AS PUTAS DE ARLES
GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO
2008
A Waldick Soriano e à impossibilidade do ser humano de deixar de abandonar.
*A obra Terraço do Café à Noite, 1888, de Vincent van Gogh, ilustra a capa.
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Quando o homem morreu de verdade, um pouco antes de inventarem o amor, nasceu numa cidadezinha ligada ao mediterrâneo pela parede do açude Ipu Mazagão a mais estranha criatura que Deus pôde deixar no mundo antes de ser descoberto em seus mistérios, que nunca puderam ser revelados em razão da hipertrofia da inteligência e da maldade dos macacos, já que as pessoas tinham sido feitas à imagem e semelhança Dele.
Naquele tempo o mundo estava incontrolável e Deus, desnudo na fragilidade das morais que não servem mais, perdido no pranto da última família de seres semelhantes em corpo e alma que preferia a pansexualidade a deixar de amar o próximo, resolveu organizar novamente o universo, principalmente por que tinham descoberto, com a expansão de consciência dos animais antes irracionais, que um filho único não pode estar em todo lugar, ao menos que se revele exatamente como o amor se perdeu do céu e topou com a raça humana no chão de nossas perversidades.
Essa preocupação em Deus era visível, Ele tinha se feito mudo de tanto ouvir o crime e o desamor interpretado como palavra sua, e, proibido de morrer pela sua própria lógica, subverteu todas as diretrizes que diziam ser Suas, e criou, em Arles, no sul da França, muito próximo ao bairro da fazendinha, em Itapipoca, onde a matemática dos inocentes ainda espera sentada por uma visita para espantar a solidão paralítica, a mulher que ficaria incumbida de redimir a humanidade, a nossa estranha criatura, que Deus concebeu em silêncio, sem milagre nem cruz, nascida mesmo de uma mulher da 3
vida, daquelas Madalenas que teêm o corpo desvirtuado pela moral podre dos que amam escondido para não perder o poder.
Nasceu Artemísia!
Da brincadeira mortal de inseminação e manipulação de seres humanos, numa perfeita e harmônica junção de 15 quinze espécies de sêmens diferentes, incontidos nas partículas quânticas de óvulos que ainda querem parir filhos perdidos pelos outros, foi gerada a última esperança da humanidade, uma puta, pois, como já diz a sabedoria dos intérpretes da lei, filho de peixe, peixinho é, mesmo que todo o mundo esteja morrendo afogado no meio da seca por falta de respeito à diversidade dos seres que se perdem em si só para ver se encontram o segredo do amor do outro, que, por sua vez, se perdeu no fascínio dos corpos que não podem mais se entregar sem o abraço da poesia do recato e do perdão.
O nascimento de Artemísia foi sentido em todos as partes do universo, já que ninguém acreditava mais em vida humana como criação exclusiva de Deus, sendo que a placenta verde que a encobria foi utilizada pelo ginecologista, Dr.Pierre Ordinaire, por muitos séculos como remédio para todos os males, até que uns artistas franceses, que sofriam de amor e incompreensão, a misturaram com álcool em 89,9%, embriagando de absinto o resto da humanidade que teimava em dizer que o amor, como a razão, tinham que permanecer neutros diante daquilo que Deus não pode explicar sem deixar de se valer da dor. 4
Artemísia, linda Artemísia, criança irmã dos filhos que nunca chegaram a chorar senão pelos olhos de suas mães perdidas pela infâmia do abandono de quem jamais pôde esquecer de ter sido abandonado também.
Quando aquela criatura estranha veio ao mundo - e seu estranhamento não estava em sua beleza inigualável, mas em sua origem direta do primeiro Deus envergonhado de toda a humanidade, arrependido por ter produzido tantos efeitos especiais na alma dos que não conseguiram amar para sempre – foram vistos furações coloridos de vida e de morte por todos os cantos da terra e dos mares, na maior limpeza de almas que a humanidade conheceu, e cujos efeitos só eram perceptíveis nas televisões da insensibilidade, onde o mundo chora por um minuto de atenção, mas a gente pode sempre mudar de canal para permanecer humano.
E os furacões que anunciaram o nascimento de Artemísia tiveram influência silenciosa em todas as crianças do mundo, que, de inopino, no choro estridente da inocência que também se transforma em pavor, aprenderam a conjugar o verbo querer de uma maneira gaga e insistente, querendo tudo sem desejar, como se a alma pudesse transformar o tempo só com o poder dos que querem, sem a miséria dos que amam.
