ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL
Fortaleza - 2011
1
ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL Coordenação Nacional: Sonia Alberti Georgina Cerquise Consuelo Pereira de Almeida Coordenação Local: Andrea Rodrigues Sandra Mara Nunes Dourado Coordenação da Comissão Científica: Lia Carneiro Silveira Membros da Comissão Científica: Alba Abreu Angélia Teixeira Andrea Brunetto, Diego Mautino Dominique Fingermann Maria Anita Carneiro Ribeiro Silvia Amoedo Zilda Machado. Diretoria da EPFCL-Brasil (2011): Ana Laura Prates (Diretora) Sandra Berta (Secretária) Beatriz Oliveira (Tesoureira) Patrocínio: Apoio:
Associação dos Lojistas da Monsenhor Tabosa
2
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO
5
PLENÁRIAS
7
O SINTOMA ENTRE MARX E LACAN ALÍNGUA HISTÉRICA ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O NÚCLEO REAL DO SINTHOMA E A EXPERIÊNCIA DO GOZO OUTRO “DAR NA PINTA”: PARECER MULHER COM CORPO DE HOMEM SINTOMA E FANTASIA NA HISTERIA MASCULINA O SINTOMA E O AMOR APOSTAR NO SINTOMA SINTOMA E ESCRITA OU...OS ECOS DO SINTOMA SELVAGEM O LIVRO DE CABECEIRA: DA ESCRITA COMO SINTOMA AO SINTOMA COMO LETRA A SATISFAÇÃO DO FINAL DE ANÁLISE
8 14 24 32 42 50 56 64 74 81
MESAS SIMULTÂNEAS
90
“FAZER UMA ESCOLHA OU PERMANECER NA DÚVIDA?” 91 O QUE MARCÉLIO SABIA 100 REFLEXÕES SOBRE A DIREÇÃO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA DA PERVERSÃO 109 A PELE, SUAS MARCAS E O CORPO:FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO E TATUAGEM 117 SINTOMA: RUÍDO DA ALÍNGUA NO CORPO 128 CONSIDERAÇÕES SOBRE O GOZO EM UM CASO CLÍNICO DE PSORÍASE 136 SINTHOME: O REAL DO SINTOMA 146 SINTOMA E FANTASIA FUNDAMENTAL 152 O NOME DO SINTOMA 160 A ARTE É O QUE HÁ DE MAIS REAL 168 OS USOS DO CORPO E A POLÍTICA DO SINTOMA: O CASO DA TRANSFORMAÇÃO CORPORAL 175 O REAL DO SINTOMA: SUA POLÍTICA NA CURA 184 SINTOMA OU FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO? DECIFRA-ME OU TE DEVORO! 195 CONSIDERAÇÕES TOPOLÓGICAS DA PASSAGEM DO SINTOMA AO SINTHOMA 202 UM ADOLESCENTE EM CENA 210 A RELAÇÃO DO SINTOMA COM AS LEIS MORAIS 217 “SINTO QUE NÃO TOM(A)ES” – SOBRE A DESIMPLICAÇÃO SUBJETIVA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA 223 A FUNÇÃO DO ANALISTA E A POLÍTICA DA PSICANÁLISE NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL 229 OS IMPASSES DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E DA TRANSMISSÃO EM PSICANÁLISE 235 ASPECTOS DA RELAÇÃO ENTRE SINTOMA E ANÁLISE 241 PSICOSES ORDINÁRIAS E ATOS VIOLENTOS 246 ENTRE A SÍNDROME E A MÃE: MARCELA 252 O HOMEM CONDUTOR: UM CASO DE HISTERIA MASCULINA? 260 DA ILUSÃO DE COMPLETUDE AO ENCONTRO SIMBÓLICO: A PEREGRINAÇÃO AMOROSA DO SUJEITO DESEJANTE EM “UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, DE CLARICE LISPECTOR 267 SINTOMA, SINTHOME E FINAL DE ANÁLISE 277
3
“IMAGINE O QUE EU NÃO FALARIA SE EU NÃO FOSSE GAGO!”: O QUE FALA ESSA GAGUEIRA? CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA PSICOSE: CASO SCHREBER DE UM SINTOMA NO CORPO A UM SINTOMA ANALÍTICO: UMA CLÍNICA A PARTIR DOS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS A CRIANÇA COMO SINTOMA DOS PAIS EM CASOS DE DISPUTA DE GUARDA PSICANÁLISE E POLÍTICA : O PSICANALISTA COMO SINTOMA DA CULTURA SINTOMA E REPETIÇÃO NA NEUROSE OBSESSIVA O SINTOMA NA ARTE OU A ARTE COMO SINTOMA?
283 287
ESPAÇO ESCOLA
330
CARTEL: ESPAÇO DE SABER ARTICULADO À POLÍTICA DA PSICANÁLISE O PASSE: A RAZÃO DE UM FRACASSO
331 340
294 301 307 314 322
4
Apresentação “O sintoma fundamental é a única coisa que faz identidade, que é o verdadeiro nome próprio – o que todas as identificações fracassam em fazer. É somente nele que o sujeito pode encontrar seu princípio de consistência e constitui-lo em resposta à questão de entrada: o que sou? Sou este gozo ou, mais precisamente, esta modalidade de amarração entre um desejo impossível de dizer tudo e um gozo que fixa uma letra do inconsciente” Colette Soler, 10/07/1999.
Se identificamos três momentos para a psicanálise: o de seu surgimento, de sua releitura e de seu objeto a abrir um novo campo, ainda assim o sintoma, que estará nos três, poderá ser um quarto a amarrá-los. O sintoma é a política da psicanálise por diferenciá-la não só de todas as outras clínicas mas também como discurso, aparelho de gozo. A psicanálise surge num contexto histórico muito complexo, na pena de um gênio que consegue traduzir o que está absolutamente presente sem que ninguém consiga vê-lo e transmitir, com suas próprias palavras, o que até então não era possível dizer. Inicialmente é isso o sintoma: na histeria, o desejo de um desejo insatisfeito; na fobia, a angústia da castração, e na neurose obsessiva, o direito ao desejo no compromisso com sua proibição. A psicanálise cresce com o campo da fala e da linguagem com o qual Lacan pode “construir algoritmos mais rigorosos” (Lacan, p. 109, Sem. 21) para articular a obra de Freud, e trazer novamente à cena o que fora recalcado na própria psicanálise, cuja situação em 1956, para retomar somente um desses momentos, se sintomatizava na burocracia da formação psicanalítica, muito distante da verdade freudiana. A psicanálise abre um novo campo, o campo lacaniano, do gozo, e novamente o sintoma comparece, dessa vez como política. Na clínica, isso inclui em seu campo, além da neurose, a psicose e mesmo o final da análise. Com Joyce e a ciência do real, a lógica, os nós, instrumento que introduz as três dimensões com as quais, em 12 de março de 1974 Lacan propõe cingir o ponto do lugar da psicanálise no mundo. A psicanálise mesma como sintoma, observa Lacan em 1974, do que não vai bem no real... Nos seminários mais tardios de seu ensino, Jacques Lacan retomou a noção de sintoma para lhe atribuir finalmente, a função de anodamento, amarração, entre real,
5
simbólico e imaginário o que não deixa de ter referência com o termo freudiano atribuido a Eros de amarrar, ligar, binden. O sintoma como nó é quarto, é também o sintoma como o que vem do real: o que claudica, por exemplo, no discurso do mestre. Os novos sintomas presentificam o que claudica no discurso do mestre contemporaneo: as toxicomanias – que demandam drogas lícitas e ilícitas – como retorno do real do discurso do capitalista; o recrudecimento da segregação; os transtornos... conforme as novas nomenclaturas sintomatizando a ciência. O sintoma como o que claudica no discurso do mestre inclui o próprio inconsciente real, o grande campo do não saber. A partir do que observou nossa convidada internacional Colette Soler, ano passado em Buenos Aires, o passe deveria ocupar-se disso: na contramão da confusão entre a fantasia e o real do inconsciente, a identificação ao sintoma implica o saber-se objeto, ponto de virada em relação à repetição. Sonia Alberti – Diretora da EPFCL | AFCL-Brasil
6
PLENÁRIAS
7
O Sintoma entre Marx e Lacan Sonia Alberti1 O sintoma com Marx
Praticamente, a cada vez em que Lacan se refere ao sintoma,
estatisticamente se quiserem, podemos dizer a cada dois anos em seu Seminário, ele começa assim: “é importante observar que historicamente não reside aí a novidade de Freud, a noção de sintoma, como várias vezes marquei, e como é muito fácil observar na leitura daquele que por esta noção é responsável, [...] [é de] Marx” (1970-‐1, p. 220). Extraí essa citação ao acaso, elas são inúmeras nos textos de Lacan, ainda em RSI ele faz essa referência e no seminário sobre o Sinthome. Já anteriormente, em seu texto “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946) Lacan termina por colocar em série: Sócrates, Descartes, Marx e Freud como aqueles que “não podem ser superados, na medida em que conduziram suas investigações com essa paixão de desvelar a qual possui um objeto: a verdade” (p.193). É por estarem referidos a esse objeto, que os dois últimos, Marx e Freud, puderam perceber o quanto a verdade é sempre meio dizer e o quanto insiste, justamente, ali onde sempre se vela. Por outro lado, também podemos ler em Lacan que “O sintoma tem o sentido do valor da verdade”. Tal observação é associada, por Lacan, com esta outra: “o que há de essencial no pensamento marxista é a equivalência do sintoma com o valor de verdade” (Lacan, 1971-‐2, p. 25).
Assim: para Lacan, tanto Marx como Freud possuem o mesmo objeto: a
verdade, além disso, para ambos, é o valor desse objeto que equivale ao sintoma. 1
AME , Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro do Fórum Rio de Janeiro
8
Ou seja: o valor verdade = valor sintoma, o sintoma em Marx e em Freud. Até aí pude ir no último trabalho apresentado, em particular em São Paulo quando tive a oportunidade de falar no FCL de lá. O que proponho hoje, e será rápido, é um pequeno avanço: o sintoma entre Marx e Lacan.
Em 1844, época em que Marx estabelece as bases filosóficas para toda sua
obra, a verdade em questão é a do sistema capitalista que Proudhon julgava estar se socializando cada vez mais. É no questionamento dessa hipótese de Proudhon que encontramos talvez a mais evidente acepção do emprego do termo sintoma, por Marx, na maneira como Lacan o marca. Retomemos toda a passagem em Marx: A diminuição do interesse no dinheiro, o que Proudhon considera como a anulação do capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa razão, de fato somente um sintoma da vitória total do capital de giro sobre o desperdício da riqueza, isto é, da transformação de toda propriedade privada em capital industrial. É a vitória total da propriedade privada sobre todas as qualidades que ainda são aparentemente humanas, e a total sujeição do dono da propriedade privada à essência da propriedade privada – o trabalho. Certamente, o capitalista industrial também goza. De forma alguma ele retorna para a simplicidade da necessidade que não é natural; mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submetido à produção; ao mesmo tempo, é calculado e, por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o debita da conta das despesas, e o que for desperdiçado para seu gozo não pode exceder o que será substituído com o lucro da reprodução do capital. Por isso, o gozo é subsumido ao capital, e o indivíduo que
9
goza é subsumido ao indivíduo que acumula capital. Antes, a situação era o contrário [o indivíduo que acumulava capital o fazia para gozar com ele, provocando o desperdício da riqueza]. A diminuição da taxa de juros [que Proudhon via como uma diminuição do interesse do dinheiro] é, portanto, um sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital – da alienação crescente [...]. Aliás, esta é a única maneira de o que existe afirmar seu oposto (Marx, 1844, tradução e grifos meus).
Não somos economistas para desenvolver todo esse raciocínio na
articulação com as vicissitudes do capitalismo depois de 1844. Efetivamente, no campo da economia, tais observações de Marx devem ter tido novas contribuições com as guinadas – para retomar uma expressão que usávamos no sábado, a partir das observações de Colette Soler sobre o passe – do capitalismo no século XX. Mas o que me interessa aqui é verificar, na formulação mesma do termo em Marx, as razões que levaram Lacan a identificar, tantas vezes, a origem do conceito de sintoma, em psicanálise, em Marx, o que ocorre desde as primeiras observações sobre o sintoma em Lacan até as últimas, ou seja, no contexto do Seminário O Sinthoma, entre 1975-‐6.
Se nas primeiras observações então a questão parece articular o sintoma
com a verdade – razão de o sintoma em Freud ser o sintoma em Marx, como vimos em São Paulo –, por que Lacan se interessa em artiular o sintoma, do jeito que a psicanálise o conceituaria, no Seminário O Sinthoma, com o conceito inventado por Marx?
10
Retomemos com vagar a passagem lida, os comentários de Marx sobre as
teses de Feuerbach: 1) “A diminuição do interesse no dinheiro, o que Proudhon considera como a anulação do capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa razão, de fato somente um sintoma da vitória total do capital de giro sobre o desperdício da riqueza, isto é, da transformação de toda propriedade privada em capital industrial”. Inicialmente, o sintoma é sinal de que o capital de giro venceu o desperdício da riqueza e, portanto, não corrobora a observação de Proudhon, de que a diminuição do interesse no dinheiro seria sinal de que o socialismo estaria chegando... Ao contrário, diz Marx: em detrimento da propriedade privada que deixa de ser privilegiada, surge o capital industrial, visando, na realidade, uma sempre maior circulação da riqueza, em que o próprio capital é produtor de mais capital. 2) “É a vitória total da propriedade privada sobre todas as qualidades que ainda são aparentemente humanas, e a total sujeição do dono da propriedade privada à essência da propriedade privada – o trabalho”. O capital que produz mais capital submete o dono da propriedade privada ao trabalho pois, para produzir é preciso trabalhar. Colocar o capital a trabalho. Ao mesmo tempo, Marx já denuncia aqui o fim do humanismo, pois o homem é agora submetido ao capital que o faz trabalhar para este mesmo capital. Se até então ainda havia uma ideia de fazê-‐lo para o homem, agora fica claro – já que essa ideia era somente uma noção que vinha das aparências porque, em essência, a propriedade privada privilegiada até então, era somente sustentada pelo trabalho, seu capital – que, na realidade, é pelo capital que o homem trabalha. E isso independente de esse homem ser o proprietário ou o operário, como se vê na frase seguinte:
11
3) “Certamente, o capitalista industrial também goza”. Frase um pouco estranha. Como assim: “também”? Só posso entender essa frase quando eu entender que o próprio gozo é esse capital que já estava lá apesar de velado pelas “qualidades aparentemente humanas”. 4) Não é porque no capitalismo industrial há uma diminuição do interesse no dinheiro que esse capitalista estaria retornando para “a simplicidade da necessidade” que, aliás, de natural não tem nada, observa Marx de quebra. 5) “mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submetido à produção; ao mesmo tempo, é calculado e, por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o debita da conta das despesas, e o que for desperdiçado para seu gozo não pode exceder o que será substituído com o lucro da reprodução do capital. Por isso, o gozo é subsumido ao capital [...]”. A economia de gozo, no argumento de Marx, se mostra aqui mais uma vez como capital pois é ele mesmo calculado, como o é o capital que já não pode ser desperdiçado. Por outro lado, o mecanismo obsessivo aqui denunciado: tanto gozo para tanta possibilidade de substituição com o lucro da reprodução do capital, denuncia o quanto esse homem, anula seu desejo. 6) Novo mal-‐estar na civilização: em mal de desejo, desejo do qual o sujeito já não pode usufruir, gozar, “o indivíduo que goza é subsumido ao indivíduo que acumula capital. Antes, a situação era o contrário” [o indivíduo que acumulava capital o fazia para gozar com ele, provocando o desperdício da riqueza], pagando o preço para desejar. 7) E então, o grand finale de Marx: ao contrário do que previa Proudhon, “A diminuição da taxa de juros” (que Proudhon via como uma diminuição do interesse do dinheiro) serve a provocar maior capital de giro e “é, portanto, um
12
sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital”. Ainda aqui inicialmente, o sintoma é sinal, mas não só. Ele também amarra o imaginário do que havia de aparentemente humano, o simbólico que se contabiliza, com o real do incomensurável que é o trabalho que nessa operação sempre se perde enquanto mais valia, na 8) “alienação crescente” pois o próprio gozo que se perde, que se aliena, é ele mesmo o capital a incrementar a produção, gozo a mais ou mais de gozar. 9) “Aliás, esta é a única maneira de o que existe afirmar seu oposto”. Se é “sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital” é porque de um lado presentifica o que não se goza – e que podemos aqui associar com o impossível da relação sexual, de outro lado, com o gozo a mais, produzido a partir daquela perda: o Sinthoma e o real. Sinthoma, portanto, com “th”, reforçando a amarração entre real, simbólico e imaginário ali onde o homem está em mal de desejo. MARX, K. (1844) Human Requirements and Division of Labour. Under the Rule of
Private Property. In Economic and Philosophical Manuscripts of 1844.
Consultado no site: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1844/manuscripts/needs.htm (1845) Thesen über Feuerbach in Marx-‐Engels Werke 3, 534. Consultadas no site: http://www.mlwerke.de/me/me03/me03_005.htm
13
Alíngua Histérica Jairo Gerbase1
Sob o título de alíngua histérica, escrita com uma só palavra como propõe Lacan, gostaria de justificar nossa hipótese de trabalho segundo a qual, o campo das neuroses, campo do inconsciente real, é uma espécie de território onde domina uma língua oficial – alíngua histérica – da qual as outras formas de sintoma, especialmente a forma do sintoma obsessivo, correspondem a um dialeto.
Alíngua histérica e dialeto obsessivo Na introdução do caso do “homem dos ratos” [Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) v. X] Freud afirma que “A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos de poder orientar-nos a seu 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campos do Fórum Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum Salvador
14
respeito com mais facilidade de vez que se refere com mais proximidade às formas de expressão adotadas pelo nosso pensamento consciente do que a linguagem da histeria. Sobretudo, não implica o salto de um processo mental a uma inervação somática — conversão histérica — que jamais nos pode ser totalmente compreensível”. Esta relação entre alíngua e dialeto pode ser estendida às demais formas da neurose inclusive à paranoia se tomarmos por referência o caso de Cecília [Caso 5 - Srta. Elisabeth Von R. (Freud) v.II] no qual ele afirma que “... a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum...” Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria língua faz uso da alíngua, ou como diria Lacan o objeto da lingüística não é a língua, mas alíngua.
Se me for objetado que Freud também destacou acima que o pensamento obsessivo é mais próximo do pensamento consciente, ou que Lacan denominou a neurose obsessiva de o 15
princípio da consciência [L‘insu-que-sait de l‘une-bévue s’aile à mourre, 17/5/1977, Rumo a um significante novo – IV – Um significante novo] mesmo que me agrade a ideia de elevar a obsessão à categoria de uma neurose exemplar, refutaria que ainda assim não faz discurso: não dizemos, a rigor, discurso obsessivo. Uma terceira referência a propósito da dominância da alíngua histérica sobre o dialeto das demais formas de sintoma pode ser encontrada na fórmula 9 do artigo [Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) v.VIII] “(9) Os sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina”. Trato esta fórmula como um teorema e faço sua demonstração traduzindo fantasia sexual inconsciente masculina, primeiramente por significação fálica e, em seguida por gozo fálico [J ], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significação Bedeutung) o falo; por outro lado, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por significação tórica e, em seguida, por gozo do Outro [J ], posto que o gozo do Outro é aquele que toma por referente o furo e que se pode mostrar seja através do símbolo do conjunto vazio [ ] ou da Impossibilidade da Relação Sexual [IRS]ou ainda do objeto a. Freud termina este artigo afirmando que “No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual. Assim não ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos resolvido um dos seus significados sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso, podemos observar como o paciente se utiliza, durante a análise de um dos significados sexuais, da
16
conveniente possibilidade de constantemente passar suas associações para o campo do significado oposto, tal como para uma trilha paralela”. O significado bissexual do sintoma histérico, que nesta fórmula é indicado como sintoma completo, como trabalho acabado, donde seu valor de alíngua oficial, devemos traduzir por significado asexual, posto que sabemos que a outra parte da sexualidade não pode se escrever, não havendo por isto relação. Quarta referência, desta vez em L´Étourdit, de Lacan, publicado no thesaurus: lalíngua [Lalíngua nos seminários, conferências e escritos de Jacques Lacan, organizado por Dominique Fingermann e Conrado Ramos e publicado em Stylus 19, OE 492] “... Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar seu resultado, o real de que não existe relação sexual - se depositou ao longo das eras...” Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estruturado como uma linguagem em o inconsciente real estruturado como alíngua. Prefiro traduzir lalangue por alíngua que por lalíngua porque apesar da segunda evocar a lalação não permite o equívoco que a primeira conserva. A objeção de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e de que a alíngua não é uma estrutura deve-se responder afirmando que o inconsciente real estruturado como alíngua corresponde a ideia do inconsciente como aluvião dos mal-entendidos da língua.
17
O discurso histérico Passemos ao discurso histérico que escrevemos desse modo e que podemos ler de várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o sentido [Introdução è edição alemã de um 1º volume dos Escritos, OE 550].
Existe uma clínica. Ela é inclusive anterior ao discurso analítico, e se o discurso analítico lhe trouxe alguma luz, isso ainda é preciso ser demonstrado. A clínica é mais antiga. O que é uma clínica? Não podemos dizer só há uma estrutura clínica, a estrutura de linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S( )], porque isso não é uma clínica. A clínica psicanalítica é o que se diz em uma psicanálise. Mesmo se deduzo da afirmação, da Bejahung e da não-afirmação, da Verwerfung, da primeira afirmação e da primeira não-afirmação, nesse nível ainda não há uma clínica, porque
18
estamos no nível da gênese do julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível que deduzo da estrutura de linguagem e que chamo de estrutura do sintoma. Creio que é por esta razão que Lacan afirma que existe uma clínica no nível das formas do sintoma. Uma clínica depende das formas de sintoma. É preciso que o sintoma tome forma, configuração, para que se possa dizer: existe uma clínica.
É necessário que o sintoma tome a forma que convém à estrutura do sintoma para que possamos falar de clínica. Portanto, a clínica é das formas do sintoma, das formas neuróticas do sintoma, que podemos escrever como [Σn] e que sabemos que resultam da estrutura do recalque, ou das formas que podemos escrever como [Σp], do sintoma psicótico, que é outra forma do sintoma e que depende da estrutura da foraclusão ou da holófrase. A holófrase precede a frase. É uma coalescência dos intervalo
da frase que suprime o
próprio da neurose, que também se pode escrever como
e funciona como 19
Um que vai da debilidade à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto da mensagem articulada. Um é do simbólico o outro é do real. Um é pré-verbal o outro é prélinguagem.1 Podemos partir de [S( )] e deduzir daí o discurso histérico; isso torna possíveis as formas histérica, obsessiva e fóbica do sintoma. Em um esquema como esse, temos, num primeiro nível, a estrutura da linguagem, do significante e, num segundo nível, a estrutura do sintoma, que é, por exemplo, o discurso histérico. Hoje vou dizer que o discurso histérico é a estrutura do sintoma por excelência, dado que esse discurso operou do lado da afirmação primordial, operou negando essa afirmação de modo veemente, afirmando: tenho horror de saber disso, que é o que se chama de mecanismo do recalque e que permite constituir a estrutura do sintoma que atinge um discurso, o discurso histérico, do qual podemos deduzir diversas formas de sintoma. De acordo com essa concepção, a obsessão e a fobia deveriam ser consideradas como formas do discurso histérico, ou tipos de sintoma que resultam da estrutura do recalque. Dessa maneira gostaria de elevar o discurso histérico à estrutura de todo sintoma ou, pelo menos, à estrutura de todo sintoma neurótico e fazer da obsessão e da fobia formas do sintoma histérico.
1
SOLER, C. O corpo falante. Caderno de Stylus, p.27.
20
Dizer que o sintoma obsessivo é uma forma do discurso histérico é, no léxico de Freud, dizer que a obsessão é um dialeto da histeria, ou que é uma forma inacabada do sintoma. Poderíamos usar o léxico de Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in progress”, um sintoma em construção, um trabalho em andamento. O sintoma fóbico é também um “Work in progress”, dado que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma histérico, em um sintoma obsessivo, ou se vai permanecer, todavia como um sintoma fóbico. Podemos estender este argumento ao extremo para poder dizer que inclusive a paranoia uma vez colocada no dispositivo analítico, isto é, uma vez operada a partir do discurso do analista deve ser hystorizada ou histerizada a fim de se tornar sintoma analítico. Isto parece contrariar o conceito de estrutura clínica, a ideia de que as estruturas clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria pode virar paranoia, nem mesmo disse que a paranoia pode virar histeria, disse que o paranoico pode historizar seu
21
discurso posto que a paranoia é igualmente um fato de discurso. O paranoico continuará paranoico, porém com um discurso histerizado, historizado. Isto, certamente implicará em uma estabilização.
Talvez possamos tomar como exemplo de sintoma em construção o caso do Índio. Trata-se de uma “personalidade” anancástica. Um estudante de Engenharia ambiental que se preocupa desde já em proteger o ambiente, por exemplo, reaproveitamento da água suja para a descarga. Suas máximas: o homem destrói o ambiente; o sol vai esfriar; o índio já era artista muito antes de Tarzan... Com quatro anos de idade perguntou à sua mãe: e quando a água do mundo acabar? Ela respondeu: não vai acabar. Ele replicou: como não vai acabar se todo mundo usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um atraso escolar considerável, uma procrastinação. Para me explicar diz que era uma criança tão hiperativa que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir desculpas à professora e aos
22
colegas; morreu de vergonha. Seu pai gostava de lhe expor ao ridículo: vestir-lhe de palhaço com a cara lambuzada em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia de índio, sem roupas, sob o argumento irônico de que: índio anda nu. De modo que acredito que esta fixão de gozo determinou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional.
23
Algumas observações sobre o núcleo real do sinthoma e a experiência do gozo Outro Elisabeth da Rocha Miranda1 O sintoma é, para Freud, uma solução de compromisso (Kompromissbildung) entre o desejo inconsciente e as exigências defensivas do eu. É um sinal e o substituto de uma satisfação pulsional que não pode alcançar seu alvo de forma direta. É uma mensagem cifrada que pede interpretação. Para Lacan, o sintoma endereçado ao Outro ganha uma significação. A “dialética do senhor e do escravo” elaborada por Hegel foi uma referência quando em 1953 no texto “Função e campo da palavra e da linguagem” Lacan nos dá uma primeira leitura da questão do sintoma. A partir de 1958, no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Lacan,1958) ele concebe o inconsciente como tendo “a estrutura radical da linguagem” (Lacan, 1958: 600). A linguagem, segundo Saussure, é plena de diferenças e a sincronia significante inscrita no lugar do Outro, longe de ser uma plenitude compacta, contém rupturas. Na seqüência sincrônica da linguagem abre-se uma hiância que se revela na clínica e pode ser formalizada graças à teoria lacaniana do Outro do significante. A incompletude do Outro é um fato de estrutura, o que faz Lacan defini-lo como lugar da fala, “lugar da falta” (Lacan, 1958: 633). O recurso do sujeito para lidar com essa falta é o apelo ao significante Nome-do-Pai concebido como o significante do Outro da lei inserido no Outro do significante. A significação fálica, produzida retroativamente, está regida pela função paterna, que se 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil, membro do Fórum Rio de Janeiro
24
inscreve no seio do Outro, em A. O sintoma se apresenta, neste momento, como metáfora significante e se constitui em decorrência da inscrição do significante Nome-do-Pai. No entanto, a estrutura do sintoma não se limita à estrutura da metáfora, já que o sintoma não se resolve de todo em uma análise da linguagem. O sintoma está enraizado em algo de uma natureza distinta do significante, o que se comprova com a teoria das pulsões. A compulsão à repetição e o gozo participam da estruturação do sintoma tanto quanto a metáfora significante surgida do discurso do Outro. A lógica da enunciação não pode encontrar no campo do significante seu próprio fundamento. Não há Outro do Outro, visto que todo enunciado de autoridade possui como única garantia sua própria enunciação. Nenhuma metalinguagem pode articular a verdade última do desejo. Há um significante que marca que ao Outro falta, constituindo-o por uma falha e que se escreve com o matema
. A ordem simbólica está articulada em torno de um furo, o que
nos permite considerar
como o matema do Nome-do-Pai. Ainda que tenha sido
introduzido para sublinhar a mortificação do pai freudiano pelo significante, o Nome-do-Pai encontra-se inserido de saída no campo da linguagem. A incompletude do Outro impede que consideremos o pai simbólico como o significante mestre (S1). Lacan destaca que o pai da horda primitiva, cujo desaparecimento instaura a lei, não transmite nenhuma mensagem, de tal maneira que sua função se iguala a um significante sem significação. A referência a sua morte vai a favor do Outro marcado por uma hiância. “O cadáver é um significante, mas o túmulo de Moisés está tão vazio para Freud quanto o de Cristo para Hegel. Abraão a nenhum dos dois revelou seu mistério” (Lacan, 1960: 833) diz Lacan em 1960. Na única aula do
25
seminário “Os nomes do pai”, Lacan (1963) diz que o sacrifício exigido por Deus a Abraão nos faz entender que a herança do pai freudiano reside no complexo de castração. A descoberta freudiana e a lógica matemática levaram Lacan a formular a tese de que o significante Nome-do-Pai determina e ordena a cadeia significante, regulando o gozo inerente a ela, gozo limitado pela renúncia ao objeto primordial de gozo. Essa tese se afirma com as fórmulas da sexuação e com o tardio desenvolvimento da cadeia borromeana no ensino de Lacan. A necessidade de recorrer a essa noção se impõe devido à inexistência da relação sexual. Uma amarração das três instâncias R.S.I. constitui a topologia mínima capaz de captar a estrutura do sujeito e construir a realidade para o ser falante. A topologia dos nós baseia-se na idéia do furo, já que o desejo só se sustenta em uma falta (Lacan, lição de 15 de abril de 1975). “A cadeia borromeana é um triplo furo” (Lacan, 1975: 267) que delimita o quarto furo onde se aloja o objeto a. Esses furos se presentificam de maneiras diversas em cada um dos três registros; no registro do simbólico, ele aparece como a hiância fundamental, como a incompletude do Outro, como já dissemos, não há Outro do Outro, ao Outro falta, ele é barrado em relação ao todo; no registro do imaginário (Lacan, lição de 11 de março de 1975 e de 10 de dezembro de 1974), para além do que a imagem do corpo tenta elidir, o furo se faz através da negativização do falo (–phi); no registro do real, temos a hiância posta às claras pela não relação sexual, que marca a impossível completude do ser sexuado. Em 1975, Lacan faz uma equivalência entre o Nome-do-Pai e a cadeia borromeana. Esta, como já dissemos, é composta de três registros, RSI, que por si só não dão ao humano a
26
estrutura necessária para que ele aceda ao falasser (parlêtre) e como tal poder utilizar-se do discurso como recurso à falta-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três e esse quarto nó é o Nome-do-Pai, que nesta ocasião Lacan faz equivaler ao sinthome. Temos então o objeto a enquanto puro vazio, marca da castração, da falta radical constitutiva do sujeito alojado no quarto furo delimitado pelo RSI. Neste mesmo lugar Lacan situa o sinthome e o Nome-doPai. O sinthome escrito assim em uma nova grafia tomada do francês antigo é utilizado por Lacan para designar o conceito de sinthoma como quarto nó correlativo ao Nome-do-Pai. Para forjar este novo conceito diz Lacan, foi “preciso reduzir o sinthoma em um grau para considerar que ele era homogêneo à elucubração do inconsciente” (Lacan, 1976: 134). O conceito anterior era o de uma metáfora estanque, cujo sentido era possível de se extrair; a partir da indicação de 1976, temos um irredutível no sinthoma que se mantém no campo do Real, estabelecendo “uma coerência entre o sinthoma e o inconsciente [...]. Elemento necessário da estrutura o sinthoma é ancorado em um gozo vinculado ao da fantasia fundamental. Algo do sinthoma escapa ao sentido de tal maneira que no final de uma análise resta-nos apenas “saber fazer com seu sintoma” (Lacan, lição de 16 de novembro de 1976). Se existe um núcleo incurável, resta-nos assumi-lo, o que produz uma modificação do sujeito na relação com seu próprio gozo. O sinthoma é o real que se faz presente no simbólico, é a existência de uma marca do inconsciente transportada ao simbólico, ele é “é o que as pessoas têm de mais real” diz Lacan (Lacan, 1975: 41), é a comprovação de que há inconsciente, é o que testemunha que o
27
inconsciente mordeu o real. Logo, pode-se falar de sinthoma quando há uma marca de inconsciente do sujeito que se enodou com algo do real de seu gozo. O sujeito não é só relativo ao significante, o que realmente lhe dá existência, está ligado ao real de seu gozo, ao real do sexo. Em Lacan, a posição sexuada, a identidade, tem essencialmente suas raízes no real e não na relatividade significante e é, finalmente, a alteridade feminina que põe sobre o tapete o laço do sexo com o real. No entanto, o problema do neurótico não é que o Outro do Outro não exista, mas o que existe no lugar da inexistência do Outro como real. O sujeito tem que lidar com o que existe como alteridade. Confrontar-se com a alteridade é confrontar-se com a questão do que existe aí onde o Outro está barrado
, é confrontar-se com a ex-sistência.
É na barra colocada sobre o Outro, nesta falta, nesta falha que se articula o lugar do gozo. O gozo fálico é limitado pelo Um da exceção enquanto que o
é o lugar no qual
Lacan situa o gozo feminino, outro que fálico, e que está em relação ao lado não-todo, em relação a não existência do Um da exceção que seria a mulher se ela existisse, logo lugar da ex-sistência. O gozo do Outro barrado conforme Lacan o apresenta em 16 de dezembro de 1975 não é o gozo do Outro do significante, nem o Outro como corpo, mas Outro real, quer dizer impossível, é o furo abissal e impossível que existe no lugar do Outro do Outro que não existe. É o verdadeiro furo da estrutura. O sinthoma é uma resposta à possibilidade sempre presente dos três registros R.S.I. se confundirem. Resposta que se faz através do ser sexuado, pois o gozo referido ao objeto a enquanto perda exclui a diferença sexual. O ser sexuado se faz através do gozo implicado na
28
fantasia fundamental e se articula ao núcleo real do sinthoma, ao gozo do sinthoma. É no lugar de J(A barrado) que Lacan inscreve o artifício do sinthoma como quarto elemento da estrutura, necessário à subjetivação, por impedir que os outros três se confundam. O final de uma análise freudiana é o rochedo da castração, a inveja do pênis Penisneid para as mulheres e o protesto viril para os homens, mas para uma análise lacaniana que vai além do falo, a castração se verifica no
como significante do gozo feminino, que se trata
de dissociar do objeto pequeno a da fantasia. A partir daí podemos fazer uma diferença entre o gozo do sinthoma histérico, que é o gozo da privação do phallus e o gozo Outro que Lacan em O Seminário, livro: 20 Mais ainda...faz corresponder ao gozo de Deus, como a outra face de Deus. O gozo de Deus genitivo subjetivo tem a face do Nome-do-Pai e outra face que é o gozo feminino que demanda ainda e sempre amor. A demanda de amor parte do Deus barrado e a hiância que marca o abismo que o Outro representa, faz com que a demanda de amor jamais seja satisfeita. A noção de gozo de Deus é introduzida por Lacan na falha dono borromeo. Chegar a decantar seu sintoma, chegar ao núcleo real do sintoma é uma possibilidade de se produzir um irreal, que é o objeto pequeno a no fim da análise. Em 1969 Lacan no relatório do Seminário, livro15 O ato analítico diz que: é “a partir da estrutura de ficção pela qual se enuncia a verdade que ele –o sujeito- fará de seu próprio ser, estofo para a produção de um irreal” (Lacan, 1969, p.372). Irreal que remete ao vazio de ser e à estrutura de ficção. Final em que o sujeito chega a tocar a estrutura, cuja chave é o gozo do Outro barrado J(A
29
barrado), hiância que conforme Lacan em O Seminário livro 23 o sinthoma se abre entre imaginário e o real. Decantar o sinthoma até as últimas conseqüências é poder verificar que há algo do qual nós não podemos gozar e que imputamos à Deus, e neste lugar não há nada de nada. Se para o neurótico o sinthoma é uma rede que o aprisiona na compulsão à repetição, no final de uma análise pode-se experimentar um silêncio inominável que liberta e apazigua. Fica então a questão a ser comprovada clinicamente da possibilidade contingencial de ao final de análise, ao chegar ao significante da falta no Outro feminino, na medida em que também é aí em
se ter a experiência do gozo Outro
que Lacan o situa. Pode-se experimentar o
gozo Outro feminino, sempre que se ocupa a posição feminina e se cai no vazio de
e
uma das possibilidades de se experimentar aí é no momento do final de uma análise.
Bibliografia
30
LACAN,J. (1953) Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ———— (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ------------ (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. -------------(1958) “Die Bedeutung des Phallus” In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ————. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. -------------(1963) O Seminário Os nomes do Pai Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ————. (1969). Seminário De um Outro ao outro. Inédito. ————. (1973-1974). Seminário: Les non-dupes errent. Inédito. ————. (1974-1975). Seminário: RSI (1974). Inédito. ————. (1975). Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines. In Scilicet 6/7. Paris: Seuil, 1976. ————. (1972-1973). O seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
31
————. (1975-1976). O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
“Dar na pinta”: Parecer mulher com corpo de homem
Georgina Cerquise
1
No tempo inaugural da psicanálise, um dos critérios para estabelecer-‐se o diagnóstico de histeria era o sintoma conversivo. Freud ampliou o campo das descobertas e teorizou, em (1893-‐1895), que diferentes fatores sexuais produzem diferentes quadros de desordens neuróticas. Em 1905, o conflito psíquico-‐inconsciente passa a ser a principal causa da histeria, ao introduzir-‐se a realidade psíquica como um aporte que favorecia o entendimento da sintomatologia da doença. A conversão começa, então, a ser entendida como uma tentativa de realização do desejo. Freud avança em sua tese quando pesquisa a sexualidade infantil, postulando que tanto a impossibilidade de o sujeito liquidar o complexo de Édipo quanto a tentativa de evitar deparar com a castração têm conseqüências: levam o sujeito a uma rejeição da sexualidade, conduzindo-‐o à neurose histérica. Caso Clínico: A mãe de um jovem de dezoito anos, em entrevista, pede para que seu filho seja atendido, alegando uma necessidade de ajuda. Esclarece que ele escolheu o pior caminho, pois assumiu a homossexualidade. Acrescenta que ela tivera problemas no parto e que isso ocasionou muitas dificuldades no desenvolvimento do filho. No período escolar, custou para ser alfabetizado e “sempre teve a pecha de retardado, esquisito, inconveniente e exibido”. Ainda não conseguiu concluir o primeiro grau, apesar dos esforços da mãe para colocá-‐lo em escolas especiais. No momento do
1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum Rio de janeiro
32
encaminhamento, estava cursando a sexta série do primeiro grau, numa escola municipal. A mãe revela que ficou doente durante anos, com uma depressão que lhe jogava na cama, não tendo cuidado direito dos filhos. Diz também que o alcoolismo do marido derrubou-‐lhe e que não teve escolha: mandou-‐o embora. Ela interroga-‐se: “Será que isso que acontece com meu filho é falta de pai?” Para o sujeito histérico, há um reconhecimento da falha, da impotência do pai. Isso não quer dizer que ele deixe de ostentar os títulos simbólicos de pai, “mas, como um ex-‐combatente, tem os títulos, mas está fora de combate” (Kaufmann, 1998, p. 249). O jovem chega atrasado para a sessão, a primeira impressão choca, percebe-‐se um corpo de menino de 12 anos em um jovem de 18 anos, extremamente magro. Com voz de criança, olhar fugidio, afirma: “Não sei se você percebeu, mas eu sou um gay”. Revela que já havia feito a sua opção sexual, o que lhe trazia problemas em casa. Costumava freqüentar boate gay, casa de orgia, e que saia com qualquer um, além de “baixar também no Aterro do Flamengo”, embora isso fosse reprovado pelos amigos. O paciente explica: “Gosto de tudo escandaloso, gosto de dar na pinta; quando chego, eu arraso, não me incomodo que me chamem de bichinha quá-‐quá-‐quá”2. A teoria freudiana de 1888 postula que nos sintomas da histeria pode ser observada uma série de distúrbios psíquicos: alterações no curso e na associação de idéias, exagero e supressão dos sentimentos. As manifestações histéricas têm uma característica marcante: são sempre exageradas. Percebe-‐se que o jovem tem um comportamento histriônico. Há, na sua fala, significantes expressivos que dão contorno de um possível diagnóstico de histeria: voraz, exagerado, escandaloso e, em especial, “dar na pinta” – expressão que para ele significa chocar e aparecer, no meio da boate, com roupas diferentes e danças sensuais, sem dar bola para ninguém.
2
Alcunha dada aos homossexuais que se exibem, que são escandalosos
33
Chamando atenção pelo ônibus com roupas extravagantes, o jovem atravessa a cidade em busca de boates e lugares onde há festas de gays, sem levar em conta a preocupação da mãe que lhe adverte sobre a violência da cidade. Mesmo assim, ele sai sem preocupar-‐se com nada. “Eu tenho de sair, não posso perder tempo, eu não penso em ficar velho, prefiro morrer a chegar aos trinta anos”. Segundo a postulação freudiana, “a histeria masculina tem a aparência de uma doença grave; os sintomas que ela produz quase sempre são rebeldes ao tratamento” (Freud, 1888, p. 95). Esclarece que sempre vai para o “quarto escuro3” da boate e transa com que estiver ali e que não costuma ficar com ninguém. “Eu não gosto de homem, eles não prestam, esses gays são homens também, isso é a pior raça: são competitivos, querem sempre derrubar o outro”. Curiosamente, revela: “Gosto mesmo é de mulher, elas são o máximo, eu procuro imitá-‐las, quero superá-‐las, mas sem cair no ridículo de amar sem ser amado. Percebe-‐se aqui o narcisismo e a identificação com as mulheres. Tal qual a jovem homossexual, ele apresenta uma amargura generalizada pelos homens. Com muita emoção, o paciente traz para a sessão um pai falho: “Não sei onde ele está, é um alcoólatra”. Rememora sua infância sofrida, com a mãe deprimida e o pai brigando dentro de casa. “Quando eles começavam, eu ia para a rua e fazia sacanagem com os meninos da vila. Era a alegria da meninada, porque já era um exagerado, tinha uma fila para transar comigo, depois eu sentia nojo e ficava muito triste”. No “caso Dora”, Freud pontua: “Eu, sem dúvida, consideraria histérica uma pessoa na qual uma ocasião para a excitação sexual despertasse sensações que fossem, preponderante ou exclusivamente, desagradáveis; eu o faria, fosse ou não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos” (Freud, 1905, p. 26). Na tentativa de esclarecer melhor os episódios, a analista pede-‐lhe que desdobre sua fala: “Será que sou assim por que meu pai não me olhava? Eu tentava chamar atenção dele, queria um pai como todos 3
“Quarto escuro” é o local de encontro em que os gays transam sexualmente. É costumeiro não haver reconhecimento do parceiro. Segundo a fala do paciente, esse local funciona como um “vale tudo”.
34
os meninos tinham. Ele era um homem bêbado, um pobre coitado, mas eu sempre defendi meu pai, eu gosto muito dele”. Lacan destaca o amor do histérico (masculino-‐feminino) pelo pai, apesar das falhas, acrescentando que o sujeito se coloca como aquele que vai amparar, vai tentar suprir a incapacidade paterna. O histérico engendra seu amor ao pai a partir do que este não lhe dá. Na teoria psicanalítica, a histeria articula-‐se, a partir do Édipo, com uma pergunta: Sou homem ou sou mulher? Vale ressaltar que isso está para os dois sexos. Após esse primeiro momento da análise, o paciente faltou às sessões por duas semanas. A analista recebe um telefonema da irmã que pede, aflita, para que a família seja atendida. Na sessão, comparecem a mãe, o paciente e sua irmã. A mãe, enlouquecida, diz que o paciente ficara doente, com erupções na pele, e que o médico lhe pedira um exame de HIV. Repreende o filho com dureza e chora copiosamente. O jovem está acabrunhado e, até mesmo, apavorado, mas tenta disfarçar a angústia: “Não estou nem aí, seu eu tiver com a “doce3“, melhor, eu não quero viver até os trinta anos, não suporto a idéia de envelhecer, de ficar com o corpo velho; por isso, aproveito tudo agora”. O resultado dá positivo, revelando a presença do vírus no rapaz e instalando o caos familiar. O paciente chega para a análise com o corpo coberto de erupções, pede uma cadeira de pouco uso: “Eu peguei sarna, não quero passar isso para seus pacientes”. Sem falar sobre o resultado do exame, diz que sua mãe está louca, que sua irmã é irresponsável porque não cuida dos filhos. A analista intervém e pergunta o que estava realmente acontecendo. Ele responde, aos gritos e histericamente, que não queria falar, mas que não podia esquecer e que sabia que iria morrer jovem. Frente a essa atuação, a analista pergunta-‐lhe diretamente sobre o resultado do exame. Ele chora, grita, revolta-‐ se e diz que o pior era não poder transar livremente: “Eu estou enterrado vivo. Como pode uma pessoa nova como eu ficar sem sexo?” 3
Gíria usada pelos gays para designar o vírus HIV.
35
Completamente transtornado frente aos limites impostos pelo médico, como defesa, não esboça nenhuma elaboração quanto à doença. Não quer saber de nada disso, preocupa-‐se em ser descoberto, em “dar pinta”, com o corpo, de que estava “pegado”4. “Eu não me preocupo em morrer, eu só não quero ficar como um coitado, eu prefiro morrer jovem a ficar velho”. Teríamos aqui o desdobramento da fantasia “envelhece-‐se uma criança, ou pinta-‐se uma criança”? O paciente prossegue: “Eu nunca achei que pegaria a doce, ninguém fala o que tem e vai passando para os outros” No desenrolar da análise, o jovem recupera-‐se do susto e segue retomando seus hábitos antigos. É fácil observar que ele não tem nenhum projeto, não pensa em trabalhar, o estudo é só uma fachada encobridora. Ele dorme de dia para sair na noite. Interrogado sobre os cuidados que deve ter para evitar a contaminação, responde evasivamente e troca de assunto. Frente a isso, a analista, como diretriz, chama a mãe para entrevista.
A mãe revela: “Vivo no inferno, meu filho está com HIV, não consegue estudar, não faz nada, só pensa em futilidades. Continua arriscando-‐se pela noite, sai sem dinheiro, com roupas estranhíssimas, que podem provocar a agressão dos outros”. Essas roupas são peças femininas em um vestuário masculino, do tipo: calça jeans masculina, bordada com paetês e brilhos; blusa cor de rosa; botina do Exército; anéis de caveira com pulseiras de miçangas; gargantilhas; cinturão masculino. Cabe aqui citar o Abade de Choisy5: “Quando alguns homens possuem ou crêem possuir traços belos, que podem inspirar amor, tratam de aumentá-‐los com seus adornos femininos. Sentem, então, um inexprimível prazer de ser amado” (Choisy, 1985, p. 13). O jovem revela que adora “se montar”6, e nas boates e festas, destaca-‐se com suas “peças” femininas; sempre que pode, dança e se exibe: “Todos pensam que eu me drogo, 4
Gíria referente a quem tem o vírus HIV. Referência feita por Lacan, no artigo “A carta roubada” (In: Escritos, 1998), a respeito de um homem que se vestia de mulher para amar as donzelas que deviam estar vestidas de homem. 6 “Montar-‐se” significa vestir-‐se com adereços ou roupas femininas. 5
36
mas não tem nada a ver. Eu só bebo água, porque estou sempre sem dinheiro, bem que gosto de um vinho. Agora, estou comprando pinturas e cílios postiços, vou me maquiar para sair na night”. O que você pretende? – indaga a analista. “Parecer uma mulher com um corpo de homem”. Lacan (1985[1955-‐56], p. 204) ressalta que: “nos sintomas histéricos, é sempre de uma anatomia imaginária que se trata”. Cabe aqui uma questão diagnóstica: No caso, estaríamos diante de um desmentido da castração ou do recalque? De uma neurose ou perversão? Lacan (1956-‐57, p. 121), ao citar a tese freudiana de que a perversão é o negativo da neurose, marca a diferença entre o mecanismo de um fenômeno perverso e a perversão categórica, chamando atenção de que o molde da perversão se forma a partir da valorização da imagem. “Você sabe, eu gosto de ser homem, mas não gosto de homem, eles não prestam. O único homem que eu amei foi meu pai, mesmo assim ele me abandonou, nunca se preocupou comigo. Talvez, se ele não tivesse ido embora, eu seria diferente”. Por quê? “Eu acho que não teria coragem de decepcioná-‐lo”. Em “A dissolução do complexo de Édipo”, Freud teoriza que há duas saídas para o complexo de Édipo: uma satisfação ativa, e outra passiva. Na primeira, a criança poderia colocar-‐se no lugar de seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe, tal como o pai, sendo que este ocuparia um lugar de estorvo. Na segunda, a criança poderia assumir o lugar da mãe e ser amada pelo pai. O paciente agora apresenta o projeto de trabalhar como cabeleireiro ou com moda: “Não sou uma bichinha doméstica, não suporto trabalho de casa. Também não consigo aprender nada na escola, mas tenho vergonha de dizer que ainda estou no primeiro grau”. O trabalho analítico é difícil porque o paciente falta às sessões, perde ou esquece a hora. Na clínica psicanalítica com adolescentes, o tratamento costuma ser cheio de impedimentos e resistências, visto que o jovem interpreta a análise como mais uma imposição dos pais. Apesar dos avatares, sempre é possível um trabalho se a transferência tiver sido estabelecida. Nesse caso, o jovem vai e vem, mas sempre retorna
37
do ponto onde começaram as faltas. Interroga a analista sobre seu saber e investiga sobre a “lembrança” de suas falas: “Não suporto ser esquecido, ainda bem que você não esquece o que eu digo”. O que é isso: ser esquecido/lembrado? “Você sabe, isso é uma dor horrível, meu pai esqueceu de mim, ele nem me conhece mais. Se eu passar por ele na rua, não vai me reconhecer mesmo”. A analista pede que o paciente desdobre sua fala e, chorando muito, diz: “Eu vestido de metade homem/metade mulher passo ao largo e ele pode me olhar, mas não vai me ver. Esse gay não é o filho dele, quando ele foi embora eu ainda era um menino, eu tinha 10 anos”. A exibição do jovem paciente faz lembrar o caso da “Jovem homossexual”, de Freud: junto com sua amada, tenta chamar a atenção do pai, exibindo-‐se nas ruas por onde costumava passar. A nostalgia do nosso paciente refere-‐se ao nada que ele ocupa no afeto do pai, ou seja, mesmo que passe pelas ruas fantasiado, chamando toda atenção, o pai não poderá reconhecê-‐lo como filho. Num segundo momento da análise, oferece-‐se para trabalhar como ajudante de cabeleireiro, mas é reprovado, não tem a escolaridade exigida, e os documentos necessários para empregar-‐se. Sofre um abalo com as recusas sociais e com as advertências do médico com relação a sua conduta: ele se coloca em risco de vida e pode ser mortífero para os outros. Esse tempo de análise foi de intensa angústia e desespero. Sem conseguir nada do que deseja e com muitas reclamações, revela uma fantasia: “Tenho vontade de trabalhar na night, dançando, fazendo show de “drag-‐queen”. Sempre que danço, eu abalo. Gosto muito de palco e, nas boates, fico bem no lugar onde posso aparecer. O jovem trabalha essa idéia e pede ajuda às suas amigas mulheres. Começa a busca por roupas e acessórios femininos que lhe possam favorecer nessa empreitada. A mãe nada sabe disso, visto que ele esconde as roupas. A mãe sempre pergunta e cobra o trabalho, o estudo e lembra que ele tem o vírus. Isso basta para que se desencadeiem brigas e agressões verbais ditas na janela para envergonhar a mãe e fazê-‐la parar de falar.
