DO FORRÓ AO RÉQUIEM DE MOZART

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DO FORRÓ PARA O RÉQUIEM DE MOZART GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008

DO FORRÓ AO RÉQUIEM DE MOZART GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008


Les Amoureux du Parque Güell, de Joan Miró.

Aos

meus

Francisco

avós, e

Geraldo,

Elvira,

Deleglace,

por

vivenciarem o milagre que uma vida simples pode fazer nas gerações seguintes.

Ao maior contador de histórias da Mombaça e do mundo inteiro, José Arísio Lopes da Costa. A Aline Mel, por levar a alegria do forró até para os velórios.

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Quando saí de Itapipoca para montar o meu consultório de assuntos hipnóticos, que durante muito tempo inspirou gerações de zorates, alienistas e odontólogos de toda a região, levava comigo uma carta antiga que me tinha sido dirigida por uma mãe aflita, cujo sétimo filho teria sido salvo por uma intervenção mediúnica do Capitão Pinheiro, um homem que tinha sido meu avô, justamente numa vida passada há quatro anos. Na carta surrada pelo tempo dos milagres que não tinham sido registrados, a boa senhora narrava que seu sétimo filho, nascido no Distrito de Salzburg, bem ali, quase na Miraíma, tinha colocado um caroço de azeitona gigante da Boa Vista na canaleta da narina esquerda, impedindo a respiração ofegante típica das testemunhas das presepadas de Deus na vida dos homens. Segundo o fidedigno registro missivístico, do qual ainda sou fiel depositário até hoje, a pobre mãe, desesperada com aquele fenômeno, sim, pois o menino ofegante botava tanta força para respirar de um lado só que soprou a Sinfonia de Paris inteira, numa orquestração que incluía duas flautas, dois oboés, duas clarinetas, dois fagotes, duas trompas, dois trompetes, dois tímpanos, cordas e o zurro do jumento da família, que tinha que entrar na história para salvar um irmão do Padre Antônio Vieira, que tinha escolhido uns tais sermões numa língua que transformava burro em erudito; bastava ornejar.

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E foi justamente esse dito jumento que incorporou o espírito do velho Capitão, dando um coice na hipocrisia dos que duvidaram da mentempsicose dos egípcios, para operar o primeiro milagre do primeiro santo da gloriosa Polícia Militar do Ceará, que, além de pegar bandido, tirava caroço de nariz de menino que soprava sinfonia. Aquilo foi algo extraordinariamente excepcional, o milagre do santo de farda desentupiu a outra narina daquela figura pequena e estranha, que ao respirar com o nariz todo, bufou de uma só vez Don Giovanni, A Flauta Mágica, o Concerto No. 9 em mi bemol maior, 18 sonatas para piano, três trios para violoncelo, um Réquiem e um forró. Menina! A zoada na Itapipoca era tão grande, que até uma certa rainha da lambada apareceu querendo pechinchar um espaço para rebolar. O fato, no entanto, é que aquele milagre do velho Capitão meu avô tinha inventado, além da cura espírito-zoo-ecológica, o verdadeiro conceito de “fenômeno”, que nas lições catedráticas de um antigo professor da Faculdade de Direito, até então, nada mais era do que a possibilidade de um jumento sorrir e dar tchau. Depois desse acontecimento realista em Itapipoca, “fenômeno” passou a ser entendido também como a possibilidade de um homem de bem fazer milagres musicais na vida de uma cidade, mesmo que ela tenha adormecido bem na hora, como as crianças fazem para não ouvir as reclamações dos pais. 4


Dizem que esse menino do milagre de meu avô voltou a se engasgar com o nome de sua composição natalícia, algo, não se sabe ao certo, parecido com Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart, uma sonata de mil furacões que antes de desengasgar dessa para melhor fez questão de registrar na dita carta o segredo de sua esquisitice. Ainda hoje leio com freqüência as palavras daquele menino da flauta e do jumento, que, de vez em quando, saem do papel para a alma dos outros, só para esclarecer que a música que sai pelo nariz dos homens também pode sair pela cloaca negra dos buracos da solidariedade e da vida abnegada. Segredou-me o menino abençoado: ‘Quer saber como eu componho? Posso dizer-lhe apenas isto: quando me sinto bem disposto, seja na carruagem quando viajo, seja de noite quando durmo, ocorrem-me idéias aos jorros, soberbamente. Como e donde, não sei. As que me agradam, guardo-as como se tivessem sido trazidas por outras pessoas, retenho-as bem na memória e, uma após a outra, delas tomo a parte necessária, para fazer um pastel segundo as regras do contraponto, da harmonia, dos instrumentos, etc. Então, em profundo sossego, sinto aquilo crescer, crescer para a claridade de tal forma que a obra mesmo extensa se completa na minha cabeça e posso abrangê-la de um só relance, como um belo retrato ou uma bela mulher... Quando chego neste 5


