DIÁLOGOS ENTRE A PROPRIEDADE E A POSSE DAQUILO QUE NUNCA PODE SER ...

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DIÁLOGOS ENTRE A PROPRIEDADE E A POSSE DAQUILO QUE NUNCA PODE SER APROPRIADO OU POSSUÍDO NO INTERIOR DO FOLCLÓRICO CONTEMPORÂNEO QUE SAIU DA PEDRA DO AMOR NO ARAPARI E PASSOU EMBAIXO DAS PONTES DE PARIS SEM SE AFOGAR NAS MÁGOAS DAS CRIANÇAS PEQUENAS

GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO

2008


Às crianças pequenas que amei nas pessoas grandes que conheci.

Este é um registro do grande susto que tomei ao ver você, Hannah, chorando por incorporar, sem saber, os conceitos de propriedade e posse, como se eles realmente precisassem fazer parte de nossa natureza divina. Não

creia

nos

consensos

que

produzem supostas verdades naturais alheias às nossas impossibilidades, pois a vida também é rica no nada e no

talvez,

onde

minhas

palavras

ecoam para tentar te salvar de ti mesmo.

* A pintura First Steps, Os Primeiros Passos, 1890, de Vincent van Gogh, ilustra a capa. 2


Quando a sexta estrela de meu mundo desejado resolveu virar gente de verdade, largando os céus da impossibilidade só para acalentar a minha solidão, encontrei vestígios de mim mesmo nas cartas de um certo homem que acreditava no sorriso das crianças pequenas como forma de semear raízes no coração de quem não as pode ter em virtude de sua natureza humana.

Esse homem estranho, que perigosamente prendia elefantes dentro de jibóias de chapéu, e que desapareceu no ar exatamente como a sua criação principal, um príncipe pequeno, relatou-me numa carta não escrita em 14 de maio de 2006, a história de um Poeta que tinha nascido na Pedra do Amor, no milenar Arapari, onde nascem cidades e mitos, e se encontram as lendas de muitos corações que sofrem apenas pela disseminação do mal congênito do prolapso de válvula mitral, sempre a permitir que o passado flua de volta ao ventrículo que nunca pode deixar de ver o futuro.

Nessa hemodinâmica quase universal, segundo o relato fidedigno do escritor que tinha visto o sol se pôr quarenta e três vezes num só dia, o Poeta-Sem-Nome do Arapari era um ser metade gente metade lenda, desses que estão por aí contando histórias verdadeiras, que a maioria não consegue enxergar porque se apropriou da verdade e só possui espelhos sem luz, que afogam de vaidades tolas e transitórias os Narcisos que poderiam florir no leito do rio em que nada se repete, onde tudo flui.

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Como o nascimento de astro que vira gente vem sempre acompanhado da passagem de um cometa ou da cadência de uma estrela, foi inevitável perceber que a minha sexta cria mitológica única a se teletransportar à vida do solitário sem se perder nas constelações dos não-vistos-porém-para-sempre-amados -, tinha uma certa ligação com o Poeta-Sem-Nome-do-Arapari, razão pela qual muito me interessou a gênese desse ser folclórico, que só conseguiu nascer em inteireza quando partejado pelo contemporâneo.

No alto da Pedra do Amor, no distrito do Arapari, se encontravam dois jovens apaixonados. O rapaz se chamava Cristiano Varela, filho de uma família nobre da teledramaturgia brasileira, e a moça, cujo nome ninguém sabe, era filha de um latifundiário, que, ao saber do romance, mandou que a filha se afastasse do homem e do lugar.

Como o conceito de propriedade foi primeiro gestado no interior do patriarcalismo, para enganar aos tolos que preferiram nele acreditar a enfrentar a arrogância dos néscios que até hoje governam a titularidade do que não pode ser tido ou possuído, o pai da jovem sem nome enquadrou-a, mandando seus capangas capturarem Cristiano Varela, colocando-o amarrado dentro do tronco de um ipê-roxo, onde seu corpo foi comprimido lentamente, em virtude da desidratação da árvore, que sempre era a primeira a florir no ano, incorporando-se, solitário, à beira de um riacho que ficava atrás da Casa da Dona Polônia, à floresta das desilusões dos que julgaram um dia possuir os amores dos outros.

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A

transformação

trágica

do

jovem

Varela

em

Tabebuia

avellanedae, ou Homo sapiens, não se sabe ao certo, fez com que a criança pequena que reinava dentro da moça sem nome subisse até o alto da Pedra do Amor e chorasse a Deus para que, a partir de então, todo casal que, sentado naquela pedra, desse um beijo de amor, pudesse ter a grande felicidade com a qual ela sempre sonhou, mas não conseguiu alcançar.