38
Nesse momento, a rebeldia se entrelaça com uma concretização do desejo, pois ele cava uma oportunidade de dublar uma música num concurso de certa boate gay. Escolhe, sozinho, uma música e resolve “montar-‐se” de “drag-‐queen”, planejando o show. Trata-‐se de uma competição em que o ganhador recebe um prêmio em dinheiro. Como treinamento, participa de uma parada gay “montado de mulher”. Escondido da mãe, tal qual Anna Ó, ele arma seu “teatro privado’’ durante o dia: ensaia frente ao espelho a dublagem de uma música em inglês, idioma que não domina, repetindo as palavras, sem distinguir seu significado. Há, porém, três significantes de que ele se apropria para estabelecer os gestuais da mímica: my eyes, my hair, my lips. O jovem, realmente, dá seu show. Frente às vicissitudes do desejo, ele tem uma estratégica histérica: no palco, correndo o risco máximo como todos os jovens costumam fazer, ele entra em cena com o nome artístico de “Ohana”. “En-‐cenando” seu número no começo da apresentação, ao sacudir seus cabelos postiços, a peruca cai em pleno palco, já que não foi devidamente presa para agüentar os gestos da dança e da mímica7. Ohana, em desespero, fica sobre o foco do refletor vestido de “drag”, sem a peruca e sem ação. Vaiado, ridicularizado, como um objeto que cai, como um nada, ele sai de cena e desmaia em pleno palco. “O nada e o olhar são aqui duas formas de referências ao objeto em que o sujeito, nesse momento, se fixa” (Alberti, 1995, p. 81). Como resposta a esse embaraço máximo, surge a angústia frente ao real impossível de simbolizar. O jovem, abalado, sem resistência, pega uma virose, mas seu organismo recupera-‐se e ele volta à análise. Impactado com os acontecimentos, faz um acting-out: pinta seus cabelos de rosa e tortura a mãe para que lhe dê dinheiro. Ameaçando jogar-‐se pela janela, aos gritos, quebra uma mesa e sai pela noite. Em análise, confessa: “Saí como uma pantera cor-‐de-‐ rosa só para chocar e dar pinta de gay maluco. “Não pense que esqueci a vergonha que passei no show”.
7
A estratégia histérica frente ao desejo é torná-‐lo insatisfeito.
39
Indagado sobre o que ele pretendia fazer frente ao fracasso, chora e grita: “Eu preciso trabalhar, achava que era um caminho fácil ser artista e me vestir de mulher. Agora, cai na real, tenho de inventar outra coisa”. Após os episódios, toma outra diretriz: pede ajuda às suas amigas-‐mulheres e aceita trabalhar numa feira de bairro. Corta couro, pinta cinturões e “chama a freguesia com sua pinta dando pinta”, distribuindo panfletos em praça, exibindo-‐se, mesmo com roupas de homem. Poderíamos pensar que a fantasia fundamental do paciente seria tal qual o ditado Bíblico: “Pai, por que me abandonastes?”. Para a analista, Ohana não engana: em praça pública, faz um apelo de reconhecimento ao pai. Talvez pudéssemos pensar que o jovem, neuroticamente, engendra com seu corpo uma defesa contra o aviltamento do pai. Segundo Lacan, “só nos detemos nas coisas quando as consideramos como possíveis. De outro modo, contentamo-‐nos em dizer: é assim, e nem mesmo procuramos ver que é assim” (Lacan, 1985[1955-‐56], p. 115). Bibliografia: ALBERTI, S. – Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Relume & Dumará, 1995. CHOISY, A. – Memorias del Abate de Choisy: Vestido de mujer. Buenos Aires: Manantial, 1987. FREUD, S. “Estudos sobre a histeria”. [1893-‐1895]. –In: Obras psicológicas completas, ESB, v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1977. __________”Histeria” (1888) v.I. In: op.cit _____– “Fragmentos da análise de um caso de histeria”. [1905].v. VII In: op. cit _____– “Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”. [1920]. In: op. cit. v. XVIII. _____– “A dissolução do complexo de Édipo”. [1924]. In: op. cit. v. XIX. LACAN, J. O Seminário, Livro 3: As psicoses. [1985[1955-‐56]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
40
_____– O Seminário, Livro 4: A relação de objeto. [1956-‐1957]. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. KAUFMANN, P. – Dicionário de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
41
Sintoma e Fantasia na Histeria Masculina Andréa Brunetto1 Tendo como referência o artigo de Freud sobre “Dostoievski e o parricídio”, “Batese em uma criança” e “O seminário, livro V: as formações do inconsciente”, pretende-se apresentar alguns casos de histeria masculina e debater como se estruturou a fantasia de espancamento e a relação dessa fantasia com o sintoma. Destacaremos um caso em que a pergunta sobre a sexualidade evidencia a vertente de amor ao pai, que se sobressaiu à identificação. Em “Bate-se em uma criança”, Freud afirma que a fantasia de ser espancado é uma convergência do sentimento com o amor sexual, um substituto da relação incestuosa, proibida. Freud nos apresenta seis casos, dos quais a maior parte obsessivos (quatro) e a maior parte, mulheres. Estabelece três momentos para a construção da fantasia. No primeiro, bate-se em uma criança. Não quer dizer que a criança que constrói a fantasia seja a que apanha. Não tem importância o sexo da criança que apanha nesse primeiro momento. No segundo, meu pai me bate. E no terceiro, fruto do recalque, ‘meu pai bate em outra criança, um menino’.2 Que a criança que apanha seja do sexo masculino, é característica da fantasia nas mulheres. Tem uma variante nos homens. O que pretendemos é apresentar a construção dessa fantasia ‘bate-se em uma criança’ nos exemplos clínicos de homens, com diagnóstico estrutural de histeria, estabelecendo certas variações com relação aos exemplos freudianos. Uma questão é se essas variações têm relação com o diagnóstico estrutural ou refletem a diferença na partilha dos sexos. O que seria seguir Freud. Ele sustenta que a compreensão da construção dessa fantasia
1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro do Fórum Campo Grande 2 Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
42
lhe serve para “avaliar o papel desempenhado pela diferença de sexo na dinâmica da neurose”.3
Os exemplos da clínica Caso 1: Este homem procura a análise, pois tinha rompido com sua analista que tentava controlá-lo. Apresenta muitos sintomas conversivos e sua posição é de denunciar a falta do Outro. Diante de um Outro que espera que ele pague a conta, ele fala não. Assim, seu drama não é dizer não às demandas freqüentes de sua esposa, mas saber por que está com ela, com essa mulher ‘perdida’, que não sabe quem é e nem o que quer. Por vezes tem os mesmos sintomas de sua mulher: náuseas, enjôos, dor de estômago. Mas nesse momento sua análise centra-se na relação com seu orientador, esse homem ‘quase cruel’ que o criticava como seu pai o criticava. Quando ele mostrava seus erros, sentia-se incapaz. E enquanto o orientador falava, lembrava dele próprio, menino ainda, fazendo as tarefas com o pai e ele lhe dizendo ‘você vai estudar mais, senão vou te bater’. E atualmente, durante essas orientações, sente um torpor pelo corpo. Vai para casa, enquanto dirige sente uma leve náusea. Dias atrás, quando entrava em casa, desmaiou, acordou segundos depois, com o corpo doído como quem leva uma surra. Não apenas com o orientador ele encena o espancamento paterno prometido em sua infância, mas tem sintomas que se assemelham aos de uma mulher grávida. Ele não fez essa relação, mas talvez copiando os sintomas de sua mulher, ensaie uma resposta do que ela quer e ainda não sabe: um filho. Como dar um filho a uma mulher se sua fantasia está construída para dizer não a toda demanda do Outro? E, também, a partir da encenação dos sintomas de sua mulher, coloca sua questão: sou homem ou mulher? Sou capaz de procriar? Fazendo uma analogia com o caso clínico descrito por Michael Joseph Eissler, e que Lacan comenta no Seminário III, as psicoses.4
3 4
Ibid, p.239. Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio de janeiro: JZEditor, 1985.
43
Caso 2: È o enganado, procurou análise por que se envolveu em um negócio que lhe trouxe grandes prejuízos financeiros. Todo mundo dizia que deveria sair disso, que seu sócio não era confiável, mas não o fez. Apresenta um discurso da insatisfação, com tudo e todos, mostra falhas na analista, que não lhe responde se deve pegar os novos projetos que aparecem e que conta em suas sessões. Alega que se sua mulher tivesse dito com mais veemência para sair do projeto falido, ele teria feito. Não tem lugar no Outro senão sendo passado para trás. É sua expressão, que tem outro sentido e toca na fantasia ‘bate-se numa criança’: bate-se atrás, no traseiro. Versão, aliás, freqüente, segundo Freud.5 Em uma das vezes comete um lapso e em vez de dizer o nome do ex-sócio, fala o do irmão. Um irmão violento e cruel – que na atualidade é um criminoso – que lhe batia. Lembra das surras que o irmão lhe dava enquanto tomava banho, nu, levando tapas nas costas e nádegas. Pergunta-se: por que não revidei, se era maior e mais forte? Entre a sessão que lembra essa cena e a próxima, conta à analista que desmaiou no chuveiro. Caso 3: Um homem que está casado pela segunda vez com uma mulher rica e repete com ela as queixas que sua primeira mulher lhe fazia: você não me valoriza só porque sou mais pobre. Com a segunda mulher encontrou a mulher bonita que procurava, pois a anterior era descuidada. Nesse segundo casamento se descontrola e bate na mulher. É essa a queixa que o trás à análise. Quando se queixa de que a mulher não o reconhece, ao mesmo tempo é uma queixa feminina – “sinto na carne o que minha ex sofria” – e paterna. O pai sofria diante de uma esposa, sua mãe, durona, que cuidava de todos e não cuidava dele. O sentir na carne, destacado por uma interpretação da analista, é literal, pois durante estas brigas, retorce o corpo, é como se uma entidade feminina fosse incorporar e tem de fazer força para manter o domínio. Este sujeito nos mostra o exemplo freudiano da mulher que se cobre com uma mão, com pudor, e se despe com a outra. Quando se encontrou, na primeira entrevista, com a analista, lembrou-se que lhe tinha sido vaticinado que esta não era a mulher de sua vida, encontraria uma mulher bem alta. Alta é o significante qualquer que o prende às entrevista preliminares. 5
Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, op. Cit., p.
44
Neste segundo casamento, com esta mulher aos moldes da mãe, vamos dizer assim, coloca em ato as surras que levava dela. É ele que bate na mulher, mas não é tão simples afirmar em que lugar ele está: sonha que está apanhando de uma mulher mais velha. Ao contar o sonho diz: não é minha mãe. Fazendo essa negativa, há uma suspensão do recalque, embora não uma aceitação do recalcado.6 Fazemos referência a essa negativa, pois nestes casos que relatamos, é o mais perto que um sujeito chega de reconhecer o prazer da fantasia. Freud afirma que o prazer nessa fantasia ficará inconsciente, mas em um dos casos que descreveu, tal não aconteceu. “Esse homem preservava claramente na memória o fato de que costumava empregar a idéia de ser espancado pela mãe com a finalidade de masturbação”7. Alega que não pode explicar isso, mas esboça uma hipótese: quando a fantasia incestuosa de um menino converteu-se na fantasia masoquista correspondente, ocorreu uma inversão a mais do que no caso do menino, ou seja, a substituição da atividade pela passividade. Caso 4: É um jogador, um jovem que perde muito dinheiro em jogos de azar e quando fica sem dinheiro nenhum, e com dívidas, chama o pai para pagar suas contas, negociar com pessoas um tanto duvidosas. Diz que seu pai prefere a ele, pois se preocupa mais com ele do que com os irmãos. Uma das vezes em que desaparece para jogar, e que a família fica preocupada, é às vésperas de uma viagem dos pais, algo como um segunda ou terceira lua-demel. Quando tudo se resolve, o pai decide não ir, para cuidá-lo. Sente-se vitorioso, o pai se dedica mais a ele que à própria esposa, sua mãe. Compete com a mãe pela atenção do pai, fala dele como, no geral, só as mulheres falam do pai, na clínica: com uma demanda incessante de amor ao pai e como um ‘paizinho’ que gosta mais dele do que dos demais. À parte essa fantasia de ser o menininho do pai, tem namoradas, consegue a ereção e leva a cabo as relações sexuais. Quem o castiga é a mãe, com sua severidade, mas não lembra de ser espancado. Nos homens, estar sendo espancado pela mãe é a terceira fase, sucessora de ‘estou
6 7
Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 296. Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, Op. Cit., p.231.
45
sendo espancado pelo meu pai’, corresponde, nas meninas, ao ‘vejo um menino sendo espancado’. A fantasia do menino é masoquista desde o começo, marca Freud. Ele não encontrou uma primeira fase sádica, como nas mulheres e “deriva de uma atitude feminina em relação ao pai”8. Na menina, parte de uma situação edipiana normal; no menino, de uma situação invertida, no qual o pai é tomado como objeto de amor. Neste último caso, a passividade é maior do que nos outros. Não há irritabilidade contra o pai.. O pai é aquele que “o salva”. Ele “apronta” nos jogos de azar, em outras cidades, para o pai ir buscá-lo. É um jogador inveterado, como Dostoievski, porém sem suas crises epiléticas – histeroepilepsia, nomeia Freud. Porém esse paciente apresenta uma inibição motora – cataplexia narcoléptica, segundo a psiquiatria - entre acordado e dormindo, sente que sua menta está viva e o corpo morto, passa segundos sem conseguir mexer o corpo. “A sensação é de estar morrendo, ou já estar morto e não saber”. Tal como no caso de Dostoievski, suas crises tem o valor de uma punição9. Freud escreve que essas crises semelhantes à morte – já tinha falado sobre elas na Carta 58 a Fliess – refletem o seguinte desejo: “Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa e estamos mortos. Nesse ponto a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai e de que a crise constitui assim uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado”.10 E explica que a punição do supereu funciona assim: “Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo o pai. Agora você é seu pai, mas um pai morto”.11 Nas “crises de morte” encena sua vertente de ódio ao pai, encena em seu corpo. Como Antonio Quinet escreve em Histerias, “o histérico oferece seu corpo como cama e mesa do Outro e diz sirva-se! Seu corpo é erogeneizado pelo Outro. O corpo é também a mesa de 8
Ibid, p. 247. Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 211. 10 Ibid, p. 211. 11 Ibid, p. 214. 9
46
jogo – citando Lacan de Radiofonia - entre o consciente e o inconsciente, entre o sentido e o não-sentido, entre a presença recalcante da razão e o retorno do recalcado”.12 Mas o relacionamento de todo menino com o pai é ambivalente, o pai é o modelo de identificação. E também por ele se tem amor sexual. A fantasia ‘uma criança é batida’ mostra isso. E também se tem ternura por ele É isso que permitirá ao menino preservar sua masculinidade, alega Freud. Lacan afirma que essa virilidade não deixa de ser um semblante ridículo, mas o menino precisará dessa identificação metafórica com a imagem do pai. Esse “pequeno macho”, continua Lacan, tem guardada essa identificação, para no futuro sacar seus documentos’13. Tomando Dostoievski como um caso clínico, Freud explica um agravante em sua neurose: uma forte disposição bissexual. Pela ameaça da castração, ele, menino, se inclinou fortemente no sentido da feminilidade14. “O menino entende que também deve submeter-se à castração, se deseja ser amado pelo pai como se fosse uma mulher.” Dessa maneira, o amor e o ódio ao pai, igualmente, experimentan repressão, como um homossexualismo latente, dirá Freud15. Enfim, Dostoievski tem, segundo Freud, um componente feminino especialmente intenso. E meu paciente também. A incompetência de bancar o homem para uma mulher Se a pergunta do homem histérico é a mesma que da mulher histérica – sou homem ou mulher? – as respostas de sua neurose são mais devastadoras. Essa é a explicação de Maria Anita Carneiro Ribeiro, no artigo “O que é um homem?”. Continuo citando-a: “Nada impede que uma histérica frígida, com asco ao ato sexual, a ele se submeta, pensando em outra coisa e mantendo o desejo insatisfeito. Para o homem histérico, entretanto, que é, como homem, embaraçado por esse ‘penduricalho’, como diz Lacan, a falha na performance fálica deixa a 12
Lacan, J. Radiofonia (1970). Outros escritos. RJ: JZEditor, 2003, p. 414. Lacan, J. O seminário, livro V: as formações do inconsciente (1957-‐58). RJ: JZEditor, 1998, p. 201. 14 Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 212. 15 Ibid, p. 213. 13
47
nu, para além do desejo insatisfeito, a incompetência de bancar o homem para uma mulher. Na hora em que o desejo pega fogo, não há nada a fritar, nenhum peixe fálico em jogo.” Como diz o Caso 1, o histérico cobrado pelos pais, pelo orientador, pela mulher e pela ex-analista, “quando estou com minha mulher, na cama, sinto enjôo e náusea”. Que seja exatamente nessa hora, em que tem de mostrar os documentos, que a fantasia de procriação venha à tona, mostra bem a falta do peixe fálico. Concluindo com as questões do início Por que nesse caso clínico, do jogador, diferente dos outros três, não aparece a fantasia ‘bate-se numa criança’? O Édipo invertido, no qual o pai é tomado como objeto de amor, o fez prescindir da fantasia ou reflete apenas os limites de sua relação com o saber? É claro que não interpretamos a partir da fantasia, fazê-lo seria interpretar a partir da “apreensão da sensibilidade imaginária do sujeito”. O campo propriamente analítico, afirma Lacan, no Seminário 3: as psicoses16 é o sintoma. O sintoma desse jogador, que faz de seu corpo mesa de jogo do significante do Outro é que tem uma cor que mostra bem que ele é um estrangeiro na sua família, um adotado, um estrangeiro como o avô. E usa seu sintoma, “essa satisfação às avessas”, para marcar um lugar no Outro. Ser um adotado, um estrangeiro, lhe dará um lugar no Outro? a Diminuirá seu gozo da privação e sua errãncia? Quanto a estas últimas perguntas, só a aposta da clínica, no só depois, poderá responder. Referências bibliográficas Carneiro Ribeiro, M. A. O que é um homem? I Colóquio da EPFCL- Fórum Rio: Histeria, sujeito, corpo e discurso. Julho de 2003. Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976. Freud, S. “Bate-se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. 16 Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio de janeiro: JZEditor, 1985, p. 189.
48
Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. Lacan, J. O seminário, livro V: as formações do inconsciente (1957-58). Rj: JZEditor, 1998. Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio de janeiro: JZEditor, 1985. Lacan, J. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Quinet. A. Histerias. I Colóquio da EPFCL- Fórum Rio: Histeria, sujeito, corpo e discurso. Julho de 2003.
49
O Sintoma e o Amor Vera Pollo1 Do sintoma ao sinthoma, Joyce passa do fato clínico fundamental ao laço social. Talvez possamos mesmo dizer, do gozo inapreensível àquele que captura leitores. O primeiro sintoma corresponde à posição subjetiva em que ele tanto está “enraizado no pai”, quanto o renega (Lacan, Sem. 23,p.68). Ao construir um nome próprio, com sua arte-‐sinthoma, Joyce compensa a carência paterna e se inscreve no laço social.
Nenhum sintoma é, de saída, favorável ao laço social. É possível que,
paradoxalmente, o sintoma paranóico, em que um sujeito se presta a ocupar o lugar do ideal para todo um grupo, seja aquele que se situa mais próximo do comunicável. Uma vez que a conversão histérica é analogicamente uma obra de arte mal sucedida e o ritual obsessivo, uma religião particular, quase não é necessário dizer que a natureza de ambos é anti-‐social. Uma pequena exceção diz respeito ao sintoma histérico responsável por algumas loucuras coletivas e cujo desencadeamento foi situado por Freud na “identificação baseada no desejo de colocar-‐se na mesma situação”. (1921/1976, p.135)
Retomemos Joyce. Entre os ensinamentos que Lacan extrai da obra joyceana,
podemos situar a constatação de que um sintoma pode transformar-‐se em sinthoma, no sentido daquilo que corrige o nó, o que é prenhe de muitas conseqüências. No caso de Joyce, há até mesmo um saber servir-‐se do sintoma de origem, e talvez não seja exagero dizer que ele não apenas desembaraçou-‐se com seu sintoma, mas fez dele um bom uso. Soler (2001) propõe que identifiquemos separadamente seu sintoma-‐gozo em seu gosto pela letra, e o sinthoma com que ele faz laço social, sua aspiração à fama e ao reconhecimento social. Em outros termos, que diferenciemos entre o sintoma que 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-‐ Brasil. Membro do Fórum Rio de Janeiro
50
condensa o traumatismo de lalíngua e o sinthoma-‐nome que lhe permite entrar na polis como Mestre das letras.
Ora, desde que Lacan endereçou a Jenny Aubry sua “Nota sobre a criança”, em
1969, fomos conduzidos a pensar a transmissão dos pais aos filhos em termos de resposta sintomática, a qual, mais do que a identificação, desvela a verdade de uma geração. Isto porque o sintoma implica a relação e não a equivalência. (Morel, 2009, p.63)
Como o sintoma da criança é uma resposta particular ao desejo dos pais que
presidiu seu nascimento, o qual é alimentado pelos sintomas deles, os sintomas das crianças prolongam os dos pais, corrigem seus desejos, criam o que era até então inédito. Nesse caso, estamos bem longe da identificação e dos egos “eguais”. Porém, na impossibilidade de produção de um sintoma inédito, ainda assim um prolongamento sintomático pode unir, como laço de amor, duas ou mais gerações de uma mesma família. Eis como Lacan interpreta a relação entre Joyce e sua filha Lucia. O episódio nos é mais ou menos conhecido: trata-‐se de uma consulta a Jung, o qual diagnostica Lucia como esquizofrênica e conclui literalmente que a relação pai-‐ filha, nesse caso, é da ordem da identificação. Em suas palavras: “... A anima de Joyce, sua psychè inconsciente estava tão solidamente identificada com sua filha que, admitir interditá-‐la, teria sido admitir que ele próprio tinha uma psicose latente. Por isso é compreensível que ele não pudesse ceder. Seu estilo “psicológico” é sem dúvida esquizofrênico, com a diferença, porém, de que o paciente comum não consegue evitar de falar e pensar dessa maneira, enquanto Joyce o controlava e, mais ainda, o desenvolvia com todas as suas forças criativas, o que explica por que ele próprio não ultrapassava a linha. Mas sua filha ultrapassou, porque não era um gênio como o pai, mas uma vítima de sua doença.” (citado por Ellmann,1989, p.837)
Para Lacan, é possível observar nas cartas escritas por Joyce que ele considera a
filha muito mais inteligente que todo mundo e acredita que ela o informa de coisas que
51
acontecem com pessoas que sequer conhece. “ Minha esposa e eu” – escreve Joyce – “ vimos centenas de exemplos da clarividência dela”. (Ellmann, p.835) Lacan, que em uma apresentação de pacientes, tivera a oportunidade de entrevistar um sujeito que dividia seu sintoma em dois tempos: um primeiro tempo em que sofria de “falas impostas” – ou seja, uma das formas do automatismo mental descrito por Clérambault -‐, um segundo tempo no qual compreendeu que tais coisas lhe aconteciam, porque era um “telepata emissor”, encontrou uma grande semelhança com o sintoma de Joyce, porém o segundo tempo era sua atribuição à filha de alguma coisa que estava no prolongamento de seu próprio sintoma: ele sofria de falas impostas, Lucia era telepata. (sem. 23, p.93)
O biógrafo Ellmann relata que Joyce nutria a secreta esperança de que a filha
escaparia de sua própria treva, quando ele saísse da noite escura do Finnegans wake. Jung não foi o primeiro nem o único a notar a intensidade do laço que os unia. Quando recebeu Lucia, ela já passara por inúmeros médicos. Jung teve acesso aos poemas que sua paciente escrevia e concluiu que ela imitava de forma descontrolada idéias, fixações e linguagem que o pai, todavia, controlava. Também Paul Léon parece ter afirmado o seguinte: “o Sr. Joyce confia unicamente numa pessoa, e essa pessoa é Lúcia. Qualquer coisa que ela diga ou escreva é o que o guia.” E, como se não bastasse, o próprio Joyce confidenciou a uma amiga: “As pessoas falam da minha influência sobre minha filha. Mas e a influência dela sobre mim?” (Ellmann, p. 840, 843)
Passemos agora a uma pergunta de Lacan: “O que nos indicam as cartas de amor
para Nora?” Tudo indica que, para os professores de literatura, o que mais surpreende nas letras/cartas de Joyce é a báscula que as arrasta do mais terno lirismo à linguagem mais crua e obscena. O próprio poeta o percebe e nelas menciona as duas faces do sentimento que o liga a Nora: “Há uma parte feia, obscena e bestial, e há uma parte pura e santa e espiritual.” (1909/1988, p. 38) “Tu me agradeces pelo lindo nome que te dei. Sim, querida, ‘minha linda flor agreste das sebes! Minha flor azul-‐marinho encharcada de chuva!’ é um nome bonito [...] Mas, lado a lado e no âmago deste amor espiritual que tenho por ti há também um desejo bestial e bruto por todos os pedacinhos de teu corpo,
52
todas as partes secretas e vergonhosas dele, pelos cheiros todos dele e por tudo que ele faz [...] Ensinei-‐te a quase desmaiar quando ouves minha voz cantando ou murmurando à tua alma a paixão e a tristeza e o mistério da vida e ao mesmo tempo ensinei-‐te a fazer trejeitos indecentes com a língua e os lábios [...] meu amor leal, minha colegial travessa de olhar lânguido, minha puta, minha amante, tudo quanto queiras (minha amantezinha punheteira, minha putinha fodedora!) serás sempre minha flor agreste das sebes, minha florzinha azul-‐marinho encharcada de chuva.” Assinado: Jim (1909/1988, p.54-‐55)
Curiosamente, Lacan que, no seminário 20, já havia proposto fórmulas tão
límpidas quanto: “O que não é signo do amor é o gozo do Outro, o do Outro sexo [...] do corpo que o simboliza” (p.28) e “ O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor” (p.62), conclui agora que as coordenadas das letras/cartas de amor de Joyce a Nora indicam que há uma relação sexual, embora bem esquisita. (sem. 23, p. 81) Os matemas propostos por Lacan no quadro da sexuação deixam ver a relação homem-‐mulher sob novas luzes: quando um homem aborda uma mulher, se ela lhe serve de causa-‐de-‐desejo, isso significa que ela está exatamente no mesmo lugar do objeto a de sua fantasia. Mas este não parece ser o caso de Joyce. Suas letras/cartas testemunham que o sentimento que o enlaçou a Nora nunca a transformou na Dama do amor cortês, aquela cujo encontro tem algo de real, consequentemente de traumático e inassimilável. Nora não é a outra face do vampiro, aquela que representa a última tela da existência, para além da qual começa o país dos fantasmas. Não é uma morta-‐viva submetida ao tormento eterno do entre-‐duas-‐mortes. Certa feita Nora comenta a reação de Joyce diante de um novo vestido de festa que acabara de comprar: “Jim achou as costas decotadas demais e decidiu que teria de costurar as costas do vestido. Naturalmente ele fez pontos todos tortos [...] Queria que vocês o tivessem visto costurando minha pele e espinha.” (Ellmann, p.830) Ele não queria que ninguém, além dele, sequer olhasse o que quer que tocasse o corpo de Nora.
53
Em 22 de novembro de 1909, escreve-‐lhe em uma carta: “Arrisco-‐me a dizer somente uma coisa. Dizes que queres que minha irmã te leve daqui umas roupas de baixo. Por favor, não faças isso querida. Eu não gosto que ninguém, nem mesmo uma mulher ou uma moça, veja as coisas que te pertencem.” (Cartas, p.53) Menos de um mês antes, ele lhe escrevera; “Tenho andado indagando sobre um conjunto de peles para ti e se meus negócios correrem bem vou simplesmente afogar-‐te em peles e vestidos e capas de toda sorte.”(p.47) Lacan (2007:93) não sabe ao certo se Joyce escrevia para libertar-‐se do parasita falador ou, ao contrário, para deixar-‐se invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, isto é, sua polifonia. Mas não duvida daquilo que também percebe e assim formula: no final das contas, ele [o homem] faz amor com seu inconsciente, e mais nada (Idem:123). É possível que as cartas a Nora testemunhem apenas o gozo de Joyce com o corpo do Outro simbólico, com as palavras de amor, de desejo e de repugnância. Como dissemos acima, elas vão do tom mais lírico ao mais abjeto. Em certo sentido, aproximam-‐se da dupla valência do objeto a, em sua face narcísico-‐imaginária e em sua face real. Nesse caso, Joyce teria amado mais a arte de escrever, do que a mulher de carne e osso a quem enviava suas cartas. Nora não ocupava para ele o lugar de mulher-‐sinthoma, alguém que, enquanto objeto amado, lhe teria servido de intermediário para crer nas mulheres em geral. Não havia mais que uma mulher para Joyce, e este mulher era Nora. Ele a elegera, mas com a maior das depreciações. Eis outra pergunta que Lacan se faz: por que Joyce elegera Nora com a maior das depreciações? (2007:81) Tudo indica que Joyce sabia que, se fazer amor é poesia, em contrapartida, o ato de amor corresponde à perversão polimorfa do macho, pois há um mundo entre a poesia e o ato (Lacan, 1985: 98) Objeto de amor, objeto transicional, ou simplesmente objeto de um ciúme delirante, o que quer que Nora tenha sido preferencialmente para Joyce, este a
54
compartilhou conosco. Sentimo-‐nos os destinatários, entre muitos, das missivas joycianas. Referências Bibliográficas AUBERT, Jacques. “Prólogo a Um retrato do artista quando jovem” in Retratura de Joyce. Uma perspectiva lacaniana. Letra freudiana, ano XII, n.13 (1993), pp.40-‐51. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐“Joyce com Lacan” in A Jornada de Ulisses. Palestras de Jacques Aubert no Brasil e outros trabalhos. Escola Letra Freudiana, ano XX, n. 28 (2001), pp.117-‐123. ELLMANN, Richard. James Joyce. Tradução de Lia Luft. São Paulo: Globo, 1989. GATIAN de CLÉRAMBAULT, Gaétan. (1942) “Définition de l’automatisme mental’, Oeuvre psychiatrique, vol. II. Paris: PUF. JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ Cartas a Nora Barnacle. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1988. LACAN, Jacques _ (1956) “O Seminário sobre a carta roubada” ” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp.13-‐66. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1946) “Formulações sobre a causalidade psíquica” in Escritos. Op. cit., pp.152-‐194. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ ( 1957) “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” in Escritos. Op. cit., pp.496-‐533. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1972-‐1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1975-‐1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1970) “Lituraterra” in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 15-‐25. -‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1976-‐1977) O Seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito. Lição de 15 de março de 1977. SOLER, Colette. “Joyce , martyr de la langue” in L’aventure litteraire ou la psychose inspirée. Paris:Editions du Champ lacanien, 2001, pp.83-‐99.
55
Apostar no Sintoma Zilda Machado1
Comecemos com Freud. Na conferência Os Caminhos da formação do sintoma, ele nos ensina: O sintoma é causado pela força da pulsão que ao pressionar por satisfação, encontra a barreira da censura e não pode ser realizada. O que há nesse momento é angústia, o mal-‐estar que força o advento do mecanismo do recalque. Devido então ao recalcamento, o desejo que agora é inconsciente regride tomando a via da fantasia a um tempo onde houve a possibilidade de se obter satisfação, pois uma coisa que Freud nos aponta é que o sujeito não abdica jamais de um prazer já experimentado. Aí encontramos os conceitos de regressão (o retorno pela via da fantasia) e de fixação (ao ponto onde houve maior satisfação). Mas o aparelho continua pressionando. A pulsão é uma força constante que não dá trégua ao sujeito. Há novamente outra tentativa de buscar a satisfação, só que desta vez, sob a ação do recalque, ela já não é direta. É o que chamamos “o retorno do recalcado”. Aí nesse momento o sujeito constrói o sintoma, uma “formação de compromisso” entre o desejo inconsciente, provindo da pulsão sexual, e a força da censura que ele trata de burlar. Constrói assim um substituto que lhe permitirá encontrar a satisfação desejada, ao preço de não reconhecê-‐la como tal. Para Freud, o sentido do sintoma é sexual. E Lacan, no início de seu ensino, toma-‐ o por esta mesma vertente. Na “Instancia da letra” Lacan diz: “é a verdade do que o desejo foi em sua história que o sujeito grita através de seu sintoma”. [p. 522]. No entanto, ao longo de seu ensino Lacan fará profundas modificações em sua abordagem do sintoma, o que trará diversas consequências para o dispositivo analítico e à questão
1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro do Fórum Belo Horizonte
56
do final da análise, quando ele dirá que o sentido do sintoma é um só: o sentido do sintoma é o Real. (sentido como direção, nos dirá Soler). Temos então o sintoma como a presentificação do retorno do recalcado pulsional tecido nas veredas da fantasia. É realização de desejos recalcados e infantis e satisfação pulsional substituta que se sustenta em uma fantasia inconsciente e se articula e se fixa à gramática pulsional. Assim se dá, portanto, o acesso do sujeito à sexualidade: de forma conflituosa, desviada e sintomática. E assim inaugura-‐se o psiquismo na interdição do objeto primordial, matriz à qual se dirige originalmente o desejo, que cai sob a barra do recalque, colocando o sujeito para sempre à procura do objeto perdido. Interdição – interdicção – inter-‐dito. A sexualidade humana está fadada a se realizar necessariamente através das palavras: gozo fálico. O sintoma, portanto, pressupõe o compromisso entre a pulsão e a defesa. Ou seja, ali o sujeito não pôde escolher nem uma posição nem outra. Mas em uma escolha forçada, ele é compelido a, mesmo assim, dentro desta estrutura, escolher uma posição de sujeito da qual, como nos lembra Lacan, sempre se é responsável. Ele escolhe então não escolher, ele escolhe compor. Pois, ser compelido a escolher, sempre coloca o sujeito diante da castração. Escolher é mais que tudo renunciar. É consentir em perder algo. Se se escolhe A, perde-‐se B. Portanto, diante da premência a renunciar, a se deparar com a castração, o mecanismo que advém leva-‐o a burlar a escolha. Diante de ter de escolher A ou B, o sujeito escolhe outra posição: escolhe não escolher. Escolhe compor para que tudo permaneça como estava, para continuar com o máximo possível de satisfação. É o benefício primário da neurose – posição de satisfação que leva Freud a dizer que “os sintomas são as atividades sexuais do neurótico”. E leva Lacan a dizer que o sujeito é sempre feliz. Ou seja, o aparelho psíquico se arranja justamente aí com a construção do sintoma: isso é a neurose. Ninguém escolhe a castração. Escolhe é burla-‐la. E a resposta que aponta a estrutura é o mecanismo que se usa. [A psicose com a foraclusão nem a
57
leva em consideração. A perversão com o fetichismo traz um mecanismo que ao mesmo tempo a reconhece e a nega]. 2 No entanto sabemos que embora todo o esforço do sujeito seja nesse sentido [de burlar a castração], isso é impossível pois, no psiquismo, “é a insatisfação que constitui o componente primordial”, nos diz Lacan3. Essa é a nossa condição de acesso à sexualidade. Daí vem a máxima de Lacan: “não há relação sexual”, pois ele o diz textualmente: “a relação sexual só existe entre gerações vizinhas”: filhos de um lado, pais de outro. Ao fazer a escolha do recalque, o sujeito opta pela “não relação sexual”. Ele opta pela interdição [do incesto], pela inter-‐dicção. Ou seja, o mal-‐estar é de estrutura, a falta é o cerne do ser falante e o objetivo da pulsão não é a captura do objeto, é somente contorná-‐lo. É seu retorno em circuito, na repetição, na procura de uma vivência de satisfação inscrita no âmago do sujeito como impossível, jamais alcançável. Ou seja, não há solução. Portanto, embora o sujeito seja “sempre feliz” pois, esteja na posição em que estiver, ele extrai sua cota de gozo, “ele não é [mais feliz] de jeito nenhum”, nos lembra Lacan na Entrevista à Imprensa pois, “desde quando o verbo se encarna”, nos diz ali, “as coisas começam a ir mal”, levando o sujeito muitas vezes a sofrer demais. Mas, “sofrer demais é a única justificativa para a intervenção do analista”, nos lembra Lacan no seminário XI4. Assim, chega o sujeito à análise, buscando se aliviar um pouco dos sintomas que o afligem, pois por estrutura, o neurótico acreditar que há um Outro que sabe o que lhe acomete. Mas ele só quer reparar um pouco a fenda que se esgarçou um pouco demais. Nada de querer saber da castração. 2 Já a escolha do tipo clinico [histeria, neurose obsessiva ou fobia], nos diz Freud, tem a ver é com outra coisa – com a
modalidade da defesa. Lembremos que o rochedo da castração se refere à posição de homens e mulheres diante da castração. No homem, protesto viril, e na mulher, pênis-‐neid, ou inveja do pênis. 3 4
Da psicanálise em suas relações com a realidade.(p. 354), Seminário XI p. 158
58
Mas, o sujeito pode entrar em análise, ele pode se tornar dócil ao discurso analítico e querer saber um pouco do que o determina. Aí então sim, ele poderá vir a consentir com a castração. A meu ver, isso só advém mesmo é ao final da análise, ao consentir com uma perda de gozo. Assim é que ele pode vir a consentir com a escolha de A, e consentir com a perda de B, ou vice-‐versa. Poder perder -‐ a essa posição, a meu ver, só o discurso analítico pode levar um sujeito. Ao permitir a ele subjetivar a falta, indo da perda à causa do desejo. Ali onde o sujeito pode sustentar o desejo como o vazio de objeto, puro wunch. Os outros discursos apontam sempre soluções de tamponamento para a falta estrutural do sujeito. Ajudam a burlar a castração. Por isso Lacan diz que tudo concorre para a felicidade do sujeito, para que tudo se mantenha e para que ele se repita. A tecnociência promete sempre: se não está satisfeito é porque você ainda não escolheu C ou D. E aí o alfabeto é infinito. Sempre há um novo objeto saindo do forno. Aquele, sim, vai te fazer feliz. Felicidade postiça? É a partir do consumo ávido desses objetos que Freud fala no “Mal estar na civilização” que assim, o sujeito chega a se tornar “uma espécie de deus de prótese (...) coberto por todos os complementos artificiais que lhe dão ares de ser magnífico”. Mas, Lacan, na conferência à imprensa nos chama a atenção para uma questão importante: ‘embora essas engenhocas comam a gente, isso acontece porque a gente se deixa consumir’. E ele nos diz: “por isso não estou entre os alarmistas nem os angustiados. Quando nos saciarmos, pararemos com isso, e nos ocuparemos das verdadeiras coisas, ou seja, da religião”. Pois, o discurso religioso, ao contrário do da ciência, não só promete, esse cumpre a função de tamponamento da castração ao dar sentido a tudo. Por isso Lacan diz: “São capazes de dar um sentido a qualquer coisa, até um sentido à vida humana, por exemplo”. E o futuro da psicanálise, nos diz Lacan, de maneira enfática, depende do que acontecerá aí nesses discursos. Pois tudo depende de que o real insista. E depende,
59
portanto, precipuamente, de como o sintoma será tratado no próprio dispositivo analítico. Sabemos das longas análises que foram ao limite da interpretação e os efeitos disso no corpo dos analisantes. Mas o sentido do sintoma é não só o sentido sexual, interpretável, aquele que Lacan no início supunha se resolver por inteiro numa análise linguageira, como ele o define em “Função e Campo”. O que vai se depurando cada vez mais é seu caráter imutável, ligado ao gozo. “O sentido do sintoma”, nos diz Lacan em A Terceira, “é o real”. E Colette Soler nos esclarece que a palavra sentido aqui utilizada por Lacan diz respeito é ao sentido como uma direção. O sintoma provém do real, ele é causado pelo Real. “O sintoma é a manifestação do real no nível dos seres vivos”, reforçando aquilo que Lacan já dissera no Seminário XI: O sintoma, como as outras formações do inconsciente, é um envelopamento do real, não é o próprio real. Pois, “do real, somos totalmente separados”5, justamente “devido à impossibilidade de a proporção sexual ser escrita”. E é daí que advém a “abundância de sintomas”. Então, se é o sintoma (o que provém do real) que leva o sujeito à análise, como a psicanálise – uma prática cujo instrumento é a linguagem -‐ pode operar para tratar o real em jogo no sintoma? Como ela pode operar para levar a análise à sua conclusão? Aqui então é que Lacan nos esclarece quando ele diz que a única maneira de se lidar com o sintoma é pelo equívoco significante. Só assim ele não engordará de sentido. Ou seja, não é pelo sentido que o real é atingido. Trata-‐se de um trabalho com a linguagem depurada de sentido – lalíngua -‐ cujo único fundamento é a sonoridade, a homofonia significante. Lalíngua é, pois, a linguagem que concerne à experiência da psicanálise. Pela maneira como a língua materna foi escutada e provocou ranhuras no corpo, foi escrito ali o texto inconsciente. Implica a palavra dita pelo Outro, mas implica também o escuta-‐dor, ou seja, o afeto causado pelo que se escutou. O sintoma se relaciona então é ao modo pelo qual lalíngua mordeu o corpo a partir não só do que foi 5
P. 31
60
falado do/ao sujeito, mas da contingência – e da ambiguidade -‐ do que foi ouvido, no encontro fortuito que dará a cada um sua singularidade de gozo. Na Conferência de Genebra sobre o sintoma Lacan nos aponta – “aí está a moterialidade do inconsciente”: a materialidade linguageira. É da materialidade da palavra encarnada, de lalíngua entalhada na carne do sujeito que emerge o sintoma. Ele comemora, para além de todo o sentido, a saga do sujeito na linguagem, o nascedouro de sua posição como um falasser. Aí está o x a que Lacan se refere no seminário RSI quando ele então dirá que “esse x é o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra” [RSI p. 23]. Letra que marca “o modo particular de cada um gozar do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina”. [RSI p. 37] No final de seu ensino Lacan descobre uma formação do sintoma que prescinde do recalque, que prescinde de uma amarração ao inconsciente. Sintoma que, portanto, tem função de suplência ao Real e que é ele mesmo real, articulado à letra e ao gozo. Trata-‐se do sintoma que se depura ao final da análise. Após toda interpretação possível, até toda a decodificação pela via da linguagem, o sintoma permanece como um caroço de real – evento corporal, nos diz Lacan. Ponto zero da relação do sujeito com a linguagem, reduzido a seus elementos mínimos, aos restos, às marcas deixadas pelo encontro do sujeito com a materialidade e ambiguidade significante em lalíngua, tecido significante inscrito a ferro e fogo no corpo como texto inconsciente. Este tipo de sintoma, que Lacan grafa Sinthome, pôde ser formulado a partir do caso Joyce, quando a amarração da estrutura pôde ser feita fora da lógica do inconsciente (tributária do Nome-‐do-‐pai), fora da significação da linguagem. Alguns dizem que a partir daí podemos prescindir da nomenclatura neurose, psicose e perversão, pois o que importa agora é o enodamento sintomático, não importando mais a estrutura. Acredito, no entanto, que Lacan se lançou na aventura joyciana para continuar aquilo que, a meu ver, é o cerne de seu ensino: a questão da análise e mais apropriadamente falando, a questão do final da análise e a formação do analista. Com Joyce, ao esclarecer o trabalho da psicose, Lacan demonstra que ali não há a articulação
61
do sujeito ao inconsciente, pois não há o Nome-‐do-‐pai. No entanto, o sujeito foi capaz de criar um artifício que garantiu o enodamento da estrutura, um Sinthome. Ou seja, tomando o caso Joyce, Lacan pôde demonstrar como esse sujeito se sustentou sem o desencadeamento da psicose por ser capaz de criar um sintoma que lhe fez as vezes dessa função. Mas o que Lacan demonstra também é a operação do final de análise: o sintoma que subsiste para além da crença no inconsciente. Tomar Joyce é verificar em um sujeito que não foi mordido pelo inconsciente – um “desabonado do inconsciente”, como aponta Lacan, como ele foi hábil em operar com a linguagem prescindindo de todo o sentido, decompondo-‐a em puro jogo de letras e sons. Ou seja, Joyce trabalhou com a linguagem para além da fala com suas significações, foi ao recurso da escrita, à letra, ao ponto onde o sintoma já não é mais passível de ser analisado. Joyce mostrou com todo o seu trabalho com a letra, saber fazer com isso. Foi isso que causou sobremaneira o interesse de Lacan, pois, como ele o afirma: “que alguém faça disso um uso prodigioso, interroga por si o que diz respeito à linguagem”6. Ou seja, como o homem, doente da linguagem, cativo do imaginário que nos leva ao destino inelutável da debilidade mental por sempre darmos sentido a tudo, pode usar a linguagem justamente no ponto de operar com seu osso, com a letra, seu ponto mínimo, de maneira assim, desconectada do inconsciente? Isso concerne ao final da análise, nos afirma Lacan, e Joyce demonstra a possibilidade dessa operação. O final de análise leva o sujeito a modificar sua relação com o inconsciente, levando-‐o, portanto, a conseguir operar com a linguagem de outra maneira. Concerne ao final de análise, então, um efeito de escrita.
6
Conf. Joyce, o Sintoma” Sem. 23. p. 162].
62
Pudemos acompanhar o trabalho apresentado por Mario Brito7 em seu depoimento de passe. Ali quando o sujeito, ao se dirigir às entrevistas de passe, perde o passaporte. Ao invés de se perguntar: “por que perdi o passaporte, o que isso quer dizer?, por exemplo, puder fazer simplesmente uma escrita, como o fez Mario: “ao passe sem passar por te”. Sinthome e sintoma se diferenciam então é na maneira pela qual o sujeito na análise pode chegar ao ponto de depuração, de redução do sentido do sintoma ao irredutível do Sinthome. Portanto, nessa redução à letra, ao fonema, o sinthome é a transmutação do sintoma de entrada em análise a partir da subversão ocorrida na posição do sujeito diante de seu próprio inconsciente. O final da análise é, portanto, ir ao ponto onde, ao se poder prescindir do sentido, ao consentir com a perda de gozo, o sujeito puder “deixar o sintoma ao que ele é, um acontecimento corporal” e souber fazer (savoir y faire) alguma coisa com o que comemorou a inscrição de lalíngua no leito de seu corpo, ali quando justamente ele não mais acredita no seu inconsciente. Mas surgirá daí um analista se ele continuar acreditando – mais do que isso, amando -‐ o inconsciente. Não mais o seu, mas o inconsciente como estrutura. É aí que surge o desejo novo, o desejo do analista que o levará ao entusiasmo de querer se oferecer a levar outros até o ponto onde ele próprio pôde ir em sua análise. Trata-‐se de uma política? Uma política da psicanálise. Ali onde é a análise em intensão que funda as bases daquilo a que a psicanálise em extensão pode vir a trazer ao mundo. A posição ética então é essa: apostar no sintoma.
7
BRITO, Mario. Al passe sin passa-‐por-‐te. Trabalho apresentado no Espaço Escola do XI Encontro da EPFCL| AFCL-‐Brasil.
63
Sintoma e Escrita ou...os Ecos do Sintoma Selvagem Sandra Leticia Berta1 É evidente que, no discurso analítico, só se trata disto, do que se lê e tomando como o que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer, que não é tanto, como sublinhei da última vez, dizer tudo, mas dizer não importa o quê, sem hesitar em dizer besteiras. (Lacan, 1973/1985, p.39)2 Perguntar-me pela escrita do sintoma no percurso de uma análise levou a anunciar com título dessa exposição “Sintoma e escrita”. A questão que me coloco é de se temos de considerar diferentes modos de escrita do sintoma, no decorrer de uma análise. Ou ainda: verificar quais as relações possíveis entre essas diferentes escritas. Uma vinheta clínica faz contraponto a essa questão. Evoco Lacan em 1973: na análise há de se ter o sentimento do risco absoluto.3 Modo de assinalar o afeto em questão e a dimensão da verdade mentirosa. Escrever o sintoma designa neste texto que apresento: definir o sintoma analítico. Portanto, escrever o sintoma inclui o conceito de transferência, ainda, inclui o analista como sendo aquele que responde pela posição do inconsciente. Desde Freud o sintoma é o estrangeiro que tende a exilar-se para promover uma satisfação proibida. Sintoma extraterritorial ao eu. Nome do enigma promovido por um sofrimento que incomoda e que perturba pela sua insistência. Ele nos adverte que todo sintoma tem um sentido sexual, oriundo do trauma e da fantasia (realidade psíquica) 1 2 3
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do campo Lacaniano LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. LACAN, J. (1975 – 1976). El Seminário, libro XXII: el sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 45
64
Como se escreve o sintoma na psicanálise? Estamos a debater que, com Lacan, há duas grandes vertentes que permitem dizer como se escreve o sintoma, as mesmas enlaçam todos os meandros do seu ensino: Escrever o sintoma como mensagem do Outro A mensagem é o significado do Outro s(A). Mas sabemos que essa mensagem nada mais é do que a interpretação do sujeito sobre sua existência inefável. Nela se articulam: a - O traumático, entendido como não termos a disposição uma resposta última vinda do Outro, um último significante que nos dei a resposta definitiva sobre o que somos S( ), nem mesmo sobre o que queremos, uma vez que a Bedeutung do falo se suporta no significante da falta de significante (Ф); b - A construção do fantasma como resposta cristalizada que enoda imaginário e simbólico, como fixação dessa ficção que é a interpretação do sujeito sobre o desejo do Outro promove.
