A MACROFÍSICA DO PODER
GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIA PINHEIRO
2009
A Michel Foucault, André Luiz de Sousa
Costa,
Valdemar Menezes,
Adísia Sá, Sílvio Braz Peixoto da Silva, Paulo Bonavides, Raimundo Bezerra Falcão,
Francisco
Gérson
Lima
Marques, Fayga Silveira Bedê, Maria Vital, Luciana Dias Belchior, Rochele Façanha e Erivaldo Jr., Erivaldo e Graça Façanha e seus demais filhos, Élber Bezerra de Menezes, Alberto Cordeiro,
Renata
Andrade,
Afro
Lourenço, Luciano dos Livros, Lucinha da limpeza, Adriano que limpa os carros, Martônio Mont’Alverne, Ana Paula Araújo, Amélia Rocha, Jorge do elevador,
Carlinhos
do
ar-
condicionado, Judicael Sudário de Pinho, Alcides Saldanha Lima, Agapito Machado Jr., Luiz Gerardo de Pontes Brígido,
Mirella
Aderaldo
Martins
Rodrigues, Geraldo Saldanha, Eneida Maria de Aguiar Saldanha, Edna Maria de Aguiar Saldanha, Nakeida Maria de Aguiar
Saldanha,
Virgílio
Távora,
Carlos Virgílio, José de Albuquerque Rocha, Ivan garçom, Suzana Frota, Enilda Frota, Maestro Frota, Toinha
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Frota, Denis Teixeira, Geraldo Gomes de Azevedo Filho, Riane Azevedo, Ricardo Azevedo, Dijalminha Teixeira, Fabiana Bastos, Michelon Rodrigues, Águeda Passos Rodrigues Martins, José Maria de Melo, Ernani Barreira Porto, José Arísio Lopes da Costa, Júlio Carlos de Miranda Bezerra, Washington
Oliveira
Dias,
Juraci
Mourão, Tiago e Caio Asfor Rocha, Ana May Brasil, Vicente de Paula Aguiar, Edílson Baltazar Barreira Jr., Júlio
César
Fortaleza
de
Lima,
Vasconcelos “Assessôro”, Francisco Soares Pinheiro, Pery Brasil, James Young, Narlon Magalhães, Cléssio Magalhães,
Salete
Magalhães,
Conceição
Pinheiro do
Xepão,
Crisóstomo Alves, Márcio Moreira, Sany Rodrigues, João Alberto Mendes Bezerra
(e
Jr),
Ademar
Mendes
Bezerra, Nacile Daud Jr., Ivana Carla, Ferdinand Lassale, Emmanuel Joseph Sieyès,
Friedrich
Müller,
Peter
Häberle,
Konrad
Hesse
Jakcson
Coelho
Sampaio.
e
José Muito
obrigado.
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TRIBUTO AOS HOMENAGEADOS
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CALMA OU TORPOR
Nada é igual ao torpor desses trôpegos dias quando, ao peso das cãs de antigas invernias, o tédio, essa morna falta de curiosidade assume as proporções da própria eternidade. Baudelaire
Nada em dor se assemelha ao sonho morto não publiquei meus versos nunca fiz loucuras nada tenho feito que de mim se fale só escrevi mormaço inquietação segredos toda a minha juventude foi gasta na abstrata dimensão onde rolam os pensamentos
eu era a própria solidão personificada era o próprio torpor de membros entanguidos era o espaço imerso em letargia bíblica mas subsistia o potencial da semente maltratada a explosão do germe pela terra triste é igual a gestação do sol pela noite
nada é igual ao langor dos dias de preguiça nada é igual ao calor dos dias de revolta (Um Jeito de Ver: anotações, José Jackson Coelho Sampaio)
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I A MICROFÍSICA DO PODER EM EXPANSÃO
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O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante u mito de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (A Microfísica do Poder-- Michel Foucault). Ora, se quisermos saber o que é conhecimento, não é preciso nos aproximarmos da forma de vida, de existência, de ascetismo, própria ao filósofo. Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que lê é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e de poder na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam , procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que com compreendemos em que consiste o conhecimento”. (A Verdade e as Formas Jurídicas, Michel Foucault).
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Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição. (Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição,
contribuição
para
a
interpretação
pluralista
e
“procedimental” da constituição, Peter Härbele).