E, como a poesia daquele instante se espalhou por todo o mundo conhecido, um louco francês, que tinha desposado a loucura pela quebra das juras que só se emendam em outra vida, saiu dos olhos de Esmeralda encravados na corcunda das gárgulas da catedral de Notre-Dame para debaixo de todas as pontes de Paris, beijando todas as mulheres que por ali passavam,

emprenhando-as de toda

felicidade que a moça sem nome desejou um dia, fazendo os franceses acreditarem até hoje que ali tinham encontrado o amor.

Segundo a ciência e o talento dos anormais - que nunca, em época nenhuma, serviram ao despotismo daqueles que loucamente se acreditam donos ou possuidores de alguém ou de alguma coisa, e que parecem ter nascido só para satisfazer a grande necessidade que tinham de si mesmos - para saber uma verdade qualquer a respeito de si próprio, é absolutamente necessário passar por debaixo das pontes e pelo alto das pedras do amor do outro.

Firme nessa ciência, e na poesia dos amores eternos que só se concretizam na profusão dos beijos que ainda vão ser dados embaixo 5


das pontes que ligam o tempo em infinita expansão, o Poeta-SemNome-do-Arapari nasceu de um longo beijo entre o louco francês e uma transeunte Sem Nome (daí o sobrenome do Poeta), que passou desavidamente pelas juras de amor da sandice de quem acredita que um muiraquitã pode mudar o mundo, ou que uma aliança com Deus pode unir quem é essencialmente livre para chorar.

O Poeta-Sem-Nome-do-Arapari (e de Paris também), no entanto, nasceu solitário, porque “uma voz não pode levar a língua e os lábios que lhe deram asas. Deve buscar o éter sozinha” (Khalil Gibran). Sua solidão, entretanto, estava causando incômodos aos posseiros da felicidade, que queriam registrar em cartório a sensação de se apropriar do outro, como se a única averbação admitida nesse tabelionato não fosse a da imprecisão e a da transitoriedade, onde é recomendável dar “vossos corações, mas não para que o outro os guarde, pois apenas a mão da vida pode conter vossos corações” (Khalil Gibran), que podem ficar juntos, “mas não juntos demais, pois os pilares do templo ficam separados” (Khalil Gibran).

Pois os posseiros da felicidade, alegres com a ignorância que a todos salva, se fantasiaram secretamente de Pierrot, no centro da Commedia dell'Arte de nossas vidas, só para roubar o coração da Colombina que dormiu no alto da Pedra do Amor, esperando um beijo do Arlequim, que, entretanto, ainda andava entretido roubando os pirilutos que podiam fazer renascer as crianças pequenas que um dia tinham povoado os espíritos daqueles que se julgam autoridades em alguma coisa, ou, o que é pior, em “alguém coisa”. 6


Como "ser homem é tender a ser Deus; ou, se preferirmos, o homem é fundamentalmente o desejo de ser Deus”( Jean-Paul Sartre), sendo que “todas as ocupações dos homens tendem à posse de alguma coisa; e eles não têm nem título para a possuir justamente nem força para a possuir com segurança (Blaise Pascal), o Poeta-Sem Nome-do-Arapari chegou à óbvia conclusão de que o desejo de ser Deus, o proprietário do mundo, de quem seríamos herdeiros, não passava de um sofrimento típico do ser humano, que o fazia uma eterna criança pequena, mimada e ignara, pois parecia ser certo, nesse drama da estupidez humana, que as coisas só podem ser nossas quando as possuímos, sendo loucura o dar-sem-receber, o ser-para-não-ter, o não-possuir-nem-mesmo-a-si.

E em homenagem ao profundo desejo humano de se apropriar e possuir a tudo e a todos, o Poeta-Sem-Nome-do-Arapari incorporou outro Poeta famoso do norte do Líbano e soltou seu espírito único na propriedade da dor alheia, assim como Deus na verdade se manifesta, sem nunca aparecer para reclamar a propriedade do que jamais poderá ser seu.

E proclamou o Poeta:

"Teus filhos não são teus filhos... São os filhos e as filhas do desejo da vida por si mesma. Eles vieram através de ti, mas não de ti, e a despeito de estarem contigo eles não te pertencem.