Escrever o sintoma como letra A escrita de uma letra se suporta na questão sobre qual é a função dessa letra. São as articulações dos anos ´70. Em primeiro lugar temos a letra como detrito, isolada de qualquer qualidade, tendo a mesma um estatuto secundário à linguagem. A letra indica: o furo no saber, a ruptura do semblante (significante), artefato a não habitar mais que a linguagem, sem poder confundi-la com o significante. Por outro lado, a escrita da letra testemunha sobre o furo no saber. A letra tanto limita o gozo quanto o evoca. Isso que evoca não refere ao furo no saber, mas ao puro exercício de uma fala não-sense que leva ao encontro desse furo no saber, até seu limite. Entendo ser essa a tese que nos propõe Colette Soler no seu livro Lacan, l´inconscient réinventé4 quando,
4
SOLER, C. Lacan, l ´inconscient réinventé. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
65
evocando Lacan no Prefacio do Seminário XI5, nos diz que o passe ao real precisa (é minha leitura do texto de Soler) de três tempos: 1. A formação do inconsciente (lapso). 2. O inconsciente como espaço de significantes associados livremente, onde estão em função o sentido, a historização e o inconsciente – verdade. 3. O inconsciente fora-sentido, analfabeto que fez funcionar o significante besta. Nesse terceiro tempo a escrita do sintoma é função reduzida a sua máxima expressão de um gozo - por que não dizê-lo? – estranho, estrangeiro, mas sem função de enigma. Parece-me que assim posso apreender o que Lacan nos diz no Seminário RSI, na aula de 21 de janeiro de 1975, quando escreve, usando-se da formulação matemática f (x), o gozo do inconsciente que se denuncia no sintoma. Isto é: o modo como cada um goza do seu inconsciente. Essa letra que se traduz do inconsciente, que é detrito; é isolada de qualquer qualidade. Essa letra tem identidade de si a si. Portanto o que se lê do sintoma é efeito da erosão da linguagem. É daí que se retira o estatuto da escrita nesse contexto, de uma letra que afirma o gozo, fora do sentido. Por essa razão, essa letra se escreve entre real e simbólico. Mas ela vem do real. Entendo que a possibilidade de pensarmos as duas vertentes da escrita do sintoma que promovem o trabalho de transferência pode ser extraída de uma frase crucial. Precisamente porque põe em evidencia o caminho do sintoma, o que faz o cerne da sua função. Retomo a citação: O que é dizer o sintoma? É a função do sintoma, função a se entender como o faria a formulação matemática f (x). O que é esse x? É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra, na medida em que, apenas na letra a identidade de si a si está isolada de qualquer qualidade. Do Inconsciente todo um, naquilo em que ele sustenta o significante em que o 5
LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário XI. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, PP 567-569.
66
inconsciente consiste, todo um é suscetível de se escrever como uma letra. Sem dúvida, seria preciso convenção. Mas, o estranho é que é isto que o sintoma opera selvagemente. O que não cessa de se escrever no sintoma vem daí. (21.01.75)6. A repetição do sintoma, o que não cessa de se escrever é o que se escreve do sintoma, primeiro selvagemmente, depois f(x). Portanto, essa repetição é em, se mesma, a escrita do sintoma. Digamos que há uma ‘linha direta” entre “o que não cessa de se escrever” (necessário) e o f(x) (contingente), segundo entendo. Razão pela qual me impactou ler e ouvir o nosso colega Jairo Gerbase, na seguinte afirmação: A psicanálise propõe que não há nenhuma participação da realidade na formação do sintoma, pois o desencadeamento de um sintoma é um encontro do real, isto é, há desencadeamento de um sintoma quando o sujeito encontrou algo impossível de ser dito, algo inefável.7 (Gerbase, A hipótese Lacaniana, inédito) Há algo de selvagem no desencadeamento de um sintoma, e é esse operar selvagemente o qual indica que ai o real está em questão. Por isso há de se contornar. Isso não se suporta. Eis um fundamento da psicanálise, se me permitem. E, o que é selvagem?: um modo de escrita. ... Sim, porque no parlêtre isso não se agüenta. Mas, paradoxalmente, é isso com o qual o parlêtre goza. O real é o impossível: com isso o parlêtre goza e se civiliza. É essa minha leitura da ênfase dada, a partir dessas articulações sobre lalangue. 6 7
LACAN, J. (1975). O Seminário, Livro XXII: RSI, inédito. GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedida pelo autor.
67
Lalangue evidencia o gozo da fala: é disso que somos feitos os seres falantes, nossa carne. Por essa razão não podemos perder de vista a dimensão “parl” do parlêtre. E isso que está em jogo, desde o início, no sintoma. Volto a Lacan de 19588. O que ele nos diz: O SINTOMA FALA. ISSO FALA! Na escrita selvagem há gozo fálico. Gozo que provêm da relação do simbólico com o real. No sujeito que tem o suporte no parlêtre – INCC – está o poder de conjugar a palavra com esse gozo que se experimenta como parasitário, devido à fala mesma, ou seja, devido ao parlêtre. E é por essa razão que na transferência ele - Isso – se põe a falar. Claro que se precisa de um consentimento daquele que se queixa para ler no que se ouve do “Isso fala”. E vejam que é nesse ano que Lacan aponta que o sintoma se diferencia das outras formações do inconsciente pela repetição. Agora, a questão é que no fundo esses enunciados são indizíveis, por isso a dimensão Real em questão. Nessa fala há de se recortar a potência patogênica de enunciados indizíveis9. Isso posto, considero que as análise que dirigimos devem ter presente o sintomaselvagem para que f(x) possa se escrever (contingência). Uma jovem chega ao consultório trazendo uma queixa, bem precisa: “meu problema é que posso estar e não estar ao mesmo tempo. É o que mais faço. Posso passar ao largo, sem que os outros percebam ou sem que eu mesma perceba o que passa para mim”. 8
LACAN, J. (1957-1958). O Semináro. Livro V: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
9
GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedida pelo autor.
68
Eis o que inaugura as entrevistas sobre esse sintoma que decido nomear, assim como ela nos diz: “passar ao largo”. Ela se interroga pelo traço infernal desse ser que se esvai e que lhe faz acreditar que nada vale a pena nesta vida... aliás,que poderia morrer sem deixar dores nem rastos. Passar ao largo. Num segundo momento no qual a analista – ocupada em não sublinhar esse traço melancólico e, portanto, sintomatizá-lo fazendo dele mais do que posição na estrutura, ressonância do enigma de um saber não sabido – retomo, num segundo momento que por sua vez delimita a entrada em análise, o passar ao largo se associa a uma cena sexual para a qual ela diz “olha, não dei a mínima”. Essa cena traduzia sua primeira relação sexual: não lembra, entrou e saiu sem saber com quem, menos ainda para que. Esse “não dei a mínima” que a analista sublinha, permite que o sujeito recolha do tesouro dos significantes uma conjunção entre o “não dar a mínima” e o “passar de largo”. Mas o inconsciente insiste..... A questão que aparece não é “não dar a mínima”, mas o “Olha”. Na volta desse buraco uma cena com o encontro do gozo do olhar se prioriza, cena na qual um exibicionista lhe intercepta na rua, lhe da-a-ver o que escolhe como ponto de caçaolhar, e some, provocando-lhe um “ataque de angústia”. “Olha, não dei a mínima”. “Encontrei o que tanto temia: o abuso sexual”. Abuso sexual? “As vezes me incomoda o olhar do meu pai”. Eis a versão da obscenidade do pai que se desenrola por algum tempo, dando marco à sua ficção de passar ao largo que agora se torna “passar despercebida”. Ponto de fixão pulsional que liga sintoma e o objeto, promovendo as diferentes torções sucessivas dos ditos.
69
Portanto: passar ao largo se vincula com a suspeita de passar ao largo para o Outro: ele não me quer o suficiente, não lhe interesso. Passar ao largo é a interpretação em falso do que o sujeito toma da mensagem do Outro, e é o que faz com que a analizante faça da sua vida, em resposta, um passar ao largo do que quer, do que busca, do que encontra. Por outro lado “passar despercebida” lhe confronta com o enigma mais obscuro do capricho do Outro, e com sua reposta que evoca o fato de saber que a pulsão é o eco no corpo do fato que há um dizer. Primeiro tempo: as entrevistas preliminares. Estar e não estar. Segundo tempo: a entrada em análise: passar ao largo toma sua evidencia no enlace do significante com a realidade sexual, isto é, com o realidade fantasmática que enoda imaginário e simbólico, dando a essa realidade o gozo-sentido, que lhe define: jouissance. Portanto, entrada na transferência e tempo de acreditar que a fantasia tem como mira a última verdade verdadeira. Aqui se enlaça o passar despercebida. É ai que a ética do tempo do parlêtre deve ser sustentada para não esquecer que há de se fartar do significante para tocar (atingir?) o real. Fartar-se significa usar dela até o abuso, cansar-se dele. Há de se fartar da fantasia, do acúmulo de um saber que engorda o sentido, almejando atingir a última verdade, mas que fracassa na tentativa, por atingir a cada vez o furo no saber. Uma arma contra o acúmulo de sentido - o qual por sua vez é o produto da defesa contra a operação selvagem do sintoma - encontra-se no equívoco. O memso produz um corte na repetição. Porque o sintoma é da ordem do necessário, do que não cessa de se escrever. O
70
grafo demonstra a relação do sintoma com a fantasia. Se ele repete é lá, no sentido imaginário da fantasia que o analizante vai ancorar suas construções e a proliferação de sentido correspondente. Uma vez que ali o sintoma fica vizinho da mentalidade débil que enoda imaginário e simbólico. E é desde lá, também, que teremos de laborar para que não fique descansando no limbo do sentido. Por isso trata-se de, nessa proliferação de sentido, priorizar o equívoco, l´une bévue. Essa repetição do sintoma, que se define como necessário, se constata, mais uma vez na clínica quando essa mulher se implica na sua demanda e desenha o sintoma analítico com algo inusitado, um significante. Diz que outro modo de passar ao largo é sentir-se meio morta. Desse “meio-morta” se recolhe apenas uma simples falta de atenção que põe em risco seu trabalho, quotidianamente. Nesse frescor do início do trabalho analítico, retorna e traz uma lembrança infantil: “Meu pai dizia “mezzo-morto”. Com esse termo – que não existe no português – apontava quando algum paciente estava muito doente, quase morrendo, cansado, chapado. “Ele falava isso e eu ria, mas acho que ao mesmo tempo me assustava”. “Mezzomorta” é “jogar um pedaço de vida fora”, como nesses esquecimentos, lapso de atenção. Lacan, na sua Conferencia de Genebra, diz É absolutamente certo que é pelo modo como alíngua foi falada e também ouvida por tal ou qual em sua particularidade, que alguma coisa em seguida reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeços, em toda espécie de modos de dizer. É, se me permitem empregar pela
71
primeira vez esse termo, nesse motérialisme10 onde reside a tomada do inconsciente – quero dizer que é o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que a pouco chamei o sintoma.11 Impregnação do ser vivo pela linguagem. Mezzo-morta. Uma adolescência na qual sua
pele branca é o que carrega o brilho fálico. “Pele branca, sem sol, com olheiras, adorando passar mal para ficar com a boca branca e a pele do dedo roxa”. Adorava também a tela de Ofélia morta, Nirvana e seu CD Funeral. Isso a leva até um certo limite: bêbada de álcool, corta seu braço e termina em um psiquiatra. Tempos da sua adolescência que incluem seu pai doente de câncer. Mais um elemento: mezzo-morta estava sua mãe quando paria seus filhos. Nesse moterialismo reside a tomada do inconsciente, mezzo-morta, que se manifesta em toda série de tropeços: passar ao largo, estar desligada. Alingua não faz acervo, não acrescenta, mas impregna. O acervo, do lado do sentido, fica por conta da associação livre. Abre-se, nesse primeiro tempo que indica a iminência da entrada em análise a partir de um significante que lhe representa na história edípica, uma palavra fora do dicionário, uma palavra em equívoco. Uma palavra que contem a marca de acontecimento, mas que por sua vez, se oferta como um jogo de entrada na transferência a partir do qual a deriva do sentido – por longo tempo – haverá de vir.
10
condensação de mot (palavra) e materialisme (materialismo) LACAN J. (1975). Conferência em Ginebra sobre o sintoma. Copiada da Biblioteca do Campo Psicanalítico. www.campopsicanalítico.com.br.
11
72
Se tivermos em mente a pergunta de como se escreve o sintoma, ou seja, do que ele opera selvagemente, poderemos privilegiar o equívoco para com ele evocar o enodamento dos gozos e incidir nos mesmos. Mas o sintoma-selvagem não se deixa dominar totalmente, ele insiste em se inscrever deixando em evidência o “Gozo opaco, por excluir o sentido”12. Por essa razão - entendo - na análise operar com a escrita pode ser ético, porque ela reduz ao máximo o sentido. Eis o modo em que temos de transformar o sintoma- selvagem em sintoma analítico. Escrever o fora sentido na erosão do máximo de sentido.
12
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566. LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário XI. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, PP 567-569.
73
O Livro de Cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra Ana Laura Prates Pacheco1 Inicio esse trabalho com uma questão colocada por Lacan no Seminário 23: “O problema todo reside nisso – como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-‐sistência e em seu furo?” (p 38). É com essa inspiração que contarei com o auxílio de um filme de Peter Greenway (1996), chamado “O livro de cabeceira”, para me ajuda a transmitir como o conceito de letra no último ensino de Lacan permitirá a reformulação do lugar do sintoma na clínica psicanalítica. Encontramos aqui uma inspiração do cineasta na escrita feminina do Japão ancestral, especificamente na obra de Sei Shonagon –“Livro de Cabeceira” (Makura – nosôshi) – escrita no ano 1000. Shonagon era uma dama da corte imperial japonesa, que ajudou a criar um gênero literário, caracterizado por crônicas na forma de diários íntimo. Escrevia vários poemas/listas, tais como: “Coisas que fazem o coração bater mais forte” ou “Lista de coisas esplêndidas” e experiências eróticas. No filme de Greenway não há nenhuma pretensão realista como a do cineasta japonês Nagesa Oshima, por exemplo, em “O império dos Sentidos”. Aqui ao contrário, tudo no filme é como a escrita de uma Iluminura. Cada imagem, e mesmo a música, são cuidadosamente desenhados, e emaranhados aos caracteres da língua japonesa e as outras línguas que aparecem na tela. Ele comenta: “quis fazer um filme que unisse o prazer da literatura e o prazer da carne. Uma das coisas que sempre me fascinou é a noção de que as letras do alfabeto japonês são caracteres e significado ao mesmo tempo. 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, Membro do Fórum São Paulo
74
Elas são imagens e texto, simultaneamente. Podem ser lidas como texto e vistas como imagens”. Ora, a relação entre o som e a letra e a imagem está no centro do interesse de Lacan pela língua japonesa que, segundo ele, se alimentou da escrita. No texto que apresentei em Roma – “A letra de amor no corpo” – tratei da relação da letra com o verdadeiro e o real no último ensino de Lacan. Não será possível retomar aqui essas elaborações, mas vou resumir brevemente um aspecto do debate a respeito do estatuto do conceito de letra para Lacan, que será fundamental para acompanharmos meu comentário sobre o filme “O livro de cabeceira”. Trata-‐se de indagarmos se a advento do conceito de letra em sua especificidade, implicaria numa renúncia de Lacan à tese da primazia do significante. Ora, no texto “O carteiro da verdade” (Le facteur de la verité, 1971), Derrida acusa Lacan de pertencer à tradição idealista da filosofia ocidental, que defende – desde Platão – o privilégio da transmissão oral em detrimento da escrita. Se vocês se lembrarem, em várias passagens do Seminário 18, Lacan responde às críticas de Derrida, bem como em Lituraterra em A Terceira e no Seminário 24.
Também em seu livro A Farmácia de Platão, Derrida retoma a distinção entre a fala e a escrita, a partir do Fedro de Platão. Tradicionalmente concebe-‐se esse diálogo como uma condenação da escrita, feita por Sócrates contra os sofistas. Platão retoma, no Fedro, um debate entre os oradores da época, a respeito da soberania da oralidade ou da escrita na possibilidade de transmissão da verdade. Em Fedro, Sócrates conta para seu discípulo o mito do deus Theuth, que levou a escrita para o rei Thamous do Egito. Esse lhe pede que declare a utilidade de tal descoberta: “um conhecimento (máthema) que terá por efeito tornar os egipcios mais instruídos e mais aptos para rememorar: memória e instrução ganham seu remédio (phármakon). Responde Thamous: “Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória (...). Transmites uma
75
aparência de saber, e não a verdade”.2 Com esse mito, Sócrates tenta convencer Fedro de que não se pode chegar ao justo, o bom e o verdadeiro pela via da escrita, já que ela vaga sem pai, indiscriminadamente. A memória, para Platão, é a compreensão viva da alma. Assim “só há sabedoria na alma e nunca em escrituras”. Daí a supremacia do conhecimento oral (verdadeiro) em detrimento da escrita (aparência). Ao mesmo tempo, o lógos é tratado como um corpo vivo: “ter um corpo que seja o seu”. Derrida retoma esse mito platônico apresentado no Fedro fazendo uma crítica à tradição platônica ocidental que preconizaria, segundo seu argumento, a irredutibilidade do significante e sua primazia em relação à escrita. Pode-‐se perceber a presença constante de Lacan como referência oculta, nesse livro. Tomando como eixo uma análise minuciosa da escrita como Pharmakón ( a um só tempo veneno e remédio), Derrida inverte, entretanto, seu sinal, apontando positividades exatamente ali onde Platão encontrava seus inconvenientes. Por exemplo, na “ausência de pai” na escritura e sua presença na fala. Lacan é acusado por Derrida de “formalismo estruturalista”. Há uma belíssima resposta de Lacan a respeito da diferença entre forma e estrutura, apresentado em uma conferência proferida na Bélgica em 26 de fevereiro de 1977, que deixo aqui apenas indicado. Proponho, entretanto, como contraponto, outra leitura do Fedro mais coerente com Lacan, que destaca a escrita como ikhnos, o sinal, as pegadas, as pistas de caminhos já trilhados, de diálogos vivos que forjaram modos de ser3. Essa, me parece, é a dimensão que Lacan almeja dar à escrita: nem o simulacro do corpo imagem, nem o verdadeiro incorpóreo, nem mesmo a experiência do corpo como substância gozante da lalíngua, mas a dimensão de cifra dessa experiência de gozo. É do sintoma como letra que se trata, na minha leitura, o filme “O livro de cabeceira”. Há, evidentemente, várias leituras possíveis, especialmente para um filme complexo como esse, mas tomarei a “licença poética” de tomá-‐lo como um caso clínico e dividi-‐lo em alguns recortes: 2 3
Platão. Fedro. Martin Claret, p. 119 Reis Pinheiro, M “Fedro e a escrita”. In: Anais de filosofia clássica, vol.2 n. 4, 2008
76
•
1º. recorte: O sintoma que opera de modo selvagem: do contingente ao necessário:
Trata-‐se, inicialmente, da letra no corpo como marca do gozo, e suas conseqüências fantasmáticas. Nagiko, a personagem do filme, é criada com uma cena que se repete desde a mais tenra infância, no dia de seu aniversário: o pai escreve os seguintes dizeres em seu corpo: Quando Deus fez o primeiro modelo em barro de um ser humano, Ele pintou os olhos, os lábios e o sexo. Depois, Ele pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais esquecesse. Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vida o modelo de barro pintado, assinando seu próprio nome. Ao mesmo tempo, a mãe ouvia na vitrola, e cantava, em mandarim, o disco que escutava quando conheceu seu pai. A tia lia para ela, antes de dormir, o livro de cabeceira de Shonogan. Aos 4 anos, Nagiko vê uma cena sexual entre o pai, um escritor, e seu editor chantagista: cena fantasmática que cristaliza sua posição a um só tempo excluída e identificada à posição masoquista do pai diante do editor: mito familiar do neurótico. Aos 6 anos, jura que terá, um dia, seu próprio “Livro de Cabeceira”. Vemos, então, que o gozo da lalingua materna, a letra que cifra esse gozo, a produção das primeiras identificações e a verificação fantasmática estão presentes. Como afirma Lacan na aula de 21/01/1975 do Seminário RSI, o sintoma é a função do sintoma, no sentido matemático. E o x da função “é o que, do Inconsciente, pode ser traduzido por uma letra”. Mas, segundo Lacan, “qualquer um é suscetível de se escrever como letra”. Da contingência da cifra de “qualquer um que para de não se escrever”, entretanto, opera-‐se, de modo selvagem, como ele ensina, algo que passará para a modalidade lógica do necessário: “o que não cessa de se escrever”. No caso de nossa personagem, é a própria escrita no corpo que ocupa o lugar do x na “função sintoma”. •
2º. Recorte: A fantasia: essa cadeia indefinida de significações que se chama destino:
77
O filme mostra, então, a escrita do destino, ou seja, a verdade mentirosa de Nagiko na tentativa de salvar o pai da humilhação diante do editor. O primeiro marido é escolhido pelo editor do pai, numa “troca de favores” aos moldes daquela suposta por Dora entre seu pai e o Sr. K. Trata-‐se de um praticante de arco e flecha, incapaz de reconhecer o valor da literatura e da escrita que é vital para Nagiko. Na ausência do pai, ela tenta escrever a saudação ritualística dos aniversários no espelho. Seu “Livro de cabeceiras” é repleto de listas negativas. O marido, inconformado, incendeia seus escritos. Os papéis são queimados, mas a “substância gozante” resiste ao fogo. O pai, humilhado e subjugado pelo editor, acaba por cometer um suicídio ritual. Nagiko foge então para Hong Kong e, para manter a tradição do pai, obstina-‐se em encontrar, nos seus amantes, o calígrafo ideal, fazendo de seu próprio corpo, o papel. O que importa para ela é o ato da escrita, a caligrafia em si: “a palavra significando chuva deveria cair como chuva. A palavra significando fumaça deveria cair como fumaça”. Nagiko repete o destino paterno, fazendo-‐se de objeto de troca sexual, recebendo como “mais de gozar” a escrita em seu corpo. Aqui, evidencia-‐se a montagem fantasmática do tipo histérico, sustentando o “pai castrado” pela via do sintoma. Sintoma que desafia o discurso do Mestre, na medida em que extrai o gozo como mais valia da suposta exploração do Outro. Sintoma metáfora – que em sua vertente significante seria passível de decifração, na medida em que substitui o irredutível da fantasia fundamental –, mas que desliza metonimicamente enquanto tenta correr atrás da “cadeia infinita de significações”. •
3º. Recorte: Ser Sintoma e devastação Ocorre, então, nova contingência, e Nagiko encontra o amor. Se, entretanto, o
encontro é contingente, o que produz uma retificação subjetiva é da ordem do ato. Jerome se recusa a ocupar o lugar de Outro expropriador. Ele não se interessa pela troca que ela lhe oferece. Embora ele conceda em escrever em seu corpo a saudação ritualística paterna, propõe-‐lhe, em contraponto, uma inversão dialética: que ela passe a
78
escrever em seu corpo. Podemos supor aqui uma passagem da ordem do ter um sintoma como f(x) a ser o sintoma de um homem. Agora, a partir da convocação de Jerome, é ela quem passa a escrever em seu corpo: “Trate-‐me como a página de um livro”. E ela lhe responde: “Agora, serei o pincel, não só o papel”. A inversão, entretanto, não se dá sem certa escroqueria, certa trapaça, como brinca Lacan em 1977. Nagiko trama um plano no qual usará o amante para vingar-‐se com editor. Ele, literalmente, empresta o corpo para portar a letra/carta que interpelará o Outro obsceno na fantasia. O plano consiste em que Jerome se torne amante do editor, e seduza-‐a através da escritura do “Livro de Cabeceira” de Nagiko em seu corpo. Não é o corpo de Jerome que é o fetiche do editor, mas a letra ali desenhada: “O aroma do papel em branco é como o aroma da pele de um novo amante”. Seriam 13 os livros/poemas escritos no corpo do amante. Quem é, entretanto, enganado no “jogo do amor”? Para a mulher, o homem pode ser uma devastação. Tomada pelo ciúme, Nagiko rompe com Jerome e passa ao ato, voltando a seus amantes. Ainda jogando com semblantes, Jerome decide simular a cena de Romeu e Julieta que, entretanto, torna-‐se real. Jerome morre envenenado com a tinta usada por sua amada para escrever em seu corpo. Eis a face veneno do pharmakon.. Numa das cenas mais fortes do filme, o editor rouba o cadáver de Jerome, e tira a sua pele para fazê-‐la, literalmente de papel. As vísceras e outros pedaços de carne vão para a lixeira. Incrível transmissão em linguagem cinematográfica, do que Lacan nos ensina em Radiofonia: nada melhor para representar o corpo simbólico do que o cadáver. •
4º. Recorte: A queda do Outro e a identificação do Sintoma Mas, para além do verdadeiro incorpóreo, há substância gozante. E quanto ao
gozo cifrado no sintoma, é preciso com isso se virar, ou, como diz Lacan, “usar isso até atingir seu real, até se fartar”. (p.16) No filme, o “uso lógico” de Nagiko é aquele necessário para fazer cair o Outro instituído na personagem do editor. Através da escrita de 13 livros, nos corpos de sucessivos amantes, Nagiko consuma seu destino de
79
vingança no último livro: “O livro dos mortos”. Enterra, então, o livro feito com a pele do amante e pode se separar de seu destino fantasmático. O filme acaba em seu 28º. Aniversário, quando o “Livro de cabeceira” de Shonagon completa 1000 anos. Nagiko diz: “agora posso escrever meu próprio Livro de cabeceira”. Na vitrola, toca a música em mandarim cantada por sua mãe. Segurando nos braços seu filho, ela escreve, em seu corpo, os mesmos dizeres do pai. Como afirma Lacan: “não há relação sexual, a não ser entre gerações”. Há alguns comentadores desse filme que vêem nesse final a confirmação da idéia de Derrida de que a escrita é mais verdadeira porque pode prescindir do pai. Eu prefiro, com Lacan, entendê-‐lo pela via da identificação ao sintoma: “sintoma como aquilo que se conhece melhor” (Sem 24). Ou, em outras palavras, tornar o gozo possível através da emenda entre ser sinthoma e o real parasita de gozo (Sem. 23. p. 71). Para mim, o que “O Livro de cabeceira” ensina é que é possível separar-‐se do sentido da fantasia. E quanto ao Pai, fiquemos com Lacan: “Por isso a psicanálise, ao ser bem sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-‐do-‐Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele”. (Sem. 23, p. 132).
80
A Satisfação do Final de Análise Antonio Quinet1
A satisfação própria ao final de análise é o tema que escolhi ao iniciarmos o cartel 1 do passe que agora completa dois anos. Essa satisfação, que como tal é uma forma de manifestação do real, pode ser apreendida no dispositivo do passe? Eis uma pergunta difícil de ser respondida, porque o passe é um dispositivo de fala, que é portanto sustentado pelo simbólico da linguagem. Existe uma aporia da transmissão do ato analítico, que estruturalmente se baseia na dificuldade de fazer passar algo de real pela via do significante. No entanto, algo dessa satisfação se deixa apreender e passa para o cartel conforme apontei no último Wunsch. A referência de Lacan, extremamente sucinta, que orientou nosso cartel do passe, é a do Prefácio da edição inglesa do seminário 11 onde escreve sobre uma satisfação específica: a satisfação do final de análise. Aliás, ela não só é específica desse momento da análise, como também ela é “a marca” do final.2 Trata-se de uma satisfação do analisante distinta da satisfação do sintoma. O sintoma é uma forma de satisfação pois a pulsão se satisfaz no sintoma e isso desde o início quando o sujeito chega com o seu sintoma satisfeito, porém, insatisfeito com a satisfação que o seu sintoma lhe provoca. Quando ele entra em análise ele fica satisfeito com a decifração e com o processo analítico. É a satisfação da associação livre, do descobrimento dos fatos, 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil, Membro do Fórum Rio de janeiro 2 Jacques Lacan, Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.p. 568.
81
dos ditos, das fantasias e sua articulação com a cadeia significante da sua história. A satisfação analisante se situa no lado da busca da verdade, é a satisfação do gaio saber. Este é o gozo do deciframento, satisfação relativa ao saber extraído da associação livre. Le gai savoir é uma referência de Lacan em Televisão, à poesia provençal, do tema do amor cortês, para indicar o manejo significante da língua poética. Em análise corresponde à descoberta do inconsciente poeta, espirituoso, brincalhão que rola e deita e pula na cama elástica da língua. O saber que se elabora na associação livre arranca o sujeito da tristeza, pois ele reencontra o fio de seu desejo que estava extraviado. Essa satisfação de um saber alegre, com brincadeiras de linguagem, vai até o final da análise. Em nosso cartel do passe, constatamos vários tipos de satisfação que o analisante experimenta que podem ocorrer durante uma análise a começar pela satisfação terapêutica que corresponde ao alívio do sofrimento. Em termos freudianos podemos dizer que se trata de uma satisfação ligada ao princípio do prazer, liberação da “libido ligada”. Ela pode ocorrer quando do desaparecimento de certos sintomas e também quando sobrevém momentos de desalienação do Outro, ou seja, a partir do momento em que o analisante não se sente mais submetido a certos ditos das pessoas que ocuparam para ele o lugar do Outro, num exemplo de passe, o sujeito que não é mais submetido aos ditos inferiores do Outro materno sobre seus órgão genitais. A separação desses significantes operou uma redução na satisfação do supereu quando o sujeito pôde dizer não aos imperativos mortificadores do Outro. Em outros termos, podemos localizar aqui a satisfação como alívio de desidentificação, que não se dá apenas uma vez, mas ao longo da travessia da análise, sendo que o sujeito às vezes – mas nem sempre – pode localizar no tempo seus efeitos. A satisfação ao longo da análise é também a
82
satisfação da suspensão das inibições e da atenuação da angústia, como por exemplo, num caso de passe quando da queda do objeto olhar. No Prefácio, Lacan situa o inconsciente no registro do real, sob a forma de satisfação, em oposição à verdade: “a miragem da verdade da qual só pode se esperar a mentira, não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise”3. Esse fim é, portanto, marcado por um “Estou satisfeito com essa verdade! Mesmo que não seja lá muito verdadeira, tá bom! Chega! Não quero mais verificar a veracidade da verdade.” Isso coloca um fim à historisterização – termo que aponta para o caráter fictício da verdade - que o analisante faz de sua vida, que pode ser comparado ao próprio processo analítico. É também neste texto que Lacan define o passe como a historisterização da análise – a não confundir com a historisterização da vida que é efetuada na análise. Alguns passantes e mesmo alguns passadores acham – como pude constatar - que o dispositivo do passe é o lugar de um resumo da historisterização da vida, mas não é o que Lacan esperava do passe. Às vezes um testemunho é feito mas sobre o que ocorreu na vida do sujeito do que o que foi sua análise. Nesses casos fica difícil o cartel do passe poder constatar algo de seu final, pois não foi possível apreender o fio condutor de uma análise e sua relação com as mudanças na vida do sujeito. No passe trata-se da historisterização da análise e a transmissão daquilo que permitiu ao passante ser analista. Nos dois casos de passe em que houve nomeação foi possível se apreender a estrutura e a solução da neurose apresentada no final da análise e assim como a relação dessa solução com momentos cruciais ao longo da análise e repercussão desses na vida do sujeito “O passe, diz Lacan, é a verificação da 3 Jacques Lacan, Outros Escritos, op. cit, p. 568.
83
histohisterização da análise abstendo-me de impor esse passe a todos, porque não há a todos no caso, mas esparsos disparatados”. Essa expressão de Lacan aponta que os analistas não fazem um todo, a Escola não toda
. Não é um Outro
reconstituído para o analisante (como se chegou a propor explicitamente na AMP) que se deparou com a falta do outro em sua análise. O dispositivo do passe não constitui a Escola como um conjunto, nem a instituição que a sustenta – somos uma coleção de “esparsos disparatados”. Cada passante privilegia um aspecto em sua historisterização da análise assim como também encontramos várias indicações no ensino de Lacan do que pode acontecer no final da análise: a travessia da fantasia, a queda do objeto a, o encontro com a inconsistência do Outro, a identificação com o sintoma, etc. O mais difícil é não nos deixarmos influenciar por essas indicações – e isso vale tanto para os passantes, quanto para os passadores e para o cartel do passe – para não distorcermos o passe e o transformarmos numa verificação de determinados padrões de final de análise. O passe aponta justamente para o oposto disso: é um anti-padrão radical. Quando Lacan diz historisterização – vale lembrar - também é o caso a caso também: cada um o fará de sua maneira, privilegiando alguns aspectos de sua análise e não evidenciando outros. A histohisterização é forçosamente não toda. Não se trata de uma elaboração da análise, que cabe mais ao cartel do passe, que é o júri, do que propriamente falando ao passante, e muito menos do passador. É um problema quando o passador passa a teorizar pois pode, assim impedir a passagem do testemunho do passante até o cartel do passe.
84
“Deixei à disposição, diz Lacan, para testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa”. Ao falar sobre verdade mentirosa, não há uma desqualificação da verdade. É uma constatação: não se pode distinguir totalmente a verdade da mentira. O sujeito testemunha dessa verdade mentirosa. Ele sabe que a verdade é mentirosa mas não deixa de ser verdade. Trata-se daquilo do qual o passante foi constituído a partir dos significantes do Outro e a partir dos quais você fez a suas escolhas, ou seja, aquilo que os gregos chamavam de destino, no qual o sujeito é mais falado do que fala, mais agido do que age, etc. Considerar o destino como uma verdade mentirosa já é uma forma de você se desalienar do Outro, lá onde está inscrita sua história verdadeira, que no entanto, mente – ela mente sobre o que é o ser. O que interrompe a busca da verdade na análise não é o esgotamento ou cansaço e sim o que é da ordem da satisfação. É o momento em que há transformação da valência do gozo, do gozo que faz sofrer ao gozo que faz fruir. É você passar do gozo trágico ao gozo do entusiasmo – afeto lacaniano imprescindível ao analista. É uma satisfação – que é uma satisfação de fim – que marca um corte na satisfação da transferência, na medida em que a busca da verdade está vinculada à satisfação que o amor de transferência promove. O amor de transferência trás uma satisfação: a busca da verdade se dá sob o signo de Eros, nos desfilamentos do desejo suportada pela demanda de amor que sempre encontra seus sinais de reciprocidade. Para o sujeito abrir mão dessa satisfação amorosa, ela deve encontrar uma outra satisfação. Há uma perda do sofrimento promovido pela análise ao transformar como diz Freud a infelicidade numa miséria banal. Quando se faz essa passagem há uma diminuição do valor do sofrimento, mas não é uma mudança: você continua com a miséria, apesar de ela
85
estar banalizada. A satisfação de fim não é a redução do sofrimento que acompanha a redução do sintoma, como propõe Lacan no que concerne a operação analítica sobre este. Ela é outra coisa, ela marca uma mudança de comutador, ela não é vinculada a alienação significante, e sim à separação em relação ao Outro. Em um caso de passe, o cartel detecta uma frase do testemunho que aponta para
uma
conclusão
de
final
de
análise:
“Eu
sou...”,
definição
de
de-cisão do ser. Esta afirmação foi possível a partir de uma autorização de gozo não mais acompanhada do afeto da vergonha. O sujeito saiu da posição de ser o objeto da vergonha do Outro materno. Essa satisfação corresponde ao “saldo cínico” do gozo permitido4, ou seja, sem o Outro. Neste caso, o efeito no gozo se vincula à pulsão escópica: houve um esvaziamento do gozo do olhar, que se expressa em uma fórmula significante criada, pelo sujeito, na qual ele indica não estar mais na mira do Outro. Em outro caso de passe, a satisfação que marca o fim é vinculada à criação, a uma invenção própria do sujeito e, como tal, desvinculada dos significantes do Outro paterno, aos quais ele se encontrava subjugado. Algumas operações significantes efetuadas pelo sujeito atestam a presença do fio condutor da análise até sua conclusão final. Assim foi possível averiguar a travessia do sujeito em relação à voz do Outro do qual ele se separa. A mudança da valência de gozo se vincula neste caso à pulsão invocante e à queda do objeto voz. No início do Seminário 20, Lacan se refere à satisfação do seu “não querer nem saber”, que é a própria expressão do recalque. O inconsciente vai evidentemente continuar se manifestando, como nossos AE nos mostraram ao 4 Jacques Lacan, 1967.
86
relatarem suas formações do inconsciente em Roma e Fortaleza – lapsos e sonhos durante o procedimento do passe. O sujeito sabe que ele não disse tudo, mas está satisfeito não apenas com o que já disse e a que chegou mas também está satisfeito com seu recalque. “É somente, diz Lacan, quando o seu (“não quero nem saber”) lhe aparece como suficiente que você... se destaca normalmente de sua análise”.5 O “suficiente” corresponde aqui ao que é o satisfatório do final de análise, a um “é suficiente, estou satisfeito” – satisfação do saber adquirido, mesmo sabendo que resta a saber... e, no entanto, está bem assim. E o sujeito deixa de estar insatisfeito com o que sabe e sai contente com isso. Quer também dizer que você está satisfeito com seu sintoma, ou seja, sua maneira de gozar do inconsciente, até para saber lidar com ele de uma maneira que não seja sofrimento. A análise pode chegar “ao ponto em que o bem-dizer satis-faça”.6 Eis uma satisfação de fim de análise: ela é relativa ao manejo da língua como bem-dizer que satisfaz o sujeito em se dizer (“eu sou...”) ou dizer seu sintoma (forma de gozo). Nesse termo de Lacan, encontramos também o fazer que nos remete ao saber fazer com o sintoma. Quando o sujeito está no processo analítico ele está no “não basta” e sempre procura um dizer melhor, um dizer a mais que responda a esse “não basta”. No final de análise o bem-dizer que satisfaz permite o “Basta!”, ou melhor dizendo, ele produz esse “Basta” cuja satisfação marca o final de análise. O bem dizer do seu sintoma não ocorre sem a histohisterização que dá conta da história do seu sintoma, da sua fantasia, das ficções secretadas pelo inconsciente durante a análise, até que se chega ao bem-dizer do lado do sintoma, ao lado de um satisfazer. Essa satis-fação, é da ordem do real, de uma satisfação no fazer. Trata-se de 5 6
Jacques Lacan, Seminário 20, Seuil, p. 9. Jacques Lacan, “...Ou pire”, Autres écrits, p. 551.
87
um fazer com seu sintoma. Essa satisfação do fazer podemos aproximá-la do que diz Freud do que se espera de uma análise: poder amar e trabalhar. Parece pouco? Mas é muito! Eis um fazer do real que satisfaz e pode por um fim à busca da verdade que é sempre mentirosa. A satisfação de final de análise está para além daquilo que caracteriza o desejo inconsciente sempre insatisfeito ávido de significantes, guloso de instrumentos de gozo: colares, amantes, carros e ... saber. O fala-a-ser cambia seu gozar – este novo gozar é um gozar desvinculado do gozo (suposto) do Outro. A queda do sujeito suposto gozar é a condição da satisfação do final de análise. Não se trata da promessa de um gozo-todo destinado necessariamente à decepção, ou seja, não se trata de um empuxe-ao-gozo, e sim de um gozo que leva em conta a castração, um gozo castrado. Entretanto é um gozo que satisfaz – é um gozo satisfatório, permitido, em o Outro. A satisfação de fim confere ao gozo uma coloração e vivacidade que se opõem ao negror e a mortificação da relação do significante com o gozo tanto na carne quanto na mente. Essa satisfação tem várias vertentes: - a vertente que acompanhou a travessia da análise e o desaparecimento do sofrimento do sintoma, da suspensão da inibição e da atenuação da angústia, como testemunhou Sílvia Franco em seus depoimentos públicos. - a vertente que diz respeito á sexualidade:- o sujeito está satisfeito com sua maneira de gozar sexualmente – é o que pudemos verificar a partir do testemunho dos passantes. Ele não está mais nem na insatisfação nem na impossibilidade e nem na metonímia desvairada de transar com todo mundo. O sujeito pode enfim consentir com um modo de gozar outrora recusado ou desconsiderado. Essa
88
vertente da satisfação sexual é extremamente variável, mas ela sempre traz a paz. Final da guerra: guerra dos sexos, guerra consigo mesmo. Evidente que é uma paz que não impede nem a batalha nem de ir à luta! - vertente do saber. Depois de várias voltas em sua história, recordações, fantasias e heranças tendo sido transformadas em sua história, ou seja, após a historisterização de sua vida e de seu lugar na genealogia, o sujeito se dá por satisfeito. Ele se dá por satisfeito com o saber construído e satisfeito com a indecidibilidade de sua verificação. Ele se dá por satisfeito com a elaboração do saber sobre seu sintoma e de seu limite – seu não-querer-saber. - vertente de lalíngua. Nos passes que escutamos no nosso cartel, pude constatar a satisfação linguageira correspondente ao inconsciente como uma elucubração sobre lalíngua. Esse inconsciente lalinguageiro é um trabalhador incansável, como o define Lacan. Esse trabalho – Arbeit – termo tantas vezes empregado por Freud – não é um trabalho forçado, como o trabalho de luto, penoso, sofrido. O trabalho de lalíngua é – digamos – afreudisíaco! Nesse significante podemos escutar aí também o gozo dionisíaco. E onde se pode verificar esse gozo é na letra do sintoma – a maneira como cada um goza “lalinguamente” de seu inconsciente.
89
MESAS SIMULTÂNEAS
90
“Fazer uma Escolha ou Permanecer na Dúvida?” Rainer Melo1
"No te puedo compreeender, corazón loco, yo no puedo compreender como se puede querer dos mujeres a la vez y no estar loco, merezo una explicacion porque es impossible seguir con las dos". (Corazón Loco -‐ Bebo Valdez y Diego Cigala)
O caso que ilustra este trabalho é de um sujeito (42), casado há 22 anos, que chega à análise queixando-‐se de intenso sofrimento, atormentado pela dúvida em relação à sua divisão entre duas mulheres que ama, cada uma diferente, perdido na impossibilidade da escolha. Uma, é esposa e mãe, representa segurança; a outra é a mulher, amor proibido, a possibilidade de arriscar. O caso retrata a dúvida sistemática, metódica e estrutural do sujeito que se exprime na vida amorosa, a impossibilidade de decidir entre a esposa e a outra, ou seja, a divisão subjetiva exprimindo-‐se na divisão do objeto de amor. O problema da divisão subjetiva estaria facilmente solucionado se o sujeito fizesse a escolha. A ironia consiste no fato de um homem possuir duas mulheres e, no entanto, continuar insatisfeito. Freud1 afirma: “A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais expressa seus pensamentos secretos, presume-‐se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria (...)” Continua: “A variante da neurose histérica é a neurose 1
Psicanalista membro da EPFCL/ AFCL. Psicóloga. Licenciatura em Psicológia CES/ JF) Pós-Graduação em Psicanálise (CES/JF).
91
obsessiva”2. É um pensamento contínuo, em que há uma satisfação libidinal, uma copulação de significantes. As idéias obsessivas que vêm sem cessar, os rituais, são para evitar que pense. O sujeito, para entrar em análise, é necessário entrar para o discurso histérico, ou seja, o sujeito precisa ser histerizado. Caso Clínico O sujeito se apresenta queixando-‐se de se sentir dividido entre sua esposa, de origem tradicional e rica, e uma mulher jovem, de família simples e pobre, ambas inteligentes e bonitas. A primeira representa o aconchego familiar, mãe de seus filhos e companheira de 22 anos. A outra representa o novo, o desafio, o proibido. Ama as duas, não consegue saber qual a preferida, pois ama cada uma de forma intensa. Teme fazer uma escolha e arrepender-‐se. As duas cobram uma posição que não consegue assumir, fica dividido, mente a ponto de confundir o que é sua verdade. Fica em circuito fechado do qual não consegue sair, mas essa é uma estratégia que utiliza para manter seu desejo impossível sem fazer uma escolha. É a forma de estar sempre em outro lugar para não correr risco. “O obsessivo usa a manobra covarde de não correr riscos, eximindo-‐se de seu desejo; se ele não arrisca não goza, e o gozo do qual se priva é transferido ao outro imaginário, que assume como gozo do espetáculo”3. Carmen Gallano4 destaca que “a análise é o lugar onde o obsessivo pode se desprender de seus pensamentos, histerizar-‐se, passando pelo discurso histérico.”
92
Constelação Familiar Lacan defende que a constelação do sujeito é formada na tradição familiar pela narração de certo número de traços que especificam a união dos pais. A constelação originária que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino, quase à sua pré-‐ história, as relações familiares fundamentais que estruturam a união dos seus pais mostram ter relação precisa e definível com o que aparece como sendo o mais fantasmático do cenário imaginário ao qual chega como solução da angústia. O sujeito (Paul) vem de família tradicional. O pai, filho de imigrantes que fizeram fortuna, é professor universitário e empresário. A mãe, fina e educada, pertence a uma família tradicional, rica e de prestigio. Quando jovem, o pai do sujeito também ficara dividido entre duas mulheres, preferindo escolher aquela que lhe desse prestigio na sociedade. Esse pai, homem educado, mas autoritário, impunha suas decisões que eram acatadas pela mulher. O sujeito sempre ouviu de sua mãe: “A família tem de ser preservada e deve ficar acima de qualquer interesse”, dito materno que o sujeito sempre traz para sua análise e lhe provoca culpa, conflitos e dificuldades nas suas decisões. Observa que as duas mulheres com as quais se relaciona são como o pai, autoritárias, e lhe provocam medo, afirma ter “medo delas como do pai.” A lembrança das atitudes autoritárias do pai é trazida para a análise, como no sonho que o sujeito relata, dividido em três níveis: No primeiro nível, no quintal de sua casa, há um lugar proibido para brincar. Mesmo com hesitação, consegue ultrapassar. No segundo nível, vê surgir, numa espécie de névoa, um homem, uma mulher e duas crianças. Tenta tocar o homem, que
93
lhe diz: Você não pode ultrapassar o limite e me tocar. Sente calafrio, obedece e não se aproxima. Desse segundo nível, vê o terceiro nível cercado em fogo, faz o sinal da cruz e o medo se esvai. Nas associações, o pai autoritário e o temor, a lembrança dos castigos impostos. Em um deles, Paul recusava determinado alimento. Todos estão à mesa, o pai se levanta, coloca o rosto da criança dentro do prato e, em seguida, o deixa de pé como castigo, o rosto sujo, olhando todos à mesa, paralisado. Perguntado sobre a reação da mãe nessas ocasiões, responde que ela nunca interferia nas atitudes do pai. Os ditos da mãe estão sempre consigo, afirma. O obsessivo se mortifica, coloca-‐se no lugar da falta do Outro, é uma forma de salvar o Outro. Não só como a castração da mãe, mas a inconsistência dos ditos da mãe. Não pode pedir nada, para não mostrar a sua falta, diferentemente da histérica que demanda sempre. Se o obsessivo mostra a falta, vai ficar evidente que ele não é o falo, o falo como símbolo da falta do Outro. Aceitar ser o falo é condição para não ceder ao desejo. Paul casou-‐se jovem, ainda universitário, porque sua namorada, Cal, se engravidara. Ainda hoje “admira sua mulher, acha-‐a linda, sente atração e gosta de sexo com ela”. Tudo caminhou bem por alguns anos. Depois Paul começou a sentir “certas estranhezas”, como o corpo separado de sua cabeça, os pensamentos invadirem o corpo, as idéias obsessivas, hesitações, dúvidas, ruminações. A partir daí, começou interessar-‐ se por outras mulheres, até que encontrou a jovem Nina, cuja relação dura há cinco anos. A esposa, ao saber, resolveu engravidar e o sujeito prossegue com suas hesitações,
94
sentindo-‐se culpado e dividido. Segundo Freud, o que caracteriza o sintoma obsessivo são as dúvidas, a ruminação e a incerteza. Paul e o Homem dos Ratos O caso de Paul nos remete ao famoso caso de Freud, “O Homem dos Ratos”, com o qual verificamos alguma semelhança. No HR, cuja problemática é típica de um caso de neurose obsessiva, onde aparece a ambivalência afetiva caracterizada por Freud como a clivagem entre o amor consciente e o ódio inconsciente, aparece essa ambivalência em relação ao pai e a senhora que ele venera. Desse modo manifesta os sintomas como forma de apreensões obsessivas, medo de que aconteça algo ruim com a senhora ou que o pai morra (que já estava morto). No caso de Paul vêm sempre o medo e as dúvidas. "Se eu sair de casa algo ruim pode acontecer com minha mulher e meus filhos. Minha mulher vai deixar de me amar e ficar com outro. E a outra, se eu deixá-‐la? Algo vai faltar”. A impossibilidade de decidir entre os dois objetos de amor aparece em um sonho, no qual o sujeito se vê numa estrada, numa encruzilhada, onde aparecem, de um lado, a mulher, mãe de seus filhos e, do outro, a analista, objeto proibido, algo intocável. Desse modo, se constitui o analista como objeto causa de desejo, constituição essencial para o estabelecimento do discurso do analista na experiência psicanalítica e o sujeito coloca o analista em seu sintoma. A formação do sintoma obsessivo alcança o triunfo quando logra unir a
95
proibição com a satisfação, de tal forma que o que fora originalmente um mandamento defensivo, ou uma proibição, adquire a significação de uma satisfação, cujo efeito colabora com esses enlaces artificiosos. Encontramos a ambivalência no conflito obsessivo entre dois impulsos: o de ódio e o de amor. Freud descobriu que, mesmo na existência desses dois opostos, é na presença do ódio que se encontra a base de cada sintoma obsessivo, como resposta sempre à mão para se defrontar com signos de que o Outro não é um deserto de gozo. O sujeito tem sempre a sensação estranha de estar e não estar em lugar nenhum, "fico pulando de um lado para outro, mentindo para não decidir entre a mulher, esposa rica, e a jovem pobre. Sempre confuso, sob pressão, com a sensação de estar assentado numa caixa de pólvora pronta a explodir, como nos sonhos se repetindo em encruzilhadas, driblando a morte. O sujeito da estratégia obsessiva5 tentará enganar a morte. Para tanto, nunca estará onde se joga o jogo e, por isso, quase nada do que ocorre lhe interessa, tudo o que realmente importa perde o sentido. E, em seu lugar, esses pequenos e cotidianos absurdos sintomáticos se eternizam na vã tentativa de se preservar, abdicando do desejo que, por outro lado, lhe dá alimento. E sempre adiando: mais tarde, mais um dia... Trava-‐se uma luta, constituída de idéias contrarias expiatórias que ocupam toda sua atividade mental diurna e noturna. “O obsessivo pensa avaramente. Ele pensa em circuito fechado. Ele pensa para ele sozinho”6. Esse debate permanente opera-‐se em um clima de dúvidas bem sistemáticas, não levando a nenhuma certeza. Surge nessas 96
dúvidas sempre uma interrogação, que gera procuras de respostas de soluções, sendo sempre os resultados insatisfatórios. O obsessivo não tem medo apenas de cometer algum ato grave, imposto a ele por suas idéias, mas de tê-‐lo feito de modo inadvertido. “(...) Essa cisalha chega à alma com o sintoma obsessivo, pensamento com o qual a alma fica embaraçada, não sabe o que fazer.”7 Quinet8 destaca que a obsessão como sintoma é a maneira de gozar para um sujeito, cuja dúvida e a falta de certeza impedem seu ato, que é sempre adiado. Daí a obsessão como pensamento se encontra em oposição ao ato. Se o sujeito pensa, o ato não acontece. Uma análise possibilita que o sujeito fale, ou seja, coloque em palavras o seu pensamento. É preciso que o gozo passe do pensamento para o ato, invertendo assim o próprio movimento de formação da obsessão. Considerações Verificamos no caso apresentado verdadeira batalha entre as idéias, que entram em conflito e paralisam sua vida mental, angustiando e inibindo possíveis soluções. Sabemos que não há respostas para as perguntas de Paul, porque as perguntas são sintomas disfarçados. O sintoma não é para ser respondido e sim para ser trabalhado em análise. Paul precisa descobrir que sua felicidade não depende de uma decisão imediata. Escolher Nina ou Cal não determina o sucesso de sua vida. Seu verdadeiro sucesso consiste em decifrar seu conflito e descobrir os motivos que o levam sempre a uma encruzilhada.