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II A PRODUÇÃO SOCIAL DA LOUCURA
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Poder e narcisismo estão necessariamente interligados (Elias Canetti fala, por seu lado, em Massa e Poder, que também poder e paranóia são inseparáveis). Mas não só de Narciso vive a sociedade. O que os esses autores ignoram é que para haver um inflamento narcísico em certas individualidades é necessária a presença do outro pólo, que praticamente fornece o pendant para sua expansão: o inflamento superegóico. A tendência da sociedade industrial – especificamente no pós-guerra – é marcantemente a de estimular o narcisismo dos dominados, como forma de compensação simbólica à redução de seu poder real e de sua importância na sociedade de massas. Diante da insignificância do homem moderno, cujo destino, ideais de vida, aspirações afetivas etc são já pré-traçados pela inexorável lógica do social,
o
narcisismo
pseudoparticipação
forjado
política
dá
pelo uma
consumismo espécie
de
e
pela
gratificação
compensatória. (A Produção Social da Loucura, Ciro Marcondes Filho).
Todo o poder, toda a participação estão nas mãos de uma pequena elite instruída. Essa elite é alfabetizada, educada, bem alimentada e segura, diferindo portanto radicalmente da ampla maioria dos outros cidadãos, praticamente uma raça diversa. As Massas reconhecem isso e também aceitam o monopólio de poder da elite, e não ser que algum abuso intolerável acarrete uma revolta desesperada, elas aceitarão suas políticas. Também aceitarão uma mudança no governo, seja pelos meios legais ou não. No fim das contas, trata-se apenas de outro grupo de “eles” tomando o poder. (Golpe de Estado: um manual prático, Edward Lttwak).
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Dizem que Oscar Niemeyer, antes de transportar a estátua da deusa Themis de Ramanonte para Brasília, tomou ciência de um fato inusitado sobre a referida divindade, revelação feita diretamente por um oráculo fidedigno, que também lhe assegurou que quem arquitetasse uma cidade para Juscelino no meio do Planalto Central viveria mais de duzentos anos.
Na verdade, o velho oráculo avisou ao Arquiteto brasileiro que tomasse cuidado ao importar cegamente artefatos gregos, pois estes muitas vezes estavam prenhes de vícios, que deixavam para se manifestar na casa do importador.
Segundo o mesmo oráculo, foi assim com o jeitinho, invenção de Zeus para atender a um pedido de seu filho Hércules e quebrar uma condenação imutável imposta ao amigo Prometeu, mas que o povo brasileiro acredita ter inventado.
No que dizia respeito especificamente a Themis, o oráculo lembrou a Niemeyer que ela era um Titã legítimo, deusa muita antiga, filha do Céu e da Terra, e que, mesmo assim, tinha permanecido alheia aos dez anos do grande conflito político entre os seus e aquele que seria o novo senhor dos deuses: Zeus.
Esse alheamento tinha sido tão conveniente para Zeus que este resolvera desposar a Deusa, nunca desprezando os seus conselhos, mesmo depois do divórcio.
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Para bom entendedor meia palavra basta, mas, Niemeyer, alegando estar cumprindo ordens de um certo poder invisível, mandou colocar a estátua da deusa Themis em plena praça dos Três Poderes, mesmo sabendo que ela encerrava uma propensão genética a se mostrar alheia aos grandes conflitos políticos.
Narram os entendidos que a influência dessa estátua foi sentida em toda a América Latina, principalmente quando, em 1964, se instalou no País uma terrível ditadura militar, que sufocou a democracia das quatro cores vivas com os tufos de sangue que saíam da juventude torturada.
Para manter suas origens gregas, a estátua de Themis não se insurgiu contra o golpe de Estado, ficando os passarinhos que a rodeavam em absoluta liberdade para vivenciar o pluralismo intelectual sempre tão conveniente aos deuses, mandando às favas os escrúpulos dos outros.
Contam os mais experientes que o chefe da falseta golpista foi pessoalmente visitar a respeitada estátua, justamente para lhe assegurar vitaliciedade em troca de seu genético alheamento, providência que lhe tinha sido recomendada expressamente por um professor de Georgetowm, autor de um dos imprescindíveis manuais práticos de golpe de Estado lidos por todos os candidatos a ditador do mundo conhecido.