ponto, nada mais esqueço, porque boa memória é o maior dom que Deus me deu’ (Mozart). E de tanto ler essa velha carta, perdi o concurso para Prefeito de Itapipoca, pois os meus assuntos hipnóticos tinham levado minha saúde à impossibilidade do transe, e tudo o que me restava agora era essa vida de menestrel de coisas absurdas, exatamente como aquele forró pequeno que saiu do nariz do menino do jumento direto para o réquiem que compus nas exéquias de minha depressão, enterrada alegremente ao som desse meu Forró-Réquiem, que retirou um Mozart de alegrias rústicas do meio da música que anima até os velórios daqueles que nunca morreram. Na vida e na morte, por favor, cantem para mim, o meu Forró da alegria, no Réquiem da tristeza, que morreu antes de mim:

“Tu que anda pelo mundo (Sabiá) Tu que tanto já voou (Sabiá) Tu que fala aos passarinhos (Sabiá) Alivia minha dor (Sabiá) Tem pena d'eu (Sabiá) Diz por favor (Sabiá) Tu que tanto anda no mundo (Sabiá) Onde anda o meu amor..,”. (Luiz Gonzaga e Zé Dantas). 6


que num trem de saudade, passou apitando a minha infância inteira e hoje se esqueceu de amanhecer comigo: “o trem... o trem... vem chegando, vem chegando o trem.., chega vem, chega vem, chega vem cheio de gente vem... não sabem de onde vem, não sabem para onde vão... as aves de arribação quando há seca no sertão, sem rumo, sem sul, sem norte seguindo o rumo da sorte, pra uns a fortuna a fama Pra outros a fome e a morte. Pare onde o trem parar, fique onde o trem ficar... Muita gente dessa gente eu sei que ainda vai voltar. Eu sei que esse trem vai e vem... Eu sei que esse trem vai e vem... Eu sei que esse trem vai e vem e muita gente também. Eu sei que esse trem vai e vem... Eu sei que esse trem vai e vem... Espero que ele um dia me devolva meu bem. (O Trem, Francisco Soares Pinheiro, papai).

Como se fosse possível devolver-se aos palcos dos teatros em que encenei só para me mostrar para ti, para meu Geraldo Tamandaré, minha Elvira “coisica” coração de ouro, minha Belinha aperreada, assim como minha filha hoje se mostra para mim, me 7


dando a chance de poder me mostrar novamente para Deus, no círculo de sete pontos da vida que vai prosseguir: “Abri a porta Apareci A mais bonita Sorriu pra mim Naquele instante Me convenci O bom da vida Vai prosseguir Vai prosseguir Vai dar pra lá do céu azul Onde eu não sei Lá onde a lei Seja o amor E usufruir do bem, do bom e do melhor Seja comum Pra qualquer um Seja quem for Abri a porta Apareci Isso é a vida É a vida, sim”. (Abri a Porta, Dominguinhos e Gilberto Gil) 8


Vida onde ou se ama ou se seca na lagoa encantada das meninas que a gente se vê obrigado a querer bem para o resto da vida, com ou sem tampa de pedra: “Voce bangunçou meu coraçao Tirou ele do peito E sacudiu pela calçada Pisou em cima dele E esmagou minha razão Eu já não era muito E agora não sou mais nada. Você fez de mim o que queria Tirou minha alegria E desmanchou o meu viver Fez um buraco Dentro da minha saudade E uma tampa de pedra P'reu nunca mais esquecer Ô de casa! ô de fora! Uma esmolinha pr'esse pobre Bem querer Pode ser um beijo Pode ser aquela rosa Eu quero o cheiro Do teu corpo no meu ser 9


Não se negue Não seja tão melindrosa Tenha piedade O meu amor é só você”. (Tampa de Pedra, Santana, O Cantador, Maciel Melo). Escute bem, é só você, exatamente aquela que se encantou com as letras do passarinho voador: “Queria lha mandar um beijo; Mas não achava um portador; Pra lhe falar do meu desejo; Pra lhe dizer como eu estou; Me comportei como criança; Que no brinquedo tropeçou; Por isso estou aqui pedindo pra você que esta partindo passarinho voador; Nem que seja de passagem entregue a minha mensagem faz pra mim esse favor; Nem que seja de passagem entregue a minha mensagem faz pra mim esse favor; Leva no bico uma canção que tenha a mesma cor e cheiro dela; Aproveitando pergunta pra ela meu Deus como é que fica o nosso amor; Do fundo do meu coração não vivo sem a luz dos olhos dela; Explica tudo direitinho a ela por Deus, meu mensageiro beija-flor. Explica tudo direitinho a ela por Deus, meu mensageiro 10