97
Notas 1 FREUD. Um caso de neurose obsessiva (1909:160). 2 FREUD. Disposição á neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema de escolha da neurose (1913:395) 3 LACAN. A Psicanálise e seu Ensino (1957: 454). 4 GALLANO. Enfermares Del cuerpo Del sexo. Inédito. (2010: s/p) 5 LACAN. Psicanálise e seu Ensino (1957:458) 6 LACAN. Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975:5) 7 LACAN. Televisão (1974:19). 8 QUINET. Zwang und Trieb (1998: 67-76).
Referência Bibliográfica FREUD, S. (1909) Um caso de neurose obsessiva (1909). Imago Editora. Rio de Janeiro. 1980. Vol X. FREUD, S.Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à psicologia do amor.(1911). Imago Editora. Rio de janeiro. 1980. Vol XI. FREUD, S. Disposição à Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema de Escolha da Neurose (1913). Imago Editora. Rio de Janeiro. 1980. Vol XII. FREUD, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914). Imago Editora. Rio de janeiro. 1980. GALLANO, Carmen. Enfermares del cuerpo fuera del sexo: uma clínica del obsessivo (2010). Roma. 2010. Inédito. GALLANO, Carmen. Conferência: Estraña el cuerpo. Campo Grande. MS. 2010. LACAN, Jacques. A Psicanálise e seu Ensino. (1957). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
98
LACAN, Jacques. O Seminário livro 5: As Formações do Inconsciente (1957/1958). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1999. LACA.N, Jacques. O Mito Individual do Neurótico Lisboa: Assírio e Alvim. 1980 LACAN, Jacques. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. LACAN, Jacques (1975) Conferência de Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São Paulo, n.19, 1988. QUINET, Antonio. Zwang und Trieb (1998). Os destinos da Pulsão. Rio de Janeiro. Kalimeros, p. 67-77. 1998. VALDEZ, Bebo y CIGALA, Diego. Corazón Loco. CD: Lágrimas Negras.
99
O que Marcélio Sabia Lia Carneiro Silveira1 O psicanalista, muitas vezes, recebe na clínica demandas relacionadas a aprendizagem e que poderiam ser endereçadas a profissionais diversos como o psicólogo ou o psicopedagogo. Trata-se do momento em que, ao constatar o que entendem como um “déficit de aprendizagem”, os pais (amparados, muitas vezes, pela escola) resolvem procurar um especialista que possa tratar desse “sintoma”. Para os saberes oriundos da psicologia, o que está em jogo aqui é uma defasagem. O processo de aquisição do conhecimento, tal como entendido nas abordagens hegemônicas neste campo: tradição experimentalista, behaviorismo – cognitivismo, e até algumas leituras freudiana que se centraram num fortalecimento do Ego) é entendido como a consolidação de determinadas respostas exitosas dadas por um organismo. Essas respostas seriam possíveis devido, por um lado, a uma bagagem hereditária mínima de respostas comuns a espécie, e por outro, a interação com um “meio” que oferece os estímulos necessários. De qualquer forma, a responsabilidade pela aprendizagem, reside no sujeito do conhecimento, o eu, a consciência ou a inteligência. (LAJONQUIÉRE, 1999) Quando alguma coisa se interpõe entre o estímulo e a resposta (ou seja, não se alcança o nível optimum esperado), o especialista busca neste mesmo “eu” alguma resposta. Já que ele é entendido numa lógica organicista e maturacionista, logo, o “defeito” só pode estar num desses planos. Ou se trata de um problema de desenvolvimento (algo orgânico ou genético corpo) ou interferência de algum “aspecto psicossocial” (ambiente familiar desajustado, maus-tratos, etc.) Seja lá qual for a saída encontrada, a intervenção vai ter como objetivo extirpar o sintoma (déficit de aprendizagem) e restaurar no eu a capacidade de aprender. Estamos no discurso da ciência, do sujeito cartesiano, do saber do especialista. 1
Membro da Escola de psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-‐ Brasil. Membro do Fórum Fortaleza.
100
No entanto, diferentemente dessas profissões, o ofício da psicanálise vai demarcar uma diferença radical na forma como podemos acolher as vicissitudes pelas quais um sujeito passa no seu processo de aprendizagem. Também reconhecemos que, nos ditos “problemas de aprendizagem” há alguma coisa que emperra, há uma pedra no meio do caminho. Pode ser que haja aí, para alem da demanda dos pais, um sintoma. Ocorre que sintoma, aqui não é entendido como um déficit, uma anomalia a ser corrigida. O sintoma, para a psicanálise é um índice do sujeito e das tensões que se revelam entre este e o seu desejo, inconsciente. O Sintoma na psicanálise O sintoma já é considerado, antes mesmo da psicanálise, um importante conceito na medicina. Com Michel Foucault (1980) vemos como este está conceituado no seio do projeto anatomopatológico da medicina, onde o sintoma sempre corresponde a lesão de um órgão, alteração que precisa ser corrigida para reencaminhar o organismo em direção à normalidade. A psicanálise nasce de um encontro: aquele que se dá entre Freud e o sintoma das histéricas. Destituído de lugar no saber médico, com Freud o sintoma ganhou estatuto de mensagem. Portador de um texto que remete ao sexual, ou melhor, a uma falha no sexual. Alem disso, Freud também afirma que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito. Na premência constante das pulsões, algo não pode ser aceito ou por ser incompatível com o eu ou por afrontar seus padrões éticos. A libido insatisfeita é obrigada a abandonar a realidade e buscar outras vias de satisfação. Daí temos uma outra peculiaridade do sintoma em Freud. O sintoma é um acordo, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mutua. (FREUD, 1916, p.421) Assim, a libido consegue encontrar alguma satisfação, embora seja uma satisfação que mal se reconhece como tal. Lacan também se interessou por essa face de carta endereçada ao Outro (face simbólica do sintoma), mas também soube extrair daí a dimensão de gozo que o sintoma presentifica, apontando para uma face real do sintoma. No texto intitulado “A Terceira” Lacan (1974, p.24) afirma: o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de
101
maneira satisfatória. Sentido aqui não no sentido de significação, mas no de vetor. Ou seja, o sintoma é um vetor apontando para a presença do real. O Caso Clínico Os pais de Marcélio, 11 anos, me procuram em Junho de 2009 porque, segundo os pais “a professora disse que ele precisava de psicólogo”. É muito inquieto, não presta atenção na aula e briga constantemente com os outros alunos. Alem disso, embora esteja cursando pelo quarto ano consecutivo a terceira série, não consegue ler nem escrever. Trata-se de um caso atendido em um serviço público de Fortaleza-CE situado em uma região muito carente da cidade. O desafio nas entrevistas preliminares foi tentar localizar algo na fala de Marcélio que o implicasse para alem da demanda de adequação do comportamento endereçada a mim pelos pais e pela escola e que ele parecia endossar. Falava muito pouco e, nesse pouco, deixa entrever que acredita que está ali para ser mais comportado, para parar de brigar na escola e pra conseguir aprender. Peço-lhe para me falar sobre isso, “não conseguir aprender” e descubro que não se trata simplesmente de não conseguir, há uma singularidade muito relevante em sua história. Ele diz: eu sabia ler e escrever, mas um dia o colégio caiu. Tive que ficar em casa por uns meses e quando eu voltei tinha “esquecido de tudo”. Suas dificuldades dizem respeito tanto a leitura como a escrita. Também esquece com freqüência do que vai dizer: às vezes a palavra vem reta na minha cabeça mas na hora de dizer sai outra coisa. A passagem que vai permitir a Marcélio sair da demanda dos pais para uma formulação de sua própria questão ocorre certo dia em que ele reconhece uma das pacientes que atendo como sendo uma de suas vizinhas e me pergunta porquê ela está ali. Respondo que as pessoas vem para cá porque tem alguma coisa que as aflige, que as faz sofrer e vem buscar ajuda. Pergunto se é o caso dele. Ele diz que tem sim, que ele sofre porque esqueceu algumas coisas e que acha que eu poderia ajudá-lo a lembrar. Outro fato que lhe intriga é que ele, por diversas vezes, acordou e estava em pé, em frente a geladeira, por exemplo, e não se lembra como chegou lá.
102
Esse momento foi um marco na direção do tratamento pois, enfim, seu endereçamento à analista começa a se delinear. Agora comparece sozinho à sua análise, sempre preocupado em vir “bonito” para a sessão, segundo relato da mãe. Percebemos que, para além de uma dificuldade de alfabetização, o que se verifica no caso de Marcélio é um regressão a uma fase anterior, onde algo se fixa no não saber. Para abordar como isso se dá, é importante tecermos alguns comentários sobre o que a psicanálise tem a dizer sobre o processo de alfabetização. No texto sobre as afasias, ainda num momento pré-psicanalítico, Freud (1915a) identifica o que está em jogo nos diversos momentos de aquisição da linguagem, num percurso que vai da aquisição da fala à aquisição da escrita. Aprendemos a falar, segundo ele, servindo-nos de uma linguagem própria; criamos, uma espécie de dialeto. Fazemos isso associando uma imagem sonora da palavra (que adquirimos do outro) a uma sensação de inervação da palavra, associando diferentes e estranhos sons de palavras a um único som que nós mesmos produzimos. No processo que se segue, passamos a tentar tornar esse som produzido o mais próximo possível da linguagem dos outros. O processo de aquisição da leitura e da escrita, envolve, segundo Freud, uma reedição desse processo, um segundo esforço de associação. Associamos as representações obtidas ao pronunciar cada uma das letras e, dessas associações, percebemos surgirem novas representações de palavras. Reconhecemos no que aí obtemos o som da palavra tal como a conhecíamos, e então, lemos compreendendo. Segundo ele, esse processo é facilitado pela semelhança que há entre o dialeto dos primeiros anos de vida e a linguagem escrita. Percebemos que há uma proximidade entre esse dialeto a que Freud se refere e aquilo que anos mais tarde Lacan vai chamar de lalangue2. Lalangue não é a linguagem, ela é antes um banho de obscenidade como diz Colette Soler (2010, p.29) ao se referir a esses uns, essaim3, enxame de significantes que a criança recebe de primeiro grande outro, a mãe. lalangue, portanto, não é da ordem do simbólico, mas do real. A autora nos adverte que não 2
Neologismo criado por Lacan. O termo “lalangue”, faz referencia a “lalação”, primeiros sons emitidos pelo bebê. 3 Em Frances há uma homofonia entre “essaim”, enxame e “esse uns”, S1, termo que Lacan utiliza para se referir ao enxame de significantes.
103
se trata, portanto de aprendizagem, mas de impregnação, de marcas que a criança recebe: são termos que excluem o domínio e a apropriação ativa e, portanto, a identificação. Desses sons sem sentido alguns vão se depositar, sob a forma de detritos, os primeiros uns sonoros. Segundo Soler (2010) é só num a posteriori, tempo do encontro com o impossível do sexo, que esses uns vão se conectar ao problema do gozo do sujeito, especialmente do gozo fálico. Aqui não se trata da combinatória do significante, mas desses uns erráticos, que se conectam diretamente com o gozo corporal. Nesse litoral que se escreve entre saber e gozo está em jogo não só a contingência do que foi falado pelo outro, mas, principalmente, a contingência do que foi escutado. Ainda durante as entrevistas, fiquei sabendo (através do pai) de um acontecimento que vai retornar várias vezes na fala do filho. A família morava em uma cidade do interior: o pai, a mãe, a filha mais velha e Marcélio filho, então com cerca de três anos de idade. Certo dia, o pai está bebendo em um bar e entra numa briga. Vai até em casa, deixa o filho que estava com ele no momento, pega uma faca e mata o colega com quem discutiu. Perseguido pela policia ele se esconde para livrar o flagrante e depois se entrega. Há três anos ficou sabendo de sua sentença: cumpriria pena em regime semi-aberto. Há cerca de tres anos também, nasceu a filha mais nova do casal. Na fala da mãe o pai aparece como violento e muito ciumento: chegava em casa bêbado e obrigava as crianças a se ajoelharem e escreverem o alfabeto na parede: “ele ficava rindo, parecia um louco”. Diz ainda que apanhou muito durante a gravidez do Marcélio: “será que isso tem a ver com o jeito dele ser hoje?” Aos poucos, Marcélio começa a me falar sobre sua vida na escola e em casa. Me diz que tem um irmão que está preso, o Daniel. Essa afirmação me surpreende pois nem a mãe nem o pai tinham me falado da existência desse irmão. Fala também que o pai tem mais cinco filhos com outra mulher que conheceu antes de sua mãe. Ainda sobre a prisão de Daniel, faz uma relação com seu sintoma e afirma: Ele foi preso, no mesmo dia eu fui pra escola, a tia mandou eu ler e eu não sabia mais. Marcélio briga muito na escola, e ao perguntar o porquê disso ele me diz que os meninos chamam sua mãe de rapariga, e me pergunta o que é isso. Com o meu silêncio, ele me diz noutra pergunta: rapariga num é moça?
104
Com essas informações novas e conflitantes e como Marcélio continua muito calado durante as sessões, sugiro trabalhar com desenhos, ao que ele se mostra muito interessado. Seguem-se ai várias sessões onde ele desenha várias pessoas, escreve seus nomes (alguns corretamente, com uma letra bem caprichada – O dele, o do pai) e outros que ele não consegue escrever e me pede ajuda – Daniel e Cibita, uma prima com quem ele gosta de brincar) depois me fala sobre o que produziu.
Noutras sessões ele recorta as figuras,
formamos arvores genealógicas ou encenamos histórias com os personagens que ele desenhou. Nesses jogos e desenhos o que começa a se delinear é a duvida de Marcélio sobre quem é essa família, principalmente sobre esses filho que a mãe teria no interior. Ele diz que não tem certeza se Daniel é filho ou irmão dela, mas acha que são filhos. Ele passa a investigar isso junto a mãe que explica que eles, na verdade são seus primos, filhos de uma irmã dela. Outra questão que surge é com relação ao seu nome próprio: “Meu nome é igual ao do meu pai e eu não sei porque”, “uma amiga minha falou que esse nome é uma peste”. Certo dia deixa escapar com um sorriso no rosto que sua mãe (e quase todos na rua) o chamam de Bebê e que ele gosta muito de ser chamado assim. Em uma sessão me diz: acho que eu nasci doente, com alguma doença, por que até meu irmão mais novo sabe mais do que eu. Pergunto então: o que você sabe sobre o seu nascimento? “Eu nasci da barriga, me tiraram de lá. Tu conhece a novela do Zé trovão ? Eles apostaram uma corrida. Se a Ana Raio perdesse tinha que dar um beijo nele, se ela ganhasse, num tinha não. Ela perdeu e eles se beijaram, os cavalos deles também, porque tem o mesmo nome que eles. Pergunto porque ele lembrou disso? Porque foi bom. Acho que é assim, eu lembro do que é bom. O que é ruim eu esqueço”. Noutra vez, me diz que sua avó mandou um recado para seu pai. Os irmãos do homem que ele matou estão querendo matar ele. Ele não pode ir pescar em... “idubaiu”4. A palavra certa não sai. Ele tenta varias vezes mas automaticamente só sai ‘idubaiu”. Pergunto se ele quer escrever. Ele escreve: “Dubaiu”. Depois tenta novamente: “Trubaiu”, e me diz: “não é 4
Imagino que ele está fazendo referencia ao município cearense de Banabuiú.
105
isso. Eu não consigo dizer”. Pede pra ir lá fora perguntar a um vizinho que o acompanhava e diz: “a palavra certa é Donabuiu”. Eu marco que ele lembrou do buiu, mas esqueceu o Dona. Digo, Dona também é um nome de mulher. Esse significante surge como S1 que articula um enxame, ponto de articulação ligando-se a outros uns que apontam para todas as questões de Marcélio: Donabuiú – Banabuiú – cidade onde o pai matou Dona – significante que aponta para o feminino Dedina – a mãe chama-se edina, mas ele escreve assim Daniel – que, como ele mesmo destaca, também escreve com D. Noutra situação me fala de uma cena que assistiu. A irmã mais nova, de três anos ainda mama e às vezes dorme no peito. Certo dia, conta ele, viu o irmão do meio deitar na cama, botar o outro peito para fora e mamar. Percebemos nessa escansão do significantes duas questões se colocam no caso: 1-
Marcélio se debate com questões que dizem respeito ao enigma do sexo: sua ascendência, a sexualidade materna e a indefinição de limites quanto a isso. A mãe é rapariga? E esses irmãos, de onde vieram? Podem os filhos gozar do corpo da mãe ? porque ela dorme? O que pode o pai?
2-
Seu sintoma, esquecer o que sabia, irrompe por volta dos 7 anos de idade, num momento em que essas questões se presentificam: nasce a irmã mais nova, o pai vai ser preso, o irmão é preso.
O que podemos extrair daí aponta em primeiro lugar para a atuação da pulsão epistemofílica. Marcélio andou procurando saber, investigando sobre sua origem e a origem desses irmãos. No texto Leonardo Da Vinci e uma Lembrança de Sua infância (1910), Freud afirma que uma fase cheia de investigações é freqüente nas crianças pequenas. Elas visam saber de onde vêm os bebês, como eles são feitos? No limite, essas questões apontam também para a origem do próprio sujeitinho: de onde eu vim? Por que eu nasci? O que eles querem de mim? Marcélio provavelmente andou procurando essas respostas e, posteriormente, encontrou ao longo de sua investigação algum limite desse saber. (Esse limite é estrutural,
106
pois a investigação fatalmente caminha para um ponto impossível de dizer e para o reconhecimento de uma falta, principalmente a falta no Outro). Nesse momento, opera o recalque que, por definição, trata-se exatamente de um mecanismo que visa afastar determinada coisa da consciência, mantendo-a à distancia (FREUD,1915b). Seria seu sintoma (esquecimento) equivalente ao próprio mecanismo do recalque? É o próprio Freud quem nos responde, ao afirmar que Sintoma e recalque não são a mesma coisa, longe disso, seguem caminhos de formação completamente diferentes, pois o sintoma equivale, na verdade a um segundo momento, o momento em que algo desse recalcado busca acesso à consciência, um retorno do recalcado. Tomemos novamente o caso de Marcélio: ele inicia, ainda numa fase remota suas investigações. Desiste delas e atribui uma resposta ao enigma como qual se depara, Daniel é meu irmão. Num momento posterior, marcado por solicitações escolares, nascimento de uma irmã, prisão do Daniel e do Pai, algo desse conteúdo recalcado tenta voltar. Vacilando o recalque, ele faz um sintoma, esquece o que sabia ler, sintoma cujo sentido, o vetor, como diz Lacan é apontar para o mesmo núcleo real com que esbarraram suas pesquisas sexuais, o impossível de saber. Nesse sintoma desvela-se ainda a posição de gozo de Marcélio. Apesar de haver incidência do Nome-do-pai, a saída pela identificação ao significante paterno é recusada por ele: “Não gosto de ter esse nome, esse nome é uma peste”. Prefere ser chamado pelo nome que recebeu da mãe, o Bebê. Continuar a ser o bebê da mamãe. Mas esse nome porta a marca de seu gozo, marca do impossível da relação, pois bebês não sabem ler.
Referências Bibliográficas: FOUCAULT, M. O Nascimento da clínica. 2 Ed. Tradução de Roberto Machado. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1980.
107
FREUD, S. (1910) Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. v. 11. In: Edição standard brasileira de obras completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ___________. (1915a). O Inconsciente (Anexo C). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1996., p. 165-209. ____________. (1915b) Recalque. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ____________. (1916) Conferência XXIII – Os caminhos da formação dos sintomas. In: Edição. Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.419-439. LACAN, J. A Terceira (1974). Che Vuoi, ano 1, n. 0, Porto Alegre, Cooperativa Cultura Jacques Lacan, 1986. LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Petrópolis, Vozes, 1993. SOLER, C. O Corpo Falante. Cadernos de Stylus, no 01, maio de 2010.
108
Reflexões sobre a direção do tratamento na clínica da perversão Maria Lúcia Araújo1 A idéia axial deste trabalho é trazer reflexões sobre alguns aspectos em relação à direção do tratamento em sujeitos de estrutura perversa, desde a questão diagnóstica, manejo da transferência e final de análise. Consideramos que o perverso que procura o analista está na posição em que sente a angústia de castração. Quando chega é porque a defesa não funciona mais e a angústia transborda. O sujeito vem nos dizer algo que no momento funciona mal e que antes funcionava bem. Agora funciona mal, até de forma perigosa. Está preocupado, e se queixa de não poder controlar os impulsos, sabe o que lhe acontece, mas não consegue reagir, portanto quer ajuda. Será que nós analistas estamos à altura de tal tarefa? Será que sabemos manejar a transferência na direção do tratamento? E como pensar o final de análise para a perversão? São questões que nos inquietam já faz alguns anos. Assim, pensamos que a preocupação do analista em orientar sua clínica a partir do diagnóstico estrutural é uma posição ética, e que pode a posteriori ser interpretada como um ato. Além disso, torna-se fundamental ressaltar que ao prescindir da hipótese diagnóstica não temos a mínima condição de dirigir o tratamento, pois tanto o dito como o dizer do analisante acabará ficando a deriva, a espera de um ato que nunca acontece.
1
MARIA LÚCIA ARAÚJO – Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, Membro do Fórum do Campo Lacaniano - São Paulo. Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da EPFCL/IFBrasil (2010). araujomalu@uol.com.br
109
Soler em seu curso sobre “A querela dos diagnósticos” nos lembra que Lacan mostrou a necessidade do diagnóstico para sabermos se o sujeito que nos procura pode se beneficiar do tratamento analítico, pois o saber clínico orienta a ação. Assim, o diagnóstico implica um julgamento ético, que está longe de ser um julgamento de saber (SOLER, p.18) Sendo assim, o que nos interessa aqui investigar não é apenas o sujeito perverso que demanda análise para saber sobre o dispositivo, já que sua formação o exige, mas também aqueles sujeitos que são trazidos porque correm sérios riscos de vida e colocam em risco a vida de outros. Tanto em um caso como no outro as demandas ocorrem quando sobrevêm sintomas e perturbação no gozo. No seminário 16 “De um Outro ao outro” Lacan nos convoca a uma tomada de posição ética dizendo: “Tratemos, em nossa elaboração de ser rigorosos! O sofrimento tem sua linguagem [...] O sofrimento é um fato, isto é, encerra um dizer.” (LACAN, p.63) Dessa forma, nós analistas estamos convocados a tomar uma posição ética em relação ao nosso próprio desejo de analista. Pois sabemos, que a análise de um sujeito perverso se passa quase que o tempo todo no acting–out que se dirige ao Outro. Entretanto, entendemos que é por essa via que o analista pode operar na direção do tratamento, ou seja, interpretar o acting–out, que é feito para a mostração. Lembremos uma afirmação de Lacan que está no seminário 10 “[...] se somos analistas, logo, ele, o acting-out, se dirige ao analista. Se ele ocupou este lugar, pior para ele. Ele tem de qualquer forma a responsabilidade que pertence a esse lugar que ele aceitou ocupar.” (LACAN, p.136)
110
Outro aspecto que vale a pena ressaltar é que uma forma possível do desejo perverso é a vontade de gozo, que é uma vontade decidida de gozar realizando sua fantasia. E, que a perda que precisa ser operada no sintoma é a perda de gozo. Contudo, salientamos que o desejo perverso não é uma pergunta, mas sim uma resposta, pois o perverso sabe o que quer e isso se deve a sua petulância perversa, que o faz convencido de saber a verdade escondida. Para esse sujeito não há falta, pois o fetiche sustenta seu desejo. A perversão se utiliza de diversas estratégias para negar a falta no Outro, tais como: o masoquismo que tem a intenção de angustiar o outro, o sadismo que quer produzir a divisão do outro, o exibicionista que quer mostrar e assustar; o voyer que quer ver surgir o olhar do outro. São alguns estilos de negar a falta. O que nos faz deduzir que há um lugar que o sujeito ocupa em relação ao desejo do Outro, e que há um lado desejo e um lado gozo. A tipologia é uma diferenciação nessa trilha entre desejo e gozo. O sujeito vai criando cenas. Assim o analista ao fazer a distinção tipológica tem acesso a uma ferramenta fundamental para a direção do tratamento, que vai ajudá-lo nas intervenções onde está a fantasia. Lacan nos adverte que “a fantasia perversa, tem uma propriedade que podemos agora destacar.“ [...] há aí uma redução simbólica, que eliminou progressivamente toda estrutura subjetiva da situação para deixar subsistir apenas um resíduo, inteiramente dessubjetivado e, afinal de contas enigmático, porque guarda a carga - mas a carga não revelada, inconstituída, não assumida pelo sujeito daquilo que é no nível do Outro a estrutura na qual ele está engajado até o mais íntimo de si.” ( Sem. 4, p.120 ).
111
Ora, o ponto que queremos ressaltar aqui, nesta afirmação de Lacan é o significante “dessubjetivado”, pois assim compartilhamos com o psicanalista Godino Cabas ao comentar este parágrafo, do seminário 4 , onde nos indica que “ [...] a tese de Lacan é que há uma propriedade que deve ser sublinhada: a existência de uma redução simbólica que tem como resultado uma dessubjetivação. Entendamos : um processo que equivale a uma anulação, uma supressão, ou melhor, uma suspensão da função do sujeito.” “[...] o fantasma perverso conserva todos os elementos da relação significante, mas em curto circuito. E, mais: um curto circuito no nível do sujeito. Sobretudo, porque a redução simbólica tem como efeito uma dessubjetivação.”(CABAS, p.184) Sendo assim, os significantes permanecem em estado puro, mas esvaziados do seu sujeito. Ocorre que como nos lembra Godino “Esse esvaziamento que emerge como um corolário coincide com a desrealização e a dessubjetivação que caracterizam a passagem ao ato nas perversões.” Concordamos com Godino Cabas no sentido de que esse esvaziamento é uma proposição que já nos foi demonstrada, que ao coincidir com a dessubjetivação nos deixa frente à passagem ao ato. Além disso, consideramos que na clínica do sujeito perverso esse fenômeno de dessubjetivação se impõe quando o sujeito transforma a questão do desejo em vontade de gozo e atua a fantasia na realidade; se opondo radicalmente à castração e a experiência da falta-a-ser. Na perversão o sujeito já se encontra localizado na fantasia e determina a si mesmo como objeto através do fetiche que faz função de véu, lugar da projeção imaginária. Nessa estrutura há valorização da imagem e redução simbólica de toda história.
112
Ora, sabemos que o sujeito aparece quando há uma questão e o sintoma quando há uma solução. Embora falsa essa solução, aparece como uma resposta à angústia de castração. A perversão desmente sua falta-a-ser, elegendo o fetiche como objeto fundamental com o qual tampona a castração feminina. Julien salienta que “[...] o fetiche é, portanto, uma defesa contra a angústia do desejo da mãe, é bem por isso que ele tem a mesma função que a fobia: colocar uma proteção em posto avançado diante do perigo de ser engolido pelo desejo insaciável do Outro.” (JULIEN, p.109) Torna-se, assim, necessário pensar a demanda, a entrada e final de análise a partir do desmentido (verleugnung) da castração, levando em conta que precisamos instaurar o sujeito e não a partir do recalque, como ocorre na neurose. Os perversos que chegam à análise se queixam que há uma dificuldade de colocar limite ao próprio gozo, revelando que há uma conjunção entre a fantasia e o sintoma. Segundo Lacan, “Há neles uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer, o qual está ligado a um saber, ao saber sobre a natureza das coisas, há uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua almoralidade.” (Sem.20, p.117) Além disso, nesta estrutura há uma coincidência de desejo e gozo e a tentativa de fazer existir a relação sexual. O fetiche, que é a prova clínica da estrutura equivale ao sintoma na neurose. A este respeito, Jacques Lacan e Wladimir Granoff, no texto Fetichismo: o simbólico, o imaginário e o real afirmam que desde 1927, Freud, “[...] introduzia-nos no estudo do fetiche indicando que ele deveria ser decifrado. Decifrado como um sintoma ou uma mensagem. Ele nos diz mesmo em que linguagem o fetiche deve ser traduzido “Desde o
113
início, tal abordagem situa o problema de modo explícito no campo da pesquisa do sentido na linguagem e não uma vaga analogia ao campo visual [...]” Dessa forma, “O imaginário é decifrável somente se traduzido em símbolos.” Entretanto, quando Lacan avança ao longo de seu ensino chega a nos alertar que “A perversão não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas, sim, porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto que, nessa ocasião, é o sinthoma. (Sem.23, p.21) Então interrogamos: Será que se trata na perversão de uma identificação ao sinthoma? E o fetiche viria enlaçar os três registros: real, simbólico e imaginário? Deixemos essas questões em aberto... E pensemos no discurso. O discurso de um sujeito perverso tem mais a função de mostração do que de representação, do dito. Como ocorre no “ato obsceno” ele mostra além da cena, revela o primado, ou melhor, o que existe aquém da palavra – a imagem “[...] como se houvesse um encurtamento do espaço entre a fantasia e o ato. “Na clínica o perverso mostra falando, tendo o analista como participante da cena perversa. As fantasias são encenadas. “[...] a montagem do discurso perverso revela um discurso no qual a palavra se torna um instrumento de mostração. O perverso se serve tanto do corpo como das palavras. O que ele quer é mostrar. (QUEIROZ, p.74) Ora, se o perverso toca algo da realidade com o fetiche e, além disso, há algo de fantasia no fetiche é com esse objeto que vamos operar na direção do tratamento. A psicanalista Márcia Mello, que tem uma grande experiência com a clínica da perversão, afirma que “quando rompe o vínculo com a realidade, a perversão substitui a
114
fantasia por um ato, atua na realidade ainda que insista na fantasia inconsciente. A diferença do neurótico é que o perverso faz isso exercendo a “vontade de gozo” amparado no objeto endereçado ao parceiro; evocando sua presença numa imagem, daí a importância do fetiche enquanto imagem encobridora.” (MELLO, p.102) Após, essas breves considerações interrogamos: Será que é possível ao sujeito de estrutura perversa, cujo desejo sempre fracassa, por causa de sua posição fantasmática que está sempre em continuidade com a realidade, sair dessa posição? Será que a partir de uma mudança na posição de gozo o sujeito poderia terminar sua análise em direção a um saber fazer com o desejo? Ora, sabemos que em todas as estruturas existe algo em comum, isto é, todas sem exceção querem se livrar da angustia de castração. Diante dessa constatação, nossa tendência a partir da experiência clínica com tais sujeitos é pensar que na perversão mais do que na neurose ou na psicose o sujeito precisa do desejo do analista e sua disposição para escutar a recusa, a verleugnung e suportar a “conjunção da palavra com o corpo no ato de dizer”. Todavia, consideramos que é nos deixando guiar pela estrutura que obteremos dela seus efeitos, sem jamais esquecer que a formalização não nos exime de escutar a singularidade de cada sujeito. Termino com uma citação de Jacques Lacan em Radiofonia “Seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem. A estrutura é apanhada a partir daí. Daí, isto é, do ponto em que o simbólico toma corpo.
115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CABAS, A. G., O Sujeito na psicanálise de Freud a Lacan - da questão do sujeito ao sujeito em questão. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2009.(p.184) FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S.Freud, Edição Standart das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.VII). Imago editora - trabalho original publicado em 1905, Rio de Janeiro. FREUD, S. O fetichismo. In Freud, Edição Standart brasileira das obras completas psicológicas de Sigmund (Vol.XXI), Imago Editora, 1927, Rio de Janeiro. JULIEN, P. Psicose, perversão e neurose: A leitura de Jacques Lacan. Companhia de Freud, José Nazar, Editor, Rio de Janeiro, 2004. (p.109) LACAN, J & GRANOFF, W Fetishism: The Symbolic, The Imaginary and the Real, texto de 1956 (Inédito). LACAN, J. O seminário Livro 4: A relação de objeto (Trabalho original publicado em 19561957), Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1995. (p.120) LACAN, J. Texto: De uma questão preliminar a todo tratamento possível da Psicose. In: Escritos, Jorge Zahar Editor (trabalho original publicado em 1957-1958) Rio de Janeiro. LACAN, J. O seminário Livro 5 : As formações do inconsciente.(Trabalho original publicado em 1956- 1957) Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999. LACAN, J. O Seminário Livro 10: A angústia. Seminário Inédito, publicacão interna da Associação Freudiana Internacional. Recife: centro de Estudos Freudianos do Recife,1992.(p.136) LACAN, J. O seminário Livro 16: De um Outro ao outro. Seminário inédito, publicação interna da Associação Freudiana Internacional. Recife: centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004. (p.63) LACAN,J. O seminário Livro 20: mais, ainda. (Trabalho original publicado em 1972-1973) Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1982 (p.117) LACAN,J . Outros Escritos, Texto: Radiofonia – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003. MELLO, M.L. Gozo e Perversão: Um percurso na teoria de Freud com Lacan (tese de doutorado no IPUSP-SP), 2001. QUEIROZ, E.F. A clínica da Perversão, Editora Escuta, São Paulo, 2004. SOLER,C. ? A qué se Le llama Perversión? – Asociacion Foro Del Campo Lacaniano de Medellin, Medellín- Colombia, 2007. SOLER,C . La querelle des diagnostics – Cours 2003-2004 – Formations cliniques du Champ lacanien- Collège clinique de Paris. (p.18) LACAN, Jacques, texto Radiofonia - 1970, Outros escritos, (p.405), editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001.
116
A Pele, suas Marcas e o Corpo:Fenômeno Psicossomático e Tatuagem Tatiana Carvalho Assadi1 Heloísa Helena Aragão e Ramirez2 “Minha vida é o mar. Surfo desde pequeno e neste momento fui afastado destes instantes de prazer por causa desta doença que me invadiu o corpo....3” Como as personagens que são convocadas ao mergulho no mar infinito do belíssimo texto de Mishima4, Leonardo sente-se atraído para o mar. Nervoso, somente atinge momentos de calma e contemplação ao escutar as ondas da maré que se chocam com as minúsculas partículas da areia ou ainda, no sublime ato de avistar no horizonte os primeiros raios solares que avisam a hora do seu primeiro mergulho. Ao mesmo tempo são o olhar e o som que o lembram freqüentemente que seu corpo existe e encontra-se adoecido. Escuta os estalidos das feridas que rompem sua pele e produzem vermelhidões espalhadas pelos joelhos, pernas e cotovelos e, portanto, são estas mesmas feridas que ferem sua visão. Olhar seu corpo é insuportável, escutar a explosão das feridas é amedrontante, sente sua pele em chamas e nomeia-se de “carne viva”. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano- SP. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade- FCL-SP e do Circuito Ponto de Estofo- MC-SP. Pós-doutoranda em Psicologia Clínica- USP- SP. Bolsista FAPESP. tatiassadi@uol.com.br
1
2
Psicanalista. Membro da Escola do Campo Lacaniano-SP e do Fórum do Campo Lacaniano-SP. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade- FCL-SP e do Circuito Ponto de Estofo- MC- SP. Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos. heloramirez@gmail.com
3 4
Todas as falas em itálico são do analisante. Mishima (1987). Morte em pleno verão. Contos. Rocco.
117
Estes são os motivos que levam este jovem a procurar análise depois de tentar várias intervenções para sua afecção de pele: a psoríase. Freqüentou médicos, buscou tratamentos alternativos, espirituais e ou milagrosos que nada lhe adiantaram na cura da afecção dermatológica. Restou-lhe a psicanálise como última possibilidade, ou melhor, amparado pela fala de outrem recebeu a indicação da psicanálise como uma direção ao seu mal estar. Conduzido às primeiras entrevistas com descrédito e mais além, descrença, chega ao consultório relutando em falar. Não podia acreditar que uma “terapêutica” pela fala pudesse afetar seu corpo. Demandava uma cura do corpo e retornar ao mar, sem se envergonhar de sua pele e de seu “corpo marcado”, eram seus maiores anseios. -
“Marcado? – é uma das primeiras intervenções da analista.
-
Sou inteiro marcado.
-
Marcado? – novamente uma intervenção.
-
Tenho lesões por todo corpo que fazem uma espécie de desenho assombrado.
Um desenho que escama e solta cheiro. Sou como um filme de terror”. É assim que Leonardo começa a se apresentar. Reduz-se às descrições e marcas corporais. Gesticula, aponta os dedos para as partes do corpo em que foi invadido pela psoríase e esbraveja utilizando um vocabulário de baixo calão. Mostra a parte inferior das pernas levantando as calças em uma convocação do olhar da analista. Ao falar das lesões nos cotovelos novamente expõe a pele avermelhada e, ao dizer da psoríase no couro cabeludo ergue as mãos como se estivesse arrancando seus cabelos.
118
Abro um parênteses para dizer que em nossa experiência clinica na Rede de Pesquisa em Psicossomática (atual Rede de Pesquisa em Sintoma e Corporeidade do Fórum do Campo Lacaniano SP em parceria com a Universidade de São Paulo) verificamos inúmeras características que se repetem na fala ou mesmo em gestos daqueles que nos foram encaminhados com lesões dermatológicas, por exemplo: o não pudor em mostrar o corpo invadido por uma lesão ou a vergonha como causa e impossibilidade da quebra dos laços sociais ou para além disto, a impossibilidade de falar sobre sua afecção de pele. Diante dos primeiros atendimentos hospitalares com lesões dermatológicas e amparados nestas repetições clínicas decidimos escutar as hipóteses relativas ao aparecimento das lesões. Para nossa surpresa, num primeiro tempo, nada era possível dizer sobre o vitiligo, a psoríase ou mesmo a alopecia5. Em trabalho nas entrevistas preliminares os pacientes começavam a traçar hipóteses para suas lesões, e, como segundo tempo, ou conseqüência desta tática, eles faziam destas hipóteses suas verdades absolutas. E foi desta maneira que aconteceu com Leonardo. Suas primeiras lesões apareceram quando ele era ainda uma criança, aos seis anos. Naquela época era briguento e rigoroso com seus afazeres e como resultado estava sempre de “cabeça quente”. Certa vez enquanto pensava insistentemente sua cabeça esquentou e uma coceira súbita surgiu no couro cabeludo de onde soltaram-se “casquinhas escurecidas”. Como remédio para este ardor a mãe, sábia e protetora, receitou-lhe que esfriasse a cabeça. Explico. Esfriar a cabeça para ela era uma forma de barreira ao pensamento, era preciso mergulhar no mar gelado para construir este 5
Estas três lesões de pele foram as que trabalhamos nos Hospitais: Escola Paulista de Medicina-‐SP; Policlínica de Mogi das Cruzes e Universidade do ABC.
119
dique. Lembra-se que depois deste feito tanto a coceira quanto a escamação melhoraram significativamente6. Durante as entrevistas relembrou-se que sua cabeça começou esquentar porque havia obtido uma nota baixa em uma avaliação escrita na escola e como punição pela indisciplina e irresponsabilidade teve uma escamação capilar que lhe causava inibição diante dos colegas. Aos 16 anos, portanto, 10 anos mais tarde, depois de ter fumado maconha com os amigos atropelou uma pessoa de bicicleta. Sem saber como reagir e com medo das conseqüências que teria que assumir fugiu da policia refugiando-se nos braços da mãe. No mesmo instante que escapou à punição social sentiu a carne arder em chamas, como se estivesse queimando e placas vermelhas se espalharam por algumas regiões do seu corpo. Dias depois estas placas começaram escamar e obteve o diagnóstico de psoríase. Sem saber o que este “palavrão” significava, ingeriu alguns remédios que não se recorda quais foram e espalhou pelo corpo cremes, sendo assim, após dois meses sua pele voltou ao normal. Mais um episódio ocorrido 10 anos depois. Aos 26 anos, quando ainda namorava, depois de levar sua garota ao aeroporto para uma visita familiar, ele estacionou seu carro em um posto de gasolina se abastecendo de guloseimas numa pequena loja de conveniência. No local encontrou uma amiga dos tempos da faculdade, trocaram olhares e subitamente sentiu-se atraído por ela. Instantes depois de uma pequena conversa dirigiram-se ao motel. Enquanto faziam sexo Leonardo sentiu que algumas regiões de seu corpo estavam “rasgando de tanto
6
Nota-‐se claramente o efeito de sugestão a partir da fala do outro.
120
calor”, uma coceira intermitente o envolvia e quando foi se vestir verificou novas placas em seu corpo que rompiam sua pele. De dez em dez anos um episódio tomado como fora da lei, como contravenção moral aplacavam Leonardo que era punido pela psoríase. Sua hipótese era de que a doença tomou o lugar de sua “maldição7”. Em resposta a Vauthier, Lacan, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), fará uma essencial consideração sobre o doente psicossomático que permite desdobramentos na clinica psicanalítica. Algo acontece com estes sujeitos endereçando à ordem do escrito e na maioria dos casos os psicanalistas não sabem lê-lo. “Tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa que se oferece como enigma...”8 Foi em 1975 que Lacan sugeriu o tema do psicossomático emparelhado a idéia de signatura, de hieróglifo, de traço unário. Sobretudo, nos debruçamos sobre estas premissas para abordar a tática da psicanálise neste caso clinico apresentado pela lesão de órgão, ou como pronunciado por Lacan em 1966, por uma questão epistemo-somàtica. A indagação estavam postas: se existe um escrito no corpo, dado a não ler, qual a responsabilidade do analista diante desta clínica? Pois bem, neste caso em particular um ponto nos surpreendeu para além da lesão de pele. Contou Leonardo que fez todo o tipo de tratamento, inclusive ingeriu remédio biológico, que 7
Homofonicamente maldição e mal-‐dicção. Lacan, J. (1998) Conferencia em Genebra sobre o sintoma (1975).In Opção Lacaniana n. 23. Dezembro de 1998. p. 13-‐14-‐ São Paulo.
8
121
somente é prescrito em casos em que todo o corpo do paciente é tomado pela afecção. Vale salientar que suas marcas eram localizadas em zonas de atrito, tais quais joelhos e cotovelos. Durante sua adolescência participou de muitos campeonatos de jiu-jitsu e de surfe, tornandose um excelente esportista o que o autorizou a muitas viagens e grande quantidade de laços sociais. No entanto, sua vida foi desregrada em assuntos sexuais e de uso de entorpecentes. Quando iniciou as práticas esportivas disciplinou-se, deixando de lado orgias e vícios freqüentes. Como marco para esta mudança subjetiva tatuou na pele o mar e um lutador de jiu-jitsu, conseguindo eternizar na carne seu amor pelo esporte e sua “salvação da vida mundana”. Com a aparição “dela”, como Leonardo designou a lesão de pele, teve que parar de lutar porque a psoríase seria mais propensa a aparecer quanto maior o atrito da pele. Como nenhum dos tratamentos regrediu sua lesão após seus 26 anos optou por adornar sua pele com desenhos como formas de encobrir as manchas vermelhas e escamações da pele. Assim, a pequena tatuagem do mar foi ganhando contornos mais definidos, espécies diferentes de peixes e vegetação surgiram em regiões que a psoríase formava uma borda. Um coqueiro foi pintado em uma das pernas e um sol em outra. As marcações corporais foram se expandindo pela extensão de sua pele para tentar compor junto com o desenho um cenário que apagaria a lesão. Em contrapartida, o que Leonardo não contava era que a psoríase, como uma “praga”, aumentou com os contornos da tinta colorida no órgão pele. Conclusão: ele não sabia mais
122
aonde começava sua tatuagem e, tampouco, aonde terminava sua psoríase. As marcas foram se misturando umas às outras ate produzirem uma fusão indiferenciada. Ana Costa em seu livro Marcas Corporais e tatuagens (2003) recorta dos textos de Lacan duas passagens em que o ato de tatuar é questionado. O primeiro deles, e dizemos, não é uma ordem cronológica, surge em Subversão do Sujeito e dialética do desejo de 1966. Ali Lacan apresenta uma metáfora de um escravo que porta uma mensagem tatuada em seu couro cabeludo. Sem que soubesse da tatuagem, tampouco do seu conteúdo ele transporta a mensagem que poderia ser sua própria condenação a morte. O comentário de Lacan ao debruçar-se sobre esta passagem diz respeito ao elo da pulsão com a tatuagem, deste tanto, enfatiza o corpo como depósito de traços invisíveis e incompreensíveis que podem ser materializados e endereçam a uma leitura. Neste sentido, estamos diante de uma contradição em relação aos fenômenos psicossomáticos segundo o que Lacan nos apresenta na citada Conferência. Estes fenômenos são dados a “não-ler”. Pode-se então levantar uma idéia de que a tatuagem pede um olhar, uma decifração, ou seja, a busca de um lugar no amor do outro, pela procura de uma decifração de traços corporais. Estaria a tatuagem de Leonardo convocando um sentido? Uma outra citação de Lacan, encontrada em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) atrela a tatuagem a uma função erótica. Poderia, deste feito, ser lida como uma encarnação do órgão, diferente dos cortes e cicatrizes que apontariam para um masoquismo erógeno. Se tomarmos a tatuagem nesta vertente de encarnação, sua impressão seria a do traço unário. E continuando através desta lógica, Lacan comunga, no mesmo
123
seminário, da idéia de que o traço unário se marca como tatuagem, como o primeiro dos significantes, operando assim no nível da contagem, instituindo uma diferença que singulariza o lugar do sujeito. Capturadas por esta construção remetemos o leitor novamente a um pequeno passeio pela Conferência em Genebra, lugar em que Lacan pontua que no FPS estamos diante da lógica do número e não da letra, da contagem e não da decifração. Não pretendemos de forma alguma minimizar os estudos sobre a tatuagem, tampouco reduzi-los a um sentido único. Nosso objetivo é articular, se possível for, as duas aparições corporais, a saber: o fenômeno de pele e a tatuagem. No percurso desta premissa que seguimos as pistas de Lacan. Foi em momentos distintos de sua obra que falou sobre o fenômeno psicossomático. Vale-nos capturar um tempo em que em seu seminário livro 2 ele o articula a uma inscrição ou impressão direta na carne. Lembremos que estamos diante dos anos 55 e 56, quando 20 anos mais tarde, portanto em 1975 sua apresentação na conferencia destinada ao sintoma é que a lesão poderia ser tomada pela inscrição significante na carne. Uma tradução para esta consideração é a de ocorreria um curto-circuito no simbólico, ou seja, uma falha da função paterna. Alguns psicanalistas baseados, sobretudo, nas concepções feitas por Lacan9 sobre o emparelhamento do fenômeno psicossomático à debilidade mental e à psicose constroem a hipótese que nesta formação fenomênica não aconteceria uma holófrase total, mas, 9
Lacan, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.seminário: livro XI.
124
especialmente uma holófrase local, situada no par S1S2, impedindo o deslizamento na cadeia significante. Todavia, isto não atestaria a ausência do desejo, sua foraclusão, o desejo estaria presente, contudo, através de sua suspensão. Os significantes, pelo mecanismo desta holófrase local, estariam congelados, gelificados, isto quer dizer, passíveis de remontagem a cadeia. Logo, tocar os fenômenos pela via do significante, da decifração seria uma operação impossível e sem êxito , como foi mostrado por Assadi (2010). Se este escrito dado a não-ler engendra algo da ordem do número, da contagem, articulando o gozo a metonímia, podemos chegar a conclusão que estamos diante do objeto da pulsão em sua relação com o significante isolado e não da cadeia significante. Algo nos faz questionar que o axioma o inconsciente estruturado como linguagem, tendo o significante e a interpretação como suas molas propulsoras não são suficientes para tratar o fenômeno psicossomático. É preciso avançar no ensino de Lacan e tomar a lesão como um gozo especifico que poderíamos apostar ser um gozo Outro, situado na articulação borromeana entre real e imaginário. Assim neste gozo haveria uma fixação corporificando a libido, como um significante isolado e impresso na carne, fixado. Pode-se concluir que o Fps surge na clinica muito mais como uma resposta do que como um enigma, faz obstáculo a perspectiva da elaboração de uma demanda ao Outro e traz interrogações sobre a direção do tratamento. Vem como um negativo da operação da extração do objeto, concernente a operação de incorporação da estrutura.
125
No sintoma temos uma mensagem dirigida ao Outro e uma cifra que demanda decifração, enquanto que no FPS temos algo escrito no corpo, marcado na carne. Mas, a questão que não faz calar é se tomamos os últimos ensinamentos de Lacan, sobretudo naquilo que diz sobre o sintoma como acontecimento de corpo, tanto o sintoma como o fenômeno possuem o mesmo estatuto: de um fenômeno.Quanto a isto deixamos a questão para ser construída. E, quanto a Leonardo: culpa, vergonha, punição, lei, dúvida, obediência representavam seus significantes mestres enquanto que psoríase seu significante isolado. Ou melhor, o que o representava de fato como sujeito
era ser marcado, ser um carne viva- um
escamado- substituindo seu nome próprio. Durante a análise algumas rememorações surgiram. Lembrou-se que o irmão sempre fazia peripécias e ele era quem era “marcado na carne” . O pai pegava um chicote de cavalo e o castigava, o irmão o acusava e ele não sustentava pela palavra sua inocência. Como sempre moraram no litoral passear no mar transformou-se em sua rotina.. Contudo, como tinha a pele muito clara ficava vermelho com o excesso do sol e com a tez “escamando, em carne viva”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSADI, T. C. (2010). A-pelLe. In A pele como litoral: psicanálise e medicina. Org. Heloisa Ramirez e Tatiana Assadi. São Paulo, Editora Anna Blume. ( no prelo) ASSADI, T. C. DUNKER (2004), C. I. L. Alienação e separação nos processos interpretativos em psicanálise. Psychê, ano VIII- n. 13, jan-jun/2004- p.85-100, São Paulo
126
ASSADI, T. C. ;PEREIRA, M. E. C.(2003) O eclipse da mulher na presença do fenômeno psicossomático. Psychê, São Paulo, p. 81-96. ASSADI, T. C. e outros. (2003). O menino e o efeito pirilampo. Um estudo em Psicossomática. Ágora, Rio de Janeiro, v. 6, p. 99-114.. Costa, Ana. (2003). Marcas Corporais e tatuagem. São Paulo, Casa do Psicólogo. LACAN, J. (1985). O Seminário: livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. (1954-55). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora. ___________. (1992). O seminário: livro 3: as psicoses. (1955-56). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora. ___________. (1998). Subversão do sujeito e dialético do desejo no inconsciente freudiano.(1960). In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor ___________. (2003). Seminário da identificação.(1961-62). Publicação não comercial. Recife. __________. (1985b). O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de janeiro. Jorge Zahar Editora. 1 __________.(2005). Psicanálise e Medicina. (1966). In Opção Lacaniana. N. 32. São Paulo. ___________. (2007). O seminário: livro XXIII: O sinthoma.(1975-76). Jorge Zahar, Rio de Janeiro. ___________. Conferência em Genebra sobre o Sintoma (1975).In Opção Lacaniana. São Paulo, número 23- dezembro de 1998. NASIO, J. –D. (1993). Psicossomática: as formações do objeto a . Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora. WARTEL e outros. (2003). Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora.