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Tu podes dar-lhes teu amor, mas não teus pensamentos, pois eles têm seus próprios pensamentos. Tu podes hospedar seus corpos, mas não suas almas, pois suas almas habitam a casa do amanhã, que tu não podes visitar, mesmo em teus sonhos. Tu podes empenhar-te para seres como eles, mas não tentes fazê-los serem como tu, pois a vida não caminha para trás, nem coabita com o Ontem. Tu és o arco do qual tuas crianças, como flechas vivas, são impulsionadas. Arqueiro, vede a marca sobre a trajetória do Infinito, a Ele te dobra com Seu Poder para que tuas flechas sigam velozes e para longe. Deixes que a flexão na mão do arqueiro seja para o contentamento e a felicidade; pois assim como Ele ama a flecha que voa, Ele ama também o arco que seja firme"‫٭‬.

E o Poeta-Sem-Nome-do-Arapari, pela primeira vez em sua existência mítica, compreendeu que tinha que seguir chorando no alto da Pedra do Amor, para que Paris continuasse se acreditando a Cidade-Luz, e a felicidade pudesse ser encontrada na tragédia humana de sempre só amar sem lenço nem documento, divinamente, como no canto dos segredos:

“Eu procuro um amor Que ainda não encontrei Diferente de todos que amei...

‫٭‬

Texto de Gibran Khalil Gibran, in “O Profeta”.

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Nos seus olhos quero descobrir Uma razão para viver E as feridas dessa vida Eu quero esquecer...

Pode ser que eu a encontre Numa fila de cinema Numa esquina Ou numa mesa de bar...

Procuro um amor Que seja bom prá mim Vou procurar Eu vou até o fim...

E eu vou tratá-la bem Prá que ela não tenha medo Quando começar a conhecer Os meus segredos...

Hum! Hum! Huuuum!...

Eu procuro um amor Uma razão para viver E as feridas dessa vida Eu quero esquecer...

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Pode ser que eu gagueje Sem saber o que falar Mas eu disfarço E não saio sem ela de lá...

Procuro um amor Que seja bom prá mim Vou procurar Eu vou até o fim...

E eu vou tratá-la bem Prá que ela não tenha medo Quando começar a conhecer Os meus segredos...

Hum! Hum! Huuuum!... Hum! Hum! Huuuum!...

Procuro um amor Que seja bom prá mim Vou procurar Eu vou até o fim...

Eu procuro um amor Que seja bom prá mim Vou procurar

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Eu vou até o fim...”‫٭‬

E como o fim é o apelido do lugar na alma aonde ninguém nunca pode ir sem morrer com um pouco de antecedência, quando o PoetaSem-Nome-do-Arapari começou a conhecer os meus segredos, a minha pequena sexta estrela ressuscitou-me numa encantada poesia milenar, que marca a única perpetuação possível à humanidade, a do bem querer.

Floriu serenamente a minha sexta estrela:

“Palmas na platéia... Uma menina entra em cena... Inclina-se aos aplausos E rasga o peito deixando sua voz no ar... Recita um poema, Dá vida as palavras de um poeta morto e esquecido. Chora, ri e se perde nas emoções.... Assim como um palhaço. Ela domina seu público. Sem máscaras, sem cortinas, Livre e sem censura. Tem um rosto de menina E um corpo de mulher. Traz no semblante uma beleza pura, ‫٭‬

Música “Segredos”, de Frejat.

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Fina, esbelta e muito elegante. O pano volta a cair, A platéia continua aplaudindo, silêncio nas dependências do auditório... Finda a poesia, Meus olhos ficam elagrimados, Tudo escurece... a noite chega E a linda menina vai repousar, ouvindo a voz do poeta, declamando um verso, agradecido”‫٭‬

Como nunca fui vítima da impressão de ser dono de mim mesmo, ou ainda de outro alguém, ou qualquer coisa, falseta de um destino provisório que paradoxalmente se pretende eterno, ainda mais quando a loucura me ensina a respeitar o que Deus é, sem querer fazê-lo à minha imagem e semelhança, retratada na moralidade dos hipócritas, agradeci humildemente o choro do Poeta-Sem-Nome-do-Arapari e beijei mais uma vez embaixo de uma ponte de Paris, na esperança de que as crianças pequenas que nunca podem morrer nos adultos crescidos possam sobreviver às mentiras e às ilusões da propriedade, da posse e da autoridade sobre o que nem mesmo é humano, sobre o que ninguém leva para depois do fim, marca permanente que se insinua como uma fêmea logo que a vida principia, onde tudo o que se pode possuir de verdade é a poesia cosmogônica da dor de existir. FIM.

‫٭‬

Poesia “Ternura Para Uma Menina” (Enilda Frota), de Genésio Meneses.

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