Da história do sapo que virou gente...

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DA FIDEDIGNA HISTÓRIA DO SAPO QUE VIROU GENTE SÓ PORQUE AMOU UMA LINDA PUTA DESENCANTADA QUE LHE DEU UM FILHO DESAPARECIDO NA SERIEDADE DOS COGUMELOS GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008


Eis o melhor retrato que Antoine de SaintExupéry conseguiu fazer do Pequeno Príncipe, antes dele desaparecer no sorriso das estrelas...

Às crianças que esperam uma adoção tardia.

Ao filho que gostaria de ter adotado, Lucas, e aos que ainda adotarei, embora que tardiamente.

À minha filha, Hannah e à minha sobrinha, Clara.

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INTRODUÇÃO

“- Eu conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez outra coisa senão somas. E o dia todo repete como tu: “Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!” e isso o faz inchar-se de orgulho. Mas ele não é um homem; é um cogumelo!”

Trecho extraído do capítulo VII do livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.

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Sinceramente não gosto de histórias de sapos, nem de rãs, desde um delírio fidedigno de um pai de santo anfíbio que me incorporou no terreiro da Dona Nizete, só para quebrar o desencanto de uma linda princesa enlouquecida de tanto beijar príncipe encantado por si mesmo. Note-se que a precipitação mediúnica desse caso era bastante complexa, pois para alguém invocar um espírito de um vivo estranhíssimo como eu para desobestruir as vias de encantamento de uma princesa de carne e osso, é porque a macumba era mesmo coisa de doido. Então, perceba, eu não tive como escapar dessa história de sapo, pois quem é incorporado em vida não tem o direito de se furtar as máximas das religiões pretas, que, embora os brancos não digam, pregam a obediência à fraternidade, a caridade e ao respeito ao próximo. Então, como a ordem é dar de graça o que de graça se recebeu, enquanto o meu corpo descansava para meu espírito se projetar, eu narrei essa história para um menino desaparecido, que, depois, quando eu acordei, reapareceu só para me dizer que tudo tinha sido verdade mesmo. Era uma vez, portanto, um sapo que acreditava ser princípe encantado de alguém que ele não sabia quem. Sapo não é bicho muito

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bonito, mas, se acredita que ainda pode ser, vira a coisa mais pretensiosa da floresta, já que a expectativa de direito foi mesmo inventada pelos pais das princesas que não querem mais dar beijo com medo de virar gente de verdade. Expectativa de direito ludibria, amansa, ilude e gera a esperança no sapo de que um dia ele pode virar príncipe: é por isso que esse tipo de bicho ainda hoje incha por aí. Mas o nosso sapo era um ser muito sincero e admirável, suas carcaterísticas humanas eram tão pungentes que nunca se entendeu direito porque ele também precisava de beijo de princesa para poder se realizar. O fato era que o sapo precisava de uma princesa para beijar, mas elas não conseguiam perder mais tempo com esse tipo de esperança vã, pois agora a ciência tinha igualado as diferenças e todos estavam condenados à mesma sentença: não se encontrar mais no outro, ainda mais quando todos viviam uma época em que se ensinava as crianças, desde cedo, que para sobreviver era preciso se amar antes de tudo, até mesmo de si próprio. E Deus? O que dizia disso tudo? Não se sabe, pois ele desapareceu no exato instante em que o egoísmo e a competição passaram a compor a legitimidade dos espelhos que desencantaram

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a solidariedade do espírito humano, já que de mim só enxergo o que o outro vê. Nem Deus, nem a ciência, ou tampouco a macumba, foram suficientes para impedir o dilema do sapo inspirado, que não podia virar princípe por falta de quem acreditasse nas virtudes mal compreendidas dos que sabem que o amor não tem que se partir na divisão dos espíritos que ainda não perceberam como a evolução dos contos de fadas depende agora da solidariedade entre homens e mulheres de verdade. Sem saída viável para seus encantadores talentos, o sapo foi procurar um sábio libanês, que ouvindo atentamente toda a história do anfíbio, disse-lhe:

“Certo dia, a Beleza e a Feiúra encontraram-se numa praia. E disseram ao mesmo tempo: ‘vamos entrar na água’. Assim, tiraram as roupas e puseram-se a nadar. E, passado algum tempo, a Feiúra voltou à praia e vestiu-se com as roupas da Beleza, e foi-se embora. A beleza também retornou do mar, não encontrou suas roupas e, por vergonha de ficar nua, vestiu a roupa de feiúra, e seguiu seu caminho. Desde então, alguns homens e mulheres confundem uma com a outra.

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Mas há os que já tinham visto a face da Beleza e a reconheceram, apesar de sua roupa. E também há os que identificam o rosto da Feiúra, e suas vestes bonitas não os enganam”. (Roupas, Kahlil Gibran, O Errante).