127
Sintoma: ruído da alíngua1 no corpo Silvia Amoedo2 “Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar...” (Clarice Lispector)
Pode-se dizer que o sintoma é um ruído da alíngua no corpo? Dos casos clínicos oriundos da experiência analítica, Freud extrai o conceito de sintoma analítico, desconhecido para o próprio sujeito e que dá corpo ao corpo do ser falante, antes inerte. Como representante de um evento traumático da alíngua, de fantasias do paciente resultantes de coisas ouvidas na infância, o sintoma é um substituto de uma satisfação pulsional. Na formação do sintoma, Lacan dá ênfase às coisas ouvidas antes da aquisição da linguagem, quando a criança ainda não tem acesso ao sentido do significante, o que denomina de a alíngua, cuja impressão sobre o corpo deixa vestígio que ressurge, do real, como ruído no corpo, anunciando o impossível da relação sexual. O sintoma é um evento corporal, solução para a des/ordem, divisão causada no ser falante pela alíngua. Para a psicanálise, os casos clínicos são imprescindíveis. A palavra “caso” vem do latim casus, que quer dizer aquilo que cai. Caso é também acontecimento, eventualidade, casualidade, situação particular, história, aventura amorosa. Do grego kline, a palavra 1
No presente texto, adotei a tradução proposta por Jairo Gerbase “alíngua” para o neologismo “lalangue”, o qual mantém, na fala a presença do equívoco, que só a escrita explicita. 2 Membro da EPFCL – Fórum Natal
128
“clínica” significa leito e, na experiência analítica, pode-se dizer, um leito sem barragem, pelo qual correm as palavras que tentam dizer da impossibilidade do leito conjugal e do leito eterno, respectivamente a relação sexual e a morte. Inesgotáveis, os casos clínicos de Freud continuam, para todos aqueles que se debruçam sobre a fonte freudiana, jorrando no processo contínuo de criação da psicanálise. Mas o que se espera do tratamento analítico em relação ao sintoma, já que este é que sustenta, com substância de gozo, o corpo do ser falante? O que se pode escutar, na relação analítica – que dispõe precisamente da linguagem como instrumento –, do eco desse evento corporal constituído de alíngua, antes da linguagem? São as pulsões no corpo, segundo Lacan, o eco do fato de que há um dizer [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível (1975/1976, p.18). Para abordar essas questões, pretendo, com recortes clínicos, seguir alguns dos rastros deixados no divã. A palavra do analisante é o meio através do qual a psicanálise opera. É no dito do sujeito, sob transferência, que o inconsciente se atualiza, precisamente quando o sujeito vacila, quando diz ou duvida e, ainda, quando não consegue sequer dizer, como mostra a experiência analítica. O sujeito A., após ter-se submetido a vários tratamentos para uma dermatite de contato, procura análise quando conclui que o saber médico falhara em seu caso. Sobre o sintoma, ela sabe que se trata de uma reação alérgica da pele, quando entra em contato com alguma substância; mas qual substância? A pele coça, formam-se bolhas, que viram feridas, seca e descama, num ciclo que se repete desde que A. se entende por gente. Ela se queixa:
129
Isso faz com que eu não trabalhe na minha profissão e não tenha relação sexual com ninguém! E, coçando a pele, passa a discorrer sobre suas impressões: sentia uma sensação estranha de satisfação, quando criança, ao escutar o ruído das unhas de sua mãe coçando as costas de seu pai. De súbito, ela associa essa lembrança com a satisfação e o ruído que escuta ao coçar as próprias feridas do corpo. Encerro a sessão com a pergunta: Que ruído é esse no corpo? O que isso quer dizer? Para que um dito seja verdadeiro, é preciso ainda que se o diga, que haja nele um dizer, (1972, O aturdito, p. 449). O sujeito A. diz que a cena tinha uma conotação sexual, que se expressava nos sussurros que seu pai emitia. As feridas servem, então, como barreira, para me impedirem de tocar ou ser tocada por outro corpo? – pergunta. Isso é uma contradição: não faz sentido! – afirma, admitindo que gosta muito de tocar e ser tocada. Mas a pele des/camada continua a coçar, como se quisesse dizer coisas que não são do sujeito, para cessar a sensação indefinível que o prurido provoca e o consequente ruído que causa desordem. O sujeito B., por sua vez, sofre com os desarranjos que o acometem cada vez em que é confrontado com uma situação em que tenha que dar prova de sua virilidade. A pré/tensa relação sexual, como diz, configura-se como o maior deles e, só de pensar, a barriga começa a fazer um barulho estranho, ronca sem parar, culminando numa desinteria que o deixa sem consistência. Ele se lembra de que, quando criança, se excitava quando ficava acordado na cama escutando barulhos vindos do quarto dos pais, e só dormia depois de ouvir os roncos do pai, quando se assegurava de que não haveria mais relação sexual entre eles. Isso o atordoava.
130
Pontuo: Sua barriga também ronca! Como indica Lacan (1975-1976), só é possível liberar algo do sintoma pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe (p.18). No processo de associação livre, o sujeito B. deixa entreverem-se alusões às experiências esquecidas. Esse barulho retorna: Sonhei que tinha relações sexuais com uma mulher, uma mulher muda – relata. Diz que as mulheres, quando falam o acessam, mas que nenhuma mulher pode acessá-lo por inteiro, senão ele esgarça, como um tecido. E acrescenta: O melhor encontro sexual é mesmo no silêncio! O dito encobre um dizer – o real – que exsiste no sujeito e que se anuncia assim: não há relação sexual – senão como interdição, no silêncio. Em Alíngua também é nó, diz Gerbase (2010, p. 65): ainda que se possa representar e discernir os ditos resta sempre algo que não se representa e que não se diz. A palavra falta e isto é sintoma do real. Sintoma do real? De que se trata? Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real (Lispector, 1998, p.12). Seguir o fio do discurso analítico, segundo Lacan (1972-1973, p. 61), tende para refraturar, marcar com uma curvatura própria, a descontinuidade da alíngua. Retorno às fontes freudianas, aos primórdios, quando Freud concebe o sintoma como resultado de uma eventualidade da história, na qual o sujeito era acometido de algo, inassimilável, que lhe vinha de fora – o trauma. Desconhecidos para o próprio sujeito, os sintomas causam sofrimento, ao mesmo tempo em que expressam a realização de um desejo, pois resultam de um modo de gozar do
131
sujeito. Em lugar de modificar o mundo externo para a satisfação, a modificação se dá no próprio corpo do sujeito. Freud (1896, p. 185) constatou que, em qualquer caso e em qualquer sintoma, chegase infalivelmente ao campo do gozo sexual. Embora a presença da significação da sexualidade na etiologia das neuroses, como substituto sexual, já tivesse chamado a atenção de Freud desde as primeiras observações clínicas, naquela ocasião, como ele mesmo disse, ele não tinha ainda aprendido a reconhecê-la como seu destino inexorável, como impossibilidade da relação sexual. Esse não saber que se revela no sintoma, e em outras formações do inconsciente, conduziu Freud a elaborar a hipótese sobre o inconsciente, que Lacan, em seu retorno a Freud, enunciou como estruturado como uma linguagem. Com a linguagem, como diz Lispector (1999, p. 176): Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A linguagem é a matéria-prima, o real é o lugar onde vou buscá-la – e como não acho. Posteriormente, Lacan acrescenta que o inconsciente é estruturado como uma linguagem nos efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar (Lacan, 1972-1973 p.190). O sintoma é um evento no corpo (Lacan, 1976, p. 565). Para Lacan, há o corpo imaginário, o corpo que encontra unidade com a antecipação da imagem corporal, quando a criança, capturada pelo engodo especular, fabrica fantasias, que vão desde uma imagem despedaçada do corpo até a forma da totalidade deste. Mas é a linguagem que concede ao ser
132
falante um corpo simbólico, esteja ele vivo ou morto. Com a sepultura, da morte emerge o símbolo que preserva o corpo do ser vivente. O simbólico tem, portanto, relação com a permanência de tudo o que é humano e do próprio homem. O sintoma, como formação de significante, é uma metáfora, construída como uma frase poética, que vale ao mesmo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus ritmos, sua sonoridade. Tudo se passa em diversos planos, e tudo é da ordem e do registro da linguagem (Lacan, 1953, p.24). Como observa Lacan, os sintomas de Dora, caso clínico de Freud, são elementos significantes, mas na medida em que sob eles corre um significado perpetuamente em movimento, que é a maneira como Dora aí se implica e se interessa (1956 1957, p.149). Sobre a linguagem, diz Lispector (1999): A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Pode-se dizer que a linguagem toca o gozo – o indizível, o encontro do real como mostra o sonho paradigmático do Homem dos lobos: “Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. [...] De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. [...] Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei” (FREUD, 1918 [1914], p. 45). Além da sensação duradoura de realidade que o sonho deixou após o despertar, dois fatores foram destacados pelo paciente: o olhar atento dos lobos, como se tivessem fixado
133
toda a atenção sobre ele, e sua própria imobilidade diante desse olhar. Por trás do conteúdo do sonho, existia provavelmente uma cena desconhecida, que ocorrera havia muito tempo. Em A terceira (1975), Lacan diz que o sentido do sintoma é o real, que retorna sempre ao mesmo lugar, que não cessa de se repetir para impedir o andamento das coisas – uma pedra no meio do caminho. O sintoma segue na contramão do projeto idealizado e exitoso do sucesso no sentido de todos; por outro lado, no sentido do um, do singular, as coisas caminham de forma satisfatória. Eis a política do sintoma. A mulher do ruído e o homem do ronco podem ser nomes próprios, respectivamente, dos sujeitos A. e B., nomes de gozo do sintoma, identificadores do ser falante. Ruído e ronco são, assim como lobos, significantes da alíngua. REFERÊNCIAS FREUD, S. A etiologia da histeria (1896). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 3. ______. História de uma neurose infantil (1918 [1914]). In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 17. GERBASE, J. Alíngua também é nó, 2010. LACAN, J. O Seminário – livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995. ______. O Seminário – livro 20: mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ______. O Seminário – livro 23: o sintoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, ? ______. O simbólico, o imaginário e o real (1953). In: Nomes-do-Pai. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ______. Joyce, o Sintoma (1976). In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
134
______. A terceira (1975). Inédito. LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
135
Considerações sobre o gozo em um caso clínico de psoríase1 Heloísa Helena Aragão e Ramirez2 Tatiana Carvalho Assadi 3 “... o que mais existe de mim mesmo está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha projetado, mas por ter sido cortado de mim...” (Lacan, 1962-1663)4 Helena fora indicada para fazer análise por outra paciente que também “lutava contra a
psoríase”, uma indicação que passou sem dúvida pela suposição de saber uma vez que a analista estava vinculada à coordenação do projeto alocado no Instituto da Pele (UNIFESP): “Aspectos Psicológicos do Paciente com Vitiligo e Psoríase” ligado à Rede de Sintoma e Corporeidade do FCLSP. No entanto, nesse primeiro momento a transferência não estava colocada na suposição de saber sobre o sujeito do inconsciente, como é de se esperar em um caso de análise, mas numa suposição de saber sobre o objeto psoríase, com o qual Helena convivia há muito mais de 30 anos. Tanto foi assim que pediu à analista a indicação de um médico que pudesse ajudá-la a se livrar de uma vez por todas, “dessa coisa horrorosa”, disso que “impregnou seu corpo”. Mostrou-se esperançosa e reanimada pela possibilidade de um “tratamento novo, mais abrangente” que conciliaria os avanços da medicina, 1
O trabalho desenvolvido no Instituto da Pele da UNIFESP nos colocou em contato com a psoríase, doença de pele que no Brasil atinge mais de cinco milhões de pessoas. Trata-se de uma afecção crônica de causa desconhecida que pode se apresentar desde formas mínimas com pouquíssimas lesões até a chamada psoríase eritrodérmica, na qual toda a pele se encontra comprometida. A forma mais frequente é a psoríase em placas, que se caracteriza pelo surgimento de lesões avermelhadas e descamativas na pele. Em boa parte dos casos, considera-se que fenômenos emocionais estão relacionados com o surgimento ou o agravamento da psoríase, associado a uma predisposição genética para a doença. O mal estar geralmente é causado pela coceira e pelo prurido provocado, e, especialmente, nos casos mais severos, pelo aspecto das lesões. 2 – heloramirez@gmail.com 3 – tatiassadi@uol.com.br 4
LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia[1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
136
cuja expectativa era por um fim às feridas de seu corpo, mais a ajuda da psicanálise. Lacan em a Terceira 5 diz existe uma expectativa de um êxito da psicanálise: “O que lhe pedimos é que ela nos livre tanto do real quanto do sintoma”. Mas sabemos, enquanto psicanalistas, que não é deste lugar que devemos responder. Foi justamente isso que me fez rever este caso, pensar o que operou e qual foi o manejo que produziu um efeito terapêutico e reduziu a psoríase à zero. Diferentemente da demanda médica cujo princípio é eliminar o sintoma, para a psicanálise “o sintoma é uma formação de gozo singular determinada ou ordenada pelo inconsciente”6, e atua como ‘solução’ uma vez que surge na suplência ao “corpo a corpo de gozo”. A questão que está posta é “saber se e como a psicanálise, que opera pela palavra, dá um acesso eficiente a algo do corpo que seria real.”7 O que da história de Helena foi subtraído e inscrito no real do corpo? Nos primeiros encontros com o dispositivo de análise ela se limitou a descrever o longo percurso que trilhou e os detalhes da sua peregrinação na busca de algo que resolvesse sua psoríase. A analista manteve o silêncio durante boa parte das entrevistas, e que foi interrompido pela a questão: “Pare... Diga-me o que veio fazer aqui?” Surpresa pela repentina interrupção em sua falação, Helena consegue responder: “eu sei que boa parte do meu mal tem a ver com minha cabeça. Eu sei que tudo tem a ver com o meu emocional. Eu sei que você pode me ajudar”. Estabelecia-se aí um reposicionamento da analista, o início de uma transferência e uma modesta implicação com o dispositivo de análise. Foi o choro convulsivo e copioso o quê marcou, daí para frente, as entrevistas preliminares. Ao sentar-‐se na poltrona do consultório, invariavelmente, a garganta de Helena 5
A Terceira. 7° Congresso da Ecole Freudianne de Paris, 31/10/1974 Soler, C. “Sintoma, Acontecimento de corpo” in Caderno de Stylus “O Corpo Falante”. RJ, EPFCL, 2010. (p.31-‐ 52) 7 Soler, C. “A psicanálise e o corpo no ensino de Jacques Lacan” in Caderno de Stylus “O Corpo Falante”. RJ, EPFCL, 2010 (p.65-‐91) 6
137
se embargava impedindo-‐a de falar livremente. Sua voz se ouvia entrecortada por soluços, sons e fungadas e, muitas vezes apenas grunhidos. Nestes momentos aflitivos esperava-‐se um tempo para que se recuperasse da angústia que a experiência suscitava até que pudesse articular alguma fala. Em algumas sessões apenas sons, sem sentido, nenhuma palavra, não sabia o que dizer e nem porque o choro aflorava quando estava com a analista. Helena não compreendia o que se passava, era algo mais forte do que ela, alguma coisa que fugia ao seu controle. Estes episódios me fizeram pensar em algo como uma re-‐atualização de lalíngua. Seria possível? Um som separado de sentido, mas afetado, gozado pelo corpo, um som re-‐ atualizado na experiência de análise de uma erupção de gozo cuja origem aconteceu mesmo antes da fala primeira? Esta é uma questão que merece consideração maior e que deixo aqui para futura discussão. Extraí da história de Helena alguns pontos importantes para relatar. Somente agora que ela estava com quase 60 anos resolvera procurar por uma análise. Vivera toda sua vida abalada pela tristeza. “Sozinha” não tinha com quem contar. Havia muito tempo que sua família se “acabara”. Hoje só tem um irmão vivo e não consegue se entender com ele. Mas, sempre foi assim: “sozinha”! Tinha apenas dez anos na época em que sua mãe morrera, foi terrível porque “ainda precisava muito dela”. Na verdade, Helena começou a sentir a falta da mãe pelo menos uns dois anos antes de sua morte quando a doença começou a se agravar e a se tornar insuportável. Ela definhava a cada dia e sua ausência se fazia sentir em presença. Lembra-‐se que ela gemia e chorava baixinho e que de seu quarto podia ouvir os seus ais e os soluços de dor. O vômito e as cusparadas também faziam muito barulho, ficavam ecoando em seus
138
ouvidos ao ponto de precisar tapá-‐los para conseguir dormir. Recorda-‐se da impotência do pai diante da doença da mãe e relata uma cena onde o vê sentado numa cadeira, com as mãos na cabeça como se a apertasse, chorando desesperado “feito uma criança. Me deu muita pena dele, nunca mais consegui esquecer isso”, diz. Outras cenas, porém dantescas, povoavam seus pensamentos. Na primeira delas, sua mãe encantrava-‐se sentada à beira da cama, muito pálida, segurando nas mãos um penico cheio de sangue. “Ela cuspia sangue. Era um horror”. Aquele foi um período marcado por uma série de acontecimentos carregados de desalento e que ficaram para sempre em sua memória. No dia em que a mãe morreu Helena voltou da escola e levou um grande susto. Ao entrar na sala deparou-‐se com o caixão iluminado apenas pelas velas acesas em meio à sala escura. Naquele tempo era costume velar os mortos em casa e forravam-‐se as paredes com um pano preto numa demonstração do luto em que se viam envolvidos os familiares já que o preto era a representação do nada da ausência e da escuridão. Helena disse que foi um “horror” tão grande que ela saiu da sala gritando e chorando. “O meu pai teve o bom senso de não me deixar ir ver o enterro dela”. Helena diz que “o mais impressionante” acontecimento daqueles tempos foi o fato de que para ela era como se a mãe não tivesse morrido. Passou anos mentindo para as colegas do colégio, fingindo que sua mãe estava viva. Quando alguém perguntava pela mãe ela tinha sempre uma resposta pronta ou criava uma nova história. Dizia: “minha mãe não gosta; ou minha mãe não quer que eu fique na rua; minha mãe não deixa; tenho que ir para casa porque minha mãe tá esperando, etc.”. Deixou de participar da festa de formatura do colégio porque não tinha como apresentar a mãe. Estas lembranças foram, nas sessões, sempre
139
acompanhadas de muita angústia e comoção. Helena demanda da analista uma resposta sobre a razão de fazer o que fazia. Porque não dizia que a mãe já estava morta? “Tem de haver alguma razão, sabe eu sinto falta dela até hoje. Morrer o pai é difícil, mas a mãe...” Foram mais de dez anos alimentando a fantasia de que a mãe estava viva. Uma estratégia para não sofrer a dor do luto. Sem perda, não há separação. Foi à concreção imaginária do objeto de amor perdido que garantiu a Helena sustentar a falta que a mãe lhe fez privando-‐a de proteção e amor. A invocação deste espectro assegurava-‐lhe a ilusão de que ela estava viva suprindo-‐a, desta forma do desamparo avassalador. Não era uma visão fantasmagórica no sentido clássico da palavra: quimérica e assustadora que aparece inoportunamente. Ao contrário era uma fixação, uma obsessão protetora que garantia sua sobrevivência dando-‐lhe forças para o: “eu aprendi tudo na rua, do jeito que deu, com as amigas”. Levanto aqui a hipótese de que esta não era uma simples falta que se substituiria por algum outro objeto, mas algo com valor de um furo, insubstituível, que fazia desaparecer o lugar na combinatória, a falta no lugar do Outro. Helena não conseguiu re-‐atualizar esta falta fundamental, porque não havia a condição para isso: não tinha ao seu lado o Outro desejante. O lugar desde sempre vazio que não pode ser ocupado pela mãe, ela própria impotente, abriga o seu fantasma como forma de cerzidura. “É na medida em que a criança descobre que o Outro deseja, que poderá, por sua vez, desejar sob a forma de um objeto que lhe retornaria como falta”.8 Os momentos destas lembranças provocaram efeitos importantes na análise. A primeira cena, a do sangue, certamente faz referência à dimensão do real apontando para um objeto não 8
Nasio, J.-‐D., Psicossomática – As formações do objeto a. 1993 RJ, JZE .
140
especular próprio da sexualidade feminina. A segunda cena mostra o horror à morte irrompido pela presença implacável do corpo inerte, sem vida. Cenas que apontam para o real em jogo e para um gozo específico. Os primeiros pontos de psoríase apareceram nos joelhos e cotovelos logo depois que se menstruou pela primeira vez. Ficou apavorada. Não tinha com quem falar sobre isso. Não sabia muito bem o que fazer com todo aquele sangue. Teve que se “virar” sozinha. Passando o impacto da menarca começaram a aparecer os primeiros pontinhos vermelhos, que só a incomodavam pelo fato de coçar. Fez inúmeros tratamentos, passou por dezenas de médicos dermatologistas e outras opções alternativas. Por ser um a doença crônica enfrentou diversas crises, de maior ou menor amplitude ao longo de sua vida. Em determinada ocasião atravessou uma bem forte em que teve sua pele afetada em quase 70%. As lesões estavam muito feias, a pele escamava e coçava sem parar. Como estava “muito atacada” da psoríase, procurou um curandeiro de quem havia obtido ótimas referências. Ele lhe ofereceu uma medicação cuja fórmula era composta com uma boa dose de cortisona. Helena sabia que a formulação continha a droga, mas não sabia dos efeitos colaterais que ela provocava e fez uso contínuo da solução. A psoríase desapareceu no tempo em que usou o remédio. Alertada pelo farmacêutico que lhe aplicava as injeções e diante do inchaço que apareceu em seu rosto parou de usar a medicação. O efeito rebote9 foi imediato, “um horror”, se viu atacada por uma psoríase extremamente acentuada. No entanto, esta experiência foi importante para que conhecesse o efeito que a cortisona tem de “limpar” a pele quase que instantaneamente. Daí para frente Helena passa a fazer um uso conveniente do remédio sempre que tinha um encontro com alguém e sua pele estava 9
O efeito rebote é a tendência que um medicamento tem de provocar o retorno dos sintomas que estão sendo tratados. Em casos extremos de efeito rebote o reaparecimento dos sintomas poderão ser mais graves que no início da doença.
141
“atacada” besuntava-se com uma pomada e se livrava do constrangimento de sentir a mão do companheiro no seu corpo áspero. Estes eram tempos de amor quando oferecia seu corpo, narcisicamente investido ao outro. Porque privilegiar esta história e o que nesta história foi pinçado como fundamentação da clínica? Seguramente, porque aqui repercute a forma como foi escrita e que se repete quase que invariavelmente em outros casos que temos atendido no Instituto da Pele quando se trata de algo como psicossomática. Foi escrita no corpo, ou melhor, inscrita no corpo, incrustada na carne em forma de lesão, uma linguagem que não passou pela simbolização, uma escrita hieroglífica, ilegível, indecifrável, mas, que pode perfeitamente se revelar, já que fenômeno psicossomático é da ordem da mostração. Retomando a teoria, na fundamentação do fenômeno psicossomático o que ocorre é uma incidência do significante sobre o corpo em virtude de um fracasso da função do Nome-‐do-‐Pai, um holofraseamento, permitindo que se estruture alguma coisa que é da ordem da letra. S1 cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão do sujeito. Como não existe intervalo, não existe também objeto perdido, estilhaços pulsionais. O sujeito é compactado ao objeto. É como se todo o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes de tudo uma assinatura”... Além disso, Lacan10 fala em auto-erotismo sem relação de objeto, e precisa, “que a indução significante, no nível do sujeito se passa de um modo que não coloca em jogo a afânise”,
10 LACAN, J. (1961) O Seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro, JZE, 1973 – 3ªed., p. 215.
142
referindo-‐se a uma espécie de bloqueio, “de congelamento do significante no corpo, um curto circuito que será responsável pelas manifestações corporais”. 11 Isso significa que o sistema significante perde sua consistência, já que um significante não se remete mais a outro significante. Assim, conforme Nasio12 “há um objeto, e depois uma chamada significante que não teve resposta significante, mas teve uma resposta de objeto. A psoríase é uma resposta objeto para uma chamada significante, um significante remete a uma psoríase.” Um significante é inventado que não é do Outro, é do Um, diferente dos outros e tem valor de real. No entanto, o que faz a psicanálise operar diante de um acontecimento de corpo, cujos significantes estão encarnados, ou ainda qual é a direção do tratamento diante da tomada de corpo pelo fenômeno? Retomo Lacan13: “É por esse viés, pela revelação do gozo específico que há na sua fixação que sempre é preciso visar abordar o psicossomático.” De que gozo específico se trata no psicossomático? Trata-se de um gozo fora do sentido, um gozo que ex-siste ao sentido, um gozo cortado da relação com o Outro, auto-erótico, um gozo do corpo próprio. Um gozo que nos remete a uma foraclusão da significação fálica, portanto, do gozo fálico. No caso em questão vimos, claramente, a prevalência do imaginário sobre o real. Não havia equivalência entre as consistências. A estratégia foi fazer o sujeito trabalhar na elaboração do luto, isto é na simbolização do que há de mais fundamental: o desamparo, o que incindiu no para além do horror. Para isso foi necessário, de 11
Este parágrafo também faz parte do artigo A Fantasia Encarnada: um estudo sobre o fenômeno psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker. 12 NASIO. J.-‐D. “Psicossomática” – as formações do objeto a. RJ, JZE, 1983. 13 In Conferência em Genebra sobre o sintoma.
143
fato, perder a mãe, o objeto amado, o que desencadeou sessões tão angustiantes. Paralelamente o sujeito trabalhou com o gozo implicado no significante “sozinha” e no laço que isso fazia com a psoríase, e com a dor, já que Helena “sentiu na pele” o abandono. “... pois o que eu chamo de gozo, no sentido em que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, da defesa e até mesmo da façanha. Incontestavelmente, há gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar toda uma dimensão do organismo que, de outra forma, permanece velada.”14 Mas, Helena não conseguiu sustentar a experiência e vai-‐se embora. Diz para analista: “chega não agüento mais, não quero mais sofrer, vou parar de vir aqui, não estou suportando!” Restou à analista o sentimento de não ter sabido manejar adequadamente a angústia. Pouco antes do Natal Helena mandou notícias por uma amiga. Pediu-‐lhe para me dizer que estava muito bem, sem angústias e sem a psoríase. Estava “limpa de corpo e alma” e que agradecia aos céus, todos os dias, o tempo em que esteve em análise. Foi bom saber disto. No entanto, se o paciente melhorou ou não, não é disso que se trata se pensarmos no sintoma como uma solução inconsciente dada por cada um “diante do enigma do corpo e seu saber”15. No entanto, penso que o fenômeno psicossomático é um acontecimento de corpo diferente do acontecimento de corpo dado pela via da histeria. É um fenômeno de corpo é “o despertar de um corpo que em sua essência é silencioso.” 16 Não diz respeito à imisção do significante no corpo, mas a uma fixação, a uma colagem do par S1 – S2. “Se evoquei uma metáfora como a do 14
LACAN, J. 1966, “O Lugar da psicanálise na medicina” in Opção Lacaniana n° 32 Izcovich, L. O Corpo Sintoma. In Prelúdio para “O Mistério do Corpo Falante” maio/2010.
15
16
Idem.
144
congelado, é porque existe, efetivamente, essa espécie de fixação... O corpo se deixa levar para escrever algo da ordem do número.” 17 Exatamente por isso é que Lacan recomenda tratar o psicossomático pelo viés do gozo. É preciso que o gozo tome um sentido. Assim, no manejo da clínica com o paciente psicossomático é preciso fazê-‐lo trabalhar para chegar ao “sentido do que se trata”, já que ele se encontra profundamente “arraigado no imaginário” e para dar sentido ao gozo é preciso que se fale dele.
17 Lacan, J. (1975) Conferência de Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira de Psicanálise. São
Paulo, 1998, n°23, p 6-‐16.
145
Sinthome: o real do sintoma Maria das Graças Soares1 “Sou um apanhador de desperdícios. Amo os restos como as boas moscas.” Manoel de Barros
Neste trabalho, de caráter introdutório, tentarei abordar a relação de circularidade entre lalangue, sintoma e sinthome, como o demonstra a teoria lacaniana. Pré-história da linguagem no sujeito, lalangue é o tempo no qual o bebê, ainda deitado no berço, sofre os efeitos da lingua materna, que lhes deixam marcas indeléveis no corpo. Tempo em que a linguagem para ele é ruído, ou rumores humanos, que lhes designa um lugar no campo do Outro, como um sujeito “escuta-dor”. Ali, apenas se articulam letra e gozo. Com o advento da linguagem ele muda para a posição de um “fala-dor”, que, a posteriori, deitado num divã, poderá se deslocar para a posição de um “fazer-dor” quando, com a letra do alfabeto de lalangue escreve seu sinthome. Na última lição do Seminário 20, Lacan diz que lalangue, não é, senão, “rastro de gozo onde a linguagem cavalga sobre ela”. Daí se concluir ser o significante uma invenção a partir de algo que já está lá para ser lido. 1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro do Fórum de Fortaleza
146
A propósito da articulação entre lalangue e a construção do sinthome, pressupõe-se que existe um meio. Esse meio é o “sintoma” do inicio de uma análise, que põe em cena o sujeito “conta-dor”, que com seu sintoma , dirige-se ao analista na forma de demanda. Sujeito, por que é ele quem fala, mas o quê ele diz é lalangue que fala nele, pois elucubrar sobre lalangue é o que se faz numa análise. A propósito do sintoma e as transformações conceituais sofridas na teoria, lembremos que algo desde o inicio permanece. Em Sintoma, Inibição e Angustia” Freud diz que “ sintoma é gozo”. Para Lacan, no inicio de seu ensino, o sintoma era metáfora, mensagem dirigida ao Outro, enigma, que uma vez desvendado, tinha efeito de verdade. Em “Função e campo da fala e da linguagem”, embora ele diga, literalmente, que, “está perfeitamente claro que o sintoma, por ser pleno de sentido, se resolve por inteiro numa análise linguajeira”, já faz notar a coexistência, no sintoma, do simbólico e do real. Cito Lacan:“ o sintoma é símbolo inscrito na areia da carne e no véu de Maia.” O sintoma enquanto símbolo “inscrito”pertence ao campo do simbólico, mas “escrito” sob o véu de Maia, não estaria também no campo do real? A titulo de esclarecimento, a expressão “Véu de Maia,” é usada pelos orientais para dizer que
“ver algo sob o véu de Maia faz também existir o que não existe, tamponando
assim, a incompletude tão angustiante para o sujeito. Sem ele, sem o véu de Maia, constata-se rapidamente o “nada”. Em RSI Lacan confirma isso ao afirmar que já estava na idéia do “Discurso de Roma” que o inconsciente ex-siste, que ele condiciona o Real.
147
A partir do inicio da década de 1970 Lacan se afasta do pensamento estruturalista, onde o simbólico detinha primazia nas estruturas clinicas, para trabalhar com a perspectiva de uma equivalência entre os três registros, e,a estrutura do sujeito passa a ser determinada, pela forma de enlaçamento do simbólico, do imaginário e do real: RSI, SIR, IRS. Ao introduzir a teoria dos nós na segunda parte do seu ensino, o “discurso” cede lugar à escrita. Enquanto no primeiro se privilegiava a produção de sentido, na escrita o que prevalece é o sem-sentido. Isso traz mudanças cruciais no manejo da transferência, pois Lacan alerta que “o efeito de sentido a se exigir do discurso analítico não é imaginário, não é também simbólico; é preciso que seja real”. A assertiva anterior de que o simbólico faz furo no real, sofre uma torsão e agora, é o real que faz furo no simbólico. Há um gozo no significante irredutível à significação. Na clinica, não se trata mais apenas de escuta, mas do que se “lê no que se escuta”. Por certo o sintoma está emaranhado em lalangue e é dado na clinica pela repetição. A teoria dos nós constitui a ultima elaboração de Lacan sobre o sintoma, chegando à escrita do inconsciente por meio da cadeia borromeana. Nela o sinthoma surge como o quarto elemento, que ao enlaçar os três registros - agora equivalentes entre si – produz uma cadeia bo, e como nos lembra Lacan, “ se há equivalência, não há relação”. À falta de relação sexual, o sujeito responde com o sinthoma: Cito: “ Sinthoma é a resposta que o sujeito encontra frente ao gozo da falta de relação sexual”.
148
No Seminário 23, Lacan debruça-se sobre a obra de Joyce para teorizar a partir de sua escrita. Para ele o escritor irlandês “acaba por ter visado com sua arte, de maneira privilegiada, o quarto termo chamado sinthoma”. Artesão da literatura Joyce esculpe as palavras a partir de artifícios que cria com os rejuntes e recortes de fonemas, rompendo com a significação e exibindo o que se pode fazer com “lalangue”. Na conferência que Lacan proferiu no Bloomsday de 1975, ele batiza o escritor pelo nome “Joyce, o Sinthoma” por ele ter feito, com sua arte, o sinthome. Acrescenta: “ o sinthome é puramente o que lalangue condiciona e que o escritor conseguiu, com sua arte, elevar à potencia de linguagem, sem torná-lo analisável”. Uma breve passagem do “Retrato do artista quando jovem” torna evidente as razões que levaram a Lacan teorizar em cima da literatura de Joyce. Uma breve passagem do livro é suficiente para nos dar essa clareza. Nela, Joyce consegue despir o significante ‘xuxu”de toda sua significação e reduzi-lo ao “osso”escrevendo apenas um resto sonoro “chuuuuuuuuuuu” , onde o leitor para lê-la terá que usar apenas a voz , provando que a linguagem não se reduz apenas a produção de sentido. Por outro lado, a onomatopéia comum à sua escrita, remete ao mecanismo dos sonhos que tem seu ápice em seu ultimo trabalho “Finegans Wake” – narrativa densa que se inicia com uma palavra de 100 letras para descrever uma queda, e que o leitor para lê-la também terá que usar a própria voz como suporte da palavra, articulando a escrita com a função da fonação. A partir desses exemplos denota-se que o texto de Joyce é uma escritura.
149
Retornando à função do sinthome na estrutura do sujeito, parto da seguinte questão: o sinthoma enquanto quarto elo na cadeia borromeana, é próprio à estrutura neurótica? Se a resposta é afirmativa, como poderia Lacan, pensá-lo em relação à Joyce? Lacan não diz que Joyce era psicótico. Diz, para usar suas palavras, que Joyce tinha “o pau um pouco mole”, e por isso precisou de sua arte para manter sua firmeza fálica. Sua arte, para Lacan, é o verdadeiro fiador de seu falo, pois sem ela ele continuaria a ser um pobre diabo e não o herói que toma corpo em Stephen Hero, do “Retrato...” Sua arte - seu sinthome – fez funçao de S¹ que, ao dar força a seu ego, estabiliza sua estrutura ao torna-se o pai que nomeia. E é claro, observa Lacan, que a arte de Joyce é alguma coisa de tão particular que o termo sinthoma é de fato o que lhe convém, que enquanto suplência da carência do nome do pai, dá à estrutura de Joyce um”ar” de neurose. Na primeira aula do seminário sobre Joyce, Lacan afirma ser o complexo de Édipo como tal, um sintoma. É na medida em que o Nome-do-Pai é também o Pai do Nome, que tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário”. A fórmula da metáfora paterna no primeiro tempo de seu ensino nos trás o Nome do pai operando como “S²”, em substituição ao desejo da mãe; agora ele surge como S1, significante mestre que tem função de nomeação enquanto ato. Concluindo, retorno ao inicio, para me reportar à relação circular entre lalangue, sintoma e sinthoma, e assim, afirmar que lalangue está lá desde o inicio, sendo ela a condição da linguagem, e como observa Lacan “o equivoco toma conta de nossa lalangue, e o que ela tem de mais picante é o que posso escrever como “mais isso não”. Se diz tudo, mas isso não.
150
Posso dizer que O mais isso não, aquilo que de lalangue não se pode dizer, é o que introduzo como sinthome.”Um resto, que, mesmo indestrutível, reciclável. Bibliografia
Freud, S – Inhibición, sintoma y angustia –- obras completas – Vol.XX – Amorrortu ed. Joyce, J - Um retrato do artista quando jovem – Ed. Objetiva, 2006 – Rio de Janeiro. Lacan, J – D’Ecolage ( 1980) in Revista da Letra Freudiana– nº 0 ano 1: Rio-RJ ______ - La Tercera – Discurso de Roma – in Intervenções Y Textos nº 2 – ed. Manatial Argentina- 1988 _______ - Seminário 18 – “ De um discurso que no fuese del semblante – 1971 – versão da Escuela Freudiana de Argentina. _______ - Seminário RSI – 1974/5 – Versão para circulação interna do CEF – Recife –PE. _______ -Seminário 23 – O Sinthoma – Zahar ed.Rio de Janeiro – 2007 _______ - Levin,S - Transferência em um análisis Y cadena borromea de cuatro nudos – in Topologia Y Psicanálisis. EFBA – Buenos Aires - 1994 _______ - Função e campo da palavra e da linguagem ( 1953) in Escritos, Zahar Ed. Rabinovitch, S. - Les Voix – Collection Point Hors Lingne – Ed. Erès – Paris Fr.
151
Sintoma e Fantasia Fundamental Soraya Carvalho1 Partindo da concepção que o conceito de fantasia está subsumido ao conceito de sintoma, este trabalho pretende esclarecer a relação entre esses conceitos em momentos distintos do pensamento psicanalítico: inicialmente, a partir da definição do inconsciente estruturado como uma linguagem, produzindo o sintoma na sua dimensão simbólica, e, posteriormente, do inconsciente na sua dimensão real, constituído pelos significantes de alíngua, produzindo o sintoma na sua dimensão real, o sintoma fundamental. A clínica com histéricas levou Freud a considerar a existência de fantasias inconscientes na vida psíquica, bem como sua importância na formação dos sintomas, concluindo ser a fantasia a precursora dos sintomas histéricos. Lacan, por sua vez, em A lógica da fantasia2, denominou de fantasia fundamental a fantasia inconsciente, propondo-lhe a fórmula ($ ◊ a), onde reuniu dois elementos heterogêneos, um sujeito e um objeto, o objeto causa de desejo, que no Encore3 foi diversificado em quatro: objeto seio, objeto fezes, objeto olhar e objeto voz. Para ele, a fantasia fundamental é um axioma, uma significação absoluta, um resto apartado do sistema. Esse resto é o caráter real da fantasia, que Lacan reduziu a uma frase simbólica. E, se para Lacan a fantasia é o suporte do desejo4, e o desejo a essência da realidade, é possível afirmar 1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano LACAN, J. Seminário, livro 14: a lógica da fantasia [1966/67] Inédito 3 LACAN, J. Seminário, livro 20: mais, ainda.[1972-‐73]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 171. 4 Id, ibid. [1966/67]. 2
152
que a fantasia é a realidade do sujeito, a maneira como ele a organiza; e o desejo ancorado na fantasia, mantém com a realidade uma pretensa harmonia. O sintoma, por sua vez, adquiriu diversas definições dentro da teoria psicanalítica. Em Freud, ele foi o retorno do recalcado, o substituto de uma satisfação pulsional. Em Lacan, da metáfora à letra, ele obteve definições como: “a maneira que cada um goza de seu inconsciente5”, ou “o que faz existir a relação sexual”6, e, finalmente, o sintoma como produto dos significantes de alíngua7. No presente artigo abordaremos a fantasia e sua relação com o sintoma nessas duas últimas acepções. O SINTOMA FAZ EXISTIR A RELAÇÃO SEXUAL “A relação sexual não existe”, porque a linguagem não dispõe de um significante que represente o gozo do Outro sexo, o que levou Lacan a concluir, “A Mulher não existe”. A falta desse significante foi o que Lacan8 designou como a falha nos nós borromeanos, responsável por tornar os sexos equivalentes. O sintoma faz suplência à falta desse significante do Outro gozo, S(Ⱥ), ou seja, ao significante do Outro sexo, provocando a não equivalência entre os sexos e fazendo existir a relação sexual. Para explicar como o sintoma realiza essa suplência, cito Gerbase em Sintoma e fantasia9, onde ele propõe uma releitura do texto freudiano de 1908, “A Histeria e sua relação com a bissexualidade”, mostrando como a fantasia está implicada no sintoma, e como ela contribui na sua função de amarração. Nesse artigo Freud afirma que "o sintoma histérico é a expressão simultânea de uma fantasia sexual 5
LACAN, J. Seminário, livro 22: RSI, 1975 – Inédito.
6 LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma, [1975/76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 98. 7
SOLER, C. Corpo falante Caderno de Stylus, EPFCL, 2010, p.23. Id, ibid, 2007, p. 97. 8 Gerbase, J. Sintoma e fantasia. Inédito
8
153
inconsciente masculina, e de uma fantasia sexual inconsciente feminina, introduzindo a significação bissesexual do sintoma. Fazendo coincidir o léxico fantasia com significação, Gerbase afirma que “Uma fantasia é uma significação fundamental porque é o âmago do sintoma, o último sentido a que posso reduzir o sintoma, a frase simbólica que o sintoma expressa”. Deduzindo que “uma fantasia sexual inconsciente masculina é uma significação fálica, e “uma fantasia sexual inconsciente feminina é uma significação não-toda fálica, uma significação não-toda”. Desta forma, o autor propõe reescrever esta fórmula freudiana: “O sintoma histérico é a expressão simultânea de uma significação fálica e de uma significação não-toda". De modo que o sintoma histérico, modelo de sintoma por excelência, é composto pelos dois significantes que nomeiam o gozo, o significante fálico, [Φ], ou seja, aquele que se pode escrever e pelo significante do Outro gozo, aquele que não se pode escrever. Dizer que não se pode escrevê-lo não quer dizer que ele não exista. O sintoma faz existir a relação sexual porque ele faz semblante ao significante do Outro gozo, e a fantasia, ao possibilitar uma significação do Outro gozo e do gozo fálico, auxilia o sintoma na sua função de fazer suplência à inexistência da relação sexual. A fantasia, portanto, colabora com o sintoma, tornando sua tarefa menos “árdua”, na medida em que o gozo ligado à fantasia toma a via do prazer, enquanto que, no sintoma, o gozo se escreve pela vertente do desprazer. Por esta razão a fantasia vai se constituir numa recordação encobridora. E assim Gerbase conclui que a fantasia enuncia a impossibilidade da relação sexual, enquanto que o sintoma, ao compensá-la, possibilita sua existência. O sintoma faz suplência a essa falta, justamente porque ele traz, em sua essência, na fantasia, a significação
154
a essa falta. “A fantasia é uma significação a essa falta, a esse enunciado – para todo falasser falta um significante, aquele que nomeia o gozo d’Ⱥ Mulher”. O SINTOMA É UM PRODUTO DE ALÍNGUA Para entender o sintoma como produto de alíngua, partiremos da afirmação de Lacan, o sintoma é um “acontecimento do corpo”10, afirmação que só pode ser explicada a parir da articulação entre significante e gozo. O significante passa de representante do sujeito, sígno de sua falta-a-ser à sígno do seu ser de gozo11. Quanto ao gozo, em sua tese inicial, ele é afetado pela linguagem, operação que produz como efeito, uma subtração de gozo. Na tese posterior, o significante está no nível do gozo, o significante é objeto de gozo, ele é gozado. Ao juntar esses dois elementos heterogêneos, significante e gozo, Lacan provoca uma virada na teoria, e, segundo Soler, para acompanhá-la, faz-se necessário partir da noção do inconsciente formado pelos significantes de alíngua, ou seja, o inconsciente em sua dimensão real. E assim, o gozo, inicialmente afetado pela linguagem, passa a ser afetado pela alíngua, e o inconsciente, antes estruturado como uma linguagem, torna-se um saber no nível do corpo substância, saber manifestado pelo sintoma. Isso levou Lacan a considerar os efeitos de alíngua e não mais da linguagem, como prioritários e primordiais na formação dos sintomas12. Os significantes de alíngua tomam o corpo, fixando uma identidade de gozo e produzindo o sintoma. A alíngua é formada pelos significantes antes de sua apreensão de sentido, e seus efeitos são os afetos, posto que a alíngua afeta primariamente o gozo13. O 10
SOLER, C. Corpo falante Caderno de Stylus, EPFCL, 2010, p.11. Id. Ibid., p.13. 12 Id, ibid., p.15. 13 Id, ibid., p.19. 11
155
sintoma é constituído numa idade precoce, antes da aquisição da linguagem, através de uma combinação entre a alíngua e o encontro com o gozo primeiro, entre significante e gozo. “Diante do que é ouvido, o sujeito apreende significantes que ainda não dispõem de sentido, restando dessa operação, o que Lacan chamou de alguns detritos, cacos”. “... os cacos são do real, fora do sentido, sob a forma do Um sonoro, recebido do que foi ouvido”. Esses detritos são os significantes de alíngua, que se depositam como mal-entendidos, fixando uma identidade de gozo e produzindo a matriz do sintoma. Entretanto, sabemos com Lacan que a formação do sintoma depende de uma contingência entre aquilo que é falado pelo Outro e o que é ouvido pelo sujeito. Para Soler14, dizer que o sintoma não pode mais ser compreendido a partir “da lógica da linguagem nem mesmo da fantasia, mas no nível da contingência do encontro”, contesta a tese freudiana de que as fantasias inconscientes são precursoras dos sintomas histéricos. O sintoma vem do real e o inconsciente é redefinido como real, fora de sentido, ligado à alíngua. Entretanto, ela complementa15, que há o inconsciente que permite ser decifrado, e há o inconsciente real, inapreensível, formado pelo significante real, sem sentido e contingente, que marca o corpo com o saber de alíngua. Qual a relação entre a fantasia fundamental e o sintoma fundamental, aquele formado pelos significantes de alíngua? Freud se referiu à fantasia, como aquilo “que substitui o trauma”, e se o trauma para Freud é o que não é representado, tem, para Lacan a dimensão de real. Então, se a fantasia
14
Id, ibid., p.27. Id, ibid., p.29.
15
156
substitui o trauma, ela é real e vem ocupar o lugar do impossível de ser representado16. Sendo o sintoma uma resposta do sujeito frente ao real que é traumático, a fantasia, ao substituir o trauma, torna-se, juntamente com o sintoma, um recurso do sujeito frente ao real. Entretanto, o conceito de trauma deve ser tomado em dois momentos distintos do ensino de Lacan. A princípio o traumático dizia respeito à falta no Outro, ou seja, ao significante da falta no Outro, S(Ⱥ), justamente ali onde o sujeito se confrontava com o desejo do Outro. Diante da falta no Outro, é na condição de objeto que o sujeito é desejado e convocado a tamponar. Neste sentido, o traumático seria a falta no Outro. A partir do encontro com o desejo do Outro, com o “Che Vuoi?", o sujeito responde com a fantasia, ali onde ele se experimenta como objeto. A fantasia como um recurso do sujeito para proteger-se da difícil condição de objeto que representa no desejo do Outro e da traumática constatação da falta no Outro. No segundo tempo de seu ensino, como já foi mencionado, Lacan não separou o significante do gozo, para ele, significante é gozo e, segundo Gerbase17, o traumático agora aponta para duas vertentes: a alíngua traumática e o trauma do sexo. O traumático de alíngua é ter acesso ao significante antes de se ter acesso ao sentido, gerando mal-entendidos. A alíngua é real porque exclui o sentido, e é exatamente a anterioridade lógica de alíngua que possibilita o trauma. Quanto ao trauma do sexo, por não haver na linguagem um significante que nomeie o Outro gozo, um dos gozos não pode ser escrito no inconsciente, impossibilitando a relação sexual. Não há relação sexual visto que não é possível estabelecer uma relação biunívoca entre o
16
Gerbase, J. (1987). Fantasia ou fantasma. Falo 1 , p. 50.
17
GERBASE, J. Curso: Être humain, Associação Científica Campo Psicanalítico de Salvador, 2010.
157
significante fálico, o que se escreve, e o significante do Outro gozo, o que não se escreve. Concluindo Lacan18, que o traumático é o a (sexo). Se o sintoma é o que torna possível a relação sexual, o sintoma é uma suplência ao trauma do sexo, na medida em que ele faz semblante ao significante do Outro gozo. Quanto ao traumático de alíngua, é também o sintoma que faz suplência ao trauma do desamparo do humano ante a contingência do encontro com o significante sem sentido. O sintoma responde ao equívoco do significante de alíngua, fixando no corpo uma identidade de gozo. Sendo a fantasia o que substitui o trauma, como a fantasia pode substituir a falta do significante do Outro gozo, (trauma do sexo) e também o efeito produzido pelo equívoco do significante de alíngua, (trauma de alíngua)? O sintoma faz suplência ao trauma do sexo e ao trauma de alíngua, e a fantasia, com seu caráter de frase, colabora com o sintoma, substituindo o real do trauma por uma ficção. Mas, se no final de uma análise nos deparamos com o irredutível do sintoma, o que acontece com a fantasia? Uma vez que o sujeito se depara com sua essência de gozo, ao identificar-se ao sintoma, a fantasia perde sua função, e o que surge em seu lugar é um significante novo, a ficção da fantasia é substituída por uma criação, uma invenção do sujeito. Freud se refere à fantasia inconsciente como um ponto de fixação de gozo, e, se para Lacan os significantes de alíngua produzem fixação de gozo, propomos pensar que, num “só depois”, a fantasia fundamental seria uma forma de sustentar o sintoma, o sintoma fundamental, e responder ao trauma de alíngua tanto quanto ela o faz no trauma do
18 Lacan, J. (1978). Seminário, livro 25: o momento de concluir. Inédito.
158
sexo. A fantasia fundamental seria uma frase capaz de dar um sentido aos equívocos produzidos pelos significantes sem sentido de alíngua?
159
O Nome do Sintoma Gracia Azevedo1 A filosofia aristotélica desenvolveu um sistema próprio, rejeitando a teoria das ideias e o dualismo platônico. Ao propor sua Metafísica, Aristóteles propõe uma concepção de real que parte da substância individual, composta de matéria e forma. Os Estoicos viam nos corpos, as únicas realidades, aquela que age e aquela que sofre a ação.
O incorpóreo não toca o corpo. A ideia incorpórea é privada de toda eficácia e de
toda propriedade, não se encontrando aí mais que o vazio absoluto do pensamento e do ser.1Fatos ou acontecimentos foram admitidos como causa pelos estoicos. Todo corpo se torna causa para outro corpo (quando age sobre ele) de alguma coisa incorpórea. São quatro as espécies de incorpóreos: os exprimíveis, o lugar, o vazio e o tempo. Para Aristóteles a realidade lógica é o conceito. A isto os estoicos chamam de exprimível. Acontecimento, som, letra, palavra. O atributo de ser significado pela palavra é o exprimível, o lecton que fica entre o pensamento e a coisa. O lecton “tradiz” um acontecimento no que este pode ser corporificado, trazido à significantização, à cena. É do conceito de lecton que Lacan parte, para abordar a “significância” do significante. Cito Lacan em Radiofonia2: “O lecton torna legível um significado... Deixo para lá: isso é o 1 Fórum do Campo Lacaniano – Recife - IF-EPFCL Brasil – Membro da Escola. Nutricionista. graciazevedo@gmail.com
160
que denominei ponto de basta, para ilustrar o que chamarei de efeito Saussure de ruptura do significado pelo significante...”.
