporzinho! (Tira uma bobine e olha para ela.) Bobine cinco. (Poisa-a na mesa, fecha a caixa três, poisa-a junto das outras, pega na bobine.) Caixa três, bobine cinco. (Dobra-se sobre a máquina, olha para cima. Com gosto.) Bobiiiine! (Sorriso feliz. Dobra-se, coloca a bobine na máquina, esfrega as mãos.) Ah! (Olha para o livro, lê a entrada na parte inferior da página.) A mãe descansa por fim… Hum… A bola preta… (Levanta a cabeça, olha fixamente no vazio em frente. Perplexo.) Bola preta?… (Examina de novo o livro, lê.) A ama morena… 10
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(Levanta a cabeça, cisma, examina de novo o livro, lê.) Ligeiras melhoras nos intestinos… Hum… o que é que é… memorável? (Olha mais de perto.) Equinócio, equinócio memorável. (Levanta a cabeça, olha fixamente no vazio em frente. Perplexo.) Equinócio memorável?… (Pausa. Encolhe os ombros, examina de novo o livro, lê.) Adeus ao (vira a página)… amor. Levanta a cabeça, fica a cismar, dobra-se sobre a máquina, liga-a e põe-se em posição de escuta, i.e., inclina-se para a frente, os cotovelos sobre a mesa, a mão em concha sobre a orelha em direcção à máquina, voltado para a frente. GRAVAÇÃO (Uma voz forte, bastante pomposa, claramente a de Krapp, em época muito recuada.) Trinta e nove, hoje, e são como um… (Pondo-se mais confortável, atira uma das caixas para fora da mesa, pragueja, desliga, atira violentamente as caixas e o livro para o chão, rebobina a fita até ao princípio, liga o gravador, retoma a posição.) Trinta e nove, hoje, são como um pêro, salvo o meu velho achaque, e intelectualmente tenho agora boas razões 11
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para suspeitar da (hesita)… crista da onda – ou por aí. Celebrei a horrível ocasião, como nos últimos anos, sossegadamente na taberna. Nem vivalma. Sentei-me em frente da lareira de olhos fechados, a separar o grão das cascas. Escrevinhei umas notas nas costas de um envelope. É bom estar de volta ao meu buraco, com os meus andrajos. Acabei de comer, receio dizer, três bananas, e só com dificuldade me impedi de comer uma quarta. Coisas fatais para um homem na minha condição. (Veementemente.) Corta com elas! (Pausa.) A nova iluminação por cima da mesa é uma grande melhoria. Com este escuro todo à minha volta sinto-me menos sozinho. (Pausa.) De certa forma. (Pausa.) Adoro levantar-me e andar para trás e para diante à luz, e depois voltar para… (hesita)… mim. (Pausa.) Krapp. Pausa. O grão, ora bem, o que será, o que será que eu quero dizer com isso, quero dizer… (hesita) acho que quero dizer aquilo que vale a pena ter quando todo o pó tiver – quando o meu pó tiver assentado. Fecho os olhos e tento imaginá-los. 12
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Pausa. Krapp fecha os olhos por instantes. Um silêncio extraordinário hoje à noite, apuro os ouvidos e não ouço um único ruído. A velha Miss McGlome canta sempre a esta hora. Mas esta noite não. Canções da sua meninice, diz ela. Custa a pensar nela como uma menina. Mas é uma mulher maravilhosa. De Connaught, creio eu. (Pausa.) Será que eu vou cantar, quando tiver a idade dela, se lá chegar? Não. (Pausa.) Cantei eu, em rapaz? Não. (Pausa.) E alguma vez cantei? Não. Pausa. Estive agora mesmo a ouvir um velho ano, bocados ao calhas. Não confirmei no livro, mas deve ser há dez ou doze anos. Nessa altura, acho eu, ainda vivia, assim-assim, com a Bianca em Kedar Street. Safei-me bem disso, Jesus, ai, sim! Uma coisa sem remédio. (Pausa.) Não tinha nada de jeito, ela, mas honra lhe seja feita aos olhos. Muito calorosos. De repente, vi-os outra vez. (Pausa.) Incomparáveis! (Pausa.) Ah, bem… (Pausa.) Estas velhas exumações são terríveis, mas, muitas vezes, acho-as… (Krapp desliga o aparelho, fica a cismar, 13