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Numa evolução tupiniquim das tendências da estátua grega, assistiuse no País à mais bem elaborada representação de normalidade de que já se teve notícia em todos os tempos, pois o grego deixou-se tomar pelo partido das fardas verde-oliva e dos paletós escuros e passou até a libertar os filhos de generais presos, só para provar que os pais deles estavam prendendo mesmo qualquer um, legitimando com sua conduta o sistema implantado na marra, exatamente como recomendava um dos manuais há pouco referenciados, cuja edição foi proibida por Adolf Hitler na Alemanha, por ser muito perigosa até para ele próprio.
Foi um descalabro anunciado, pois, afinal, Niemeyer tinha trazido a estátua sabendo de seus defeitos íntimos. Em sua defesa, o Arquiteto invocou novamente as ordens de um tal poder invisível, que ele dizia existir na mesma praça dos Três Poderes erguida no centro de Brasília.
O tempo passou e uma doença do esquecimento tomou conta de todas as gerações seguintes ao alheamento da estátua grega, que retomou todo o seu prestígio, sem precisar sair do lugar, simplesmente esperando a chuva terminar de cair.
Essa chaga terrível do esquecimento, entretanto, foi tão avassaladora que a própria deusa Thémis se esqueceu de recolher a barra de sua imensa toga de concreto, fato que foi suficiente para ensejar um fenômeno típico da modernidade política do País, o estacionamento de Hilux.
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Com efeito, lá para as bandas do Ceará, um Estado repleto de vaidades que priorizam exclusivamente os veículos da Toyota, um jovem cheio de vazio existencial, feliz por já ter alcançado os seus maiores objetivos na vida, que eram possuir uma Hilux e um apartamento de grife, duvidou de um velho professor de Processo Civil que lhe havia assegurado que no País tinha existido um regime de sangue apoiado pelo alheamento da estátua de Themis.
O preocupante jovem feliz, embriagado com a sua essência hiluxiana, sempre tão imponente e refrigerada, duvidava mesmo até da existência do holocausto, dado ao incontável número de sites na internet assegurando que o massacre dos judeus não tinha passado de uma montagem fotográfica dos Aliados. Imagine, então, o que pensava da psiquê de uma estátua de concreto, que nunca tinha saído do lugar.
Para o jovem feliz, estátuas não eram capazes de atitudes políticas de alheamento, nem mesmo de imparcialidade, pois não passavam de projeções de concreto e aço, sem nenhuma interferência na realidade, a não ser estética, que, intimamente, era a única que lhe despertava interesse no momento.
Preocupado com o alheamento do jovem feliz acerca do alheamento da estátua grega, o velho professor propôs um desafio ao estudante, que intimamente também lucubrava ingressar na magistratura para
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assegurar a manutenção de sua obra, composta por uma Hilux e um apartamento de grife.
Foi, então, que o Velho Mestre, sabedor da tendência natural do ser humano de abusar do poder, sugeriu uma viagem do jovem feliz até Brasília, para que este estacionasse a sua Hilux bem na barra na toga da estátua da deusa Themis, só para ver como a vaidade do titã ia se manifestar muito além do alheamento político.
De bom coração, como o são todos os jovens antes de se tornarem arbitrários pelo exercício vazio do poder, o estudante rumou para o Planalto Central e, literalmente, estacionou a sua Hilux sobre a barra da toga da estátua de concreto, que, sem pensar duas vezes, sacou de sua espada e decepou a orelha direita do jovem feliz, pois reputou inadmissível a bravata de quem lhe tinha sujado as vestes da imparcialidade.
O desespero do jovem feliz foi tão grandemente divulgado que um famoso pintor holandês chegou a cometer o mesmo ato de mutilação só para se solidarizar com o sofrimento do brasileiro.
Uma vez devidamente socorrido, o jovem, que até então era feliz pôde verdadeiramente acreditar na existência da psiquê e na força das estátuas, o que o fez questionar no meio da praça dos Três Poderes a razão de tão severo castigo para um simples delito de trânsito.
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Então, a estátua da deusa Themis, transformada pela culpa e pelos muitos anos de chuva e sol do Brasil, contou-lhe a mais impressionante história que já se ouviu da boca de uma escultura de concreto, acerca de um poder invisível que tinha se alojado bem debaixo de sua saia.
Segundo a estátua, bem antes de sua chegada ao Brasil, Alexander Graham Bell, grato a Dom Pedro II por este o ter ajudado na Filadélfia a propagar a invenção do telefone, inventou uma máquina de observar os outros sem ser visto, que o Imperador logo mandou instalar no Brasil e resolveu chamar de poder moderador.
