DA POSSIBILIDADE DE AMAR A JUSTIÇA, ...

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DA POSSIBILIDADE DE AMAR A JUSTIÇA, QUANDO A LOUCURA TOMA CONTA DA SINCERIDADE BREGA DOS AMORES QUASE ETERNOS E QUE AINDA ASSIM CURAM

GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008


Aos

amores

quase

eternos,

que

cuidam da lucidez dos que acreditam que a justiça aprendeu a amar.

Aos

eternos:

Marcelo

Guerra,

Clístenes Façanha, Renata Pinheiro, Luiz Gerardo de Pontes Brígido, André Luiz, Kelly Arruda, Carolina Leiva, Fernanda Girão, Mirella Rodrigues, Luciana Girão, Márcia Mendes, Nirla Maria, Anailde, Martin e Maria.

* A pintura “The Courtesan (after Eisen)”, 1887, de Vincent van Gogh ilustra a capa.

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A justiça é essencialmente bela e cobiçada por todos os homens de bem, exatamente aqueles que conheci nos cabarés distintos de Paris, onde a única certeza que se pode ter ao amarmos para sempre é a convicção de não passarmos de locatários da morada da impossibilidade, pois o ridículo do amor é não reconhecer na quase eternidade da natureza dos amantes o significado da palavra hoje, única representante da lucidez na ilusão do amanhã, que naturalmente não vai mais chegar.

Um desse refinados senhores amantes da Justiça e dos cabarés que sustentam os templos da sabedoria brega, me segredou a história de seu filho mais velho, um pudico advogado que teria enlouquecido de amor antes de nascer de seus dois divórcios, celebrados no altíssimo meretrício espiritual, que tinha origem na rua Padre Manoel da Nóbrega, em Salvador, e se estendia até à margem esquerda da foz do rio da Negra do Pajeú, na cidade de Fortaleza.

Não obstante as obviedades dos berços de ouro, o jovem advogado - narrou-me o seu próprio pai - antes de enlouquecer de verdade nos impropérios do amor, pensou em abdicar da vida mundana para se tornar abade, já que as mulheres que havia amado sempre lhe pediam amor, mas só devolviam saudade, inspirando a poesia que não come do pão de cada dia, já que sem corpo não há crime nem ressurreição.

Dizem, entretanto, que, num baile de lembranças, no coração do Clube Social da própria Imperatriz do Brasil, o jovem causídico 3


conheceu uma dama inigualável, que lhe mudou drasticamente os destinos espirituais por duas vidas seguidas, segundo cálculos metempsicóticos de Allan Kardec, que apontavam para a leveza que se incorpora nas almas daqueles que se dão simplesmente por se dar, sem esperar pegajosos sentimentos que querem emprenhar a eternidade com suas manias de Deus.

Apaixonado pela vida e afastado dos destinos purificados nas águas não bentas pelo Diabo louro, o ilustre advogado compôs, num brega erudito de espetacular sinceridade, uma singela homenagem àquela dama que lhe tinha devolvido o cizo da sacrossanta liberdade de religião.

Então, ele cantou num bar da velha Praia de Iracema, secretamente localizado no meio da alma de um certo juiz grego que despudoradamente legislava sobre a dor de cotovelo:

“A vida é mesmo sem compreensão. Aperta a gente de tudo que é lado. Mas, eu sou ruim de pedir perdão.

Quando tudo parecia desacato, o sofrimento por uma mulher insolente e uma falsa ilusão me encaminhavam para o celibato.

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Eu queria ser monge, não sabia o que fazer, até Fabiana aparecer.

Ela quase me violentou com seu amor. Ela tinha um “grande aparato”. Ora, veja só, Fabiana me salvou do celibato (bis)

Em quase tudo eu queria ser o terceiro e tudo indicava que era o momento: ou eu ia para mosteiro ou ia para o convento.

Mas no pé do muro ela me encostou, e foi incisiva em me amar. Ela tinha um “grande aparato” Ora, veja só, Fabiana me salvou do celibato (bis)

De vez em quando eu penso em me abster desse amor feminino que insiste em me comer.

Acho que a vida está meio sem graça e a minha filosofice não consegue me recuperar.

