DO EXATO DIA EM QUE O HOMEM MAIS INTELIGENTE DO MUNDO ENCONTROU O PROCURADOR ...

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DO ESPANTOSO DESTINO DA INDIAZINHA RUDÁ E DE COMO DEUS PARTIU A MAIOR PEDRA DO MUNDO NA NOITE QUE NUNCA CHEGOU AO FIM

GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008


À

saudade

de

guerreiras

e

guerreiros da grande e antiga tribo onde Deus me chorou e que seguiram partindo muitas pedras em

seus

caminhos,

nomeadamente

a

Pinheiro

Alves,

Santina,

Edisse,

Cláudia,

Francisco Deleglace, Rita,

Daniele,

Luís, Juliano,

Carolina, Fátima, Juan, Mônica, Carolina,

Francisco,

Edna,

Juliana, Cristina, Felipe, Salete, Narlon, Lívia, André, Arthur, Lúcia, James, Marta, Zé Ricardo, Juno, Ludmila,

João,

Jacinta,

Pery,

Maria

Clara,

Daniel e Luciana. Aos

indiozinhos

Hannah, João Pedro e Letícia.

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A pintura que ilustra a capa chama-se A Noite Estrelada, de Vincent van Gogh. Antes do nascimento dos deuses, havia somente o caos, um vazio primordial e infinito, que, repleto de matéria escura, teimava em sair de si e humanizar-se, como no mito da criação da mulher, quando um esboço inacabado teve que ser primeiramente traçado, para que o desenho da perfeição e da formosura pudesse tomar forma. Na verdade, é assim que os deuses nascem, da imperfeição, precisando do humano para alcançar a divindade que nunca existiu sem a dor e a saudade. Reza a lenda das pedras partidas, no entanto, que um deus nasceu diretamente do nada por amor e piedade a uma indiazinha de uma tribo sem nome, que tinha morada lá pras bandas do Nó da Caipora, que amarrou num mesmo pedaço de terra o mar, a serra e o uma grande parte do sertão, para proteger uma espécie de gente que tinha por lá, e que ela não trocava nem por todo o fumo do mundo. Quem me contou essa história foi um preto velho que incorporei quando minha alma saiu de mim à procura dos amores que perdi. Foi tão intensa essa incorporação que ainda hoje esse caboclo me persegue, dizendo coisas de que nunca ouvi falar nessa vida, mas que aconteceram de verdade. Muito bem. Na terra do Nó da Caipora tinha um pajé índio preto muito respeitado nas tribos da região. Ele contatava permanentemente 3


com os deuses, que estavam contentes com a sua alma, razão por que lhe permitiam realizar verdadeiros prodígios em seu ofício de cura e orientação da comunidade. Dizem que esse curandeiro realizou feitos extraordinários, mesmo depois de morto, a pedido de rezadeiras que acreditavam na imortalidade de seus poderes. Uma vez encontrei a deusa Themis, num Olimpo itinerante, a testemunhar a cura que o piaga preto havia lhe produzido, quando os demais pajés da região não tiveram sequer coragem de examinar as chagas malditas do mal-de-sete-dias, que tinha tomado o corpo e alma da Diva. Relatou-me a deusa helena que ficou fascinada com o ineditismo do diagnóstico e a pajelança do remédio, pois o velho índio lhe assegurou que o mal-de-sete-dias era um fenômeno natural, que acontecia com os estrangeiros que chegam à Terra Brasilis. De alguma forma a nossa terra é tão cativante que a simples possibilidade de ir embora um dia causa uma sensação inventada pelos nativos, chamada saudade, e esse mal nada mais é do que o tempo de que o corpo

estranho

precisa

para

incorporar

o

amor

tupiniquim.

Recomendou, então, sombra, água fresca, praia, serra, sertão e bejio, muito beijo. De

outra

feita,

ouvi

pessoalmente

do

próprio

Júpiter

o

impressionante relato de como uma fórmula do bruxo preto tinha curado

as

hemorróidas

congestionando

a

de

um

buraco

passagem

das

estrelas

negro e

que

estava

atrapalhando

a 4


administração dos céus. Foi um alívio tão grande na área suburbana do monte Olimpo, que a fábrica de milagres de Zeus passou a produzir em larga escala a fórmula do pajé, para que nunca mais faltassem ao mundo ervas milagrosas que curam buracos negros. Naquela época, a interdição da sexualidade não existia para as entidades com acesso aos deuses; tampouco a catequese repressora tinha chegado à região, sendo caminho natural dos pajés o desposamento com alguma mulher da tribo ou das cercanias. Numa vila muito velha, aonde a cidade e as igrejas chegariam primeiro, o benzilhão encontrou a mulher perfeita para desposar. Era filha do povo da Cajazinha, daquela fruta que adoça o tempo na ausência de todos. A esposa tinha uma postura admirável, mas tinha um marca de nascença, que só lhe permitia parir seres de outro mundo, dessas entidades fantásticas que povoam a mitologia dos picos à ladeira, o que lhe causava temor. O pajé apaixonado disse que ela não se preocupasse, pois conseguiria com os deuses a reversão dessa marca, para que o casal pudesse ter uma descendência humana, sem perigo de nascer nenhum ser folclórico da união. E, então, o velho índio invocou os deuses em benefício próprio, pela primeira vez, o que representou um grande risco para o seu destino e de seus descentes, já que seus poderes não poderiam ser utilizados para a cura de seus pecados. 5