A invencionice era muito interessante, pois permitia a Dom Pedro II controlar todas as intimidades políticas do Império de dentro de uma sala secreta na Quinta da Boa Vista, sem que sequer fosse notado por alguém.
E foi assim durante muitos anos, até o inevitável dia em que uma escrava anônima foi mandada inocentemente pela princesa Isabel para limpar os controles da máquina de observar oculta no palácio, numa dessas viagens de Dom Pedro II, em que o Imperador se viu obrigado a explicar por carta à Princesa o funcionamento do poder moderador, revelando o segredo até então bem guardado, em prol da pacificação política do País e do bom êxito da interinidade de sua filha.
Impressionada com a visão que tivera sobre todo o mundo político, a curiboca, parente legítima da epilepsia de Machado de Assis, copiou
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minuciosamente
os
mecanismos
da
engenhoca
onipresente,
entregando as suas anotações a um ascendente de Darcy Ribeiro, que teve de passar uns dez anos enfurnado numa tribo amazônica só para ver se conseguia entender a letra da nativa, que também era médica.
Quando Dom Pedro II descobriu, porém, que tinha sido copiado, deu fim a todo o equipamento sofisticado que lhe garantia onipresença, fato que não foi suficiente para aplacar a sede de poder do Marechal Deodoro, que, sem povo nenhum, sozinho, resolveu proclamar a república e banir o imperador do Brasil.
Não se tem notícia de que os republicanos tenham operado novamente os olhos do moderador, mas sabe-se que os rabiscos da índia escrava anônima foram decifrados por uns hackers negros da República dos Palmares, que resolveram nunca mais permitir que na política um só olhasse todos sem ser visto.
Na verdade, os negros de Palmares inverteram os pólos da tecnologia do Imperador e criaram uma sala de observação democrática para o povo, que, confortavelmente postado num sofá, em praça pública, podia se sentar em frente a quatro aparelhos de televisão e monitorar simultaneamente o Senado, a Câmara, o Supremo Tribunal e a Presidência da República.
A nova invenção foi um sucesso imediato, mas não demorou muito para o povo perceber que realmente todos os segmentos políticos
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podiam ser observados diretamente por meio da invenção invertida, exceto o Poder Executivo, cuja tela da televisão ficava sempre cheia de chiados e riscos, sem nenhuma imagem real, nunca se sabendo ao certo o que o Presidente da República estava fazendo de verdade, já que não havia câmeras do gabinete dele. Parece que só os plenários é que são verdadeiramente democráticos.
O povo percebeu que deputados, senadores e juízes se expunham em praça pública para defender seus posicionamentos e acordos políticos, embora muitas vezes fossem eles extremamente questionáveis ou simplesmente sem fundamentação nenhuma, peste impossível de se curar no coração dos arbitrários e dos irresponsáveis.
A Presidência da República, contudo, não se deixava ser vista em seus movimentos, pois nenhuma tecnologia moderna conseguiu publicar ao vivo os segredos e as companhias dessa distinta senhora. Lá os olhos do povo não entravam, os radares não captavam sinais de transparência, já que só era possível enxergar o que lhe era volitivamente dado a ver, mesmo assim depois dos artifícios de uma equipe inteira de maquiadores.
Confrontado com essa realidade inexorável e verdadeira, o Poder Executivo, matreira e hipocritamente, veio se esconder numa caixapreta que ele mesmo trouxe e colocou debaixo de minha toga de concreto, explicou a estátua incomodada, tentando desde então influenciar minhas condutas, mas sem querer ser visto, exercitando escondidamente a sua capacidade eterna de exercer domínio sobre
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todos os demais poderes da República, fingindo que só controla o dinheiro dela.
Foi essa presença incômoda, invisível e renitente por debaixo de minha toga de concreto que me fez cortar a sua orelha direita, meu prezado jovem, para que você jamais se esqueça de que o essencial continua sem ser visto pelos olhos e que o peso de sua Hilux pode comprometer o futuro de novas gerações desavisadas, que não acreditam em estátuas que falam, têm remorso e cortam a carne dos despolitizados. (Do Severo Castigo Aplicado Ao Jovem Feliz Que Estacionou Uma Hilux Na Barra Da Toga Da Deusa Themis Em Plena Praça Dos Três Poderes E De Como Um Poder Invisível Lá Foi Descoberto, Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro).