Se é que as putas nascem feitas, ou são apenas escondidas de nossa moral que mata o filho de Deus só para impedi-lo de espalhar seu amor de homem, Artemísia tinha o destino de amar o mundo de 5
uma maneira permanente, de espalhar sua cria mitológica por todos os recantos do universo, composto de energia preta da escravidão do amor que não conseguia mais ser eterno pela passagem rápida do egoísmo dos filhos, que não conseguiam mais ver o amor no sofrimento dos pais, na mesma angústia de um Deus que se viu descoberto em seus defeitos pela incongruência humana de se julgar semelhante a quem sequer pode imaginar.
O grande dilema de Artemísia não estava em si, pois seu amor era grandioso e transformador, mas na própria humanidade, que teria que amar verdadeira e definitivamente a linda cria das putas de Arles, para que pudesse nascer o primeiro ser da nova raça, aquele que teria a sensibilidade para organizar o mundo pelo amor sem preconceito, na mesma lei que nunca mudou ninguém, porque ninguém tinha dito antes que amar ao próximo é na verdade amar ao distante, ao autismo que impede meu irmão de se entregar de verdade só para não ser chamado de filho da puta.
Com sua beleza inigualável, a linda filha das putas de Arles não teria dificuldade em ser amada pelo mundo e tudo ficaria resolvido para a humanidade logo que alguém a amasse de verdade e para sempre, sem se importar com sua origem múltipla e estranha, que a fazia bela e conhecida, como se todos fossemos filhos de um amor cuja prostituição se concentra na impossibilidade de largar o próprio egoísmo.
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Mas como a vida não é nada fácil mesmo, ninguém na terra foi capaz de amar a doce e estranha Artemísia, a puta mais virgem de toda a raça humana, pois se espalhou pela extensão conhecida do planeta que quem a possuísse estaria fadado a vagar pelo mundo cantando a solidão, para que não repetisse o desatino de pensar querer salvar a humanidade, assim como Deus um dia tinha tentado fazer.
O impressionante nessa história era que, segundo o aludido boato, o homem que ousasse amar a puta virgem de Arles e da Fazendinha, cantaria para sempre a solidão, mas jamais poderia deixar de amar Artemísia, pois senão a humanidade não conheceria seu redentor, que deveria nascer do fruto desse amor verdadeiro e eterno.
Num dia desses em que o sol esquece de nascer do lado esquerdo do peito da gente e a saudade é o único eclipse que orienta o tempo que nunca mais vai chegar, nasceu um louco de mil espécies de amores lá para as bandas do Arapari, uma região onde os amores impossíveis viram lenda de serpente e mergulham para sempre nas lagoas que nunca secam, logo ali do lado da primeira igreja do mundo conhecido.
O tal louco era assim afamado porque tinha sido abandonado pela mãe logo ao nascer, tendo sido apanhado na rua e criado por uma família de amores híbridos, que queria bem a meninos e a meninas, sem distinções preconceituosas, como se todos fossem seus filhos de 7
verdade, como se a verdade não fosse o disfarce perverso da autoridade.
Eurípedes, chamava-se nosso louco herói que, abandonado pela mãe, abandonou o Arapari assim que pode sonhar com suas próprias dores. Um maledicente de Itapipoca disse a Eurípedes, o louco, que ele jamais conseguiria encontrar o amor abandonado de sua mãe, nem que cantasse a solidão por todos os tempos, nem que perpetuasse seu sofrimento na letra de mais de mil canções, ainda assim não lhe seria possível nessa vida amar quem lhe havia abandonado.
Mas o louco de mil espécies de amores não fugiu ao seu destino, vagou pelo mundo a procura do amor de sua mãe em cada mulher que destruiu, ou melhor, que amou, cantando a saudade do pior chifre da humanidade, aquele que larga o certo pelo duvidoso, como se o duvidoso não tivesse sido largado pela certeza de que não se pode amar sem perder parte de si no movimento das almas e dos corpos que se encontram.