beija-flor. Explica tudo direitinho a ela por Deus, meu mensageiro beija-flor. Ganhei uma canção branca; Como um coração teu; Mas só que não sei cantar; Nem a ti posso chegar; Agora já nesse instante; Eu pedi a um passarinho; Que sabe cantar bastante; Para que leve a cantiga em forma de um presente; E sutilmente lhe diga; Traduza a minha intenção; Fazendo assim a canção; Penetrar em teu ouvido; E tocar na tua mente; Contagiando a tua alma; E tu com serena calma; Receba o recado meu”. (Mensageiro Beija-flor, Santana, Flávio José). que é só um para quem primeiro desapareceu e me botou no tempo da saudade das fogueiras que eu ainda ia pular: “E bote tempo que eu não sei dormir E bote tempo que eu não sei sonhar 11


E bote tempo que eu não sei sorrir E bote tempo que eu só sei chorar E bote tempo que eu não tenho aonde ir E bote tempo que eu não sei pra onde voltar E bote tempo que eu só sei o que é sofrer E bote tempo nisso que ninguém me quer Quem achar que exagero Nunca viu o desespero De quem esteve o tempo inteiro Mergulhado na paixão Quem disser que é brincadeira Desconhece o que é o amor Nunca entrou numa fogueira E a flecha do cupido nunca lhe acertou”. (Bote Tempo, Santana, o Cantador, Eliezer Setton). Ainda bem, pois como diria um dentista, cunhado meu por afinidade, Silva, ele próprio também meu irmão nascido de uma santa que também me pariu na alma do Chico que já é quase Pinheiro de tanto andar com os Castros, cupido é bicho muito reimoso, como toda mentira grega, que a gente tem sempre que lavar antes na cachoeira dos meninos que não sabem deixar de mentir: “Vou pro campo no campo tem flores as flores tem mel Mas a noitinha, estrelas no céu 12


No céu da boca da onça é escuro, não cometa, não cometa, não cometa furo Pimenta malagueta não é pimentão, então... Vou pro campo acampar no mato, no mato tem pato, gato e carrapato Canto de cachoeira! Dentro d'água, pedrinhas redondas Quem não sabe nadar não cai nessa onda, Que a cachoeira é funda e afunda... Não sou tanajura, mas eu crio asas... Com os vagalumes eu quero voar...voar...voar O céu estrelado hoje é minha casa... Fica mais bonito quando tem luar...luar...luar Quero acordar com os passarinhos Cantar uma canção com o sabiá (bis) Dizem que verrugas são estrelas que a gente aponta que a gente conta antes de dormir. Eu tenho contado mas não tem nascido, Isto é estória de nariz comprido Menino deixe de mentir ! Os sete anões pequeninos, sete corações de meninos De alma leve... 13


São folhas ao vento, o sorriso e o sentimento da Branca de Neve... Não sou tanajura mas eu crio asas... Com os vagalumes eu quero voar...voar...voar O céu estrelado hoje é minha casa... Fica mais bonito quando tem luar...luar...luar”. (Meninos, Santana, O Cantador); luar onde não aprendi a te esquecer, porque nunca deu tempo de deixar de amar quem resolvi tirar do coração: “Pensei demais E resolvi tirar você do coração Eu quero paz Você é só uma ilusão É perigoso viver com o teu amor Me enganei Pensando que você queria me amar Agora eu sei Você queria só me usar Pra provocar alguém do seu interior Fora de mim Faça de conta que eu não existo mais O que me fez Com uma pessoa não se faz 14


Até pensei Que não iria te esquecer Mas um alguém Voltou pra mim e me tirou da solidão Me deu o amor Que merecia o coração E essa pessoa Devolveu o meu viver Pensei demais E resolvi tirar você do coração Eu quero paz Você é só uma ilusão É perigoso viver com o teu amor Me enganei Pensando que você queria me amar Agora eu sei Você queria só me usar Pra provocar alguém do seu interior Fora de mim Faça de conta que eu não existo mais O que me fez Com uma pessoa não se faz Até pensei 15


Que não iria te esquecer Mas um alguém Voltou pra mim e me tirou da solidão Me deu o amor Que merecia o coração E essa pessoa Devolveu o meu viver Mas um alguém Voltou pra mim e me tirou da solidão Me deu o amor Que merecia o coração E essa pessoa Devolveu o meu viver”. (Fora de Mim, Banda Magníficos). Mas não se incomode, não: se você achar que quer me ver mais uma vez, é só me procurar de novo: “Se você achar que quer me ver mais uma vez, é só me procurar de novo Olhe pro seu interior, eu vou estar dentro de você A vida inteira, pode ter certeza Você está sempre presente em meus instantes Isso já não é mais paixão Está virando obsessão 16