Os deuses se irritaram com o pajé. Vaticinaram que os filhos do casal seriam encantados em seus próprios destinos, fundando a primeira diáspora índia de todos os tempos, a ser superada apenas pela dispersão dos hebreus, onde restará escrito: “serás disperso por todos os reinos da terra". Preocupado com o vatícinio dos deuses, o velho índio tratou de elocubrar uma pajelança que pudesse quebrar o encantamento e a dispersão de sua cria, fazendo com que sua esposa bebesse uma teriaga composta de ervas benditas sob a luz de mil Tupãs, o que resultou num efeito bastante surpreendente. De fato, a mulher ficou imensamente grávida, parecendo que carregava na barriga o próprio mundo, o que preocupou toda a tribo, pois a parteira jamais houvera visto tantos olhares por um só umbigo. Naquele tempo, os indiozinhos nasciam todos pelos umbigos de suas mães, pois se acreditava que essa região do corpo tinha sido tocada pelo dedo de Deus, numa espécie de fecundação mítica. O parto foi um sucesso. Todos ficaram, contudo, incrivelmente admirados com o que aconteceu. Parece que, de alguma forma misteriosa, a teriaga do pajé fez efeito e a sua esposa teve sete filhos, um número cabalístico, todos de uma vez, ao mesmo tempo, em duas placentas separadas.

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Na primeira placenta, vieram seis indiazinhas, e, na outra, sozinho, um pequeno varão. Fato também curioso foi quando uma das filhas largou a sua placenta e foi se acompanhar do irmão, como se soubesse que tinham destino parecido. O velho pajé, simplesmente, ficou tocado diante da tribo inteira que dele tinha nascido e ficou preocupado, sem entender se esse fenômeno acontecia por causa da ira divina ou em virtude de ter tantado quebrar sozinho o encanto. O fato é que, por longo período, todos viveram harmoniosamente na terra da chuva, do sol e do amor, sem que o velho piaga tivesse a coragem de revelar o seu segredo da molestação aos deuses e suas terríveis consequências; ainda mais porque, cheio de si, ele achava que tinha encontrado a cura para os males milenares das diásporas. Aí, numa noite expressionista encantada, retratada na capa deste livreto, não se sabe exatamente por que, Jaci, a deusa da lua, protetora dos amantes e da reprodução, resolveu fazer cumprir o vaticínio dos deuses e se colocou atrás das montanhas, esperando as cunhantãs-moças filhas do pajé negro, que sempre vinham cantar e tocar à beira do rio Sorôrô, que nascia de baixo pra cima da serra dos Patos e desembocava justamente no meio dos Rios negro e Solimões, onde os peixes transformaram a Iara em sereia. Foi inevitável o encontro de Jaci com as filhas do pajé e, ao som de lindas canções milenares, uma a uma, as pequenas foram 7


perdendo o sangue e a carne, virando uma linda constelação de estrelas coloridas. Contam que um delas se pegou num tronco de mandacaru amarelo cheio de espinhos para não virar estrela do céu, o que obrigou Jaci a transformá-la numa estrela das águas, única e perfeita, cujas flores perfumadas e brancas só despontam à noite, ficando rosadas ao nascer do sol. Chamam-na, Vitória-Régia. O velho pajé negro percebeu que cinco de suas filhas tinham ido embora para virar estrela e em todas as noites de sua vida, junto com sua mulher, olhava para o céu na esperança de vê-las sorrir, mas elas estavam tão distantes umas das outras que uma noite só não era suficiente para matar a saudade. Intrigou o velho índio - e isso ele tributava também ao efeito de sua teriaga -, o fato de que uma de suas filhas, Vitória-Régia, tenha ficado na Terra, embora encantada dentro d’água. Lembrou-se, então, que ela havia mudado de placenta justamente para ficar com o mano varão, que até agora sobreviveu aos destinos da mãe, que o levariam a virar folclore, e à sina do pai, o qual havia produzido uma diáspora no vaticínio dos deuses. O homem então constatou que em virtude de suas atitudes para com os deuses suas filhas não só haviam se transformado em mito, como estavam irremedialvente separadas, uma delas nos rios, só lhe restando o índio homem, que, por força do remédio tomado antes do parto, era o único que teria sina de humano, que seria mortal. De alguma forma, a teriaga penetrou apenas uma placenta, livrando da 8