A saudade do louco Eurípedes se fez tão insistente e encantada que as putas de Arles e da Fazendinha resolveram alcovitar um romance entre ele e a doce e estranha Artemísia, pois parecia evidente no submundo dos amores impossíveis que a gente só encontra no outro o que nunca nele teve coragem de deixar, por isso a saudade dói tanto, o cara até entrega o caneco, mas jamais pode a vida entregar. 8
De qualquer forma, Eurípedes era macho, e disso se vangloriava, por isso destruía todas as mulheres que amava, tentando acabar com a pior dor de corno que já inventaram, o abandono de pai, de mãe e de Deus.
Mas como Artemísia também sofria de abandono, pois gerada por 15 sêmens e inumeráveis óvulos distintos, foi realmente natural a aproximação dos dois personagens dessa história.
Encantada com as lindas canções de Eurípedes, a doce puta virgem de Arles e da Fazendinha se entregou numa noite estrelada no alto da montanha da lagoa mais bonita do Trairi, onde dizem que o amor conheceu pela primeira vez o desejo do sonho de nunca mais acabar.
Esse amor também invocou furacões, mas desses que só destroem o peito da gente, e a união sexual dos dois seres mitológicos espalhou por toda a terra conhecida uma nova espécie de gozo incontido, fecundando os espíritos assustados daqueles que juraram amor eterno, fazendo as estrelas fremirem de tanto prazer, derramando sobre a terra uma colorida nuvem de poeira intergaláctica, que fez nascer a primeira parada gay da humanidade renascida, onde Deus tinha sido perdoado por não ter sido feito compreender a tempo.
O amor de Eurípedes, o louco, e Artemísia, a linda e estranha puta de Arles e da Fazendinha, foi exatamente como Deus previu na
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sua tentativa de se resgatar, mudou o mundo, tocou a humanidade e foi incapaz de fazê-los ficar juntos para sempre.
Eurípedes continuava sentindo solidão e foi se recolher do mundo na cidade de Fortaleza, no Estado do “Será?”, exatamente onde nasceu a filha predestinada de Artemísia, que logo cedo já tinha sido capaz de mudar os destinos pansexuais de muita gente perdida na rigidez de um só abandono.
A menina, filha de puta e louco legítimos, era a certeza cósmica da perpetuação das espécies extintas pelos complexos de Deus, mas o seu próprio coração sofria com a solidão de Eurípedes e desejava que ele representasse a lei em seu novo mundo, norma criada não mais na interdição dos desejos, mas na possibilidade de amar ao Deus que não tem coragem de dizer que também tem medo de morrer.
Então a linda menina de origem humilde e verdadeira cantou a simplicidade para se reaproximar de seu pai, tirando-o de sua solidão autista por um breve momento, fazendo Deus escutar a alegria e o lamento de quem nunca mais vai poder abandonar:
“Pai! Pode ser que daqui a algum tempo Haja tempo prá gente ser mais Muito mais que dois grandes amigos Pai e filho talvez... 10
Pai! Pode ser que daí você sinta Qualquer coisa entre Esses vinte ou trinta Longos anos em busca de paz...
Pai! Pode crer, eu tô bem Eu vou indo Tô tentando, vivendo e pedindo Com loucura prá você renascer...
Pai! Eu não faço questão de ser tudo Só não quero e não vou ficar mudo Prá falar de amor Prá você...
Pai! Senta aqui que o jantar tá na mesa Fala um pouco tua voz tá tão presa Nos ensine esse jogo da vida Onde a vida só paga prá ver...
Pai! Me perdoa essa insegurança 11
Que eu não sou mais Aquela criança Que um dia morrendo de medo Nos teus braços você fez segredo Nos teus passos você foi mais eu...
Pai! Eu cresci e não houve outro jeito Quero só recostar no teu peito Prá pedir prá você ir lá em casa E brincar de vovô com meu filho No tapete da sala de estar Ah! Ah! Ah!...
Pai! Você foi meu herói meu bandido Hoje é mais Muito mais que um amigo Nem você nem ninguém tá sozinho Você faz parte desse caminho Que hoje eu sigo em paz Pai! Paz!...”٭
Eurípedes, todos sabem, morreu na solidão, mas não sem antes enxergar a única forma de amor que nos faz verdadeiramente humanos. Artemísia ganhou dos céus a pureza da miscigenação e ٭
Música “Pai”, de Fábio Júnior.
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virou raça espalhada por todo o universo, que se fez tão mais limpo tendo nascido da bravura dos destroçados, bem no meio da saudade de uma putinha linda, cujas virtudes foram melhor entendidas por quem teve pena de Deus antes de ter pena de si.
FIM.
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