É por que Fabiana foi embora, e só sua lembrança parece ser insuficiente para me sustentar. 5


Ela tinha um “grande aparato”. Fabiana me salvava do celibato (bis)”‫٭‬.

Escapar dos destinos dos monges, porém, é passar a sofrer a mundaneidade espiritual dos comuns, o que nem sempre significa um destino reto, daqueles que pretensiosamente só almeja o infinito para frente, como se não fosse a curva da poesia aquela a primeiramente aproximar os pontos da solidão.

E foi por isso, como continuou a me segredar o pai abnegado, que o jovem mancebo, fugidio das saias masculinas e da libido dos anjos, resolveu ser advogado, justamente para abraçar a justiça, aquela deusinha linda de moral arrebitada, que cegava seus pretendentes para que eles pudessem finalmente enxergar que o amor eterno é mandinga que só pode estar no terreiro da impossibilidade, e que nessa macumba toda o pior não é gostar de quem não gosta da gente, mas sim gostar de quem não consegue deixar de gostar de si mesmo, sufocado na autoridade desumana da imparcialidade, que se perdeu para sempre na ilusão de que a verdade estaria nos olhos da justiça que se deixa ver.

Já como causídico renomado em virtude de sua impoluta tradição familiar, forjada nos lençóis grossos que encobriam os leitos das deusas que não deixam os homens dormir, nossa personagem entendeu como destino virtuoso amar a justiça, e foi aí que o desatino ‫٭‬

Composição “Fabiana me salvou do celibato”, do autor desta estória sobre histórias.

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lhe cercou as passagens, pois a deusa tinha um temperamento fortíssimo de duas mil e uma venetas, que já tinha se incorporado a sua representação familiar e mantinha toda uma população presa no cárcere da mulher de César, onde a gente faz de conta que ama só para não deixar de reinar.

Sem nada temer, o jovem advogado, com sua cortante sinceridade brega, ousou sonhar em desposar a justiça, e, nesse devaneio universal dos ignorantes, olhou de verdade nos olhos da linda deusinha da imparcialidade imaculada pelos pecados dos outros, dando de cara com a moral luminosa das capas do Super-Homem, uma visão contrária a natureza humana, já que “por trás de toda a moralidade existe a vontade de poder”‫٭‬.

E foi desse olhar sincero sobre os fracos que recriminam os fortes que o jovem advogado enlouqueceu de verdade, por querer amar uma capa qualquer, dessas que não podem acreditar numa divindade cega e incapaz de dizer o que nem mesmo Deus se atreveria, diante do maior pecado omitido a Moisés, segundo o qual não se deve jurar em nome da justiça em vão.

Encarcerado no hospício da lucidez dos imorais que tudo podem sem trânsito em julgado, o pobre jovem apaixonado pela justiça gritava sozinho: “louco, louco disseram-me quando eu te amei!”.

‫٭‬

Ballone GJ - Friedrich Nietzsche - in. PsiqWeb - Psiquiatria Geral - Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, 2005.

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O grito de dor do homem, cujo crime único era ter sido descoberto, era tão soberanamente sincero que uma linda psiquiatra, forjada em dinamite preta nos caldeirões dos amores quase eternos e que ainda assim curam, lembrou-se de uma lição não proferida por Freud sobre as drogas proibidas de desencantar as falsas verdades, segundo a qual o brega está na essência das coisas e é a única filosofia que cura e ilustra ao mesmo tempo, sem deixar de registrar as verdades cortantes que o chique não pode disfarçar sem flatular.

Nesse sentimento de amor possível e na sinceridade brega dos indecentes teóricos das teorias putas de todos os direitos, que não inventam a cegueira dos outros só para se disfarçar da própria sombra, a linda dinamitezinha preta da inconsciência sem pudores explodiu a saudade do nosso advogado entregando-se de corpo e psiquê na valsa louca do excesso de lucidez:

“Olha, da primeira vez que eu estive aqui foi pra me distrair eu vim em busca de amor

Olha, foi então que eu te conheci naquela noite fria nos seus braços os problemas esqueci

Olha, da segunda que eu estive aqui Já não foi pra me distrair Eu senti saudades de você 8


Olha, uhhh, eu precisei dos seus carinhos eu me sentia tão sozinho e já não podia mais te esquecer