Considerando a origem remota do significante no pensamento estoico, Lacan o
coloca como o representante de um acontecimento primordial no processo de divisão do sujeito quando, surge, cai o objeto a para um ser de puro gozo. Momento de angústia, frustração, castração simbólica. É o ingresso para o simbólico onde a partir daí o sujeito seguirá dividido valendo-‐se do seu significante mestre tentando recuperar o que foi perdido na forma de objeto causa de desejo. A linguagem é a condição do inconsciente. O efeito de linguagem só se produz pela linguística. O discurso desloca-‐se em uma topologia estruturada que determina o sujeito e seus efeitos. Na psicanálise o homem nada sabe da mulher, nem a mulher do homem. O falo faz surgir o significante da diferença e o sexual passa a ser a querela do significante. O sujeito atingido pela linguagem percorre o “cristal linguístico”, assim chamado por Lacan, em busca de resolver essa diferença que só se resolve pela lógica do ou um, ou outro. A alteridade divide o sujeito e o aliena à existência do Outro. O simbólico incorpora-‐se ao corpo da realidade e o faz existir. È assim que o incorpóreo tem a ver com o corpo. É incorporada que a estrutura faz o afeto, a partir de seus efeitos no ser do que é falado e do que não é falado, dito de algum lugar. O corpo habitado pela fala vira puro cadáver. O sujeito existirá enquanto falasser, faltante, Um-‐a-‐
161
Menos, marcado pelo significante, sexuado. Fazer sexo com as palavras. É assim que a histérica desafia o mestre, desmascarando a sua falta, sua incompletude, por estruturar-‐ se a partir do vazio. Esse sexo surgido, causado exatamente a partir desse nada impossível de ser falado e colocado na cena. A linguagem traz à cena o que do sujeito carece de ser enterrado sob a forma de palavras e colocando sua existência no corpo, para ser imaginariamente incluído na roda dos vivos. O que o conduz à morte. A angustia presente no processo de divisão do sujeito torna-‐se conteúdo do significante que faz existir um sujeito por ele representado e, portanto seu refém no que diz respeito ao gozo. Através das formações do inconsciente, através do sintoma. O sintoma é o que vem do Real. Há o traço, inscrito para representar o acontecimento do corpo e há o apagamento do traço que será representado pelo significante fazendo surgir um falasser. O que do significante representará esse falasser para outro significante será sempre insuficiente para dar conta do acontecimento. A mancha onde antes era o traço terá sua designação como letra, resto de gozo, a ser sempre um pacote carregado pelo significante que traz à cena o objeto que depois de ser decomposto, decifrado deixa os seus restos que se inscrevem como a pedra no caminho, o que não cessa de não se escrever. O inconsciente real que se serve de lalangue. No campo da fala e da linguagem se apresenta o sintoma que traz à cena os efeitos do sujeito do inconsciente. O que não vai bem para o sujeito surge a partir de seu discurso endereçado ao Outro. É dessa fala, desse discurso que a psicanálise se serve para decifrar o sintoma. O equívoco é com o que se joga na interpretação. Ao esgotar o 162
seu sentido é a partir da lalangue que opera o ato psicanalítico. Lalangue é resto, é letra pura, é sem sentido com fixação de gozo. Quando Lacan fala de interpretação está de fato pontuando o limite do sujeito em relação ao seu saber. O saber se interpreta, não se chega a ele através da letra. A letra obstrui o saber e impede a sua apreensão. São seus efeitos que operam na psicanálise. Em A Terceira3 (1974), Lacan parte da lalangue para introduzir o gozo do sintoma. Citando Descartes e seu discurso do mestre com o ‘penso logo sou’, ele brinca com o significante e o transforma em “gossou”. E diz: esse é o sentido do sujeito da psicanálise. Ao usar o nó borromeu como representação esquemática do enodamento entre o real, simbólico e o imaginário, Lacan parte do neologismo gossou para ilustrar essa topologia. Onde o real é o impossível, é a pedra no caminho, o que não pode ser representado. Ao campo do imaginário pertence todo o conhecimento. O mundo das representações apenas alimenta a ciência e tenta dar conta do real, que sempre estará alhures, impossível de ser representado. E o simbólico, como a tentativa de fazer laço social, evidenciando o mal-‐estar do sintoma que se serve do significante e seu objeto a, deixando os restos não exprimíveis do real. A psicanálise surgiu desse mal-‐estar, e como tal é um sintoma. As histéricas de Freud com seu inconsciente que não entrava em acordo com as exigências da civilização colocaram a psicanálise como o caminho para dar conta deste sintoma. Mas havia um resto pulsional que o sintoma não dissipava, ao contrário, carregava como se fosse 163
pombo-‐correio, mensageiro do gozo. O sintoma é o próprio pretexto do gozo, e o sujeito não pode abrir mão dele. No máximo pode dissecá-‐lo e saber que há restos sem possibilidade de decifração. Depois tentar colocar o gozo a serviço da criação de novos laços. Saber o que fazer com isso. É essa a constatação da psicanálise, a impossibilidade de uma articulação com o real. O impossível do real é condição do sujeito e isso não faz negociação. O real se configura como o início e o fim, última parada. E a psicanálise como sintoma desse mesmo mal-‐estar. O real retorna sempre ao mesmo lugar, diz Lacan. É vã toda tentativa de um coito com o mundo. O objeto a, que fende o sujeito e o transforma em dejeto ex-‐sistindo ao corpo, é o que há no mundo. Como fazer para que esse objeto se torne semblante, semblante de falo? Para o homem isso é mais fácil. Ser objeto a para um homem é a saída para a mulher. Isso pode acontecer. Seio, fezes, olhar e voz. Isso fica no lugar do acontecimento para ser falado, buscado, desmontado até o osso. Ao falar o sujeito vai produzindo seus objetos a partir da sua verdade. A partir dos quatro discursos que fazem laço social Lacan colocou a estrutura da fala dirigida ao outro em um esquema onde o significante, a castração, o saber como gozo do Outro, e o objeto a como perda surgida desse trajeto do discurso, se articulam simulando as formas de posição subjetiva, no que faz laço na cultura.
164
Na busca do saber sobre o gozo do Outro o sujeito encontra a sua verdade que se constitui pela castração, no discurso do mestre. A verdade chega até onde o significante alcança como representante desse saber constituído a partir do real. Dessa forma o sujeito vai utilizando todo o seu acervo significante, que depois ele percebe como um só, e gasta até chegar aonde ele já sabia que não sabia. O saber não sabido. Resta a letra, o nome próprio onde o sujeito olha para o campo devastado e parte para construir a própria história que já tem nome mas poderá produzir outros caminhos, novas possibilidades. A letra faz litoral entre gozo e saber, é o que Lacan afirma em Lituraterra4. O furo no saber como acontecimento produz a letra que faz borda, linguagem, habitada pelo sujeito que fala. O nome litura quer dizer: rasura, mancha, borrão, apagamento do que foi feito. A letra faz terra marcando o litoral. Produzir a rasura é produzir a metade com que o sujeito subsiste. Entre centro e ausência, entre saber e gozo há litoral que pode se tornar literal. O sujeito que fora marcado pelo traço que se apaga, passa então a ser representado pelo significante. Ao se romper o semblante, o sujeito depara-‐se com seu gozo que evoca o real, o acontecimento, o apagamento do traço, a mancha. Este é o lugar da letra. O significante está no simbólico. Singular, próprio, solitário, marca do sujeito que o situa em sua própria história. O nome ancora o sujeito no Um-‐ a-‐Mais da cultura. Um lugar que o incluirá na sequência
165
da alteridade definida pelo simbólico. Um lugar de repetição, de equívocos, de gozo. Um lugar na cena onde o desamparo o faz surgir como objeto do Outro gozo. O endereçamento do sujeito ao Outro será doravante determinado pelo significante, produzido pelo corte, que representará o objeto perdido. É a partir desse endereçamento, dessa demanda surgida a partir de uma falta, que a psicanálise opera, faz cortes, aponta para o significante desnudando , destituindo o discurso de sentido. A repetição do que não pode ser simbolizado do impossível de dizer coloca o sujeito de cara com o real, com o gozo do inconsciente. O que fazer com esse gozo, forma de sinthome do sujeito? Diante da impossibilidade de inscrever a relação sexual, como o sujeito poderia nomear-‐se, distinguir-‐se? Lacan fala do sinthome em seu seminário de 19755, o quarto nó, como uma resposta do Real frente à incompletude da relação com o outro sexo, permitindo ao sujeito a criação de um laço social através da identificação a seu sinthome. Para o sujeito a relação sexual nunca existiu porque o Um não tem parceiro; o Um é o lugar do zero: serve para fazer surgir o um a um. O Um é o que tentamos dizer. É o impossível não entra na falta, ou ausência, ou vazio; é sem objeto. A partir de um lugar na cadeia significante o sujeito pode ‘se fazer ser’ como afirma Colette Soler6. Sair da posição narcísica do ‘melhor não ser’ e se ocupar do próprio desejo reescrevendo a sua história a partir do nome próprio. Para que isso seja possível é necessário destituir o Outro do lugar que outrora lhe colocamos. Em um processo de análise isso significaria dizer: ‘agora vou arrumar os 166
meus falta-a-ser na mala e vou partir’. Partir com o próprio nome e trabalhar para se fazer ser partindo do menos-‐um (que é o ‘recalque originário’ para Freud e não há ‘todos os significantes’ para Lacan). O amor de transferência pelo sujeito suposto saber se metamorfoseia em amor de transferência de trabalho. O sujeito com a sua malinha de falta-a-ser passa a trabalhar pela causa do seu desejo a partir de sua singularidade e do seu saber sobre o impossível do real. O desejo de analista agora surge a partir de uma escuta que muda de posição. É ficando no lugar de causa do discurso, que o analista pode vislumbrar os deslizamentos do discurso do sujeito com todos os seus significantes, como se fossem bunda de vaga-‐lume numa noite escura. Notas: 1. Bréhier, Émile (1908). A Teoria dos Incorporais no Antigo Estoicismo. Tradução de Alduisio M. de Souza. Cópia pessoal, Recife,2008. 2. Lacan, Jacques (1970). Outros Escritos. Radiofonia, Jorge Zahar Ed. 2003. 3. Lacan, Jacques (1974). A Terceira. Tradução da Association Lacanienne Internationale, 2008. 4. Lacan, Jacques (1971). De Um Discurso que Não Fosse Semblante. Sem. 18. Jorge Zahar Ed. 2009. 5. Lacan, Jacques (1975). O Sinthoma. Sem. 23, Jorge Zahar Ed. 2007. 6. Soler, Colette (1989). A Psicanálise na Civilização. Que final para o analista? Contra Capa Livraria, 1998.
167
A arte é o que há de mais real
Sonia Borges1 “Eu pinto a violência do real”, dizia Bacon. Em seu trabalho com os pincéis, Bacon não dispensa Apolo, mas, serve a Dionísio. Ele próprio reconhece a sua filiação à tragédia grega, e ao teatro de Beckett, trágico moderno. Nas entrevistas que concedeu ao crítico de arte David Sylvester (2007), por mais de vinte anos, Bacon descreve a gênese de suas pinturas, enfatizando o que podemos considerar como o seu “método”: pintar sensações. “Pintar sensações” seria, para ele, uma maneira de fazer frente à “violência dos clichês”na constituição das subjetividades nas formas capitalistas de economia. “ Porque a sensação, afirmava, dirige-se à carne, ao corpo, e menos ao intelecto”( Sylvester, 2007:167). “A arte abre dentro de mim as válvulas das sensações que me jogam de novo à vida de uma forma ainda mais violenta.” (141) Deleuze, em seu belo livro, “ A lógica das sensações em Francis Bacon”, recorre à arte deste para desenvolver as suas posições filosóficas. A sensação, diz Deleuze, “é ser – no – mundo”: ao mesmo tempo eu me torno na sensação, e alguma cosa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. Em última análise, diz o filósofo, é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto, quanto sujeito.”(2007:142) Esta critica à visão intelectualista da arte se presentifica, antes de mais nada, por sua recusa da pintura com pretensões de ilustração, figuração ou narração: “Gostaria muito, dizia 1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil
168
ele, de fazer o que Valery preconizava: proporcionar, com minha pintura, emoções sem o tédio da comunicação” (Deleuse, ibid, p. 43) No entanto, de modo absolutamente original, é pela via do trabalho figurativo, que Bacon faz a crítica da figuração: apresenta figuras, mas desfiguradas, deformadas, podendo – se pensar que, sendo uma crítica ao realismo, criam um novo realismo. Como ele mesmo anuncia, “O que quero fazer é deformar a coisa, descartar a sua aparência, mas, nesta deformação reconduzi-la ao registro da aparência”. (Sylvester, op.cit., p. 83). Nisto está a radicalidade e crueldade de da obra de Bacon, o materialismo radical que suporta o seu ato criativo.
3 IMAGENS
O movimento cortado, o permanente efeito de mutilação, imagens como que arrancadas aos pedaços do mundo que vão ornamentar. Massas se concentram, depois se prolongam, figurando corpos contra toda lógica anatômica. Corpos histéricos, poderíamos dizer. A carne mole, informe, invade o universo da pintura baconiana. O envelope corporal não é impermeável, a carne desnudada é ameaça de ferimentos, a epiderme se confunde com as vísceras. A torção das figuras, de modo ambivalente, remete a excesso e a falta: a desmedida dionisíaca da apresentação de corpos e carne faz exceção à razão, mas é contrabalançada pela estrutura apolínea, com ares de geometria, com que amarra as figuras (ou o gozo), e que se repete em todas as telas. Neste trabalho busco abordar, pela via da psicanálise, o que chamei de método de Bacon, “pintar sensações”. Para isto, tomo como referência principa, de Freud, l a “Carta 52”
169
e “Em busca do tempo pedido”, de Proust”, considerando a possibilidade de tomar este romance como uma ilustração do que Freud nos traz na Carta. Neste texto, Freud parte da idéia de uma estratificação sucessiva do psiquismo: O essencialmente novo, diz Freud, nesta teoria, é a tese da “existência da memória da experiência [...]como uma série de inscrições sucessivas e coexistentes [...]Estas impressões estão no extremo do aparelho, e devem ser recuperadas, ou não, em inscrições posteriores”. Com Lacan, pode-se pensar nesta escritura como o registro da experiência, ou seja, do real tal como cai e marca um ser que recebe o seu impacto, mas, do qual não conserva a memória. Mas, que marcas seriam estas? Impressões assubjetivas, acéfalas, matrizes de uma escrita da qual o sujeito advirá. Inequívoca manifestação de um real originário do sujeito, anterior à simbolização. São marcas inscritas no corpo, ou melhor, na carne, que se tornará corpo, por obra e graça desta cunhagem. Lacan as compara às pedras da loteria a que só o sorteio, ou seja, a que só o jogo dos significantes (Escritos, p. 58). poderá instaurar uma ordem. Em Proust, esta idéia, conforme Brainstein (2007), pode ser esclarecida nas descrições minuciosas do narrador sobre o que podemos considerar como epifanias proustianas. O “tempo redescoberto”, do último volume de sua obra, pode ser pensado como a redescoberta, a recuperação do gozo perdido. Gozo ressucitado pelo súbito reeencontro destas “marcas existenciais ” que se faz acompanhar de sensação de júbilo:o sabor da madeleine submersa no chá, uma breve frase musical, a rigidez do tato de um guardanapo engomado, são impressões sensíveis esvaziadas de significação fálica, restando ao artista fazer delas letras, domesticando o real.
170
Qual o sentido destas experiências sensíveis? Com relação às madeleines, no relato do narrador no romance, em determinado momento, surge a pergunta: “De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? E, de súbito a lembrança apareceu: “Aquele gosto era do pedaço de madeleine depois de tê – lo mergulhado no chá da índia ou de tília que, aos domingos, minha tia Leonie me oferecia quando ia cumprimentá-la em seu quarto” . E, ao lhe retornar o gosto do pedaço de Madeleine molhado no chá, o momento epifanico, com ele também surge a velha casa onde moravam, e com ela toda a cidade de Combray. Impossível não pensarna exigência de associação livre no tratamento. A descrição que Bacon nos oferece da gênese de suas telas, também nos remete a esta ressurreição de marcas cuja vivacidade foi apagada pelos processos secundários de pensamento. Estas só lhe parecem satisfatórias quando mostram “um tipo de imagem sensorial que faz parte da própria estrutura do ser e nada tem a ver com uma imagem mental” (160): Sei que na minha obra, o melhor me veio por acaso – quando fui tomado por imagens que não antecipei. Não sei o que é o inconsciente, mas, há momentos em que algo emerge em nós. É muito pomposo falar de inconsciente, é melhor dizer acaso. Creio na existência de um caos profundamente organizado, e na importância do acaso. (Sylvester, op.cit., p.81) [...] a única razão para esta irracionalidade, afirma, é que ela trará muito mais vigorosamente a força da imagem.”
Como exemplo da força das sensações e do acaso, descreve a gênese de uma de suas pinturas mais importantes. Ainda que lhe ocorresse pintar um pássaro, em gesto rápido, jogou as tintas sobre a tela, os borrões tomaram uma forma tal que, de forma súbita, surgiu-lhe o Papa Inocêncio,imortalizado em tela de Velásquez, mas que na sua surge em nova configuração, ladeado por imensas e sangrentas costelas bovinas. Imagem 4: “Pintura 1946”
171
Essa desfiguração de corpos, cabeças, faces, não pode ser vista como representação de objetos, mas como mostração de “velhas” experiências sensíveis: “Não pinto estados d’alma, mas, estados do ser”, insistia Bacon, numa clara crítica à psicologia dos afetos. Para falar disso, o pintor usa uma linguagem que nos remete à ordem do pulsional: “níveis sensitivos”, “domínios sensíveis”, “ordens de sensações”, “sequências moventes”. Voltando à “Carta 52”, Braunstein postula que o primeiro sistema de inscrições é o Isso da segunda tópica, cujas características nos permitem distingui-lo do inconsciente que já seria um deciframento dessa escrita primária de marcas de gozo. O Isso é o conjunto de grafismos, império do gozo do ser, anterior, pois, à organização subjetiva, sendo esta efeito do que, no reino do significante, consiste na metáfora paterna. O Outro da linguagem e do sentido vem perturbar, obstaculizar e proíbir o gozo. Mas, assim sendo, para o sujeito habitado pela palavra, o que restaria daquele real perdido, empalidecido pelos processos psíquicos a que é submetido? É no sistema de alíngua que o gozo é cifrado, ainda alheio à bateria de significantes com significação convencional, que é o muro que obstaculiza o gozo bloqueado nos sistemas de inscrição não decifrados, impedidos de serem subjetivados. “A alingua está morta, diz Soler, mas, vem da vida. Como pode, então, esta multiplicidade inconsistente, inapreensível, se precipitar na letra, única capaz de fixar uma identidade de gozo?” (p.19) Isto que parece tão lacaniano, está já evidenciado na “Carta 52”. Em resumo, o sistema chamado por Freud de signos perceptivos (WZ) é um sistema de passagem de impressões corporais(W) para uma escritura desorganizada, um ciframento caótico em que não opera a língua dos lingüistas, mas a alíngua, cuja significação não é de sentido, mas, de
172
gozo. Matéria prima para que nela opere o significante, ou seja, a bateria dos significantes, ou seja, a bateria das diferenciações e valores que introduz a língua. Sabemos, pela experiência clínica, que o gozo condescende à escuta, à ordenação em uma cadeia temporal diacrônica, ou seja, a uma escrita onde o caos do Isso, no qual o gozo está cifrado, abre-se à decifração pela via dos processos primários que já produzem discurso, carente de sentido, absurdo, mas, que já se presta a ganhar sentido. O UMBEWUST (UBW), o inconsciente, é, na Carta 52, definido como uma segunda inscrição em que já não primam as associações por simultaneidade, mas, “outros nexos causais.” O tratamento pode, então, fazer com que o retido em inscrições anteriores seja transferido para novos modos de leitura. O inconsciente se escuta, ainda que constituído por palavras avessas ao pensamento em que predominam sintaxes lógicas. Paradoxalmente, o gozo do corpo marcado apenas pode ser recuperado mediante o recurso ao Outro, Esta possibilidade de releitura destas inscrições primeiras, próprias ao tratamento, a nosso ver, poderia ser estendidas ao processo de criação artística. Guardadas as diferenças, na criação, e talvez de modo especial a artística, não se trataria de se furar o muro da linguagem? De se furar o muro das convenções, dos clichês sociais, única finalidade da arte, como insistia Bacon? Para Braunstein, “armados com a distinção lacaniana ente prazer e gozo, é difícil não reconhecer em Freud, e desde o começo, que o psiquismo está determinado pelo gozo, pelo gozo como perdido e como recuperável.” ( 198), sendo possível a sua recuperação, não pela via da nostalgia, mas a partir de um encontro casual, da tiquê, de momentos epifânicos, como
173
Proust o descreveu. Está aí em jogo a função do real. Lacan nos traz também que o real está além do automatón, do retorno insistente dos signos que nos conduzem ao princípio do prazer. O gozo que emerge como ressurreição do próprio ser. E não se trata de felicidade, mas, da superação/destituição do sujeito pelo real, que supõe a perda de todas as suas balisas: as narcísicas e mesmo as da fantasia. As epifanias podem ser pensadas como estes momentos de destituição subjetiva, não a destituição do final de análise, mas, a experimentada pelos artistas em seu processo de criação, quando os objetos se carregam, para eles, de sentidos ocultos que assumem o caráter de hieróglifos que pedem para ser decifrados. O sabor da madeleine para Proust, a força dos corpos para Bacon, o matiz dos girassóis para Van Gogh, experiências gozosas recuperadas pelos procedimentos artísticos? A criação artística poderia ser definida, parodiando Proust, como busca do gozo perdido? Se pudermos considerar a criação artística como possibilidade de recuperação do gozo perdido, a arte seria, então, para o artista uma escritura de si mesmo, mas, sobre a qual se poderia afirmar o que Lacan disse do inconsciente: que nem é, nem não é, pois pertence à ordem do não realizado; é a escritura que cria o sujeito. e ao criá-lo o projeta retroativamente no tempo, o faz aparecer num passado que nunca existiu. E, mais, cria este passado com aquilo que é recuperado como escritura.
174
Os usos do corpo e a política do sintoma: o caso da transformação corporal Andréa Franco Milagres1 Por ocasião da IV Jornada de Trabalhos do Fórum-‐BH, defrontei-‐me com algumas questões a respeito dos termos com os quais fizemos nosso convite. Demarcamos uma hipótese de trabalho: há uma política do sintoma e no bojo desta, o sujeito faz suas escolhas. Sabemos que a definição do sintoma não traz, em princípio univocidade e, podemos, tanto em Freud como em Lacan tomá-‐lo em mais de uma vertente, de acordo com o momento da elaboração de cada um. Numa perspectiva freudiana, é possível primeiramente definir o sintoma como aquilo que nos permite algum acesso à satisfação proibida -‐ uma solução de compromisso. Neste caso, o sintoma seria uma metáfora. É uma definição clássica em psicanálise, a tal ponto que se pode falar de uma vulgata do sintoma: até mesmo o leigo, na banalidade da vida cotidiana, usa o termo sintoma como aquilo que há de mais íntimo e que o faz sofrer. Todavia, constata o leigo, estranho mesmo é que não possa abandoná-‐lo, não possa deixar de repeti-‐lo. Não há, portanto, neurótico que não experimente isso... O que nos permitiria então supor que não só há uma política do sintoma, como esta política é conciliatória. Concilia o impossível da satisfação com alguma satisfação possível. Aqui poderíamos dizer que há uma política do sintoma, mas também que o sintoma é político.
1
Psicanalista, Membro do Fórum-‐BH, Mestre em Psicologia pela UFMG, Professora da PUC Minas, coordenadora do Curso de Especialização em Clínica Psicanalítica nas Instituições de Saúde da PUC Betim.
175
Ocupando-‐se desta vertente é que a psicanálise talvez tenha inaugurado seu laço com o mundo. Sua missão era assim restituir ao sintoma seu lugar de verdade, decifrando-‐o com a arma da interpretação. Tratava-‐se assim de dar um sentido ao sintoma, tal como o texto homônimo de Freud nos indicou: a verdade esquecida que retorna no sintoma é que ele é sempre referido ao sexual. No entanto, a descoberta freudiana conheceu tortuosos caminhos. A tentação dos psicanalistas doravante, depois de Freud, seria dar sentido ao sintoma. O que não se sabia, e para isto foi preciso aguardar Lacan, é que dar sentido ao sintoma é como alimentar um peixinho voraz: sua boca nunca se fecha; quanto mais o alimentamos, mais ele prolifera... (Lacan, 1975a). É uma outra vertente para pensar o sintoma: não mais como substituto, mas como índice daquilo que vem do real. Diante disso, podemos considerar que a política do sintoma é concernente a uma tomada de posição, um recurso adotado pelo sujeito para fazer objeção à norma. Nesta segunda vertente, o sintoma é sempre correlato a um comando, no caso, à ditadura de um significante mestre. A civilização contemporânea é agenciada por alguns significantes-‐mestres que não apenas nos representam para outros significantes, mas fundamentalmente afetam nosso corpo: este deve se mostrar sarado, sem dobras, barriga chapada, pele esticada. Quase todos nos curvamos a este comando: ser gordo ou feio, estar acima do peso, deixar entrever as marcas do tempo na pele ou nos cabelos soa como uma afronta aos ideais partilhados. Assim, como diz Soler (1998b p. 259) “nossa realidade fabrica semblantes a gozar para todos, ainda que isto nunca seja inteiramente alcançado”. Em
176
cada esquina, clínicas e tratamentos prometem apagar as grandes e as pequenas diferenças entre os corpos. A norma é Gisele: seu corpo nu e esguio delicadamente pintado sob o pretexto de vender sandálias nos faz encolher na cadeira quando folheamos a revista. O corpo perfeito de Gisele torna-‐se mais que um ideal: ele é persecutório! Na sala de espera do dentista, folheamos a revista Caras com a curiosidade sôfrega de quem procura encontrar algo que torne a celebridade um pouco mais simétrica conosco: quem sabe um paparazzi possa flagrar um furinho de celulite em Gisele que a “mulherize”, transformando-‐a em mortal? Enfim, podemos fazer do corpo um sintoma na tentativa de responder positivamente a tais ideais, mas lembro que a imagem que ilustrava o folder de nossa IV Jornada não era do corpo de Gisele: era de uma armadura, uma espécie de versão de Dom Quixote. Escolhemos tal imagem, pois assim nos pareceu a política do sintoma: uma armadura singular inventada por cada sujeito para responder aos ideais ou comandos da civilização. Se na política do discurso do mestre temos uma proposta de governança ou orientação coletiva do gozo e a maioria responde, portanto, positivando os ideais, é preciso lembrar que nem todo gozo encontra nesse discurso um abrigo. Existe um gozo que não encontra guarida, para o qual não existe um porto-‐seguro. Há gozos que interrogam a civilização. Tal questão me veio à mente quando assisti, muito intrigada, à série Tabu América Latina exibida pela National Geographyc, cujo tema era “Corpos Transformados”. A transformação corporal implica uma variedade de técnicas, procedimentos cirúrgicos e intervenções, cujo objetivo é modificar a aparência para
177
diferenciar-‐se dos demais. Dentre as técnicas estão as escarificações, os implantes subcutâneos e as mutilações. Creio que não podemos fazer uma generalização a ponto de dizer que todos os que se submetem à transformação corporal teriam as mesmas motivações. Todavia, os testemunhos de alguns desses sujeitos demonstram, numa versão contemporânea, como o sintoma faz impedimento a que as coisas andem, e por isto Lacan (1975a, p. 84) pode dizer que “(...) o sentido do sintoma é o real, o real enquanto se põe em cruz para impedir que as coisas andem, que andem no sentido de dar conta de si mesmas de maneira satisfatória, satisfatória ao menos para o mestre” (...) Tomemos dois casos. O primeiro é de Emílio Gonzalez, um profissional da transformação corporal que não apenas modifica o corpo de terceiros, mas o seu próprio.
Mantém seu estúdio em Bogotá e pretende ficar conhecido como o Dr. Freak2,
pois faz justamente aquilo que os médicos rejeitam fazer: “imagina se você pedir ao médico para cortar sua língua em dois: ‘vá procurar um psicólogo, é o que ele lhe dirá”...
2
Literalmente freak quer dizer deformação, aberração. Durante o século XIX e meados do XX encontramos na Europa e nos EUA até o período entre-‐guerras uma multiplicação dos freaks shows nos circos, casas de espetáculos e museus de curiosidades. Tratava-‐se de exibir as deformidades e bizarrices do corpo humano como numa aula de zoologia: homens-‐tronco, gêmeos siameses, a mulher mais gorda do mundo... O exemplo mais conhecido encontra-‐se no filme “O homem elefante”, de David Linch, onde o protagonista John Merrick, é exposto num pequeno circo de aberrações para satisfazer a curiosidade escópica do público. Nada de estranho para a época até que um médico, Dr.Treves, imbuído de boa-‐vontade e nascente espírito científico decide retirar Merrick do circo, demonstrando com seu ato a estreita relação que será selada doravante entre a compaixão e a entrada no discurso médico. A cultura do voyeurismo será então substituída pela observação
178
“Eu sou um transformador corporal de alto gabarito”, “Fiz (este braço) para ser Emílio Gonzalez, o mais famoso transformador corporal”. Gonzalez percorre o mundo deixando seu legado e é com orgulho que fala da sua obra: “Eu fiz o braço dele há muito tempo. Um braço espetacular: meu trabalho não se compara ao de ninguém”, testemunha Gonzalez a respeito dos implantes subcutâneos que havia feito num “paciente”. Satisfeito com o resultado, seu paciente comenta: “Meu braço representa um braço único. Se você apalpar, você nunca vai esquecer, é único”. Assim, Gonzalez pretende fazer seu nome, encarregando-‐se de fabricar a diferença ao acolher em seu estúdio os que não compartilham das vias prescritas pelo saber do nosso tempo. O discurso que orienta e civiliza o gozo numa determinada cultura prescreve um modo de comportamento para o corpo: um modo de vestir, de andar, de apresentar-‐se, até mesmo um modo de sentar-‐se à mesa. Por isto, às vezes, os costumes de outras culturas podem nos parecer tão aberrantes. Se a política é uma tentativa de fazer funcionar um “para todos” propondo uma gestão universal dos modos de gozo, uma adaptação à realidade que deve ser coletivizada -‐ e nisso sem dúvida há uma ditadura -‐ o médico dos freaks se coloca do lado dos contraditores do gozo, daqueles que poderiam ser chamados de recalcitrantes com relação à norma. científica. Na disputa entre o exibidor e o médico pelo mesmo objeto, o médico levará a melhor. A deformidade torna-‐se tema da observação médica e objeto de amor moral. Conferir texto de Jean-‐Jacques Courtine. “O corpo anormal. História e antropologia culturais da deformidade”. In: História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.p.253-‐340.
179
O corpo civilizado é, portanto, programado pelo discurso. Ele deve ser dócil a estas prescrições para entrar nas trocas. Encontramos assim no mundo atual o que Colette Soler (2002, p.100-‐101) chamou de “opressão homogeneizante da normalidade”. Esta autora observa um fato clínico importante: se antes os sujeitos vinham à análise porque tinham dificuldade para sustentar sua diferença, e isto os dividia, agora temos também os sujeitos que chegam para pedir a redução da sua diferença, pois querem ser como os demais: belos como Gisele, bem sucedidos como o chefe, eloquentes e desenvoltos como os artistas de telenovela... Curioso é que Gonzalez auxilia seus “pacientes” a se distinguir, a se fazer ímpar, face à indiferenciação promovida pela “opressão da normalidade”. Portanto, encontramos inúmeras maneiras de reagir e fabricar o “fora do par” para responder à “indiferenciação que nossas sociedades promovem” (SOLER,1990 [1998], p. 289). Todavia, Gonzalez não escapa da cilada: quer fundar a diferença, mas mesmo para isto é preciso que seja reconhecido. Que não seja pela massa, mas pela tribo dos freaks. Isto faz um laço, isto tem um endereço: quer ser o melhor dentre aqueles que promovem a diferença. Assim, perguntamos se Gonzalez funda um novo S1: não mais “todos belos ou todos magros”, mas agora “todos diferentes”. Outra tribo, outra ditadura, outro S1, mas ainda S1! Ao que parece, não podemos mais falar de uma política do sintoma, senão políticas do sintoma: substituto de uma satisfação, índice do real, dissidente da ordem,
180
mas também como aquilo que amarra e enlaça à mesma ordem que o sujeito crê protestar contra. Vejamos outro caso. Trata-‐se de Caim, que transformou seu corpo com a ajuda de Gonzalez. Seu corpo é totalmente tatuado, tem quatro expansões nos lóbulos, seis implantes na testa em forma de coroa, removeu o umbigo, possui a língua bifurcada, mais de dez piercings no rosto, mutilou as orelhas para que ficassem em ponta. Seu objetivo é ficar parecido com o diabo e com o vilão Valdemort. Gonzalez não vacila em acompanhar o projeto de seu ‘paciente’: “vou onde ele quiser para fazer o trabalho”. Parece-‐me, todavia, que criador e a criatura tomam aqui rumos diferentes. Seus projetos com relação ao tratamento do gozo diferem. Enquanto Gonzalez, animado pelo S1-‐ ser “o médico dos freaks”-‐ se esforça para encontrar um lugar na civilização ainda que seja pelo avesso, Caim faz uma ruptura mais radical. No referido programa, constato que Caim quase não fala, persegue seu objetivo silenciosamente. Apenas oferece seu corpo à transformação, mas também a uma subtração. Quanto mais perto de seu objetivo, mais a fazer: é um projeto sem fim, quase como um problema de solução elegante. Para se parecer com o diabo é preciso ficar com menos carne: corta as pontas das orelhas, a língua, parte do nariz. Mas nunca é o bastante: “Quando me olho no espelho sinto um pouco de tristeza porque ainda há muitas mudanças a fazer em meu corpo. Mas sei que é um processo. O importante é que eu me sinta bem com as mudanças que faço. Desde que eu não faça mal a ninguém posso fazer com meu corpo o que eu quiser”.
181
Diferem assim as soluções de cada um. Gonzalez do seu lado faz força para contestar o discurso dominante, mas mal sabe ele que dá uma volta de 360 graus para voltar ao mesmo lugar. Contesta os ideais, mas funda outro: “todos diferentes”. No fim das contas denuncia: “somos todos freaks. As mulheres no meu país todas colocam nádegas, mega-‐seios, peitos imensos...”. Para terminar, proponho que a diferença entre Gonzalez, o criador, e Caim, a criatura, é abissal. Gonzalez, quiçá neurótico, interroga o pai e os ideais denunciando seu fracasso em ordenar o campo do gozo. Ele, todavia, auxilia os que não podem contar com este recurso. Com isso, faz seu nome e ganha seu pão de cada dia. Ele entra nas trocas, e justamente por isto não está livre.... Quanto a Caim, livre para fazer o que quiser de seu corpo, ele propõe à psicanálise algumas perguntas. A mais importante é por qual razão somos sempre feudatários da imagem, pouco importando em qual estrutura... De Gisele a Caim há um ponto em comum: nos dois casos o corpo é aquilo que se impõe, que se mostra, provoca arrepios. A bela e a fera. O corpo é esta coisa que carregamos conosco, como uma mala, às vezes sem alça. Cada um, a seu modo, demonstra como o corpo faz leito para o Outro, como o corpo é propício para fazer sintoma ou sinthome. Bibliografia LACAN, J. La tercera (1975a). In: ________________________. Intervenciones y textos 2. Buenos Aires, Manancial, 2001. __________. Conferencia em Genebra sobre el sintoma. (1975b).In: __________. Intervenciones y textos 2. Buenos Aires, Manantial, 2001.
182
SOLER, C. Los ensamblajes del cuerpo. Medelin, Associación Foros del Campo Lacaniano Medellín, 2002. _________. O “Corpo falante”. In: Caderno de Stylus n. 1. Rio de Janeiro, Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano-‐Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, 2010. __________. Os direitos do sujeito. In: _______________. A Psicanálise na civilização. Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998a. __________. Incidência política do psicanalista. In: ________. A Psicanálise na Civilização. Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998b.
183
O Real Do Sintoma: Sua Política Na Cura Andréa Hortélio Fernandes1 Em 1975 no Seminário R.S.I., Lacan afirma que todo àquele que procura uma análise o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que demanda ser decifrada. Ele também apresenta o sintoma como o que há de mais real em cada um, portanto, neste sentido, o sintoma analítico interroga a não-relação sexual. Surge então, neste mesmo Seminário, outra afirmação contundente segundo a qual o “Inconsciente é o Real”. O real como aquilo que não cessa de não se escrever, promove a associação livre, trabalho do analisante, via transferência. Logo, nosso trabalho pretende abordar as mudanças nas crenças do sujeito que procura uma análise levando em consideração o real do sintoma e sua política na clínica. O real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa de não se escrever convoca mudanças nas crenças do sujeito. Acreditar que um sintoma diz alguma coisa está associado à vacilação de outras crenças do sujeito, entre elas na religião e na ciência. Com relação à religião, Lacan diz que “ela é feita para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”2, para recalcar o sintoma. Com relação à ciência, sabemos que a busca da cientificidade termina por foracluir o sujeito por desconsiderá-lo naquilo em que ele se presentifica e, isso está articulado ao tratamento dado ao sintoma.
1
Psicanalista, Membro da Escola, Doutora em Psicopatologia e Psicanálise (Paris 7), Profa da graduação e pós-‐ graduação da Universidade Federal da Bahia. E-‐mail-‐ ahfernandes@terra.com.br 2 Lacan, J., O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 72.
184
A psicopatologia explicativa, comunicativa e fenomenológica de Karl Jaspers seria um exemplo da foraclusão do sujeito fomentada pela exigência de cientificidade. A percepção e a compreensão orientam a perspectiva jasperiana ao definir o delírio como juízo patologicamente falseado e incompreensível. A busca do sentido aponta para quão distante estão Jaspers e Lacan que afirma que “o falasser é uma forma de exprimir o inconsciente”3, e que, portanto, ao analista interessa o sem-sentido. Longe de propor uma hermenêutica do inconsciente, Lacan, no Seminário XI, irá deter-se na interpretação ressaltando o fato dela “não está aberta a todos os sentidos”4 já que “ela mesma é um não-senso”. Para Lacan, “quando se trata do inconsciente do sujeito” está em questão “fazer surgir elementos significantes irredutíveis, non-sense, feitos de nãosenso”5. Temos já aí uma aproximação do inconsciente real, irredutível, feito de não-senso. Se o falasser é como uma forma de exprimir o inconsciente6, o saber em questão é um saber sem-sujeito. O inconsciente só pode ser abordado na análise onde não é questão de lembrar-se do que se sabe, mas de um “não me lembro mais disso. Não me reencontro nisso”7. É nisso que o inconsciente interpreta o analisante e faz dele seu interprete. Ainda sobre a interpretação, nos anos 70, Lacan diz que ela não é feita para ser compreendida já que ela deve ser equivoca8. É desta forma que a interpretação age na contra 3
Idem. Lacan, J., O Seminário – Livro 11. RJ: Zahar, p. 236. 5 Idem. 6 Lacan, J., O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Zahar,2005, p. 72. 7 Lacan, J., “O engano do sujeito suposto saber” (14/12/1967). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 337. 8 Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 35. 4
185
corrente do efeito de tapeação próprio à transferência9, apontando para o engano do sujeito suposto que se explicita na pergunta: “o saber que só se revela no engano do sujeito, qual pode ser o sujeito que o sabe de antemão?”10 . Logo, entre o analisando e analista existiria uma “divergência de suposição”11. Do lado do analisando, a suposição de saber própria da transferência, enquanto que do lado do analista, o postulado do sujeito suposto saber caberia ser abolido no decorrer de uma análise. A divergência de suposição aponta para a relação entre saber e crença, no que “três quartos do dito saber não são nada mais que crenças”12. A relação entre saber e crença, interessou bastante Lacan, na década de sessenta13. Nesta época, ele chamava atenção dos analistas que tentaram tratar da existência do inconsciente fora da psicanálise e, assim deram um tom “tranqüilizador”14 do inconsciente. Lacan diz então que irá “no cerne da prática que fez empalidecer o inconsciente buscar o seu registro”15. À prática da análise atrelada a dar sentido ao inconsciente, Lacan promulgada seguir a política do sintoma no que ele mantém um sentido no real que aponta para o ser de gozo do sujeito.
9
Idem, p. 240. Lacan, J., “O engano do sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 337. 11 Lacan, J., “A psicanálise. Razão de um fracasso” (15/12/1967) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 337. 12 Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 12. 13 Em especial, nos Seminários da Transferência e Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise e, também na Proposição de 9 de outubro de 1967 como nas conferências proferidas em Roma, no mesmo ano. 14 Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 25. 15 Lacan, J., “O engano do sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 332. 10
186
É nesta perspectiva que em 1975, Lacan dirá que “O sintoma é real. É a única coisa verdadeiramente real, que conserva um sentido no real. É por essa razão que a psicanálise pode, se existe a chance, intervir simbolicamente”16 no real. Para tratar da afirmação segundo a qual o sintoma é real, é importante nos determos na orientação clínica de Lacan sobre intervir simbolicamente no sintoma. Para tanto surge uma nova acepção do sintoma, o sintoma vindo do real, o sintoma como “acontecimento de corpo, que corresponde ao saber falado, ao saber falado fixado precocemente”17. O sintoma como encarnação do real comporta uma incerteza por, desde sempre, permanecer “indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo pensamento”18. Isto porque “a linguagem, de começo, ela não existe”. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função de alíngua”19. Desse modo, o sintoma tem um lugar privilegiado entre as formações do inconsciente sendo imprescindível para que uma demanda de análise possa ocorrer. Numa conferência de Lacan na Universidade de Yale, o tratamento dado ao sintoma e ao saber é evocado no percurso de uma análise. Nesta conferência, o início do tratamento é descrito como o analista devendo “deixasse guiar pelos termos verbais”20.
A expressão
“termos verbais” propomos aproximar do significante fora da cadeia, fora sentido, como um
16
Lacan, J., O Seminário – Livro 14. L’insu-‐que-‐sait de l’ une bévue s’aile a mourre. Lição de 15 de março de 1977, inédito. 17 Soler, C., “De que modo o real comanda a verdade” in Stylus, nº 19. Rio de Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p, 23. 18 Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 196. 19 Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 189. 20 Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 17.
187
todo só, errático, do S1( S1( S1(S1 → //S2))) “que soa em francês essaim21, um enxame significante, um enxame que zumbe”22 e “que garante a uma unidade de copulação do sujeito com o saber”23. É importante aqui “conceber que o S2 de alíngua é ele próprio composto de S1”, e que “o sujeito não virá no nível deste S2”24. É assim que Lacan diz que “os efeitos de alíngua que já estão lá como saber, vão bem mais longe de tudo que o ser falante é suscetível de enunciar”25 trata-se, portanto, de um saber que ultrapassa o sujeito. A partir daí veremos o ensino de Lacan demarcar que “o significante é causa de gozo”26 e que somente pelo simbólico é possível abordar o sintoma como acontecimento no corpo. Dito de outro modo, o sintoma como modo pelo qual o sujeito goza na medida em que o inconsciente o determina, aponta para o fato de que o saber inconsciente “está alojado em outro lugar, ele está alojado na substância gozante”27 e aponta para uma fixão de gozo própria ao sujeito. Os uns erráticos que antecedem a linguagem conectam-se ao gozo corporal fazendo sintoma, entendido como acontecimento no corpo, por trazerem aos traços do gozo do Outro. Como não se pode gozar do corpo do Outro, dada inexistência da relação sexual é através do gozo do sentido, que algo do sintoma pode ser tocado pela prática de falar em análise.
21
No dicionário Le Robert – essaim significa enxame, exemplo: “groupe d’abeilles d’insectes em vol ou posés. Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, p. 196. 23 Idem. 24 Soler, C., “De que modo o real comanda a verdade” in Stylus, nº 19. Rio de Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 19. 25 Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, p. 191. 26 Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, p. 36. 27 Soler, C., “De que modo o real comanda a verdade” in Stylus, nº 19. Rio de Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 18. 22
188
Estando trabalhando o saber inconsciente alojado na substância gozante, para Lacan “o que há de surpreendente no sintoma ... é que se acredita”28. Logo, todo aquele que demanda uma análise acredita que o sintoma diz alguma coisa e basta apenas decifrá-la. O analista convocado a responder com o saber faz uma aposta que uma análise se dê, pela associação livre do analisando. O desejo advertido do analista está suportado na sua própria experiência de análise que deve tê-lo levado a um ponto de ateísmo que não se contradiz. Nisto o ateísmo pode ser aproximado à questão do gozo. O ateísmo é definido por Lacan como “a doença da crença em Deus”29, a crença que Deus não intervém no mundo. Assim todos seriam religiosos, mesmo os ateus que acreditariam que Deus não tem nenhuma participação quando estão doentes. No nível do gozo, o analista levado ao ponto do ateísmo durável, está advertido que o sujeito neurótico é levado a delegar o gozo ao Outro. Porém, a experiência da análise permite ao analista entrever que esta crença esta pautada no ateísmo, a doença da crença em Deus. Isto porque mesmo sendo o gozo o que falta ao Outro, na neurose e o que o torna inconsistente, o neurótico tende a delegá-lo ao Outro. Logo, o analista cuja à análise o levou a um ponto de ateísmo pode levar um sujeito a formular a seguinte questão: “este gozo, do qual a falta faz o Outro inconsistente, é ele meu?”30.
28
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. R.S.I. Lição de 21 de janeiro de 1975, p. 24. Inédito. Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 32. 30 Lacan, J., “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1957) in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 819. 29
189
É necessário um percurso para que uma análise se dê, e ele está articulado àquilo que faz função de real no saber, ou seja, o impossível, a não-relação sexual. Uma análise começa com um sujeito supondo um saber ao analista. Ao analista cabe colocar a destituição subjetiva em pauta desde o início da análise para, assim poder manejar, com a suposição de saber a ele atribuída. O algoritmo da transferência mostra o caráter de cifra de gozo, fora-sentido do sintoma que convoca decifração. Através do S significante da transferência o sujeito apresenta o sintoma como um “incompreensível corpo estranho a ele próprio e portador de um sentido obscuro que o representa”31. É aí que Lacan vai insistir que “Há Um e nada mais”. O Um que insiste em se escrever pelo viés da fala, sob transferência, demonstra indiretamente o que não se escreve32, a impossibilidade de escrever a relação sexual. A impossibilidade está posta entre o S1 e S2 no discurso do mestre, S1 → S2, entre eles não há relação dada a coalescência entre S1 e S2. O sintoma como o que de mais particular em cada um, interroga a não-relação sexual e cria um intervalo entre S1 e S2, onde é possível situar o sintoma ( ∑ ) que faz existir a relação sexual, faz existir o discurso. A questão então é como um significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo33, sintoma para um sujeito. Lacan afirma que “o saber do um, por pouco que posamos dizer disto, vem do significante Um”34 de alíngua. E ainda que é da alíngua que é possível extrair o que é do
31
Soler, c. “Standard e não standard” in: Artigos Clínicos. Salvador: Fator, 1991, p. 28. Soler, C., “De que modo o real comanda a verdade” in Stylus, nº 19. Rio de Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 17. 33 J.Lacan, O Seminário – Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, p. 195. 34 Idem. 32
190
significante35. Ao Lacan propor o Um encarnado, ele concebe que S2 é composto pelo S1. Do lado do S2 está o resto que permanece não decifrado, não-significantizável, indizível, um saber falado tal qual o Um encarnado. O S2 aponta para o que há de contingente no ouvir e põe em marcha toda a crença do sujeito no sintoma. A ponto de Lacan declarar que “o significante Um não é significante qualquer. Ele é a ordem significante, no que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda a cadeia subsiste36. Para Lacan, a linguagem é feita de alíngua. A linguagem “é uma elucubrarão de saber de alíngua”37.
Nesta época, Lacan vai aproximar o inconsciente de alíngua, propondo um
inconsciente fora-sentido, anterior a linguagem. Segundo ele, “é porque há o inconsciente, isto é alíngua ... que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo”38, a fazer enigma, levando ao cúmulo de sentido. O sentido do que o sujeito ignora, o sentido do que ele não sabe suscita o amor ao saber, ou seja, transferência39. É neste contexto que, por contingência, ou seja, pela fala do sujeito em análise, algo pode vir a se escrever (S2) e é o que faz função de real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta para algo que cessa de não se escrever: o Um do gozo, a letra de gozo. Aponta, pois, para o sintoma como o que há de mais real em cada um e para o inconsciente real que pelo cúmulo de sentido do Um encarnado que faz signo, enigma e leva o sujeito a acreditar que o sintoma possa ser traduzido.
35
Idem, p. 194. Idem, p. 197. 37 Idem, p. 190. 38 Idem, p. 195. 39 Gerbase, J., “O discurso histérico”, curso O diagnóstico na psicanálise e na psiquiatria, inédito, 2010. 36
191
Ao tratar da crença no sintoma, em 1975, Lacan marcará uma distinção entre acreditar no sintoma (“y croire”) como do campo da neurose e acreditar nele (“le croire”). Na psicose, sabemos, as vozes estão lá, o psicótico acredita nelas, daí porque Lacan formulou que na psicose o que foi foracluído no simbólico, retorna no real. Porém, tanto na neurose como na psicose, o analista deverá manejar com a crença no sintoma. Na psicose trata-se de uma crença forçada. O psicótico sofre o efeito da cadeia significante rompida que faz com que a irrupção de um significante no real seja incontestável40, por exemplo: “porca”. De acordo com Bernard David41, o psicótico acredita na sua alucinação de forma redobrada, ele utiliza a passagem da paciente entrevistada por Lacan que diz ter escutado “porca” para demonstrar isso. A crença seria redobrada pelo fato do significante “porca” surgi no real e, também, devido ao fato do significante interpretar a paciente. Este significante quer lhe dizer alguma coisa e, em alguns casos, já diz alguma coisa, apesar da paciente. Em razão da não-extração do objeto a, está vetado à paciente saber o que é o seu ser de gozo, o significante equivale a ela enquanto objeto de gozo do Outro. Entretanto, no desencadeamento da psicose encontramos um percurso que vai do acreditar no sintoma e acreditar nele. O significante real “porca” (S2), essa irrupção do inconsciente real, de um saber sem sujeito, frente a ela a paciente não se vê representada pelo significante alucinado, até aí ela sofre o efeito do cúmulo de sentido que faz signo e demanda
40
Lacan, J., “De uma questão familiar à todo tratamento possível da psicose” in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 542. 41 Bernard, D. “Y croire, les croire” in: Pli, nº 4. Revue de Psychanalyse.
192
interpretação. Somente com a formalização do delírio que a paciente passa a acreditar nele, através da significação da significação. Na neurose, o sujeito acredita no sintoma e isso o impulsiona na direção de uma elaboração, pautada na transferência.