maldição da diáspora somente o varão e a menininha que tinha mudado de placenta, pois também ela se recusou a partir. Logo se vê que a descendência mitológica do velho índio é realmente excepcional, mas ele só a perpetuaria por intermédio de seu varão único, que deveria contar aos filhos de seus filhos os acontecimentos inacreditáveis que se sucederam naquela região. E assim foi feito. Certa feita, o velho pajé num dia de caça perto da lagoa do Bruziguim encontrou-se com Guaraci, criador de todos os seres vivos, e, de súbito, virou lenda, dessas que desaparece e inspira a gente a continuar procurando nas estrelas o caminho de casa. Dizem que a esposa do piaga e seu único filho macho já tem pra lá de seiscentos anos contando essa história, só porque não podem morrer, enquanto a noite não encontrar o dia e a lenda não devolver o espírito de inocência que a vida nos tirou. Uma das indiazinhas tataranetas do velho pajé se encantou com a história de seus antepassados e foi conversar com o pai sobre seu desejo de fazer as estrelas virarem gente de novo. O homem, encanecido em suas centenas de anos, disse que a única maneira de desencantar os astros é rogando a Deus, ou ainda às mulheres, que sabem mais do que os homens.

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A indiazinha da tribo que ainda não tinha nome, mesmo sem entender a sofisticação da ironia do pai, sentindo no peito um aperto que nunca havia sentido antes começou a chorar baixinho lágrimas de algodão e carnaúba verdes, azuis, amarelas e brancas, cantando silenciosamente: “Rudá, Rudá, Iuáka pinaé, Amaña reçaiçu... Iuáka pinaé Aiueté Cunhá Puxiuera oikó Ne manuára ce recé Quahá karuca pupé”.

Segundo a ciência de um indianista (Lindolfo Jacinto Rocha ), que escreveu os romances históricos Dispersão dos Maracaiaras (1907) e Maria Dusá (1910), o poema pode assim ser traduzido:

"Rudá, Rudá! Tu que estás preso no céu e amas a chuva... tu, preso no céu, faze que todas as mulheres estejam feias para ele! Assopra nele a lembrança de mim, nesta tarde!" E foi nesse momento exato que todos os deuses de todos os tempos viraram um só, num movimento escatológico de transformação provocado pela dor da indiazinha, que batizou todo o seu povo com o 10


nome Rudá, o deus do amor, que vive nas nuvens, cuja função é despertar a saudade dentro dos corações dos homens, das mulheres e das infinitas estrelas, que de tão atiçadas não puderam mais dormir, passando a ser noite para sempre na Terra. A indiazinha rudá se assustou com o imenso estrondo que vinha do céu, o que era Tupã virou raio, o Curupira passou a andar de frente e Abaçai, que tornava possessos os índigenas, parece que tinha tomado conta do mundo escurecido pela saudade das estrelas. De alguma forma, a pequena indígena sabia que a saudade que lhe possuía a existência tinha tocado o coração de Deus, que precisava ainda organizar o tempo de quem jamais tinha partido, à espera dos que ainda poderiam voltar e fazer nascer os que nunca podiam morrer. Foi então nesse instante que ela levantou a voz um pouco mais alto e cantou numa língua até então completamente desconhecida de todos os seres da mata. Era a língua de Deus, joanina benevidiana albuquerquina: “Neste intante de grande alegria De mil fantasias, eu venho lembrar A verdade não foi revelada, Porém a canção a vocês vai mostrar. Necessário se faz que se tenha, Atentos sentidos, muita meditação, 11


O que lhes digo alegra o espírito, Devolve a esperança, ressurge a afeição. Olhando este céu tão lindo que existe Tendo a saudade a pulsar no coração Revendo estas belezas que resistem Chorar de alegria verter de emoção. Terra tão grande de amor tão sincero Terra do sol sereno sempre a brilhar No céu o sonho real de uma estrelinha A lua tão meiga ofertando o luar. Itapipoca sem você eu não vivo Não esqueço as belezas que nascem em ti Itapipoca minha terra adorada És tu minha amada Tu és meu viver. Palmeiras belas balançando ao vento Sertão agreste chovendo faz chorar Um grande torrão de areia rodeia As águas azuis radiantes do mar No infinito a esperança divina Num lindo céu a estrela d'Alva a brilhar Agradecendo majestosas montanhas Belezas a um deus que se deu, que se dá‫”٭‬. ‫٭‬

Canção de Itapipoca, de João Amaury Benevides Albuquerque.

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Deus ouvi o canto da indiazinha rudá e, pela primeira vez em sua existência una, sentiu saudade do caos, sua velha morada antes do nascimento dos deuses, e uma de suas lágrimas escorreu das nuvens, partindo no meio para sempre a maior pedra do mundo, para ninguém jamais esquecer de voltar para casa. Itapipoca! Itapipoca! Gritou toda a aldeia, quando se deparou com aquela enorme pedra lascada por uma lágrima de Deus. Foi o primeiro ato dEle no novo mundo. Fundou uma civilização e arrebentou a saudade em banda, numa pedra que ainda hoje está lá, no mesmo Nó da Caipora, que juntou um pedaço do céu, da terra e do mar na alma de quem escreveu.

FIM

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