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III O HOLOCAUSTO E O DESAPARECIMENTO DO POVO
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Se é pelo dedo que se conhece o gigante, podemos dizer que há um modo empírico de Deus se fazer conhecido, que é o próprio mundo por Ele criado (senão, quem conheceria para aquém das esferas da pura espiritualidade ou do colmos angelicais?). Por igual, há um modo jurídico de o povo se fazer conhecido, que é a Constituição por ele criada, início lógico de todo o Direito Positivo.
Para fundar o universo, Deus faz o que é próprio da potência em que Ele consiste: impõe a Si mesmo as próprias condições de “trabalho” (evidente que o vocábulo trabalho é usado por analogia com as empreitadas humanas de edificação de algo a partir de um imaginário ponto zero). Para fundar o Direito, o povo,na mesma pegada, se autoimpõe as coordenadas de atuação legiferante. É assim que se movimenta ou se materializa a potência, que não precisa mais do que sua própria realidade para instaurar as relações que pretender. (Teoria da Constituição, Carlos Ayres Britto).
Mas quem é o povo?
Quem desesperadamente clama por justiça, ou por saúde? Ou somente aquele que reclama por sua dignidade?
Seriam ambos um só povo, cuja autonomia foi mitigada e dominada para que ele não tivesse chance de eleger o seu próprio deus? Consultórios, hospitais, gabinetes, assembléias e tribunais se assemelham até nisso?
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O povo é uma espécie de “paciente político”, as regras da medicina e do direito dominam a sua ordem, em seu corpo social, exatamente como o poder médico se lança sobre o individuo, corpos (social e individual) de uma mesma identidade, sujeitos que não podem se deixar fazer objetos, pois o sangue da democracia corre nas veias da autonomia. (Escritos de Psicologia Política, Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro, Texto ainda não publicado).
A idéia fundamental de democracia é a seguinte: determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político. Todas as formas da decisão representativa, arredam a imediatidade. Não há nenhuma razão democrática para despedir-se simultaneamente de um possível conceito mais abrangente de povo: do da totalidade dos atingidos pela norma: one man one vote. Tudo o que se afasta disso necessita de especial fundamentação em um Estado que se justifica como “demo”cracia. (Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia, Friedrich Müller)
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IV O COMPORTAMENTO GLOBAL DA MULTIDÃO DE MOLÉCULAS DO CORPO MICROFÍSICO
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O poder oculto é um problema que sempre me atormentou. E, no entanto, é um problema que a literatura acadêmica subestima. Chamei a atenção de meus amigos cientistas políticos sobre isso inúmeras vezes. O poder tende a esconder-se. O poder é tanto mais potente quanto menos se deixa ver. Deus é tanto mais potente quanto mais invisível for. É aquele que vê e não é visto; que vê a todos e ninguém o vê. Pense no Panopticon, de Bentaham, ou seja, na idéia de um edifício no qual o guarda que está no centro tudo via e não podia ser visto. Esta idéia de poder ver ser visto é certamente o emblema do poder de Deus.
(...)
A tendência do poder para imitar a potência de Deus sempre existiu. Pense no que é a democracia em relação à autocracia. A democracia é a tentativa de tornar o poder visível a todos; é, ou deveria ser, “poder em público”, ou seja, aquela forma de governo em que a esfera do poder invisível está reduzida ao mínimo. Como poderiam ser eleitas pessoas que não se deixam ver? A autocracia não pode dispensar o “gabinete secreto”, que é exatamente o lugar no qual o poder é o menos visível possível. As decisões devem ser tomadas em segredo, porque o povo não deve conhecer, não deve saber.
(...)
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As decisões de poder devem ser secretas, ainda que o poder, para ser poder, deva de algum modo manifestar-se. Pense nas grandes festas, nos arcos do triunfo, na pompa ostentada, na carruagem real que passa em meio à multidão. O poder se esconde e ao mesmo tempo se manifesta para tentar atrair a atenção, para seduzir o povo com a pompa e o fausto. È invisível, mas tem necessidade de se fazer ver. Com o segredo, o poder busca inculcar temor, com a pompa e o fausto, o poder tenta seduzir. (Direito e Deveres na República: os grandes temas da política e da cidadania, Norberto Bobbio e Maurizio Viroli).