Trago um amor no coração maior que antes Eu só quero ver o que você vai me dizer quando olhar na minha cara Fique espero, amor O tempo passa logo Ele não pára, nem espera por quem tempo quer perder Se quiser saber, ainda sinto o teu perfume e a lembrança do teu corpo até me matar de ciúme Vem depressa que eu te quero E faz um tempo que eu espero por você”. (Faz Um Tempo, Banda Magníficos, Nanado Alves/Neno). E isso é tão verdade que eu e um amigo meu, que também arranca dente com ou sem emoção, perseguimos por dez anos seguidos um cadinho do teu mel nas traduções loucas do limão que a vovó Graça tirou da laranjeira amarga que adoçou a vida da gente pra sempre: “Sentir no peito o amor surgir Quando olhei pra você eu logo senti Que o meu coração ia ser todo seu Pra sempre Meu corpo sente a falta do seu E isso é bem mais, mais forte que eu E tudo me faz lembrar de você Cada instante

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Sinto o teu perfume E a saudade entre nós Lembro o teu sorriso E o som da tua voz Nosso amor não dá pra esquecer Eu já me entreguei, já me apaixonei E tudo que sei é que meu coração Reclama”. (Pra Sempre, Lost In Love, Limão Com Mel,Batista Lima).

E reclamar não adianta mais, pois a tua presença virou a poesia da minha sublimação, já que Deus opera milagres, mas não faz mágica: "Certos dias, o vento traz o teu cheiro E eu me levanto da cama assustada Lá pelas tantas da madrugada Com um gosto amargo na boca É, aquele amargo da saudade Que perturba, tira o sono E não passa, não passa." Pára, eu não vou suportar toda essa barra Meu coração um dia desses pára Preciso te ter essa noite não me importa a hora Pra não enlouquecer. 18


Marca, aonde vou te ver, quem sabe no mesmo lugar Aonde a gente ia sempre se amar Repartindo o mesmo lençol Sentindo a luz do sol tocando a alma Será que é difícil entender? Parece mágica, essa paixão me aquece em todas as estações Não sei o que fazer Parece mágica, nascemos um pro outro A lua e o mar O sol e o amanhecer Nada conseguirá mudar As nossas vidas já foram traçadas Pra sempre eu serei a sua amada”. (Mágica, Calcinha Preta, Christian Lima/Beto Caju). Ainda bem que te ofereces, pois estou cansado de deixar de te procurar, diz que me quer, que a gente vai dar certo: “Quando te vejo chegar Fico louco pra te amar Quando olho pra você Sinto o coração bater Diz que me quer Que a gente vai dar certo... Segure na minha mão 19


Aumenta a minha paixão Quando ouço sua voz Falando sobre nós Diz que você me quer Que a gente vai dar certo... A respiração falha Coração dispara Fico triste demais Se você diz que vai Não vá, meu bem Eu fico louca... Meu coração é só teu Não duvide do meu amor Eu sou a sua amada, estou apaixonada Seu amor é meu...”. (Seu Amor É Meu, Forró Na Veia, Aline Mel). E é essa certeza que me firma na constelação dos que conheceram o brilho das estrelas antes da noite chegar, no tempo da loucura me amadurecer, para eu voltar a ser o menino sem juízo que aprendeu contigo a reinar: “Vem, menino sem juízo No calor do meu carinho vem amar também Vem beijar a minha boca E provar desse gostinho que ninguém mais tem 20


Venha chamegar comigo ao balanço da sanfona Vem dançar forró E pra onde quer que vá Não esqueça, meu amor, que você não está só Lembro das tuas loucuras quando foi embora E eu fui atrás Relevei todos os meus planos Só não tive culpa se te amei demais Só depois de tanto tempo desse sofrimento Encontrei a paz Mas você se arrependeu e reconheceu que sem mim não vive mais Estou querendo teu amor, meu bem Não quero nem saber o que eu passei O que eu sofri por você Estou querendo ter você aqui Vem, menino sem juízo, você também quer”. (Menino Sem Juízo, Mastruz Com Leite, Bete Nascimento). Dizem que humanidade entendeu a história revelada na canção que saiu do nariz do menino do milagre do velho Capitão muitos antes da tristeza querer retornar ao forró de Mozart, que não é para ser lido, mas tocado em sua representação, na expressão possível de cenas de uma cultura que todo dia enterra a tristeza numa quadra de chão batido, que fica em qualquer lugar do mundo que tenha sanfona e 21


sentimento, mas que n達o existe sem a alegria da gente, que precisa urgentemente voltar a se encontrar. FIM.

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