O significante que faz enigma seria real como o
significante no real próprio à psicose, a diferença é que ele não é alucinado, podendo ser encarnado, inscrito no corpo, como nos ilustra a histeria. Esse significante é causa de gozo e objeto de gozo na medida em que se goza dele, porém é um real que pode se converter em simbólico42. O tratamento do real do sintoma pelo simbólico é do que se ocupa uma psicanálise com especificidades na neurose e na psicose. Na psicose existiria a possibilidade de civilizar o gozo, possibilitando que mesmo na psicose o sujeito possa fazer laço social. Um exemplo seria Joyce ao conciliar seu gozo autístico, o gozo do Um, ao gozo da letra, se impor ao mundo como artista fazendo-se promotor de seu nome de gozo. Os seus livros Retrato do artista quando jovem ou Stephen, o herói, não se trata de um herói ou um artista, mas do herói e do artista que é uma crença da mesma ordem que a crença de Schreber de ser A mulher de Deus43, apontando que ele acredita nela. Na análise com neuróticos, teríamos na entrada, a crença no sintoma que o liga a cadeia significante sob transferência e, “na saída, a descrença que o desliga da cadeia
42
Soler, C., “Les symptômes de transfert”, curso inédito de 1999. Soler, C., O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 206.
43
193
significante”44. Como já dizemos acreditar no sintoma é acreditar que ele diga alguma coisa. É nisso que o sintoma interroga a não-relação sexual. Acreditar no sintoma seria como lhe acrescentar reticências, acreditar que ao S1 pode juntar um S2 que faria sintoma retornar do real para o sentido. Aí está à própria crença no inconsciente. Em contrapartida, a identificação com o sintoma presume que o sujeito tenha deixado de esperar que a tradução pelas reticências, deixa-se, pois de acreditar, “a letra do sintoma resolve o vazio do sujeito que acabou com a questão do ser e com a elucubração de saber relacionada a ela”45. Por fim, Lacan ao afirmar que “o real, tal como nos falamos dele, é completamente desnudado de sentido”... “porque não é escrito com palavras. E sim com pequenas letras”46 aponta para o que seria a infinitude da análise. Na qual “o sujeito ao acreditar no sintoma, acredita que o “um” da letra pode retornar ao “dois “ da cadeia”47, e assim alimentar o gozo do sentido atrelado ao real do sintoma, política cujo manejo o analista é convocado a operar.
44
Idem, p. 198. Soler, C., O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, p. 198. 46 Lacan, J., “Conférénces et entretiens dans des universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 29. 47 Soler, C., O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, p. 197. 45
194
Sintoma ou Fenômeno Psicossomático? Decifra-me ou te devoro! Roberta Luna da Costa Freire1
Neste trabalho trazemos reflexões, a partir da clínica, em torno do que pode ser levado em conta - no caso em que se apresenta uma lesão num órgão – para se dizer se se trata de um sintoma ou de um fenômeno psicossomático. É possível falar-se de sintoma na psicossomática? Sendo a fenomenologia, para Lacan, tributária do registro da fala, será no campo da linguagem que situaremos nossa questão como uma questão de nome. Segundo Soller (2010, p.31), o sintoma é acontecimento do corpo, e o corpo se introduz na psicanálise pelo sintoma. Nesse sentido, é com o corpo, enquanto submetido à ordem simbólica - afetado pela linguagem - que é possível esvanecer a diferença, tão cara às ciências filosóficas, entre mente e corpo. Assim, aponta Garcia-Roza (1936), a dicotomia não se inscreve como mente-corpo, mas como corpo linguagem/pulsões anárquicas. Em “Radiofonia” (1970, p.406), Lacan afirma que o corpo simbólico é aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere,a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar. Assim, é o corpo falado no divã que pertence à psicanálise. Corpo desgarrado do organismo. O corpo do qual falamos é o corpo em sua consistência imaginária e simbólica, e separado da carne. Ele, como sintoma, afetado pelo significante, exila o gozo e adquire consistência imaginária, prestando-se ao equívoco; ao 1
Psicanalista. Membro da EPFCL – Brasil/ AFCL – Fórum Natal
195
passo que o organismo é pulsional, coisa bruta e real. Não há encontro com o significante: o organismo é o não encontro. Como destino da pulsão, o sintoma é testemunho da pulsão capturada pela linguagem, fazendo-a exilar-se. Ser afetado pelo significante dá ao corpo consistência, a mesma que Freud atribuiu ao encontro entre representação-coisa e representação-palavra. No texto “O Inconsciente”(1915), Freud refere-se ao afeto e à representação como representantes pulsionais. Pela ação do recalque, o afeto é deslocado de sua representação original, a qual Freud designou como representação coisa,
para outra representação. A
apresentação consciente abrange a apresentação da coisa mais a apresentação da palavra que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa apenas. A apresentação da coisa mais a apresentação da palavra dizem respeito à captura da pulsão, impondo a esta a ordem da linguagem. A essa transformação, Freud
denomina de
representante-representação. Em termos significantes, a
representação palavra seriam os significantes, e a
representação coisa o corpo pulsional. Nesse encontro, segundo Freud, uma parte fica no inconsciente e outra na consciência. Portanto, algo se perde, isto é, a possibilidade de gozar livremente; o gozo é exilado e “educado”. Em termos lingüísticos, significa a dialética do par S1- S2,
no que ele representa o sujeito para um outro significante, o qual o outro
significante tem por efeito a afânise do sujeito (Lacan, 1964, p.207) Contudo, quando esse encontro entre o afeto e um substituto do recalcado não se estabelece, um quantum de afeto fica solto, e o excesso é sentido como angústia. Isso
196
significa dizer que o encontro entre a representação coisa e a representação palavra não se efetivou. O afeto franqueado se tornará então não simbolizado, não encontrando uma linguagem para seu escoamento. Em termos lacanianos, trata-se de um excesso de gozo, isto é, do real. Nessa perspectiva, poderemos situar a psicossomática: o afeto desgarrado da escritura é real; e, como tal, ataca o corpo sem mediação simbólica. Seus efeitos se mostram na marca impressa no corpo, que, no dizer de Lacan, não pode ser lida. No “Seminário 11”, Lacan situa a psicossomática, em termos linguisticos, com a fórmula da holófrase, na qual não há intervalo significante. Ele diz que a psicossomática é algo que não é um significante, mas que mesmo assim, só é concebível pela indução significante, no nível do sujeito, se passou de maneira que não põe em jogo a afânise do sujeito (Lacan, 1964, p.215) Lacan não designa a psicossomática como estrutura, mas, antes, como efeito de linguagem, sendo, portanto, um fenômeno, o que nos permite afirmar que um sujeito neurótico, psicótico ou perverso pode apresentar lesões psicossomáticas. Segundo Soller (2010, p11), para gozar é preciso um corpo e não um sujeito. O corpo desgarrado do organismo, atravessado pelas pulsões. No senso comum e no discurso especializado da psicologia e da psiquiatria, a psicossomática é compreendida a partir de um fundo emocional – termo descritivo e genérico que revela a confusão apontada por Freud (1915), quando diz que o fato de não se levar em conta o inconsciente é supor que tudo que é mental é consciente. Nesses dois campos, quem tem o saber é o especialista. Satisfeito, o paciente sai com uma receita química da consulta do
197
psiquiatra, ou com uma receita comportamental da consulta com o psicólogo e, de quebra, sua doença ainda ganha um nome, o nome da doença. Nesses casos, por exemplo, uma dor de cabeça é sinal
de estresse, excesso de
trabalho, frustração,etc. Esses males são denominados de somatização, como resultado da influência da mente sobre o corpo. Na psicanálise, um sintoma é uma formação do inconsciente, um representante linguistico do sujeito, um nome que afeta o corpo e o adoece, uma doença do nome, a qual pode ser substituída ou deslocada. Assim, como sintoma psicanalítico, precisa ser contado, falado, para dizer a verdade, sem dela saber, apenas pela emergência de seus efeitos. É inapreensível, enigmático, estratégico, joga a partida, na qual a posição do sujeito varia por sua condição de estrutura. Vanessa, 42 anos, chega à sessão de psicanálise dizendo que sua voz está rouca e baixa, que está quase sem voz. Conta que ficou assim após uma discussão no trabalho na qual sua colega lhe gritou e ela respondeu em voz baixa. Vanessa diz também que, no dia seguinte, soube que sua sobrinha fora embora para a França com um estranho que conhecera há pouco tempo, e, que, ao saber dessa notícia, ficou sem voz. Vanessa foi ao médico, e ele diagnosticou que ela estava com calo nas cordas vocais. Sua doença ganhou nome, tratamento específico e localizado. Ao referir-se à paciente de Tausk, Freud ressaltou que os comentários dessa paciente tinham o valor de uma análise. Isso significa dizer que o sintoma psicanalítico é aquele “tagarelado” pelo paciente.
198
Vanessa queixa-se também de ter perdido suas digitais, diagnóstico dado pelo médico. Ela não sabe dizer o porquê, não consegue construir um saber: não há bateria de significantes disponível; dele apenas interroga o porquê. Sua questão orbita em torno da causalidade, e não do saber. Ela não supõe um saber sobre ele. Lacan nos ensina que, na psicossomática, há um gozo localizado, que retorna ao corpo e induz a lesão; um gozo não domado pelo significante, o qual consiste em um ataque que deixa sua marca, uma marca que é da ordem do número, o que aponta para um quantum da ordem de uma decifração. O gozo deixa seu rastro para não ser lido; a lesão atesta a sepultura cavada pelo gozo; e o número, o seu epitáfio. O ataque do gozo ao corpo e seu devoramento local devolvem-lhe o seu estatuto de carne, pois cortam na própria carne. Mas, na prática, considerar um como sintoma e o outro como fenômeno a que nos remete? O que ensinam os fenômenos psicossomáticos, a que eles respondem, ou, ainda, que pergunta nos endereçam? Se o discurso especializado dá nome à doença, poderíamos dizer que, na psicanálise, o sintoma é a doença do nome, e os fenômenos psicossomáticos seriam a doença sem nome. No “Discurso de Genebra” (1975), Lacan disse que a contribuição de Freud em relação ao consciente da consciência foi a idéia de que “não há necessidade de saber que se sabe para gozar um saber”. Ora, Vanessa não sabe, ao dizer que ficou afônica após a discussão e a notícia. Aliás, na primeira há um dito em excesso, e na segunda um excesso do dito. Em seu trabalho ela desloca, faz deslizarem palavras metonimicamente, o que sabe sobre
199
sua rouquidão. Agora, banhada pela linguagem, as cordas vocais lesadas tomam valor de sentido. Talvez possamos considerar que, diante da lesão orgânica, ela constrói um saber. O sujeito articula-se na cadeia falada, como diz Lacan (1964, p.198): a característica do sujeito inconsciente é de estar, sob o significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua história. Nesse sentido, o importante é o que de gozo pode ser barrado pela emergência do saber, o qual só pode ser produzido pelo sujeito dividido, divisão, essa, que permitiu o exílio do gozo. Lacan, no “Discurso de Genebra” (1975), concorda com o Sr. Vautier quando este assinala que quando se tem a impressão de que a palavra gozo recupera um sentido com um psicossomático, este já não é mais psicossomático. Eis a diferença: há um gozo, do qual se extrai um saber. Há uma nomeação, uma afetação da linguagem, uma doença por efeito do nome. No segundo exemplo, não há nomeação. Supomos que, no primeiro exemplo tem-se um sintoma e, no segundo, um fenômeno psicossomático. No primeiro, quando Vanessa endereçou sua queixa ao médico, a doença ganhou um nome: contudo, ao endereçá-la ao psicanalista, ela construiu um saber sobre o nome que a adoecia. Em relação ao segundo exemplo, não podemos furtar-nos a apontar o caráter emblemático dessa lesão; ou seja, perder as digitais significa perder o que, no registro da identidade civil , constitui a marca da existência singular. Sua lesão ganhou nome, no entanto não há nome de fato que a nomeie. É palavra vazia, sem nomeação que sustente uma história. Sem nome, sua lesão devora seu ser de sujeito, produzido pela não afânise, não representação
200
significante, ausência da representação-palavra. Devorada por sua lesão, ela se situa ante a questão de ter que decifrá-lo, para que possa dele livrar-se e, assim, poder representar-se metonimicamente.
Referências: FREUD, Sigmund. O Inconsciente. (1915). Obras Completas. Vol XIV. Rio de Janeiro: IMAGO, 1980. GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. O Mal Radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. LACAN, Jacques. Conferência de Genebra sobre o sintoma. Mimeo.1975. ______________ O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______________.Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SOLER, Colette. O “Corpo Falante”. Caderno de Stylus. Rio de Janeiro: IF/EPFCL, 2010.
201
Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma Conrado Ramos1
Com o objetivo de tentar formalizar algumas questões sobre o sintoma, apresento fragmentos clínicos de um caso e, em seguida, meu trabalho de teorização do mesmo. Um analisante passou seus anos de decifração em torno da relação entre três questões: o que é ser um filho, o que é ser um pai, e como isso se articulava nos seus laços amorosos e de trabalho. Ele fazia de sua vida um morrer de trabalhar pelo qual repetia o esforço, por um lado, de ser reconhecido e amado pelo pai cruel e insaciável que teve e, por outro lado, um meio de fazer diferente de seu pai, tomando por filhos aqueles implicados nos efeitos de seu trabalho. Morrer de trabalhar era um sintoma que atravessava a sua história significando suas posições, ora de filho, ora de pai. Durante anos tomou remédios psiquiátricos por estar sempre uma pilha de nervos. De tanto querer livrar-se desta situação, concluiu que foi por meio dela que se constituiu e que tentava fazer do morrer de trabalhar uma forma paradoxal de vida. Começou a referir-se ao trabalho como uma estranha satisfação que o fazia sentir-se pilhado (de pilha, bateria). Pilhado, significante que se repetiu em outro momento de sua análise, quando ele se dizia trabalhando sempre para o Outro, que o fazia sentir-se pilhado (isto é, roubado). No início do tratamento, ele fazia constantes referências à pilha de coisas que tinha para fazer, modo pelo qual apresentava, angustiado, o peso gigantesco de suas intermináveis tarefas. Mas eis que um dia veio a seguinte construção: “acho que não tenho como mudar a minha relação com o trabalho: eu sempre pilho”. E então eu pontuo: “pai e filho, pilho?!”, ao 1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum São Paulo
202
que ele responde: “É isso! Eu sempre pilho: pai e filho, pilho! Não tem jeito! E o que eu tenho que me perguntar é o que fazer com isso...” Essa interpretação da posição de gozo a partir do equívoco introduzido pelo significante pilho, trouxe desdobramentos e fez, em algumas semanas, a análise trazer à tona o objeto da fantasia no sujeito cristalizado no olho do filho do grande pai: ocorreu-lhe, no meio de uma sessão, a recordação súbita da reprodução de um Sagrado Coração de Jesus, da parede do corredor de sua casa de infância, cujo olhar sagrado, refletido no espelho de seu quarto, aterrorizava-o, e de onde ele tirava os imperativos de seus sacro-ofícios (sacrifícios). Seguiu-se a isso um percurso de tentativas de dar sentido e esse lugar: uma nova relação na qual ele se descobriu agindo sempre como pai da namorada; um novo emprego (“agora vou fazer diferente”) em que quase morreu de trabalhar, colocando-se diante do patrão numa posição que julgou feminina; reatou laços com o filho do primeiro casamento e se descobriu filho do próprio filho por ver que esse aprendeu a se virar sem o pai (coisa que ele mesmo dizia jamais ter conseguido); tornou-se provedor de parte da família e viu-se explorado no lugar do próprio pai falecido... Enfim, pela tagarelice, identificações foram caindo pelo caminho. Algum tempo depois ele trouxe o seguinte numa sessão, referindo-se à religião como uma prática de dar sentidos à sua submissão: “sem nunca ter sido religioso, aqui eu sempre fui religioso, porque eu sustentava minha loucura buscando sempre um sentido para ela. Um sentido não dava certo, eu buscava outro; esse não dava certo, eu buscava outro. Agora eu vejo que meu erro não era não encontrar o sentido certo. Meu erro era ser religioso. A minha loucura não tem sentido. E se não tem sentido, por que eu preciso dela? Se eu não preciso
203
mais ser religioso, não preciso mais também da minha loucura. Vai ver que a minha loucura era justamente este ‘ser religioso’: minha mania de achar que preciso me sacrificar pelo Pai.” Aqui veio um silêncio e hesitei quanto ao corte da sessão. Segurei um pouco mais e ele seguiu: “E por falar em Pai, ‘Fiat lux’... Eu me orientava pela luz do outro. Mas essa luz sempre foi minha: eu é que colocava a luz no outro. Não tem luz nenhuma lá.” Cortei a sessão. Depois dessa sessão, ele redescobre aos poucos o prazer da leitura e, admirador da arte, diz permitir-se levar adiante o que julga ser seu maior deleite, a experiência estética. Descobre ainda a satisfação que tem ao preparar suas aulas e, em relação ao dar aulas, comenta: “dar aulas não precisa ser um jogo de lugares – meus alunos não são meus filhos ou meu pai –, mas sinto ali uma estranha fruição... Engraçado dizer isto, mas se ali algo frui, é porque sou visto: tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um olhar... é só um olhar.” Cai o olhar do pai, o olhar que se pretendia verdadeiro e universal. O olhar que fica, esse que é só um olhar, já não é universal, mas esse olhar, embora não verdadeiro e não universal, nem por isso é uma mentira se ele tem o real por medida. Este caso me faz questionar, entre outras coisas, se um sintoma não é aquilo que uma análise pode levar do morrer de trabalhar para o Outro ao fazer-se ver. O gozo parasita do morrer de trabalhar pôde, no fazer-se ver, articular-se não-todo à cadeia significante e entrar no laço sem precisar ser pela via do mais-gozar extraído por meio da fantasia obsessiva de servidão ao pai: do morrer de trabalhar enquanto sintoma (S1) que tenta, para capturar S2 (tornar a relação sexual possível), fazer a coalescência entre a falta de um significante para o
204
lugar de filho [S(A/)] e o olhar como objeto a, pôde-se chegar ao fazer-se ver como o incurável do sintoma que se descolou da fantasia (do gozo do sentido) e pode ser gozado nãotodo, isto é, sabendo-se não recobrir o JA/ com o gozo do sentido por meio do JΦ. Isto pode ser visto no grafo do desejo quando, com a queda da consistência do Outro, o circuito do grafo faz passar do sintoma [s(A): morrer de trabalhar] para a pulsão [$ <> D: uma estranha fruição]: há, neste novo vetor, uma mudança de estatuto do sintoma? Com o esvaziamento dos sentidos da posição de pilho e com a queda do objeto olhar onividente (que carrega de sentido o gozo do grande Pai2), entendo ter havido um descolamento do sintoma em relação à fantasia.
Com a queda da consistência do Outro, o sintoma passa de uma resposta da
fantasia que visa sustentar esse Outro por meio do sacrifício, para uma pura função F(x) em relação ao objeto a como causa, como o corte que produz a borda e transforma o sintoma em resposta do real (ou seja: uma pulsão). Entendo aqui o sintoma, como resposta do real, como aquilo que faz pura função em relação à borda e que Lacan (1960) associou, em Posição do inconsciente, ao teorema de Stokes, como “um fluxo invariante ‘através’ de um circuito orificial, isto é, tal que a superfície inicial já não entra em consideração” (p.861). O que responde por esta função de fluxo é a pulsão. Assim, do furo real no toro (que não é o eixo!), para o qual a superfície já não conta, mas sim a propriedade borromeana que daí surge, se faz passar do furo falso do sintoma [s(A)] para a pulsão [$ <> D] como função de sintoma real. Aí está: do sintoma ao sinthoma, temos topologicamente a passagem do eixo como furo falso da superfície sem furos do 2
Agradeço à Sandra Berta por esta observação precisa.
205
toro à propriedade borromeana que advém do furo real, para o qual a superfície já não conta mais: por isso, sustento que o sinthoma foi posto por Lacan como um 4º nó apenas para mostrar que sua função implica a propriedade borromeana. No campo do falatório, da tagarelice, o sintoma desse obsessivo não teve parada, continuou se deslocando nas falhas do sentido, na insuficiência radical do significante. Para que houvesse algo que julguei aproximar-‐se da identificação com o sintoma, foi preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que não fosse da ordem da repetição que negava o real do furo na medida em que tentava fazer a relação sexual ex-‐sistir por um ser pai-‐filho (pilho) que se repetia toricamente [S1(S1(S1(S1S2)))] na esperança de gerar superfície e se transformar no signo do amor ao Pai. Para que houvesse uma identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo fosse além da petrificação que tentou fixar o corpo do Outro como signo do amor no olhar sagrado do Cristo visto no espelho do quarto [$a]. Para que fosse possível uma identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que funcionasse como ponto de basta, o que pressupõe a dimensão da referência que toca o real da inexistência da relação sexual (uma Bedeutung) e que, deste modo, por deixar cair o sentido (S2, queda do SsS), acaba logicamente valendo por si mesma (S1=S1): faço menção aqui ao que se pode extrair da tautológica formulação de que “tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um olhar... é só um olhar”. Além disso, se a finalidade última da pulsão é retornar à fonte, mais do que o gozo do objeto, ela visa a identidade do ser, não sem ecoar no lado do outro. É daí que entendo haver identidade no fazer-se ver final, sob o qual não incide a
206
consistência (a superfície) de um olhar universal, mas de um olhar que é só um olhar (objeto a como objeto evanescente). Este tocar o real é o que revela a condição de metáfora do sintoma: “[...] não é à toa que, em uma corda, a metáfora advenha do que faz nó. O que tento é descobrir a que se refere essa metáfora. Se há uma corda vibrante de barrigas e de nós, é na medida em que nos referimos ao nó. Quero dizer que usamos a linguagem de um modo que vai mais longe do que o que é efetivamente dito. Sempre reduzimos o alcance da metáfora como tal. Ou seja, ela acaba reduzida a uma metonímia.” (Seminário 23, p.41). O sintoma simbólico, não passa de metonímia: [S1(S1(S1(S1S2)))]. Só o sintoma real faz metáfora, porque deixa cair S2 e, então, pode fazer nó: [S1=S1//S2]. É nesse sentido que sugiro pensar topologicamente o sintoma obsessivo do início do tratamento como uma banda tripla, ou seja, como tagarelice, como metonímia sem fim, porque dá voltas infinitas com a impotência que carrega para morder o próprio rabo ou para ter uma referência acerca de que lado da banda se está: nestas voltas, só se reencontra a insuficiência radical do significante. Se a metáfora advém do que faz nó (LACAN, 1975-‐76), isso se dá na passagem da banda tripla para o nó de trevo (o que Lacan só vai concretizar topologicamente na última aula do Seminário 25, em 11 de abril de 1978). É no nó de trevo que localizo a topologia do fazer-se ver, como tecitura pulsional do furo, a que a análise conduz o sintoma inicial. Somente quando a superfície deixa de contar, quando a superfície calcada no sentido encontra o limite de sua condição de semblante e se revela uma verdade mentirosa, é que a propriedade
207
borromeana pode se escrever: metáfora real da estrutura. (Afinal, por que a metáfora tem que ser simbólica? Não é a escrita do nó uma metáfora real?) Se o analisante pôde desenrolar o toro de sua verdade mentirosa, deparando-se sempre com uma volta não contada em cada “sentido que não dava certo”, foi para cingir um furo que se escreveu ao final como um nó, por um reviramento tórico, quando ele deixou cair o estofo da superfície ao se separar do que chamou de ser religioso. O que é isso que ele chamou de ser religioso senão sua própria condição tórica vista de um outro lugar? O que restou, aí, não foi o verdadeiro como consistência, como medida, mas a verdade do real, como orientação para o inconsciente real. A diferença entre o verdadeiro e a verdade do real é que o primeiro é feito de superfície, de consistência, de sentido, enquanto que a verdade do real é feita da geometria do fio: enquanto um nó mínimo, um nó de trevo, ela não tem sentido algum, mas dá sentido (orientação) quando, ao passar por cima e por baixo de si mesma três vezes e voltar ao mesmo lugar, separa furos e, com eles, gozos (isto é, faz litoral). Para deixar cair a superfície do verdadeiro e fiar-se nos furos do real, é preciso trocar de medida: substituir o verdadeiro do sentido pelo sentido do real. Daí que o verdadeiro, no final, não pode mais coincidir com o real. De volta ao caso, mais recentemente, uma sessão foi interrompida após a seguinte frase: “não sei por que nunca pude reconhecer isso, mas o fato é que eu posso ter brilho”: filho, pilho, brilho. Acerca deste significante brilho, menciono Lacan: Conhecer quer dizer saber lidar com esse sintoma, saber desembaraçá-‐lo, saber manipulá-‐lo, saber – isso tem alguma coisa que corresponde ao que o homem faz com sua imagem – é imaginar a maneira pela qual a gente se vira com esse sintoma. Trata-‐se aqui, certamente, do narcisismo secundário; o
208
narcisismo radical, o narcisismo que chamamos primário estando, nessa ocasião, excluído. Saber se virar com o seu sintoma está aí o fim da análise; é preciso reconhecer que é conciso. (LACAN, 1976-‐77, p. 8, aula de 6 de novembro de 1976).
Entendo que este brilho aparece nesta análise marcando o lugar do que Lacan (1975/2003) chamou de escabelo. Posso dizer, em resumo, que o sintoma do início, na forma do morrer de trabalhar, era um não saber que se gozava de um saber, enquanto o sintoma do fim, o fazer-se ver, é um saber gozar de um saber que não se sabe. Posso afirmar, assim, que houve uma mudança na posição desse sujeito diante do gozo.
REFERÊNCIAS LACAN, J. (1960) Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LACAN, Jacques. (1975) Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.560-‐566. LACAN, J. (1975-‐76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. LACAN, J. (1976-‐77). O Seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Edição heReSIa (para circulação interna). Inédito. LACAN, J. (1977-‐78) O Seminário 25: O momento de concluir. Tradução de Jairo Gerbase. Inédito.
209
Um Adolescente em Cena Bela Malvina Szajdenfisz1 A passagem da vida infantil à adulta é uma experiência em que a força pulsional ultrapassa a capacidade de simbolização, de historicização, de representação. A reativação do complexo edipiano coloca o adolescente frente a verdadeiras questões sobre sua identidade, seu corpo, seu lugar, provocando-‐lhe um mal-‐estar que o aproxima da psicose. Quem sou eu? O que o Outro quer de mim? O que quero pra mim? São questões com que o adolescente se vê às voltas. Sob o efeito do olhar do Outro, o adolescente precisa se apropriar de uma imagem que lhe é estranha, atravessar um segundo tempo quando se opera um deslocamento do campo pulsional e que obedece a uma lei simbólica constitutiva do sujeito do desejo. Essa travessia exige uma intensa elaboração do laço social a partir das referências simbólicas transmitidas pela cultura e representadas pelos ideais. O processo adolescente se dá com um desinvestimento nos pais de infância e com a busca de outros referenciais para a construção de um “nós”, uma identificação imaginária temporária e necessária. É a lei do Pai que sustenta o sujeito na entrada da adolescência, travessia considerada por Freud como o trabalho mais difícil para o sujeito.
1
Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela UVA/RJ e mestre em Psicologia da Educação pelo IESAE- FGV/RJ. Especialista em Psicopedagogia Clínica.pela UERJ.Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, da IF-EPFCL e da AFCL/EPFCL. E-mail:bmal.trp@terra.com.br
210
Ao se deparar com a falta do Outro, porque o Outro falta, o jovem precisa suportar o desamparo e sair em busca do que lhe falta, sustentado nas marcas vindas do campo desse Outro primordial. A inconsistência do Outro vai permitir ao adolescente deparar-‐se com sua verdade e dar voz a seu desejo, propiciando assim a efetivação do trabalho de separação e a busca de novos laços sociais. Na clínica nos deparamos com muitas questões conflituosas. Uma delas é o adolescente às voltas com o processo da separação, travessia que exige uma elaboração intensa do sujeito frente aos impasses que se colocam diante dele. A ambivalência -‐ em relação a essas referencias primordiais -‐ de duas dimensões inerentes à vida psíquica -‐ amor e ódio -‐ é não dialetizada, situação fronteiriça que transborda o psiquismo do sujeito. Carlos, o adolescente que trago à cena, é um jovem de 19 anos, alegre, comunicativo, que adora praia, namorar, brincar, ir para a cama dos pais nos finais de semana e enroscar-‐se neles. A irmã, muito diferente dele, sempre foi séria, muito distante, uma estranha, apesar de dormirem no mesmo quarto desde pequenos. Seus pais, um arquiteto e uma psicóloga, ambos funcionários públicos, dão muito valor à estabilidade no emprego. Nunca aceitaram que os filhos estudassem em Universidade privada. Considerando-‐os já encaminhados, resolvem passar seus finais de semana em pousadas próximas, esquecendo-‐se um pouco das “crianças”. Ainda cursando o Ensino Médio, Carlos, sem qualquer definição profissional, foi buscar orientação vocacional para saber qual a sua inclinação, o que pouco adiantou. Isso
211
porque respondia às perguntas de acordo com seu interesse. Queria ingressar logo em uma Universidade pública para atender ao desejo dos pais. A escolha do curso universitário deu-‐se, segundo ele, pelo amor que tinha aos professores do colégio e também regido pela lei do menor esforço. Não deu certo. Explica-‐se: “A universidade estava horrível, não suportava mais aqueles professores. Foi como uma bomba em minha vida. Abandonei tudo. Fiquei perdido. Não sei para onde quero ir! Só sei que não quero continuar a fazer o que fazia. Não sei nem o que quero. Não sou muito bom em nada. Mas sou bom em tudo”. Carlos, até então filho carinhoso, prestativo, estudioso, obediente, numa tentativa de separar-‐se das figuras parentais, surpreende-‐as com um ato para além do sujeito, algo da ordem do real. Envolve-‐se com drogas, rompe com a universidade, com a namorada e deixa seus pais impactados. Sua irmã, dois anos mais velha, está concluindo um curso superior, estagia e se prepara para tentar o mestrado. Carlos fica envergonhado perante a irmã e os amigos já estagiando, pois ele agora, ter que voltar para cursinho e tentar outra universidade, pública, naturalmente. Não sabe o que fazer: comunicação social, engenharia ambiental... “Vou fazer 20 anos, quero escolher mais as minhas coisas. Quero ter minha independência. Já pensei em ter meu próprio negócio (brincando: quem sabe até em plantar maconha?), controlar minhas coisas, mas minha mãe diz: ‘nem pensar’. Estou me sentindo no vazio.“ Carlos é um sujeito dividido que desvela um real impossível de dizer. Sentindo-‐se no
212
desamparo, sai em busca de análise. Esse jovem ocupa o lugar de quem sofre com a estrutura. A que esse sintoma está respondendo? Alberti (1996) refere-‐se ao sintoma como o elo necessário que se cria entre simbólico, real e imaginário no sujeito da neurose. Uma das razões que leva o sujeito neurótico a buscar um analista para sua queixa, na qual o Outro goza, é a falha na solidificação da metáfora paterna. Podemos, no caso, pensar numa lei simbólica frouxa? O pai de Carlos é um sujeito jovem, joga futebol nos finais de semana com os amigos e depois sai para beber. Não raro se infiltra na turma do filho. O tio materno, único irmão da mãe, inteligente igual a ele, também fez um curso técnico. Ambos foram jubilados a seu tempo. Esse tio mora atualmente em outro Estado, onde também é funcionário público, como seus pais. Ele e a mãe de Carlos tinham um negócio comercial e ele sujou o nome dela, deixando uma enorme dívida para ela pagar. Até hoje não se falam. A mãe compara-‐se o tempo todo com o filho, no que diz respeito ao estudo. Percebe divergências e contradições na fala da mãe, e comenta: “Tudo que faço sempre é pouco para ela!” Qual a relação do sujeito falante com o inconsciente e o desejo? Esta é a questão formulada por Lacan na década de 1960, para construir sua teoria dos discursos, discurso como estrutura que ultrapassa em muito a palavra, estatuto de enunciado que intervém no campo estruturado de um saber, gozo do Outro. A psicanálise opera sobre o sujeito dividido, sujeito do discurso da histeria e da ciência. Ao testemunhar o sujeito como efeito de um discurso que, na neurose, faz laço social, a experiência psicanalítica entra como efeito indireto do discurso da ciência.
213
Se nos reportarmos ao texto de Freud “Uma criança é espancada” (1919), o pai lhe deixa uma marca, gozo original que se constitui na sua singularidade e que se repete numa busca de reencontro com esse gozo original perdido. Lacan vai atrás da verdade que se esconde por trás da marca do corpo, apontando para nossa cegueira frente ao real, um real insuportável que se enuncia pelo meio dizer. Imbuído do espírito de que o inconsciente é um discurso, Lacan foi buscar em Freud os discursos que marcam nossa civilização: governar, educar e analisar. Propõe no texto “De Nossos Antecedentes” (1966) a retomada do projeto freudiano pelo avesso , uma vez que a prática psicanalítica desvela pela palavra a produção incessante de sentido pleno de gozo, satisfação pulsional a ser sustentada pelo discurso analítico. “O avesso da psicanálise” foi proferido em meio a um período de turbulência na França, nos anos 1969-1970, quando os estudantes questionavam as instituições e o poder, bem como suas bases, dentre elas, o saber. Aos discursos denominou “quadrípodes”, termo com o qual alude a essa peculiar formação de quatro lugares e quatro termos que giram em uma rotação calculada para gerar quatro discursos, respectivamente, do mestre, do universitário, da histérica e do analista. No esquema de Lacan, cada discurso tem um agente que frente a um outro caracterizam o laço social. Sustentado por uma verdade, o agente age sobre alguém para obter um produto do laço social. No discurso do mestre o agente é o senhor (S1) que age sobre o escravo (S2), fazendo-o trabalhar. O produto (a) tem um valor ao qual o escravo renuncia em favor do gozo do senhor. Esse discurso é um saber que não sabe, ou seja, é um discurso que denuncia o senhor transmutando o saber do escravo no seu próprio saber. O princípio desse discurso é acreditar-se unívoco, ou seja,
214
discurso que admite apenas uma interpretação, ao que Lacan vai contrapor no seminário 17 (p.108) em relação ao discurso analítico. Para a psicanálise o sujeito não é unívoco, pois não há como apagar a divisão subjetiva e a indicação do gozo nas relações da linguagem com o corpo. O discurso do mestre é fundador para o sujeito. O adolescente encontra esse saber, mas tenta subverter seu poder, às vezes de modo histérico. Ante aos protestos de um sistema ditatorial, Lacan, ao lançar aos jovens em Vincennes, em 1969, a forma do sujeito se relacionar no mundo, coloca-os como sujeitos do desejo de ter um mestre, situando-os no discurso da histeria, condição básica para a entrada em análise. O discurso analítico é o laço social determinado pela prática de análise. Merece ser elevado à altura dos laços mais fundamentais, dentre os quais permanece, pois é o único laço social que trata do sujeito do desejo. (Lacan, 1973). Ao entrar em análise, o sujeito supõe que o analista detém o saber sobre o seu sintoma e o inclui no sintoma. O discurso do analista é o único que coloca no lugar do Outro um sujeito que tem como agente a causa do desejo. Quando o saber é solicitado pelo analista a funcionar no lugar da verdade, histericiza o discurso. O discurso histérico que conduzirá o sujeito à verdade como saber, ao enigma do gozo, é essencial para determinar a posição do sujeito. O analista, ao ser incluído no sintoma do analisando, ocupa o lugar de objeto mais-de-gozar (a) provocando o sujeito barrado ($) a produzir seus próprios significantes (S1) que o alienam como sujeito. Na adolescência o sujeito se abre para evidências de um sistema do qual ninguém se apropria, um discurso civilizatório que pertence a uma ordem social, denunciando o gozo como privilégio do senhor. Esta verdade faz cair por terra os pais que os filhos supunham
215
infalíveis. Subvertem a ordem e saem em busca de um discurso em que possam se engajar, um discurso de autonomia. Essa é a causa do desejo de Carlos. Pensando com Alberti que é tecendo voltas e voltas em torno desse real impossível de dizer, que os nós vão se consolidando, o recalque vai se medindo e o sujeito vai podendo, enfim, exercer-se como agente, no que movimenta o laço social. Com o gozo do Outro suspenso pela presença do analista, Carlos é deslocado do lugar de objeto de gozo, de onde responde como sintoma da família. Ao deixar cair a fantasia de que o Outro é completo, Carlos vai poder fazer o giro nos discursos saindo desse lugar de gozo do Outro e passando a ocupar outras posições como sujeito do desejo. Referências ALBERTI, Sonia. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. FREUD, Sigmund. (1919). Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo da Origem das Perversões Sexuais. In Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 17. LACAN, Jacques. (1966). De Nossos Antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______________ (1969-1970) O Seminário, livro 17. O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. ______________ (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. QUINET,Antonio. (1951) Psicose e Laço Social. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. RASSIAL, Jean-Jacques. O Adolescente e o Psicanalista. Rio de Janeiro: de Freud, 1999.
216
A Relação do Sintoma com as Leis Morais Aline da Silva Gonçalves1 Introdução Segundo Freud (1926 [2001]) o sintoma é um sinal e um substituto de uma fantasia que permaneceu em estado suspenso, sendo conseqüência do processo de recalque. Não podendo realizar um determinado desejo, o sujeito o substitui por outra coisa que seja mais aceita diante da moral sexual civilizada diante da qual o sujeito se vê embaraçado. Em "O mal estar na civilização"(1929[1997]) entendemos que a proibição imposta ao sujeito está derivada de questões morais e por este motivo muito nos interessa um estudo mais aprofundado sobre a ética na psicanálise e na cultura. Veremos que há diferenças. De acordo com Lacan (1959-1960[1997], p.96), "A ética não é o simples fato de haver obrigações, um laço que encadeia, ordena e constitui a lei da sociedade", mas ela vai para além disso, que é o que pretendo discutir neste trabalho. A partir do levantamento dessas questões, iniciamos uma discussão sobre a íntima relação entre o sintoma (em especial, o sintoma na neurose) e a ética. Sintoma Freud (1916-1917[1976]) afirma que os sintomas neuróticos começaram a serem estudados por Josef Breuer (entre 1880 e 1882), quando ele atendia um caso de histeria. Ele salienta a importância de não confundirmos o sintoma com a "doença" em si, pois eliminar os sintomas não significa estar livre da "doença", mas apenas estar livre para a formação de novos sintomas. O sintoma psíquico é, em essência, um fator prejudicial à vida dos sujeitos que deles sofrem, pois causa sofrimento, prejudicando de alguma forma as suas 1
Graduanda de psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Endereço eletrônico:
aline.goncalves17@yahoo.com.br
217
vidas na medida em que não lhes permitem livre curso aos investimentos. “O sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em jacente; é uma conseqüência do processo" de recalcamento de um desejo (FREUD, 1926[1997], p.14). Não podendo realizar tal desejo, o sujeito o substitui por outra coisa que seja mais aceita em sociedade. É o deslocamento do desejo que o torna um sintoma, pois se o desejo pudesse ser realizado não haveria aquele sintoma. Em outras palavras, o sintoma surge como sustentação de uma fantasia proibida pela moral social civilizada, que dita o convívio em sociedade (FREUD, 1926[2001]). A fantasia tem uma relação de extrema importância com o surgimento dos sintomas, relação esta que se dá de forma bem complexa. O que pode ser observado no Caso Hans, retomado por Freud em seu texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926[2001]), é que Hans desloca seu impulso hostil pelo pai para o medo de cavalos. Em outras palavras, no contexto edípico do pequeno Hans, contexto que foi estruturar o desejo no ser falante, a fantasia edípica não podendo ser concretizada – por causa da proibição social do incesto –, o levou ao recalcamento do impulso hostil contra o pai, transferindo tal impulso para o medo de cavalos, uma forma de firmar um compromisso entre a proibição ética do incesto e o desejo inicial. Razão de Freud também identificar o sintoma como uma formação de compromisso. Freud (1908[1988]) De acordo com Freud (1906-1908[1997]), entendemos que o sintoma sempre se estabelece através de uma relação direta com a fantasia e em uma ligação indireta com a vida real dos sujeitos. Isso é conseqüência, aliás, do fato de que, sendo estruturado a partir da fantasia inconsciente, que é sempre de desejo, ele necessariamente tem sua origem na infância, independente de o sujeito estar na idade adulta ou não. O sintoma pode ter relação direta com experiências traumáticas, que na época em que aconteceram não ganharam a devida importância e que somente tempos depois emergiram novamente, configurando-se como trauma. Considera-se como traumático o evento que não pode ser simbolizado à época em que ocorreu e que, num a posteriori retorna sem uma possível significação por falta de simbolização. É justamente a fantasia que então procurará dar um destino a esse evento,
218
amarrando-o de alguma forma na rede das significações. Assim, podemos dizer que o sintoma necessariamente se articula com algo que foi traumático para o sujeito e, por isso, articulado a uma fantasia. Se todo sintoma se sustenta numa fantasia, então todo sintoma é também decorrente do fato de que há o não possível de simbolizar. Mas, sabemos, que isso é para todo ser falante – sempre há algo que não pode ser simbolizado – e, por isso, o sintoma em psicanálise não é somente o efeito de uma doença mas, sobretudo, um efeito necessário de sujeito. Mas retomemos os sintomas que causam sofrimento e que são aqueles sobre os quais Freud mais se debruçou em sua obra e acompanhemos o desenvolvimento teórico que ele pode construir em relação a estes, a partir de seu conceito de pulsão – ou seja, o que está na origem dos investimentos psíquicos que ficam inibidos em função do conflito que cria este sintoma. Uma pulsão, que nasce no Isso, é ativadora de um desejo que foi considerado proibido. FREUD (1926[2001]) afirma que tal pulsão não teve sua satisfação direta porque o que se buscava era o prazer e, em virtude da proibição, o prazer foi substituído por desprazer. O processo de recalque, que age como uma força contrária ao Isso, funciona como uma tentativa de fuga da realização dos desejos do Isso. O sintoma como formação de compromisso, é o resultado de uma forma de acordo entre forças em luta provenientes do Eu e do Isso. Devido a essa luta de forças, o sintoma ganha resistência uma vez que ele satisfaz aos dois lados contrários. A questão da ética De acordo com Vázquez (2005), a ética é um termo muito antigo estudado desde as origens da filosofia, desde Sócrates na antigüidade grega. Ainda hoje produzimos sobre a ética, fato que nos faz perceber que este é um tema de grande relevância ao longo de todos os tempos, sendo este um tema de grande interesse de múltiplas áreas de estudo, incluindo a psicanálise. Para Lacan (1959-1960[1997]), só é possível haver ética porque há convívio em sociedade, porém há algo na ética que vai para além disso. Iniciando-se no momento em que o sujeito põe o bem que buscava inconscientemente, na vida em sociedade. Porém o sujeito só
219
precisa se preocupar com esse bem, por que o que estabelece a lei está diretamente ligada a estrutura do desejo, que segundo Freud é a lei de proibição do incesto. Freud (apud LACAN 1959-1960 [1997], p.20-23) interessa-se pela ética de maneira original, mantendo alguns pré-supostos anteriores, mas principalmente inovando a questão do que é o bem. Em Aristóteles esse bem é supremo e por isso não deve ser contestado. Naquela época, o bem maior, ou seja, o que o homem buscava, era a felicidade identificada com um ideal moral. Freud aproxima-se do pensamento Aristotélico somente no que diz respeito à busca do homem pela felicidade, porém diferencia-se de tal pensamento na medida que conceitua a felicidade de uma forma bastante diferente, ou seja, não contém nenhuma qualidade, é o prazer decorrente do princípio do prazer, ou seja, a baixa das excitações e sua homeostase. Freud vai afirmar que para a felicidade não há nada preparado nem no macrocosmo, nem no microcosmo, essa é a grande mudança no pensamento de Freud, pois o prazer aqui comporta todos os desejos do homem, por mais bestiais que sejam. Em sua busca pela felicidade, o homem busca Das Ding, algo da experiência de satisfação que não pode ser simbolizado. O objeto é perdido. Ele nunca poderá ser encontrado por mais que possamos acreditar estar próximos dele e que poderemos vivenciá-lo novamente. O princípio do prazer vai, então, governar a busca desse objeto, porém lhe impondo rodeios que o manterão sempre à distância do seu ideal (LACAN, 19591960[1997]). A tese de Freud é que a lei moral se afirma contra o prazer, o que pode parecer um paradoxo, segundo ele. Para validar tal tese, parte de um movimento de oposição entre o princípio de realidade e o de prazer, mas ao longo de sua obra vai colocar a questão para além do princípio do prazer2. Como já foi dito, a ética só pode existir no convívio em sociedade, e Lacan considera que Freud trouxe avanços com relação ao tema, nos introduzindo a lei primordial, o 2
Ver 'Além do princípio do prazer', FREUD, (1920[1998]).
220
fundamento da moral, que é a lei da interdição do incesto, afirmando que todos os desenvolvimentos culturais são apenas conseqüências e ramificações dessa lei primordial. A relação do sintoma com as leis morais O sintoma emerge como uma forma de satisfação de um desejo que o sujeito colocou como inaceitável pelas leis morais que ele próprio internalizou, porém tal fato se dá por vias indiretas, substituindo o desejo inaceitável por outro mais aceito eticamente para ele mesmo, e por isso o sujeito não reconhece o sintoma como que fazendo parte dele mesmo, mas sim como algo que surge de fora, incomoda e deve ser retirado. É improvável que os sujeitos percebam que essa é a forma que o recalque encontra de satisfazer a pulsão, pois a satisfação vem de algo que os próprios sujeitos repudiam moralmente. Freud (1906-1908[1988]) entende por moral as normas sociais impostas aos sujeitos pela sociedade desde a infância, ele afirma ainda que o fator sexual recalcado é a base da neurose. De modo geral a nossa civilização repousa sobre a supressão de determinados desejos. Freud traz ainda uma importante observação, afirmando que aquelas pessoas que pretendem ser muito “bem-vistas” pela moral são mais atingidas pela neurose, enquanto que poderiam ser mais saudáveis se lhes fosse menos importante a própria reputação. Em "O mal estar na civilização" (1929[1997]), Freud diz que a civilização nasceu como forma de controlar a pulsão de agressividade natural ao homem. Porém o desenvolvimento da civilização lhe impõe restrições exigindo que ninguém fuja a ela, não importando o quanto a adequação custará ao sujeito. A privação da satisfação de uma pulsão não se dá impunemente, se essa perda não for economicamente recompensada resultará em uma neurose. Como já foi dito, a busca do homem é pela felicidade, que nunca é obtida em sua plenitude, mas sim em alguns momentos de satisfação. Tais momentos podem ser obtidos através da realização de desejos e até mesmo em ações repudiáveis pela sociedade, porém o homem civilizado trocou parte de suas possibilidades de felicidade por uma parcela se segurança que a vida em sociedade lhe oferece (Freud, 1929[1997]). Freud diz que a evolução da civilização "pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida" (1929[1997]p.82). De acordo com Freud, concluo que o sintoma surge como efeito necessário
221
para que o homem possa viver em sociedade. Referências Bibliográficas: FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1998, vol. VIII. FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1988, vol. IX. FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2001, vol. XX. FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, vol. XXI. FREUD, Sigmund. Teoria geral das neuroses. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVI. LACAN, Jacques. O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
222
“Sinto Que Não Tom(a)es” – Sobre a Desimplicação Subjetiva na Sociedade Contemporânea Henrique Figueiredo Carneiro1 Anne Jamille Ribeiro Sampaio2
A descoberta do inconsciente foi o grande marco inaugural da psicanálise, fato que inquietou a muitos, considerando que a partir de então o homem não era mais tão dono de si quanto acreditava ser (LACAN, 1964). Isso, pois o acesso à verdade do sujeito é alcançado pela escansão significante, considerando que a linguagem estrutura seu inconsciente. Nessa conjuntura, temos o sintoma como uma das formas de acesso às formações inconscientes, este que é atravessado pelo desejo, marca da subjetividade. (LACAN, 1957/1958) Pela via da culpa, o deciframento significante do sintoma pode ser atingido, sendo a culpabilidade, portanto, um lugar subjetivo que concede coerência às condutas do sujeito. Tal fato pode ser evidenciado através do mito fundante da sociedade, o assassinato do pai da horda primitiva. Após a morte do pai os filhos foram tomados pelo sentimento de culpa, tendo 1
Doutor pela Universidad de Comillas – Madrid (1997); profº. titular do PPG-Psicologia da UNIFOR; coordenador do LABIO; presidente da CLIO – Associação de Psicanálise; pesquisador Pq2 CNPq; secretário executivo e pesquisador da ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise; membro fundador da AUPPF; editor da Revista Mal-estar e Subjetividade e do Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On-line; autor dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm) e A Soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3235805127730480. E-mail: henrique@unifor.br 2 Estudante do 10º semestre de graduação em Psicologia da UNIFOR – Universidade de Fortaleza; membro do LABIO – Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto; integrante do PAVIC – Programa Aluno Voluntário de Iniciação Científica. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9708214291342093. Email: annejamillesampaio@hotmail.com. Relatora do trabalho.
