PAU LO R ODRI GUES FER R EI R A
SONHOS DE LOBO
Paulo Rodrigues Ferreira
SONHOS DE LOBO
Sonhos de Lobo Paulo Rodrigues Ferreira Capa e apontamentos gráficos: João Alves Ferreira © Paulo Rodrigues Ferreira ISBN: 978-989-691-297-0 Depósito Legal: 379415/14 agosto de 2014 Enfermaria 6 Fyodor Books Avenida Óscar Monteiro Torres, n° 13B, Campo Pequeno, 1000 Lisboa enfermariaseis@gmail.com www.enfermaria6.com
Índice 7 9 11 13 16 18 20 23 25 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 51 53 55 57 59 61 63 65
O meu tio era um romântico O meu amigo Wallace Milagre Um termómetro para o rapaz Falta-te condição social Custa viver com rinocerontes Crime, sentença, espiritismo, senhor prior Sê razoável O meu avô comia muitas sardinhas João Miguel Mulher que não gosta de ler Gatos no balde Bryan Adams no Walkman Kafka meteu nojo Meu menino A-Menos-Que-Queiram-Que-Me-Enterre-Aqui Queríamos iluminar o mundo Ocupado como sempre, nunca atendes Alopecia O tempo que se vai não volta Eu serei convosco Açores O nome que no peito escrito tinhas Ganhar na dura guerra Sangrar até secar Espadas de aço fino Glória Humana Deixa-me sair contigo
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O mais triste sou eu Pela água levará serras de fogo Tamanho foi o ódio e a má vontade Catarina, mulher sem língua Nasci para ser crente O Inferno cá dentro Navalhinha SOS Faltou tudo Adestramento Quem é Américo? António despede-se de António Vai ferir noutra parte
For so long it's so hot, everything in life is so intense and then little by little it goes away, and then comes the cooling, and then come the ashes Philip Roth, I Married a Communist
O meu tio era um romântico
O meu tio era um bisonte que, apesar do trabalho na construção civil, arranjava tempo para levantar halteres no ginásio e espancar seguranças de discoteca. Sempre que me encontrava a ler, ameaçava-me, levas murros, cacetes, apelidava-me de mariconço. Nunca leu um livro. Quem não sabe assinar o seu nome também não sabe ler. A única coisa que leu foi um texto meu, um dos primeiros textos da adolescência, um qualquer rascunho sobre fracassos amorosos, juras de sofrimento eterno pela rapariguinha que me dissera que não, que eu não servia para ela, que qualquer um menos eu. Foi o primeiro e talvez único texto que o meu tio leu na vida. Deve ter tido um efeito poderoso na sua cabeça: só tive tempo de me levantar da cama e correr, correr, ouvia-o gritar, ladrar, maricas, larilas, dou-te as literaturas, cabrão. Um calmeirão a correr atrás de mim com uma folha na mão. A literatura tem um efeito poderoso nas pessoas. A minha literatura enfurecera o meu tio. Se me apanhasse, matava-me. Se te apanho, sacana, maricas. A sprintar o mais depressa que conseguia, perguntava-me porquê. Se a carta era dirigida a uma mulher, se me confessava apaixonado, amargurado, deprimido, possuído por pensamentos suicidas. Porquê maricas? Percebi posteriormente que o maricas não tinha particular razão de ser. Bastava escrever para ser rotulado daquela forma. Provocador que sou, passei a escrever na porta do meu quarto, e na estante, na escrivaninha, nas almofadas, escrevia frases como amo-te Lia, amo-te Raquel, sou teu para sempre, Raquel, sofro por ti, Lia. Passei semanas de martírio, a correr à frente do bisonte do meu tio. Certa vez, ele apanhou-me abraçado à Raquel e gritou olha o meu sobrinho 7
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amaricado ali agarrado à febra, e a atitude dele mudou deveras, começou a ser carinhoso. Até me pediu para lhe escrever uma carta a uma sujeita que morava lá para a cidade (rapariga de cidade era letrada e, por conseguinte, mais exigente). Perguntei-lhe se tinha algo em especial que quisesse dizer por carta à rapariga da cidade. Não, não tinha nada de especial, mas lá se lembrou de exigir que incluísse na carta uma frase que apimentasse, que fizesse a moça tombar de desejo: quero beijar-te as mamas. Assim, como um trovão. Romantismo absoluto. O meu tio namorou a menina da cidade, e gabava-se de ter sido a frase dele a resolver a situação.