Kant afirma que o Iluminismo consiste na saída do homem do estado de menoridade que ele deve imputar a si mesmo e que na base do Iluminismo a mais simples de todas as liberdades, a liberdade de fazer uso público da própria razão: “O público uso da própria razão dever ser livre (...), e apenas ele pode realizar o Iluminismo entre os homens (Kant). Conduzindo às lógicas conseqüências essa afirmação, descobre-se que são derrubada as interdições tradicionais impostas como proteção dos arcana imperii . Para o homem que saiu da menoridade, o poder não tem, não deve mais ter, segredos. Para que o homem que chegou à maioridade possa fazer uso público da própria razão é necessário que ele tenha um conhecimento pleno das questões de Estado. Para que ele possa ter pleno conhecimento das questões de Estado, é necessário que o poder aja em público. Cai por terra uma das razões do segredo de Estado: a ignorância do vulgo, que fazia Tasso dizer a Torrismondo: “Os segredos dos reis ao néscio vulgo bem confiados não estão”. Cabe a Kant o mérito de ter exposto
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com máxima clareza o problema da publicidade do poder e de ter-lhe dado uma justificação ética. (Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos, Norberto Bobbio).
EPÍLOGO PROVISÓRIO
A escola italiana de Ciência Política com as obras de V. Pareto, G. Mosa, e R. Michels trazem para a ribalta da Ciência Política a pertinência
das
explicações
psicológicas
e
psicossociais.
O
organicismo e o darwinismo social, com nomes como H. Spencer, P. Lilienfield, A. Schaffle, R. Worns, J. Novicov e ainda I. Gumplowicz, G. Ratzeenhofer, A.W Small, E. Oppennheimeir, bem como a escola antrorracial com J. A. Ammom e V. de Lapouge, de entre outros, troxeram a implicação biopssicológica pra o domínio da explicação política. Houve nestes primórdios excesso de confiança e óbvios entorse nas aparências e nas <demonstrações> pretendidas, contudo a relção entre o mundo psíquico estava lançada.
A Etologia, de êxito grademente tributário às obras do Dr. Desmond Morris, reabilita esta relação pelo prisma do comparativismo comportamental de espécies distintas, chamando do limbo a relação entre a política e as vidas biológica e psicológica para o qual havia sido postergada, na II Guerra Mundial, pela derrota do nazismo que servira criminosamente daquela orientação acadêmica.
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As obras sobre Psicologia Social de Gabriel Tarde, sobre as leis das imitação, de F. E. Giddings, de A. W. Smal, de E. A. Ross e da grande maioria dos sociólogos norte-americanos consagraram este estudo, unindo de sobremaneira as investigações da psicologia colectiva e da sociologia.
A célebre obra de Gustave Lê Bom, A Psicologia das Multidões, foi livro de cabeceira de Lenine, Trotski, Staline, Hitler, Mussolini, Salzar, Mão e De Gaulle, tornando-se um clássico de referência. Da Psicologia Colectiva (v.g. Pierre Manoni) passa-se à Psicologia Política que se ocupa do estudo em áreas relativas a mecanismos de governação, comunicação de massas, marketing político e eleitoral, liderança política, religião e política, contracultura e violência política, dinâmica de grupos, entre tantos mais.
A obra psicoanalítica de Sigmund Freud criou uma verdadeira escola de Psicologia (com nomes como A. Adler, C.G. Jung, M. Klein, E. Fromm, H.S. Sulivam, D.W Winnicott) gerando, entre outras novidades, os estudos de psico-história de reconstrução do <eu interno> de grandes personagens políticas da humanidade, de forma a expor, a par de sua biografia evidente, a respectiva biografia latente.
Não tendo ainda conquistado, em absoluto, lugar ao sol no elenco das ciências políticas, a Psicologia Política para lá se encaminha a passos acelerados, até porque a transformação do marketing político numa disciplina vital para a continuidade das democracias liberais do século XXI assim o obriga.
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A persistência das suas análises e síntese fará com que, a breve trecho, se transforme num domínio fundamental de explicação para o estudo do comportamento político e, portanto, das ideologias, quer ao nível individual, quer colectivo. (Ciência Política: Estudo da Ordem e da Subversão, Antonio de Sousa Lara).
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Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro Mestre em Direito Constitucional/UFC. Especialista em Saúde Mental/UECE. Coordenador Geral da Escola Popular de Formação em Direito, Psicologia, Sociologia e Política. gustavohap@uol.com.br
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