Como para bom entendedor meias verdades nunca bastam, o sapo voltou imediatamente ao país do desencontro e, ao invés de beijar uma princesa encantada, amou ardentemente a puta mais linda que seu dinheiro molhado pôde pagar, esticando-se na presença de Deus, para gozar efusivamente, mas somente depois que ela carinhosamente lhe permitiu. Pois foi nesse mesmo instante em que a cauda longa do girino encantado de nosso amigo tocou o útero da puta carinhosa que o sapo virou gente! Gente! Acreditem! Gente! Liberto das realezas dos contos de fadas por uma puta que com carinho permite o gozo dos sapos, o nosso antigo anfíbio virou simplesmente um homem de bem, amável, sensível e carinhoso, características suficientes para torná-lo sapo de novo. Dizem que a puta carinhosa tinha permitido o gozo do sapo porque sua intuição feminina nunca havia se corrompido com os

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espelhos da modernidade, onde o perdão não se reflete mais, porque é filho da imperfeição do outros no país do “Eu Perfeito Para Mim Mesmo”. O fato é que o gozo do sapo engravidou de alegria a sensibilidade nunca perdida para os espelhos. Não se sabe ao certo como, mas a puta intuitiva e não corrompida pela beleza de suas próprias misérias, tiha certeza absoluta que seu filho seria grande, tão grande que deveria ser escondido dos homens e mulheres que não compreendem que a profundidade do espelho está no vazio, mas não no vazio das almas. Pensando dessa maneira protetora, a bela entregou seu filho para a adoção no mesmo dia e lugar em que Jean-Jacques Rousseau, o fílosofo da liberdade como valor supremo, entregou também seus cinco filhos, que o estavam atrapalhando a escrever seu tratado sobre a educação de jovens e crianças. Nem mesmo o pai do filho da linda puta soube onde seu filho foi entregue. Rousseau também nunca mais teve notícia de sua descendência,

que

se

espalhou

silenciosamente

pelo

mundo,

enquanto o seu tratado sobre educação era aplaudido e seguido por toda a intelectualidade. Mas o remorso de Rousseau foi tão profundo que levou o ilustre filósofo a procurar nosso amigo ex-anfíbio para revelar-lhe que seu

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filho grande tinha sido entregue para adoção no Convento Emílio, onde o lema de educação é: "Que a criança corra, se divirta, caia cem vezes por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar" (Rousseau). Numa fração de segundo, o homem que tinha sido sapo percorreu todos os asilos, abrigos, conventos, casa de correção, que pudesse ter guardado seu único filho grande, por ter nascido da coragem de amar o diferente, que não aparece no espelho porque todos estão olhando para si mesmo. Durante muitos anos esse nobre homem procurou seu filho nos olhos de toda criança grande impedida de nascer de verdade pelo esgoísmo dos espelhos que não refletem a luz dos meninos que cresceram sem ter culpa dos enganos dos cogumelos sérios, ocupados em fazer contas para um futuro melhor. Como a humanidade pode ter um futuro melhor se o conceito de felicidade foi esvaziado pelo de insensibilidade? Como ser feliz sem tentar dimunir a miséria dos outros? A procura foi em vão, o tempo passou, os meninos cresceram, mas continuaram nos abrigos perdidos, que não são notícia na sua televisão de plasma nem no carro com ar-condicionado em que você passeia com seus filhos. Filhos grandes, assim como os meus!

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Já idoso, o nobre homem que tinha sido sapo desistiu de encontar seu filho legítimo e resolveu adotar um dos filhos grandes daqueles abrigos perdidos de seu caminho. Mas como escolher um filho? Um pai reconhece seu filho nos olhos dos filhos dos outros ou os olhos dos filhos dos outros são que precisam reconhecer seu pai? As reflexões do homem anfíbio foram ouvidas por um menino grande que morava num abrigo distante, numa montanha de três climas, onde intelectuais da ludologia tinham instalado três pulapulas nas praças públicas, para, além de tranquilizar todos os pais sobre a verdade, comprovar como lá as crianças eram felizes. O menino se aproximou do velho e cantou baixinho:

“Você, que a tudo renunciou só para me seguir Você que me deu sonhos e me deu a paz E quando eu precisava, você vinha a mim! Eu não sei se te busquei por solidão, ou porque... Talvez eu me enganei, não quis te fazer mal Eu sei que simplesmente te nescessitei! Não, não pense nunca que eu te menti Eu disse que te amava e senti. Equivocado ou não, sei que te amei!

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Hoje, nesse vazio que minha vida é... Como eu queria novamente começar Voltar a enamorar, me enamorar, me enamorar... Como eu queria novamente começar... Porém, eu não sei onde te encontrar!”. (Não Sei Onde Te Encontrar -Nunca Supe Más De Ti – Sérgio Denis – Vs. Márcio Greyck).

Com a canção do menino que era grande sem nunca ter brincado de pula-pula ou abdicado da brincadeira de enxada, Deus resolveu reaparecer para brincar de gente de novo e nunca se viu tanta felicidade naquela região. Foi tanta a alegria que as pedras começaram todas a estalar, só para comprovar que Deus existe mesmo nos olhos dos meninos grandes que quase nunca aparecem nos espelhos desonestos e sem luz que somente existem nas casas dos outros. A felicidade do velho com seu filho grande - enorme, aliás - se espalhou por toda a comunidade sensível de sapos e princesas que ainda teimavam em achar que a vida era um conto de fadas, e o número de adoções tardias cresceu em todo país, pois agora todo mundo queria brincar de gente com Deus. FIM.

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