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volta a ligá-lo)… uma ajuda antes de embarcar numa nova (hesita)… recordação. Custa a acreditar que eu alguma vez tenha sido assim tão novo. A voz! Jesus! E as aspirações! (Breve risada em que Krapp embarca.) E as resoluções! (Breve risada em que Krapp embarca.) Beber menos, em particular. (Breve risada apenas de Krapp.) Estatística. Mil e setecentas horas, fora, antes delas, as mil oitocentas e picos, consumidas apenas em estabelecimentos com licença. Mais do que 20%, vá, 40%, do tempo que passou acordado ao longo da vida. (Pausa.) Planos para uma vida (hesita)… sexual menos absorvente. Última doença do pai. Declínio na perseguição da felicidade. Laxante inatingível. Escarnece o que chama sua juventude e dá graças a Deus por ela ter acabado. (Pausa.) Uma nota falsa ali. (Pausa.) Sombras do opus… magnum. Fechar com um… (breve riso) latido à Providência. (Krapp embarca num riso prolongado.) O que resta de todo esse sofrimento? Uma rapariga num sebento casaco verde, na plataforma de uma estação de caminhos-de-ferro? Não? Pausa. 14
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Quando olho… Krapp desliga o aparelho, fica a cismar, olha para o relógio, levanta-se, vai até ao fundo do palco, até à zona que fica às escuras. Dez segundos. Estampido da rolha. Dez segundos. Segunda rolha. Dez segundos. Terceira rolha. Dez segundos. Breve acesso de música trémula. KRAPP (canta) Agora o dia findou, A noite aproximaaa-se, Sombras… Acesso de tosse. Volta para a luz, senta-se, limpa a boca, liga o aparelho, retoma a sua posição à escuta. GRAVAÇÃO …Nesse ano que já lá vai, com o que eu espero que seja, talvez, um brilho nos olhos ainda por vir, há, é claro, a casa 15
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sobre o canal, onde a mãe jazia à morte, pelo fim do Outono, depois de uma longa viuvez (Krapp dá um arranque), e a… (Krapp desliga o aparelho, rebobina um pouco a fita, inclina o ouvido até mais perto do aparelho, liga o aparelho)… a morrer, depois da longa viuvez, e a… Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olha no vazio em frente. Os lábios mexem-se, silabando «viuvez». Nem um ruído. Levanta-se, vai para o fundo do palco até ao escuro, regressa com um enorme dicionário, poisa-o na mesa, senta-se e procura a palavra. KRAPP (lê do dicionário) Estado – ou condição de quem é – ou continua – viúvo – ou viúva. (Consulta. Confuso.) Ser – ou continuar?… (Pausa. Olha, de novo, para o dicionário. Lê.) «Os carregados fumos da viuvez»… Também de um animal, especialmente pássaro… a viúva ou tecelão… Plumagem negra nos machos… (Consulta. Com gosto.) O Vidua! Pausa. Fecha o dicionário, liga o aparelho, retoma a posição à escuta. 16
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GRAVAÇÃO …banco junto à represa de onde podia ver a janela dela. Ali me sentava, com um vento danado, desejando que ela tivesse ido embora. (Pausa.) Nem vivalma, praticamente, só os do costume, amas, crianças, velhos, cães. Fiquei a conhecê-los bastante bem – oh, de vista, claro, quero dizer! De uma jovem beldade morena, lembro-me em especial, toda branco e goma, peito incomparável, com um grande carrinho de bebé de capota preta, uma coisa do mais fúnebre. Sempre que eu olhava na direcção dela, ela tinha os olhos postos em mim. E no entanto, quando ganhei coragem para lhe falar – sem termos sido apresentados –, ela ameaçou chamar a polícia. Como se eu tivesse intenções quanto à virtude dela! (Riso. Pausa.) A cara dela! Os olhos! Como (hesita)… crisólito! (Pausa.) Ah, bem… (Pausa.) Estava lá quando (Krapp desliga o aparelho, fica a cismar, volta a ligá-lo)… o estore desceu, uma daquelas coisas de enrolar, castanho, sujo, eu atirava uma bola para um cãozito branco, calhou. Por acaso, olhei para cima e ali estava. Tudo acabado, por fim. Continuei sentado mais um bocado, com a 17
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bola na mão, e o cão a latir e a dar à pata para mim. (Pausa.) Um bocado. Bocado dela, meu bocado. (Pausa.) Bocado do cão. (Pausa.) Por fim, lá lhe dei a bola e ele agarrou-a com a boca, suavemente, suavemente. Uma bolinha preta, velha, rija, sólida, de borracha. (Pausa.) Vou senti-la na mão até ao dia em que morrer. (Pausa.) Podia ter ficado com ela. (Pausa.) Mas dei-a ao cão. Pausa. Ora bem… Pausa. Espiritualmente, um ano de profundo desânimo e indulgência até àquela memorável noite de Março na extremidade do molhe, com o vento a uivar, a nunca esquecer, quando, de repente, vi tudo. Por fim, a visão. Esta cisma é o que eu mais tenho para registar nesta noite, face ao dia em que o meu trabalho estiver terminado e, talvez, sem espaço livre para a memória, quente ou fria, para o milagre que (hesita)… para o fogo que o alumiou. O que vi, de repente, foi isto, que a crença em que me mantivera, toda a minha vida, nomeada18