Eu vou tirar você desse lugar eu vou levar você pra ficar comigo e não me interessa o que os outros vão pensar

Eu sei que você tem medo de não dar certo acha que o passado vai estar sempre perto e que um dia eu vou me arrepender

E eu quero que você não pense em nada triste porque quando o amor existe o que não existe é tempo pra sofrer

Eu vou tirar você desse lugar eu vou levar você pra ficar comigo e não me interessa o que os outros vão pensar”‫٭٭‬

No mesmo instante, pois, em que Miguel de Cervantes tirava D. Quixote das entranhas dos desejos incontidos da única Dulcinéia que pode ter existido de verdade, a loucura do jovem advogado se dissipou na formosa silhueta de um amor quase eterno, só para fazer dele um sábio sem razão, mulher que era propriedade dos cartórios da ‫٭‬

Música “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, de Odair José.

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insuficiência humana, embora sempre se oferecesse a quem pudesse pagar mais.

Mesmo sem razão, o jovem advogado a quem a loucura e o amor quase eterno tinham feito sábio, sempre defensor das causas impossíveis de serem julgadas pelos néscios, pôde compreender, com o pedaço de cérebro que a vida tirou de seu coração, que o seu grande amor pela justiça poderia ainda se tornar realidade nessa vida de incontáveis seqüelas de jurisdição.

A sabedoria do advogado lhe dizia agora que todo o temperamento difícil da justiça era fruto de seu grande sofrimento, por enxergar exatamente o que era invisível aos olhos, o lamento constante dos seres que acreditam que um homem pode se travestir de deusa e ainda assim libertar o que as leis aprisionaram no desejo inconfessável dos que podem.

Na verdade, a pobre deusinha de moral arrebitada não passava de uma aleijada comum, dessas que nunca estão adequadamente vestidas para as audiências, e todo o seu sofrimento derivava da incompreensão dos homens que a queriam possuir sempre infalível, e cruelmente a comparavam a Deus, que, em sua humildade, entretanto, nunca foi capaz de julgar ninguém com ou sem olhos, que não se sabe ao certo se Ele os tem.

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Pedaço de amor com pedaço de amor se paga, e o nosso advogado resolveu encantar a justiça exatamente como tinha sido encantado, na sinceridade cortante dos amores quase eternos, que redimem silenciosamente a humanidade, quando não mais há esperança na imortalidade dos sentimentos por natureza transitórios, tirando a justiça de sua inércia por perceber pela primeira vez que as impossibilidades dos outros é que dizem ao certo por onde devem passar nossas virtudes, que simplesmente não podem existir por si sós, pois o virtuoso sem a cegueira do outro é um nada sem razão, ele mesmo uma impossibilidade, a clamar pelas virtudes alheias.

Então o advogado amorosamente cantou para a justiça:

“Sentada na porta, Em sua cadeira-de-rodas ficava. Seus olhos tão lindos, Sem ter alegria, Tão triste chorava.

Mas quando eu passava A sua tristeza chegava ao fim. Sua boca pequena, No mesmo instante, Sorria pra mim.

Aquela menina era a felicidade Que eu tanto esperei, 11


Mas não tive coragem e não lhe falei Do meu grande amor e agora, Por onde ela anda, eu não sei.

Hoje eu vivo sofrendo e sem alegria. Não tive coragem bastante pra me decidir. Aquela menina em sua cadeira-de-rodas Tudo eu daria pra ver novamente sorrir”‫٭‬.

A pobre justiça sem disfarces foi tomada por um grande amor quase eterno pelo audacioso advogado que a tinha feito perceber a possibilidade de se entregar de verdade, sem que ninguém mediocremente invocasse a autoridade para amá-la, sem que a cegueira fosse o engodo das paixões ou a desculpa para os fracos continuarem dominando os fortes.

O pai do jovem advogado me segredou, finalmente, que a justiça, depois de se perceber aleijada, e ainda assim loucamente amada, conseguiu desencalhar uma montanha de litigiosidade retida em sua compleição anímica, pois se acertou, a partir de então, que a melhor forma de não litigar com a natureza humana é simplesmente entender que só a imperfeição pode nos fazer visíveis à cegueira de Deus.

FIM.

‫٭‬

Música “Cadeira de Rodas”, de Fernando Mendes, José Wilson e Edir.

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