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O meu amigo Wallace
Não aceitei logo o Wallace, assim como não aceitei logo a Carminho e o Clint, os dois gatos que mandam em mim e na casa. O Wallace é um cão com cerca de cinco anos, muito inteligente e meigo, que nunca ladra com vergonha e treme muitas vezes com medo e ansiedade. No dia em que pela primeira vez o vi, tinha bebido muitas cervejas e vinho, não estava a raciocinar. Eram sete da manhã e fechei-o na sala para que não atacasse os gatos. Acordei depois da hora de almoço, o cão tinha fome e receio. Achei-o grande demais para a minha pequena casa. Percorri os locais por onde andara na noite anterior, tentando encontrar um dono, alguém que o conhecesse. Toda a gente conhecia o Wallace. Chamavam-lhe Grilo. Dormia na rua. Comia na rua. Disseram-me que o cão precisava de um dono, fiquei com ele. Os dias passaram. Ficámos amigos, tão amigos que chego a cancelar compromissos com outras pessoas para passeá-lo. Não me importo que durma comigo. Dá mais trabalho a limpar. Somos agora cinco: dois gatos, um cão, duas pessoas. Muito lixo, muita desarrumação. Cheiro a cão e a gato. Não faz mal. Estes animais gostam mais de mim do que alguma vez alguém gostou, e posso dizer algo parecido em relação a eles: gosto mais destes animais do que alguma vez gostarei de toda a humanidade. Custa-me estar sem eles, deixá-los sem mim. O cão é muito ansioso. Descobri que lhe batiam. Pontapés no focinho. As pessoas fazem coisas destas. Pontapeiam o focinho de cães que nem ladram. O cão tem dificuldade em mastigar por causa desses pontapés e esconde cicatrizes que só mostra a amigos como eu. Comecei por dizer que não aceitei logo o Wallace. 9
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Arrependo-me. Como arrepender-me de ser quem sou? Amo o cão e os gatos. Aprendi a. O mais fácil é não ter, não ajudar, pensar em mim próprio. Dou por mim a ter ideias patéticas, como: preferias perder o cão ou uma mão? Imagino-me sem mãos a ser passeado pelo cão. Tornei-me piegas. Deito-me na cama, o cão atira-se para cima de mim e os gatos para cima dele. Fazemos uma pequena montanha de calor neste inverno, e é assim que a vida funciona quando contrariamos a nossa natureza.
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Milagre
O meu amigo Wallace, cão de outros antes de ser meu (ou de aceitar a minha companhia), sempre abandonado, mas meu desde que o encontrei, meu para sempre, foi atacado por uma besta que passeava sem trela ou açaime. Recrimino-me por, durante aqueles dois ou três segundos em que vi o rottweiler a correr na nossa direcção, não ter sido mais enérgico. Fiquei parado, o dono da besta a tentar acalmar-me, dizendo que estava tudo bem, que tinha um método, e eu a ver o meu cão a desfalecer, a uivar de dor. A pele rasgada, a carne de fora. O meu cão a morrer à minha frente e um idiota bêbedo a pedir calma. Tentei seguir o conselho. Descarreguei uma saraivada de murros e pontapés no rottweiler, nada, agarrei-me ao maxilar da besta, tentando tirar os dentes do pescoço do meu cão, gritei, ameacei o dono da besta, perguntei se havia um pau, uma pistola. Consegui abrir a boca do rottweiler e salvei o cão. Penso agora que também eu corri algum risco. Penso também que preferia ser eu a ter um rasgão de cinco centímetros no pescoço, em vez do meu suturado cão. Entristeço-me e só não choro porque aqui em casa há quem o faça e é preciso manter a calma e ter uma voz forte e comandar e gritar que se o dono da besta se esticava, levava dois murraços naquela testa, é preciso ser general, mas o Wallace, lambido por gatos, a comer bifinhos de frango, dorido, coberto de cicatrizes antigas, não descansa, sofre e eu sofro com ele. Sei o que é viver com cicatrizes, o que é ter bestas em cima, o que é sobreviver à conta da força de vontade. O Wallace vai sobreviver. Nem precisa do meu incentivo. É a criatura mais optimista que conheci na vida. Cheio de pontos no pescoço, salta para me 11
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lamber. Abandonado por mil pessoas e ainda a acreditar em mim e nas pessoas. Este cão é o que mais se aproxima de uma dádiva dos céus.
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Sonhos de Lobo, de Paulo Rodrigues Ferreira, publicado pela Enfermaria 6, foi composto em caracteres Adobe Caslon Pro e impresso na VĂĄrzea da Rainha Impressores em papel Coral Book Creme 80g, durante o mĂŞs de agosto de 2014.
T r ê s f r a s e s . N ão p e n se s q u e to da a g e n t e q u er l er o que e s cr e v e s . N ão é s o t i p o m a i s b o n i to d o m un d o .
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O cão e o s gato s v ê m p ri m e i r o . Sa n ta e s p o sa .
Pau lo R odrigues Ferreira nasceu a 15 de Ago sto de 1984. É co-pr opri etário da Fyodor Books e está a terminar uma tese de doutoramento.