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mente (Krapp desliga, impacientemente, o aparelho, faz correr a fita para a frente, volta a ligá-lo), grandes rochedos de granito, e a espuma que subia à luz do farol, e o anemómetro a girar como uma hélice, por fim tornou-se-me claro que a escuridão que sempre lutei para reprimir é, na realidade (Krapp pragueja, desliga o aparelho, faz correr a fita para a frente, volta a ligá-lo), uma associação inquebrável até à minha dissolução da tempestade e da noite com a luz do entendimento e do fogo (Krapp pragueja com o carregador, desliga o aparelho, faz correr a fita para a frente, volta a ligá-lo), a minha cara nos peitos dela e as mãos nas dela. Ficámos lá deitados sem nos mexermos. Mas debaixo de nós tudo se movia, e nos movia, calmamente, para cima e para baixo, e de um lado para o outro. Pausa. Passa da meia-noite. Nunca experimentei tanto silêncio. A terra podia não ter qualquer habitante. Pausa. Aqui termino… Krapp desliga o aparelho, rebobina a fita, volta a ligar. 19
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…o alto do lago, com o barquito, a boiar junto à margem, depois impelido para a corrente e a vogar. Ela estendia-se nas tábuas do fundo, com as mãos debaixo da cabeça, e os olhos fechados. O sol estava a pôr-se e ardia, uma leve brisa, a água agradável e viva. Reparei num arrranhão que ela tinha na coxa e perguntei-lhe como o tinha feito. A apanhar groselhas, disse ela. Eu disse outra vez que achava que não havia remédio, e que não valia a pena continuar, e ela concordou, sem abrir os olhos. (Pausa.) Pedi-lhe que olhasse para mim e, passado uns momentos (pausa)… passado uns momentos ela fê-lo, mas os olhos eram simples frestas, por causa da claridade. Debrucei-me sobre ela, para os deixar à sombra, e abriram-se (Pausa. Baixo.) Deixa-me entrar. (Pausa.) Vogámos por entre bandeiras e parámos. Como elas se afundavam, suspirando, diante da proa! (Pausa.) Deitei-me atravessado sobre ela, a cara nos peitos dela, e as mãos sobre as dela. Deitámo-nos lá sem nos mexermos. Mas debaixo de nós tudo se movia, e nos movia, calmamente, para cima e para baixo, e de um lado para o outro. Pausa. 20
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Passa da meia-noite. Nunca soube… Krapp desliga o aparelho, fica a cismar. Por fim, apalpa nos bolsos, encontra a banana, tira-a, olha para ela, volta a pô-la no lugar, apalpa, tira o envelope, apalpa, volta a pôr o envelope, olha para o relógio, levanta-se e vai para o fundo do palco, para o escuro. Dez segundos. Som de garrafa contra o copo, depois o ruído breve de um sifão. Dez segundos. Só garrafa contra copo. Dez segundos. Volta, de forma um pouco insegura, para a luz, vai para a frente da mesa, tira as chaves, levanta-as até aos olhos, escolha uma chave, destranca a primeira gaveta, espreita para ela, remexe lá dentro, tira uma bobine, espreita para ela, tranca a gaveta, volta a pôr a chave no bolso, vai sentar-se, tira a bobine do aparelho, poisa-a sobre o dicionário, carrega uma bobine virgem no aparelho, tira o envelope do bolso, consulta as costas dele, poisa-o na mesa, liga o aparelho, pigarreia e começa a gravar. KRAPP Estive agora mesmo a ouvir o estúpido daquele estupor por que me tomava, há trinta anos, custa a crer que alguma vez 21
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fui assim tão mau. Graças a Deus que me safei daquilo tudo, seja como for. (Pausa.) Os olhos dela! (Fica a cismar, apercebe-se de que está a gravar silêncio, desliga o aparelho, fica a cismar. Finalmente.) Tudo lá, tudo, toda a (Apercebendo-se de que isto não está a ser gravado, liga o aparelho.)… Tudo lá, tudo neste velho planeta, toda a luz e toda a escuridão, e toda a fome, e todos os festins de (hesita)… todas as eras! (Num grito.) Sim! (Pausa.) Deixá-lo ir! Jesus! Desopilar dos trabalhos de casa! Jesus (Pausa. Cansado.) Ora bem, se calhar ele tinha razão. (Fica a cismar. Apercebe-se. Desliga o aparelho. Consulta o envelope.) Ora! (Amachuca-o e deita-o fora. Fica a cismar. Liga o aparelho.) Nada para dizer, nem um pio. O que é um ano, agora? A ruminação amarga e o banco de ferro. (Pausa.) Degustei a palavra bobine (Com gosto.) Bobiiiine! O momento mais feliz dos últimos meio milhão deles. (Pausa.) Dezassete cópias vendidas, das quais onze a preço de factura, para bibliotecas itinerantes do outro lado do mar. Ser conhecido. (Pausa.) Uma libra e seis, mais qualquer coisa, oito, não tenho grandes dúvidas. (Pausa.) Esgueirei-me lá para fora antes de o Verão arrefecer. 22
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Sentei-me, a tremer, no parque, afogado em sonhos e mortinho por me ir embora dali. Nem vivalma. (Pausa.) Últimos caprichos. (Com veemência.) Põe-nos na ordem! (Pausa.) Queimei as pestanas a ler Effie outra vez, uma página por dia, outra vez com lágrimas. Effie (Pausa.)… Podia ter sido feliz com ela, lá em cima no Báltico, e os pinheiros, e as dunas. (Pausa.) Podia? (Pausa.) E ela? (Pausa.) Ora! (Pausa.) A Fanny veio umas vezes. Esqueleto, um fantasma de pega. Não servia para muita coisa, mas acho que era melhor do que levar um pontapé no meio das pernas. A última vez não foi assim tão má. Como é que tu consegues, disse ela, na tua idade? Eu disse-lhe tinha andado a poupar para ela toda a minha vida. (Pausa.) Fui uma vez à missa da tarde, como quando ainda andava de calções. (Pausa. Canta.) Agora o dia findou, A noite aproximaaa-se, Sombras (tosse, depois quase inaudível)… da noite Caem do céu. 23
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(Ofegante.) Adormeci e caí do banco da igreja. (Pausa.) Às vezes vagueava de noite se um último esforço pudesse não (Pausa.)… Ah, acaba o teu copo e vai para a cama. Continua com estas baboseiras de manhã. Ou pára por aí. (Pausa.) Pára por aí. (Pausa.) Encosta-te e deixa-te estar deitado no escuro… e vagueia. Deixa-te estar num desfiladeiro na véspera de Natal, a apanhar azevinho, de bagas vermelhas. (Pausa.) Deixa-te estar em Croghan num domingo de manhã, na neblina, com a cadela, pára e ouve os sinos. (Pausa.) E por aí fora. (Pausa.) Deixa-te estar, estar. (Pausa.) Todo esse velho sofrimento. (Pausa.) Uma vez não te chegou. (Pausa.) Deita-te por cima dela. Longa Pausa. Curva-se de repente sobre o aparelho, desliga-o, ensarilha a fita, deita-a fora, coloca a outra, fá-la correr para a frente para o passo que pretende, liga o aparelho, ouve olhando fixamente em frente.
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GRAVAÇÃO …groselhas, disse ela. Eu disse outra vez que achava que não havia remédio, e que não valia a pena continuar, e ela concordou, sem abrir os olhos. (Pausa.) Pedi-lhe que olhasse para mim e, passado uns momentos (pausa)… passado uns momentos ela fê-lo, mas os olhos eram simples frestas, por causa da claridade. Debrucei-me sobre ela, para os deixar à sombra, e abriram-se (Pausa. Baixo.) Deixa-me entrar. (Pausa.) Vogámos por entre bandeiras e parámos. Como elas se afundavam, suspirando, diante da proa! (Pausa.) Deitei-me atravessado sobre ela, a cara nos peitos dela, e as mãos sobre as dela. Deitámo-nos lá sem nos mexermos. Mas debaixo de nós tudo se movia, e nos movia, calmamente, para cima e para baixo, e de um lado para o outro. Pausa. Os lábios de Krapp mexem-se. Sem som. Passa da meia-noite. Nunca experimentei tanto silêncio. A terra podia não ter qualquer habitante. Pausa. 25
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Aqui termino esta bobine. Caixa (Pausa)… três, bobine (Pausa)… cinco. (Pausa.) Talvez os meus melhores anos tenham acabado. Quando havia uma possibilidade de felicidade. Mas não os quereria de volta. Não com este fogo em mim, agora. Não, não os quereria de volta. Krapp, imóvel, olha fixamente em frente. A fita corre em silêncio. Cai o pano.
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