223
introjetado a lei e criado laços sociais (FREUD, 1913). Como decorrência, tal sentimento é representante do mal-estar que ilustra o cenário de surgimento da civilização, considerando as renúncias pulsionais exigidas por esta. Derivado da internalização da lei houve a emersão do supereu, responsável pela realização dos sacrifícios em prol da vida em sociedade. No dado contexto, o sintoma é, então, fortificado pelo sentimento de culpa, como forma de punição frente a condutas transgressoras (FREUD, 1930). Tomando como base o exposto, a culpa é tida como resultado de um crime, através do qual a lei foi estabelecida. De tal circunstância deriva-se, portanto, uma lei que não é consistente, apresentando falhas, consequências que propiciam campo para criações de tentações que convocam ao gozo, à transgressão (GEREZ- AMBERTÍN, 2009). Diante de uma ação violadora da lei, comumente, a confissão é tida como a postura mais sensata a ser tomada pelo sujeito. No entanto, ao tratar-se do sujeito do inconsciente, a confissão reclama maiores minúcias. Isso, pois ao confessar sua culpa, o sujeito afasta-se da responsabilidade pelo seu desejo, este que é de origem inconsciente. (GOLDENBERG, 1994) Assim, a culpa é indício de virtuosidade, sendo a responsabilidade a resposta concedida pelo sujeito por seus atos. (GOLDENBERG, 2002). Sublinhando a circunstância anunciada, a culpabilidade, portanto, aniquila o desejo, considerando a interdição que carrega consigo. (LACAN, 1957/1958) O sujeito engana-se ao pensar que é livre para escolher, graças à inexistência de um objeto que possa satisfazer o desejo, fato que insere o sujeito em uma servidão voluntária (GOLDENBERG, 1994). Nesse contexto, o discurso capitalista advém com grande força, revestindo-se de astúcia, prega promessas que se consumam, guiadas pelo imperativo de
224
consumo (LACAN, 1972). A condição de servidão voluntária do sujeito, portanto, favorece o revestimento do capitalismo de uma face tirânica que por meio de um despotismo conduz à devastação dos sujeitos, estes que estão envoltos por uma fascinação sacrificial desmedida (GEREZ-AMBERTÍN, 2009). Os sujeitos contemporâneos, como efeito, estão filiados a um novo pai que os afoga em um horror gozador, propiciando uma dessubjetivação. Isso, pois o discurso capitalista impera desconsiderando a castração, estando o sujeito atravessado por uma sede indomável pelo gozo. (GEREZ-AMBERTÍN, 2009). Decerto, a presente época, conduz seus sujeitos à imunidade quanto à culpa, resultando em uma crescente vulnerabilidade às múltiplas manifestações do trauma, estimulada pela dessimbolização que atravessa os laços sociais. Em acréscimo aos prejuízos trazidos pela suspensão simbólica há uma diminuição da capacidade de julgar, fato que produz sujeitos acríticos, formados pelo vazio, abertos a qualquer um que queira preenchê-lo. Por conseguinte, da vivaz atuação do capitalismo provêm sintomas ausentes de signos, sendo os objetos produzidos promovidos a representantes de referências balizadoras das condutas dos sujeitos (DUFOUR, 2005). A divulgada circunstância é nutrida por uma ética do malandro. Nesta, o sujeito define-se como livre, agindo conforme sua vontade, buscando formas benéficas para si que consigam contornar a lei. A predita condição ganha campo de expressão no contexto do modo de produção capitalista, este que é atravessado pelo excedente, convocando os sujeitos a um gozo excessivo. O discurso capitalista tem como meta, então, a produção de demanda, com o propósito de gerar vontade de consumo diante dos objetos que fabrica. O sucesso de tais
225
objetivos pode ser comprovado na elevação do consumidor à categoria de adicto dos artefatos tecnológicos, estando o inconsciente reduzido a uma mera curiosidade histórica (GOLDENBERG, 2002). Corroborando com o exposto, a sociedade contemporânea vivencia uma verdadeira paixão pelo gozo, refletida no imperativo de consumo, observado na vivaz elaboração de signos estereotipados que objetivam domesticar o sujeito, submetendo suas escolhas ao discurso capitalista. Para tal, as demandas criadas pelo mercado estão inserindo os objetos de consumo na rede de associações significantes, fato que os torna desejáveis. Como resultado, os laços sociais estão sendo substituídos por relações de dependência dos sujeitos quanto aos objetos de consumo. (FERREIRA, 2001) Incluindo na discussão a presente formatação dos sintomas contemporâneos, podemos observar que vigora uma autêntica insatisfação dos sujeitos com seus, estando estes a falharem na regulação e distribuição do gozo. Embora alguns sujeitos sejam adeptos de um discurso referente a uma libertação sintomática, por vezes, no entanto, ocultam a satisfação que obtêm, considerando o sintoma atravessado por justificativas encobridoras do mal-estar que o origina (DUNKER, 2002). Nessa conjuntura é de grande valia ressaltar o elemento máscara que envolve o sintoma, traduzido sob a forma ambígua que se apresenta o desejo, fato que denuncia a diversidade de insatisfações que perpassam este último (LACAN, 1957/1958) Em vias de concluir, nos remetemos, como outrora, à servidão voluntária e inconsciente que contempla a sobrevivência do sujeito moderno, o qual se encontra abandonado, órfão do Outro que o forma, questão que resulta em uma busca bastante plural
226
por maneiras que possam remediar esta falta. No entanto, durante a dada procura, os sujeitos tornam-se alvos do mercado, sucumbindo à sedução trazida pelas imagens representativas dos objetos de consumo (DUFOUR, 2005). Tal questão concede corpo à problemática na esfera dos laços sociais referente ao império do “eu” em detrimento da preocupação com o próximo. Tomando por empréstimo um trecho da poesia de Baudelaire (2007), intitulada A Tampa, temos em mãos um recorte ilustrativo da época presente, a saber, “O Céu! A tampa negra da grande marmita/ Em que invisível ferve a vasta humanidade” (p. 158). Face à impossibilidade de gozar de todas as ofertas do capitalismo, o homem contemporâneo está produzindo novos sintomas. Como resultado, os sujeitos enveredam em uma contínua tentativa de obliterar a marca imposta pela castração, fato que concede malogros para o laço social, considerando o narcisismo que perpassa a vigente sociedade. Como conseqüência, o homem contemporâneo é atravessado por uma desimplicação subjetiva, estando inserido em uma fervilhante grande marmita, fato que representa a intolerância que contempla sua relação com o próximo. Em acréscimo, temos a redução do céu a uma mera tampa, analogia que nos remete à vigente queda de referenciais consistentes. Assim, resta-nos, decerto, proclamar “Sinto que não tom(a)es”, como indicação da atuante invisibilidade que atravessa os sintomas (note o “sintoma” que pode ser localizado na frase) do homem de nossa época, considerando seu encarceramento em uma lógica de gozo que apaga o desejo, sua condição subjetiva, desconsiderando a residência original do sintoma, o inconsciente, logo, ocasionando a presente desimplicação subjetiva na sociedade contemporânea. Referências Bibliográficas BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Coleção a obra-prima de cada autor, São Paulo: Martin Claret, 2007.
227
DUFOUR, D.-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. DUNKER, C. I. L. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002. FERREIRA, N. P. A culpa na subjetividade de nossa época. In: Peres, Urânia T. (Org.). Culpa. São Paulo: Escuta, 2001. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas, ESB, v. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996. ________. Totem e Tabu (1913). Obras completas, ESB, v. XIII, Rio de Janeiro: Imago, 1996. GEREZ-AMBERTÍN, M. Entre dívidas e culpas: sacrifícios – crítica da razão sacrificial. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009. GOLDENBERG, R. D. No Círculo Cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? 1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. ___________________. Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Álgama, 1994. LACAN, J. O Seminário – Livro 5 – As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. ________. O Seminário – Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. ________. Do discurso do psicanalista. Conferência em 12 de maio de 1972 na Universita degli Studio, Milão, inédita. ________. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
228
A Função do Analista e a Política da Psicanálise na Política Pública de Saúde Mental Francisca Mariana Abreu Senra1 Da imbricação entre clínica e política gostaríamos de destacar dois vieses. De um lado, temos a relação moebiana, - como diz Lacan do dentro e fora em junção e disjunção simultâneas – que tentamos cernir entre uma e outra. Uma relação que faz atravessar a política da psicanálise, política da falta-a-ser, na direção mesma da clínica psicanalítica. Por outro lado, temos apontamentos sobre a inserção da psicanálise, tanto na clínica quanto na política pública de saúde mental. De que forma a política da psicanálise pode se fazer norteadora no exercício de uma função pública de gestão da clínica da saúde mental? Paralelamente a essa questão nos move a tentativa de responder a uma outra: é possível governar eticamente, segundo a ética da psicanálise? Partimos tanto de nossa prática clínica na saúde mental e no consultório, com casos graves de submissão ao Outro, como o são psicoses e neuroses graves, quanto de nossa experiência atual na gestão pública da política de saúde mental de nosso município, o Rio de Janeiro. Tomamos como ponto de referência a difícil tentativa de construção de uma política de desinstitucionalização – como chamamos as concepções e práticas necessárias à oferta de trabalho psíquico para pessoas longamente internadas em instituições asilares. 1
psicanalista, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ/Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Assessora da Área Técnica de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro. Instituição: Laço Analítico Escola de Psicanálise. Email: mariana0307@hotmail.com
229
Comecemos pensando qual é a visada da clínica. Sabe-se, com a leitura que de Aristóteles faz Lacan no Seminário 7, que há um impossível na distribuição do bem ao outro. Ainda no Seminário 8, Lacan dirá: Não se deve de nenhuma maneira, nem preconcebida, nem permanente, colocar como primeiro termo do fim de sua ação o bem, pretenso ou não, de seu paciente, mas precisamente o seu Eros (LACAN, 1992a, p. 17). Lembrança esta que nos recoloca na trilha das possibilidades de enlaçamento que o próprio sujeito será capaz de tecer. Essa mesma leitura será mantida no Seminário 17. Se, ao clinicarmos, seja onde seja, não é ao bem do outro que se deve visar, ao que é?! Freud nos fala dos três ofícios impossíveis, Regieren, Erziehen, Kurieren, para vir a este último substituir por Analysieren. Lacan fará uma leitura precisa de Freud nesse ponto, nesse último Seminário citado, nos esclarecendo que o impossível é o ser do psicanalista (LACAN, 1992b, p.188-189) , não sua função, donde podemos depreender que Freud refere-se assim, a partir do que seja impossível, às condições de possibilidade dessa função. Sendo essas condições possibilitadas pelo amor de transferência, ao qual Lacan se dedica em todo Seminário 8, chega-se com elas ao dispositivo clínico, que permite ao sujeito apostar na direção de reconstruir laços nefastos para sua existência e construir outros tantos que lhe garantam uma existência menos sofrida, mais saudável, através de uma amarração dos registros realsimbólico-imaginário que lhe assegure um lugar. Lugar este estabelecido sempre através do laço, que implica a ex-sistência do sinthoma, como diz Lacan no Seminário 23: “Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sinthoma” (LACAN, 2007, p.21). O que entendemos como a dependência do reconhecimento
230
do sinthoma, da singularidade, para que a clínica guarde seu lugar ético. Dando um passo em relação ao governar, isto é, a exercer uma função política de gestão, de coordenação de uma determinada práxis dentro do campo da saúde mental pública, podemos em linha direta afirmar que se visa então o mesmo, a oferta de possibilidades de construção de laço para o sujeito, de uma amarração, desse lugar, para todos, como comumente se espera da política? Lacan, ao se referir, no Seminário 23, ao significante que define o sujeito, o chamado S1, que representa “um sujeito como tal”, que sua função é “representá-lo verdadeiramente”, impingindo ao verdadeiramente o valor de “conforme à realidade”: “O verdadeiro é dizer conforme à realidade”, reitera, com o que lembramos que “a relação analítica está fundada no amor à verdade, (...), o que quer dizer – no reconhecimentos das realidades”, como disse poucos anos antes no Seminário 17 (LACAN, 1992b, p.128). Temos, é sabido, uma herança histórico-metodológica respaldada em teorias anteriormente aceitáveis, de isolamento da loucura, que já não o são mais. Encontramo-nos, nesse ponto, com a realidade. Vamos a ela: há em nosso país um sistema de saúde que abarca, para além do já mencionado equívoco histórico em relação ao tratamento dos loucos, uma insuficiência generalizada que foge completamente aos limites do aceitável. Não há vagas para todos, não há... remédio para todos, não há... tratamento digno para todos, não há... Concluamos que há então uma realidade que faz do sistema um sistema perverso, na medida em que o que se transmite na política não raras vezes é que há. Retomando a pergunta anteriormente colocada, sobre qual deve ser o planejamento para todos, se deve ser mantida sempre, nunca foracluída, deve no entanto ter um lugar bem
231
preciso: um lugar lógico de direção, de horizonte, de ideal, podemos pensar. Lógico por ter de realizar-se sempre, não só em cada encaminhamento, mas realizar-se efetivamente como fato quando as condições o permitem. O que isso implica? Que o para todos seja pautado no para um, este nunca subsumível no primeiro. É assim que, no caso a caso, construímos uma boa política para todos. Pensemos então que há dois “para todos”, um contingencial, onde se guarda o furo, e outro ideal, onde o furo é mascarado. É o que Lacan, no Seminário do Sinthoma, chama de “furinho”: “A hipótese do inconsciente tem seu suporte justamente na medida em que esse furinho possa, por si só, fornecer uma ajuda” (LACAN, 2007, p. 131), referindo-se à interseção entre real e imaginário que comprova a inexistência do Outro do Outro e portanto ao lugar onde o sujeito pode advir. É “furando” o citado empuxo à esfera, à totalidade, que podemos criar as condições de possibilidade de advento de uma boa práxis, tanto clínica quanto política. Deparamo-nos no cenário atualíssimo desse Encontro com o mandado de um juiz federal que intima, como resultado final de uma Ação Civil Pública, União, Estado e municípios responsáveis a retirar os pacientes de uma instituição sob intervenção, instituição que foi outrora o maior hospício da América Latina e que guarda ainda hoje inenarrável iatrogenia na internação infindável de centenas de pacientes. Que fazer diante de mais essa demanda de uma resposta “total”? Essa pergunta não nos retira a afinação com a Justiça, - a qual tomamos como terceiro da Lei –
mas, justamente, devolve à gestão pública a
responsabilidade pelo cumprimento de um compromisso que, se na realidade atual é impossível de ser efetivado, coloca-nos a injunção de mudar a realidade. Isso guardando a direção do um a um, na medida dessa mesma dita realidade – não sejamos ingênuos: a
232
política, outro daquele que, frágil, vive à sua mercê, quer algum bem para o sujeito. Lembrome nesse ponto do caso de uma paciente internada há décadas no Manicômio citado acima. Ao iniciarmos o trabalho de atendimento à sua família, especialmente à sua mãe, que não a levava em casa há 11 anos, trabalho que incluía notícias dadas a ela desse mesmo atendimento, arriscou um apelo que poderia lhe custar a vida: passou a comer somente enquanto a mãe, que sempre lhe enchia de comida durante as visitas, estivesse com ela. Foi internada na Unidade Clínica da mesma instituição e, entre a vida e a morte, sua mãe nos disse: “vou levar ela para casa, senão fizer isso, ela vai morrer”. O que me faz lembrar uma bonita passagem do Seminário 8, em que Lacan nos fala dessa ambigüidade da espécie humana em ir em direção ao gozo que traz a morte e ao mesmo tempo tenta evitá-la em direção à perpetuação: o homem aspira a aniquilar-se para se inscrever nos termos do ser. A contradição oculta, o detalhe a se compreender é que o homem aspira a destruir-se na própria medida em que se eterniza (LACAN, 1992a, p.103). No lugar da castração não reconhecida – que aconteceria, por exemplo, se quiséssemos retirar da citada instituição tais pacientes a qualquer custo, fora do caso a caso – impingiríamos um suposto bem ao outro gozando do ultrapassamento do limite imposto exatamente pela castração, ao guiarmo-nos pelo cumprimento de um ideal. Essa paciente nos recoloca no que inspira a verdade, que, nos ensina a psicanálise, é a morte, não o amor – morte que traz a separação entre gozo e corpo que então se mortifica pelo significante que dá lugar ao sujeito (LACAN, 1992b, p. 160).
Se a tivéssemos tentado retirar da referida
instituição sem suportar esse tempo que oscila na corda bamba da clínica, teríamos quiçá impedido essa reconstrução possível de laço que foi feita. Diz Lacan: “a intrusão na política
233
só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade” (ibidem, p.74). Que ao menos o gozo seja interditado a elidir o lugar de sujeito do outro, e o de objeto ao qual nos submetemos ocupando o lugar de semblante de causa de seu desejo. Assim, o homem, diz Aristóteles, “é naturalmente feito para a sociedade política”, o que nos faz pensar que é mesmo dessa relação com o outro que ele padece em seus transtornos. Pensamos então que a ação política da governança de um campo clínico que se concebe a partir do “um” a “um”, incluindo inexoravelmente o coletivo, faz-se a partir da castração – e, fundamental, cria as condições de possibilidade que o sujeito inventa em torno do impossível. Podemos ler em Platão, na República, a castração advinda da função política, presente igualmente na função clínica, nas quais não se “visa ou ordena o que é vantajoso a si mesmo, mas o que é vantajoso aos seus governados”. A que isso nos leva, senão à castração inerente não somente a toda prática, mas a toda existência? A clínica psicanalítica e a política, num exercício de práxis no campo da saúde mental, trazem-nos as relações do singular no coletivo, do “sujeito” em sua política e da política para os “sujeitos”. Referências Bibliográficas LACAN, J. – O Seminário livro 8 – A transferência ([1960-1961] 1991). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992a. _________ . – O Seminário livro 17 – O Avesso da Psicanálise ([1969-1970] 1991). Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992b. _________. – O Seminário livro 23 – O Sinthoma ([1975-1976] 2005). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
234
Os Impasses da Transmissão da Psicanálise e da Transmissão em Psicanálise Michaella Carla Laurindo1 Miriam Izolina Padoin Dalla Rosa2 O presente trabalho pretende abordar os impasses e questionamentos advindos da transmissão da psicanálise e da transmissão em psicanálise. Compreende-se por “transmissão da psicanálise” o ensino realizado na universidade, e que de acordo com Lacan, coloca como agente o ‘saber’ e tem um viés educativo. Nota-se que no Discurso Universitário – assim como no discurso do Mestre, o sujeito do inconsciente fica recalcado, não podendo então ser colocado em questão. Já a “transmissão em psicanálise” é emanada da experiência de análise, que se transmite de um por um, seu efeito de re-significação faz com que o analisante não necessite de outras evidências para comprovar sua eficácia, sua certeza é subjetiva. Dessa forma, as autoras desse artigo (analistas, analisantes e docentes da psicanálise) formulam e estão concernidas pela questão: que desejo é esse de transmitir e ensinar àquele que não está em análise? Quais os efeitos de uma psicanálise apenas teórica e qual seria seu 1 Psicanalista. Especialista em Psicanálise pela Universidade de Marília. Mestre em Filosofia pela PUC/PR.
Docente do Curso de Pós-‐Graduação em Psicanálise Clínica, UNIPAR/Cascavel. Docente e Orientadora de Estágio na abordagem psicanalítica do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica – Toledo/ PR. Contato: michaella.laurindo@pucpr.br 2 Psicanalista. Especialista em Psicanálise Clínica e Cultura. Mestre em Educação. Docente e Orientadora de Estágio na abordagem psicanalítica no Curso de Psicologia na Universidade Paranaense - UNIPAR - Cascavel – PR. Docente nos Cursos de Graduação na Universidade Paranaense –UNIPAR - Toledo/PR. Contato: dallarosa@unipar.br. Agradecimentos à Fundação Araucária, Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETIPR) e ao Governo do Estado do Paraná, pelo apoio financeiro recebido para viabilizar esta participação.
235
alcance? O objetivo desse escrito é abordar a ética em relação ao laço social universitário e ao mesmo tempo conjecturar sobre a transmissão da psicanálise como uma formação sintomática. É notório que o laço entre o sujeito e o outro se dá pela via do sintoma, seria a ligação estabelecida entre docente e discente, também um laço social sintomático? E, se o sintoma é entendido como um método para satisfazer a libido, o que mantém este laço é o gozo obtido nessa relação. Ou seja, o docente pode passar a ocupar o lugar daquele que detém o saber ao ensinar, e o discente passa a ocupar o lugar daquele que serve como objeto, aprende e identifica-se com aquele que ensina, mas que nada quer saber de si neste processo. Assim, o engodo do gozo está instalado nesta relação. Essa posição do “psicanalista-educador” não delataria sua necessidade de complemento? Não seria o dilema da relação puramente especular, ou seja, frente a possibilidade de saber sobre o A barrado, oferecer-se como o que completa? É nesse sentido que interrogamos o desejo de ensinar, pois Lacan aponta a inexistência de um Outro absoluto, consistente. A partir disso, podemos citar Freud, que analisou os próprios sonhos e adotou essa verdade subjetiva como base para a transmissão. Tomou a psicanálise em intensão como causa para a psicanálise em extensão. É possível conjecturar que aquele que se aventura em busca da prática analítica tem prova em si próprio das manifestações do inconsciente, as sente como verdade. Senão como poderia apostar que há um Sujeito no outro?
236
É preciso neste ponto considerar a questão da transferência que se estabelece com os discentes, assim como a transferência à Freud. Do contrário, a relação constitui-se como sintomática, onde o desejo não conta. Então, muito mais do que o “psicanalista-educador” ensina, o que importa é o que ele deseja saber e como está concernido no saber psicanalítico que se propõe transmitir. A relação com os discentes é feita do mesmo “barro” que a relação transferencial com os pacientes. Quanto a isso Freud (1914, p.185) dá a seguinte recomendação: O caminho que o analista deve seguir (...) é um caminho para o qual não existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua consciência e, portanto, para debaixo de seu controle.
A transmissão em psicanálise difere-se justamente no ponto em que é possível pensála como um processo não natural. Dessa forma, o que impera na prática da transmissão da psicanálise na universidade é uma rigidez dos ideais, na forma de que ‘todos tem que aprender’, no estilo da tirania infantil presente na transmissão sintomática, onde parece não haver lugar para o inconsciente. Nas universidades o ato de ensinar objetiva a compreensão, que é própria da aprendizagem, então, fazer compreender bem a ciência que se estuda é a tarefa do docente encarregado da função de ensinar. Entretanto, aquele que transmite em psicanálise na
237
universidade ou em qualquer outro espaço de transmissão precisa estar atento ao que Lacan (1994, p.90) aponta: (...) uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo nenhum a mesma coisa. É exatamente o contrário. Eu diria que é na base de uma recusa de compreensão que empurramos a porta da compreensão analítica.
O autor discute a transmissão da psicanálise na sua obra “Meu ensino” e interroga já nas primeiras páginas, “Será a psicanálise pura e simplesmente uma terapêutica, um medicamento, um emplastro, um pó de pirlimpimpim, tudo que cura?” (LACAN, 2006, p.20). E, responde que não é absolutamente isso. Também interroga se a verdade psicanalítica é a da vida sexual. Quanto a isso ele afirma “a sexualidade é todo o tipo de coisa, os diários, os vestuários, a forma como nos comportamos, a forma como os meninos e as meninas fazem isso, um belo dia, ao ar livre, no mercado” (p.26). Do que trata a psicanálise então? Trata do sujeito, que é um conceito muito mais amplo, mas que também diz do sexual. Esse ponto trata da ética na transmissão, pois o que pode prometer a psicanálise aos discentes ávidos por um diploma? Podemos nos perguntar se o ideal de um fim de tratamento psicanalítico é que um cavalheiro ganhe um pouco mais de dinheiro do que antes e que, na ordem de sua vida sexual, acrescente, à de sua companheira conjugal, a de sua secretária. É o que em geral é considerado um excelente desfecho, quando um indivíduo via-se atrapalhado naquele momento com este assunto,seja simplesmente porque tivesse uma vida infernal, seja porque tenha padecido de algumas dessas pequenas inibições que podem acometer a qualquer um em diversos níveis, escritório, trabalho e, até mesmo, na cama, por que não? (LACAN, 2006, p.29)
Ele prossegue nos orientando quanto ao que devemos vislumbrar ao transmitir na universidade: “O fim do meu ensino, pois bem, seria fazer psicanalistas à altura desta função
238
que se chama “sujeito”, porque se verifica que só a partir deste ponto de vista se enxerga bem aquilo de que se trata na psicanálise” (LACAN, 2006, p.53). Assim, os universitários precisarão percorrer o longo caminho da análise, pois assim, e somente assim, cada um poderá saber o que é isso que se define como sujeito. Portanto, aquele que transmite deve saber que nessa “introdução” o que fazemos é oferecer um arcabouço teórico que precisa se transformar em uma práxis, pois o conceito de sujeito se apreende pela análise e não apenas pela teoria. Como diz Lacan no “Congresso Dito de Psicanalistas de Língua Romântica”, em 1951, devemos “domesticar as orelhas para o termo sujeito” (LACAN, 1996, p.87), porém, isso não basta. São muitos os impasses sobre a transmissão. Entretanto, Lacan não titubeia diante eles, simplesmente diz: “não creio que haja muitos dentre vocês que tenham acompanhado o que eu ensino (...) suponho pelo menos que as pessoas fingem ler esses Escritos, os quais, tomados pela outra ponta, podem se permitir se considerados ilegíveis” (2006 p.70-72). Nesse segundo trecho ele está se dirigindo aos críticos de sua obra, porém, se refere também a dificuldade de ler o que escreve já que ele não está interessado em ditar as regras de um determinado fazer, e sim em deixar claro que para o fazer em psicanálise é imprescindível um savoir-faire, que só se adquire subjetivamente. É pela análise que produz um sujeito. Ou seja, é necessário um esforço a mais para “compreender” o que ele escreve. Os impasses da transmissão estão na própria ‘natureza’ da linguagem. Ele diz: “Não me iludo, um auditório, por mais qualificado que seja, sonha enquanto estou aqui em vias de esgrimir comigo mesmo. Cada um pensa nas suas coisas, na namoradinha que vão encontrar
239
daqui a pouco, no carro que soltou uma biela, alguma coisa fora do trilho” (2006, p.88). Está apontando para a questão do desejo de quem se propõe praticar a psicanálise, e que está presente no ato e na posição do docente e do discente. Esses questionamentos sobre o desejo daquele que transmite possibilitam submeter a experiência à crítica interna e externa. Pôr em contestação os rumos do ensino na universidade é fundamental e a psicanálise não pode se isolar do debate científico contemporâneo, nem tratar seus conceitos teóricos como dogmas indiscutíveis. Para encerrar, nos concerne a questão proposta por Lacan (2005, p.26): "o que é ensinar, quando se trata justamente de ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não sabe, mas a quem não pode saber?" Referências: FORBES, J. A escola de Lacan: A formação do Psicanalista e a transmissão da Psicanálise. São Paulo: Papirus, 1992. FREUD, Sigmund (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição Standart Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XII. JACQUES, Lacan. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996. _________. Seminário I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _________. Seminário X. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. _________. Meu Ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
240
Aspectos da Relação entre Sintoma e Análise Rodney Soares1
Temos na psicanálise uma práxis cuja ética do inconsciente possibilita ao sujeito estabelecer uma relação junto a seu desejo e ter acesso a uma verdade, que é bastante particular para cada um, posto que essa mesma verdade se esconde no enigma do sintoma, cujo bojo carrega uma metáfora, submetida às leis da linguagem. O sintoma é o representante do sujeito do desejo, contém um gozo em sua fantasia inconsciente, que o sustenta e o define sempre com um significado sexual. O sintoma, na medida em que opera o desejo inconsciente, equivale ao enigma da diferença dos sexos, derivando da posição do sujeito frente ao sexual, sendo “expressão de uma fantasia sexual inconsciente masculina, por um lado e feminina, por outro” (CONSENTINO, 1996, p.18), ou seja, o significado bissexual dos sintomas histéricos. Lacan nos ensina que o sintoma significa “o retorno como tal da verdade na falha do saber” (apud PIMENTEL, 2010, p.1) verdade que o sujeito de início nada quer saber, por isso compreende-se que o sintoma apenas por si é insuficiente à demanda para uma análise, mas sim quando o mesmo falha e o sujeito se percebe diante de um desamparo e de sua ignorância, não havendo nada mais a fazer a não ser procurar respostas a esse enigma. Nesse momento, o 1 Membro da EPFCL - Brasil. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – Fortaleza.rodneysoares01@gmail.com
241
sintoma é capturado pela transferência e, portanto, o sujeito pode confrontar-se com a sua verdade, fazendo uma troca do gozo pelo saber, numa articulação entre o saber e verdade, na medida mesmo que o sintoma já analítico, através da transferência, se direciona ao sujeito suposto saber, de quem espera significações – A castração produz uma perda de gozo. Assim, “No discurso da psicanálise, o analista, na posição de objeto, convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre sua verdade” (FONTENELE, 2002, p.12). Lacan, no Seminário XIV se refere ao sintoma como representante de uma estrutura: “O sintoma representa uma estrutura, é o ponto assombroso que nos indica Freud em estruturas diferentes” (apud CONDE, 2008, p.64) dessa maneira, por revelar a forma de satisfação do sujeito, o sintoma pode expor a estrutura de sua subjetividade, a forma pela qual o sujeito se enlaça. A técnica da psicanálise, que consiste na associação livre, solicita que o analisante fale o que lhe vier a mente, suspendendo o recalcamento, produzindo o que Freud chamou de derivados do recalcado. Dito isso, o sujeito tem a possibilidade de romper a censura e acessar o material inconsciente. A associação livre possibilita um afrouxamento da censura, permitindo que conteúdos remotos inconscientes alcancem a consciência, sendo direcionados ao analista, atribuindo-se o lugar de sujeito suposto saber. Destacando-se a importância do silencio do analista, cuja abstinência favorecerá o surgimento do desejo do analisante, que então poderá se manifestar. Quando se procura uma análise, inicialmente, espera-se respostas, quando de fato o que se encontra são perguntas capazes de remeter o sujeito a um outro encontro, desta feita
242
com algo inesperado, o real. Sabemos que o horror do ato analítico é dessa ordem e que de forma lógica, produz efeitos “vem no lugar de um dizer pelo qual muda o sujeito” (LACAN, J. Ornicar, n 24) Para o analista, é possível trabalhar o sintoma porque não é tudo que é puro real, mas efeito do simbólico sobre este, refletido no imaginário. Aqui está o ponto em que o sintoma permite uma intervenção simbólica pelo analista, pois o tratamento do sintoma se efetiva em outro nível, já que é no âmbito do significante que pode ocorrer qualquer possibilidade de reformulação do fantasma que o sustenta. “O sintoma está sempre fundado na existência do significante como tal” (LACAN, 1988). Considerando que ao adquirir um valor simbólico ele passa a ter uma possibilidade de se modificar, o sujeito fala muitas vezes de um mesmo assunto, até que chega o momento em que sacrifica uma parte do gozo, utilizando-se do significante para colocar uma barreira à esse gozo, sempre da ordem do excesso. O sintoma, enquanto portador de um enigma, que contém a verdade do sujeito, está submetido às leis da linguagem, justamente por ser metafórico e com isso, possibilita uma perda de gozo e conseqüentemente, uma diminuição do sofrimento. Importante ressaltar, no entanto, que há no sintoma uma característica de comunicação de algo, portador de uma mensagem. Tal tentativa pode chamar a atenção do sujeito ou mesmo, incomodá-lo a ponto dele procurar uma análise. A partir desse evento, o sintoma se constitui pois o sujeito ao pensá-lo, refere-se ao campo da linguagem, lugar de constituição do mesmo e via de acesso ao tratamento psicanalítico pois o inconsciente estrutura-se como uma linguagem.
243
Em seu seminário I, trilhando os caminhos de Freud, Lacan direciona-nos para a “forma desviada de satisfação sexual” que indica o sintoma neurótico. O gozo, é sempre o do sintoma, e é aqui que surge o desejo, que se mostra para fazer algo contra esse gozo, negação da castração e sempre mais-de-gozar, capaz de produzir um incômodo no sujeito ao romper o regime do princípio do prazer e para que esse mal estar seja percebido, é necessário que o sujeito tenha o registro da lei em operação. Para concluir, ressaltamos que é através da verdade do sujeito que a psicanálise irá operar, pois a possibilidade de acesso a essa verdade está intimamente referida ao desejo do analista, desejo de saber e onde a escuta viabilizará uma disseminação daquilo que outrora se constituiu como excesso. Onde existe linguagem, inexiste gozo e onde há gozo, falta linguagem porquê a linguagem produz perda de gozo. A psicanálise é, portanto, uma experiência discursiva, na relação entre falantes, cuja melhora é uma conseqüência e nunca um objetivo. Referências Bibliográficas CONDE, H. Sintoma em Lacan. São Paulo: Escuta, 2008. CONSENTINO, J. C. A concepção do sintoma em diferentes momentos da obra freudiana. In Revista da Letra Freudiana. Do sintoma ao Sinthoma, nº 17/18. Rio de Janeiro: Revinter, 1996. CORREA, I. A escrita do sintoma. Recife: Centro de Estudos Freudianos, 3ª Ed., 1997. FREUD, S. Mal-estar na civilização, Obras Psicológicas Completas, Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. FONTELENE, L. A Interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In J. Lacan, Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
244
_________ Ornicar? n 24. _________(1953-54) O seminário. Livro I. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. _________(1955-56) O seminário. Livro III. As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. _________.(1956-57). O seminário. Livro IV. A relação de Objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. __________(1962). O seminário. Livro IX. A identificação. __________(1966-67). O seminário. Livro XIV. A lógica do fantasma. PIMENTEL, D. Transferência e ética: direção da cura. Aracajú, 2010. Disponível em: http://www.cbp.org.br Acesso em: 14.Set.10
245
Psicoses Ordinárias e Atos Violentos Henrique Figuereido Carneiro1 Ricardo Pinheiro Maia Júnior2
Na vida em sociedade, o Homem sempre presenciou situações violentas. Até mesmo sua constituição enquanto sujeito está carregada de agressividade e violência. Entretanto, nos últimos tempos, encontramos a violência vazia de significado, um esvaziamento simbólico do ato violento. A violência voltada para o próprio corpo do sujeito através dos distúrbios alimentares e dos efeitos da drogadicção e, também, a violência direcionada aos outros. Seriam resultados de uma deflação da capacidade de significação do sujeito, enfraquecimento do universo simbólico? Uma queda no Real? Acting-out ou passagens ao ato? Em muitos casos de violência é comum encontrarmos um funcionamento psíquico próprio de uma organização psicótica; mas, diferentemente das psicoses clássicas, não observa-se manifestações sintomáticas características como delírios ou alucinações. É nesse ponto que autores de orientação lacaniana levantam o conceito de psicose ordinária, pois esta se diferencia em várias questões da dita psicose clássica. Então, temos como 1 Doutor pela Universidad de Comillas – Madrid (1997) e prof. titular do PPG-Psicologia da UNIFOR. Coordenador do
LABIO e presidente da CLIO – Associação de Psicanálise. Pesquisador Pq2 CNPq. Secretário Executivo e Pesquisador da ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise. Membro fundador da AUPPF. Editor da Revista Mal-estar e Subjetividade e do Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On-line. Autor dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm) e A Soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). (Lattes: http://lattes.cnpq.br/3235805127730480) e-mail: henrique@unifor.br 2 Graduando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, curso iniciado em 2006. Bolsista de Iniciação Científica do
CNPq. Orientando do Prof. Henrique Figueiredo Carneiro. Tema de Pesquisa Violência. Área Estudos Psicanlíticos. Membro do LABIO - Laboratório sobre as novas formas de Inscrição de Objeto. (Lattes: http://lattes.cnpq.br/9193897293259480 ) email: ricardopmaia@gmail.com
246
objetivo desse trabalho relacionar o conceito de psicoses ordinárias, caracterizando-o, com as questões violentas da sociedade contemporânea, vistas como um clamor do sujeito por uma ancoragem simbólica. A psicose apresentada por Freud e as contribuições de Lacan A partir das considerações acerca da vida de Daniel Schreber, Freud (1969) lança o olhar sobre as psicoses e as estratégias que os psicóticos apresentam como mecanismos de cura. Sendo o delírio como uma das principais tentativas dessa cura ou de estabilização. Até então, a visão da clínica terapêutica das psicoses estava estagnada na posição do psicótico em termos de deficitário ou como incapaz de formular associações. Freud (ibid) toma a paranóia apresentada por Schreber como um modo patológico de defesa inconsciente. Aquilo encarado como traumático pelo psicótico não é possível de uma representação e dessa forma, esse fragmento insuportável da realidade é rejeitado e substituído pelo delírio. A saída para o impasse diante da castração está no delírio na psicose, assim como a fantasia na neurose. No entanto, Freud não avança muito na teorização sobre as psicoses, mas direciona o caminho que Lacan seguiu com a noção de que onde antes era localizada a patologia, o delírio em si, ali reside a possível cura. Lacan (1988), por sua vez, funda o mecanismo da psicose na não inscrição de um significante primordial e isso gera consequências nas funções simbólicas e suas operações posteriores. É a foraclusão do Nome-do-Pai, essa não inscrição irá colocar o sujeito numa
247
posição psicótica. Essa significação essencial ausente não permite ao sujeito nomear-se e quando convocado sobre o seu ser, ocorre o desencadeamento psicótico. Lacan (1998) afirma que essa condição fundante, quando não inscrita, faz com que o sujeito coincida com a imagem de si e que o Outro esteja no mesmo nível dos objetos com quais o sujeito se relaciona. A ausência do Nome-do-Pai (Pº) e a não operação no campo da castração (Φº) provocam uma redução do sujeito ao seu organismo e sua imagem, uma aproximação entre os campos imaginário e simbólico. E aquilo que não se inscreve simbolicamente, retorna como alucinação no campo do real. Lacan aponta que identificações imaginárias e a própria transferência podem favorecer a uma estabilização daquilo que foi desencadeado na psicose. Mas, qual a saída para quando depara-se na clínica atual com diagnósticos confusos e dificuldades para identificar a presença ou não de uma função paterna atuante ou de uma significação fálica?
Psicose ordinárias e suas violências Há vários trabalhos que explicitam as dificuldades vividas por analistas na clínica contemporânea; Campos, Gonçalvez e Amaral (2008) pontuam o quão fundamental é o manejo transferencial nesses casos; Laender (2009) aponta a difícil tarefa que é chegar a um diagnóstico estrutural; e Miller (1999) realiza o apanhado geral dos casos ditos inclassificáveis para a psicanálise e aponta a denominação das psicoses ordinárias.
248
Com os encontros que ocorreram ao final da década de 90, houve uma grande troca de experiências e avanços na teoria psicanalítica, principalmente, neste campo dos casos raros e/ou difíceis. Casos que podem apresentar pontos que tocam uma estrutura neurótica e que ao mesmo tempo apontam em direção a uma psicose (Miller, 1999). Nesses casos, não cabe pontuar a existência ou não da foraclusão do Nome-doPai, observa-se as novas formas de desencadeamento, as maneiras como a transferência ocorre e as novas conversões. Os “neodesencadeamentos” se manifestam de forma gradual de desligamento e desengates do Outro e do laço social. Há um declínio das relações do sujeito, um esvaziamento dos laços afetivos. As “neotransferências”, como aponta Rosa (2009), não estabelecem o mesmo vínculo consistente nas transferências vividas nas psicoses clássicas. Aqui, deve-se estar atento para as novas maneiras de como o psicótico formaliza seus laços sociais, ocorre uma transferência fraca e fragmentada. Já as “neoconversões” realizam a aproximação das psicoses com os fenômenos ligados ao corpo e as conversões histéricas presentes nas neuroses; entretanto, as neoconversões atuam mais numa lógica psicótica e não abrem espaços para intervenções significantes como as histéricas, são “fenômenos não interpretáveis à maneira freudiana” (ibid). Diferentemente das psicoses clássicas, os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai não estão tão claros nas psicoses ordinárias, pois o sujeito está seguro nos suportes de identificação imaginária. Há uma aderência, uma colagem ao outro, mas sem a presença dos distúrbios da linguagem que ocorrem nas psicoses extraordinárias. Nestes casos, há uma
249
presença turva do campo simbólico e que pode desabar com a tamanha carga imaginária que há no inconsciente. Campos, Gonçalvez e Amaral (2008) pela sua leitura da obra de Miller apontam que as psicoses ordinárias apresentam quatro características essenciais: a singularidade do sintoma – devido ao funcionamento psicótico; o gozo – sempre relacionado ao abuso dos excessos e das omissões; a questão do corpo – as ações que atuam sobre o corpo, tais como a bulimia, anorexia; e a quarta é o funcionamento do sujeito a partir de uma inexistência do Outro e da aproximação especular ao outro semelhante. Devido a essas características que pode-se localizar, muitas vezes, uma violência voltada para si e para os semelhantes nesses casos. O gozo em excesso ou em demasiada falta repercute no real do corpo numa tentativa de localização. O sujeito ergue elementos que supram a potência fálica como na contemporaneidade, através do discurso tecno-científico, as “bugigangas” tecnológicas estão aí para uma suplência desse falo que tende a zero (Φº). Considerações finais Fica evidente que o analista deve estar atento às posições que o sujeito ocupa nos laços sociais e daí lidar com os impasses encontrados na clínica. Não deve-se crer num esgotamento do simbólico ou num esvaziamento de significação do sujeito; ao contrário, o avanço teórico permite crer que o sujeito sempre vai tentar amarrar os campos a sua maneira. Observar as amarrações, a clínica borromeana, abre espaços para pensar que quando o sujeito se depara com o inominável do real, ele irá usar daquilo que “tem às mãos”
250
para responder. Ou seja, um ato violento não pode ser esgotado numa “passagem ao ato”, vazio de significado, deve-se ter em mente que o sujeito está a procura de dar um significado àquilo. Quando convocado a dar uma resposta sobre seu eu, o sujeito irá responder com aquilo que tem, seja uma significação fálica ou aquilo que ele utiliza neste sentido. O significante Φ somente tende a zero, mas nunca se esgota, isto é, o sujeito buscará alguma potência para solucionar os impasses do eu.
Referências CAMPOS, Sérgio de; GONCALVES, Sara; AMARAL, Tammy. Psicoses ordinárias. Mental, Barbacena, v. 6, n. 11, dez. 2008 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167944272008000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010. FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides) (1911). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XII. Direção de tradução Jayme Salomão, 2ª. Ed., Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1969. LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1959). Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. O seminário. Livro 3. As psicoses (1955-1956). Tradução de Aluisio Menezes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. LAENDER, Nadja Ribeiro. Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?. Estud. psicanal., Belo Horizonte, n. 32, nov. 2009 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010034372009000100015&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010. MILLER, Jacques-Alain (Org.). La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 1999. ROSA, Márcia. A psicose ordinária e os fenômenos de corpo. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 12, n. 1, Mar. 2009 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142009000100008&lng=en&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010. 251
Entre a Síndrome e a Mãe: Marcela
Esther Maynart P. Mikowski1 Este trabalho visa discutir a criança quando vem ocupar um lugar de objeto oferecido por aquele que exerce a função materna e de que modo ela responde deste lugar que se apresentou na clínica como consequência da história da mãe. Além disso, pretende-‐se discutir como neste caso, a análise da criança se direcionou de modo a ajudá-‐la a dar sentido às suas dificuldades às quais respondia com agressividade e mesmo passividade. O que foi possível também ao dar um lugar para que a mãe construísse um saber sobre a filha. Lacan (1968), em seu célebre texto “Nota sobre a criança” em que afirma que o sintoma da criança pode decorrer da subjetividade da mãe, diz: “...a distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação, deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o 'objeto' da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto”.
1 Membro do Projeto Freudiano – Aracaju/Se - esthermikowski@uol.com.br
252
Isso posto, partimos para pensar em Marcela, 10 anos. Ela fora encaminhada para atendimento psicanalítico por conta de “dificuldades no relacionamento social, rebeldia e problemas com a auto-estima”. Tinha o diagnóstico médico de Síndrome de Moebius a qual é caracterizada por uma paralisia congênita e não progressiva dos nervos cranianos VI e VII, podendo atingir outros. Tal paralisia produz uma aparência facial pouco expressiva e estrabismo convergente, na maioria dos casos. Podendo também comprometer audição, visão e ocasionar disfagia e pés tortos, entre outros (FONTENELLE; ARAUJO; FONTANA, 2001). Em relação à Síndrome, Marcela apresentava paralisia facial esquerda, leve estrabismo e pés tortos. Para Julia, sua mãe, tais queixas e uma suposta limitação eram decorrentes dessa Síndrome. E ainda pareciam marcar Marcela como um produto da Síndrome e de tudo que tanto a filha quanto a mãe tinham passado na gestação. Julia engravidou aos 17 anos de um ex-‐namorado. Ao descobrir a gravidez e desesperada com este “problema nas costas” (SIC) – forma a qual Julia se referiu à gravidez quando a descobriu, pois era assim que se sentia tão jovem–, tentou abortar fazendo uso de uma medicação conhecida pelos seus efeitos abortivos. Não abortou e só comunicou aos pais no sexto mês de gestação. Ainda nas primeiras entrevistas, Julia contou que quando fazia ultrassonografias e segundo as mesmas o bebê estava “normal”, sabia que algo não viria “normal”. Ao nascimento de Marcela e a constatação da Síndrome de Moebius, tinha certeza que se relacionava à tentativa de aborto. Para corroborar esta sua verdade, há indícios na
253
medicina que tal síndrome talvez esteja ligada ao Misoprostrol, substância presente na medicação ingerida por Julia. Sentindo-‐se culpada por todo mal e sofrimento causado à filha, Julia tentou protegê-‐la, cercando-‐a de cuidados, preocupando-‐se demasiadamente e como mesmo disse “criando Marcela numa redoma de vidro”. Acreditava ainda que sua filha seria sempre sua dependente. Era neste quesito que as supostas limitações apareciam: além de não avançar no desenvolvimento escolar, Marcela não casaria, não namoraria nem mesmo engravidaria. Disse ainda: “por um tempo só destinava 'amor de mãe' a Gabriel (seu outro filho), à Marcela, só cuidado e atenção, até que percebi que estava fazendo o mesmo que aconteceu comigo e tinha que mudar”. Julia referia-‐se a sua história -‐ aqui assinalada para anunciar que lugar esta mãe oferecia a filha -‐ também foi fruto de uma tentativa frustrada de aborto, nunca conheceu o pai, sua mãe lhe deixou num colégio interno e só lhe visitava ocasionalmente, até que com 5 anos foi morar com a mãe e seu novo marido a quem reconhecia como pai. Quando seu irmão nasceu, não se sentia pertencente a esta família e acreditava que só ele era amado pela mãe. Podemos extrair do discurso de Julia o que a maternidade lhe remetia e em consequência disso o lugar de filha que ela ofereceu à Marcela. Manter-‐se grávida e dar a luz a uma menina pareciam remeter às marcas do seu lugar de filha cuja relação imaginária com a maternidade se dava a partir de um “não amor de mãe” e abandono, uma vez que, segundo ela, o amor de mãe só destinara ao outro filho. Julia não abandonou de fato Marcela, mas também não a considerou como um sujeito, destinou a
254
ela apenas cuidados básicos de saúde e sobrevivência. No exercício de sua função, ofereceu a Marcela um lugar equivalente a sua extensão ou como diria Oliveira e Carvalho (1994, p. 26) uma célula narcísica dentro da qual não há sensação de falta, como se um e outro estivessem completos. Tal redoma, segundo as autoras, é possível quando a figura materna empresta seus significantes e se apresenta como inseparável. Tal célula aqui pensada na própria “redoma de vidro” nomeada por Julia. A forma de Marcela responder deste lugar que lhe fora oferecido era depender da mãe para tudo, até mesmo escolher uma roupa ou pentear um cabelo, o que legitimava a fala de Julia: “tenho que fazer tudo por ela”. Porém, elas não estavam completas nem inseparáveis, e tal condição pode ter justamente causado o incômodo de Júlia no tocante à maternidade, pois ainda que não a tratasse tal como, Marcela era um sujeito. Portanto, Marcela nasce com uma Síndrome que remete à mãe a culpa e esta justifica assim todas as suas atitudes de manter a filha neste lugar de objeto. Sauret (1998, p. 91) diz: “a patologia médica, a desvantagem, ganha um benefício secundário para ela, de acordo com sua estrutura, 'para testemunhar' a culpa da mãe neurótica, servir de fetiche para a mãe perversa, encarnar uma recusa primordial da mãe psicótica”. A Síndrome de Moebius serviu por todo tempo como significante importante na constituição psíquica de Marcela. A Síndrome não só representava o Real de uma condição orgânica como ela sustentava imaginariamente a culpa da mãe por seus atos. Por sua vez, Marcela, em atendimento, demonstrou ser afetuosa, comunicativa capaz de construir vínculos sólidos. Inicialmente, não conseguia ir além das referências
255
concretas do presente, contudo, podia ser amparada à medida que os outros a ajudassem a elaborar idéias que estivessem conectadas aos objetos já conhecidos por ela. Ou seja, ajudassem-‐na a perceber os objetos para além dos seus aparentes significados e funções. Desta forma, era possível perceber que Marcela se relacionava imaginariamente com os objetos ao redor e tinha dificuldade de simbolizá-‐los. Teclado para Marcela era o do computador, o musical era um piano, não podia ser teclado também, embora analista indicasse numa sessão que esse também se chamava assim. Tinha dificuldades também em responder a perguntas que necessitassem de pensamentos abstratos mais refinados. Ela ficava extremamente ansiosa, muitas vezes nervosa, diante de perguntas caracterizadas por ela como difíceis, por exemplo “porquês” ou desafios como descrever um desenho ou evento familiar durante o atendimento. A ansiedade e a agressividade relatadas pela escola e pela mãe se presentificavam nas sessões, ao mesmo tempo em que pareciam ser a forma que Marcela encontrava para se expressar e se defender das dificuldades e das situações que não sabia como lidar. Questionamentos produziam uma angústia que a desorganizavam e sua forma de demonstrar era com agressividade. Aliás, esta parecia ser carente de sentido, o que por sua vez foi buscado na análise de Marcela: ajuda-‐la a construir sentido ao invés de responder em ato tais dificuldades. Sobre a transferência da mãe, como foi dito, esta supunha que aquelas queixas ditas no início deste trabalho referiam-‐se à Síndrome de Moebius. Tal saber era direcionado à Instituição Médica como detentor do saber sobre a mesma. Ainda nas
256
primeiras entrevistas com a analista, a médica afirma a esta mãe em uma consulta que tais queixas nada tinham a ver com a Síndrome e que deveriam ser tratados em um outro lugar (na análise). Assim, Julia chega à análise sem saber o que fazer e totalmente perdida quanto aos cuidados e limites dados à filha. A partir de então, fez de fato um pedido: que ajudasse a ela a lidar com a filha, pois teria se dado conta de que era ela quem não conseguia lidar com as dificuldades de Marcela e as atribuía a Síndrome. O momento de passagem deste saber na análise é fundamental como sinalizador da transferência da mãe. Julia, então, fora incluída enquanto Outro e agente da função materna. Isso pôde ser sustentado a partir do desejo da analista e do laço transferencial entre esta e a mãe. A análise era de Marcela e o trabalho era incluí-la no discurso e no laço social, além de ajudá-la a dar sentido ao que lhe acontecia. No entanto, foi dado também um lugar para a que mãe remetesse para si seu próprio discurso, de modo que isso se tornasse um projeto de construção: ela construísse um saber sobre a filha e pudesse por si encontrar outros meios de lidar com as dificuldades dela. Aliás, dificuldades das duas, mãe e filha. A primeira em exercer a função materna diante das dificuldades da segunda. Além disso, de alguma forma, apostar em Marcela como sujeito à medida que a analista apontava conquistas e mesmo escolhas da paciente para a mãe. Do mesmo modo como com Marcela, foi preciso também ajudar a esta mãe a criar sentido no cotidiano e nas dificuldades da filha que apareciam como
257
carentes desse sentido e que ela acabava lhe oferecendo em atos sem sentido2, como amarrar o sapato que Marcela dizia não saber fazê-lo e Julia o fazia, sem se dar conta se de fato a filha tinha aprendido ou porquê lhe pedia. Portanto, a partir da chegada de uma criança que respondia do lugar de objeto oferecido por aquela que exerce a função materna, foi preciso uma escuta que privilegiasse Marcela e sua mãe. A análise se fazia possível para que através da construção de sentido, Marcela pudesse lidar com as coisas ao seu redor de um outro modo. E sua mãe se responsabilizar por isso foi fundamental nessa construção da filha e para a relação entre as duas. É importante salientar que no caso discutido uma síndrome pareceu representar um significante primordial na constituição psíquica da criança, uma vez que remeteu à mãe sua história e comprometeu com isso o exercício da função materna. Marcela parecia refletir o objeto de gozo que ela representava, o qual remetia ao fantasma materno, o que nos lembrar Sauret (1998, p. 62) ao falar sobre a condução da análise. Esta leva o analisante a descobrir que ele mesmo é como o gozo, isto é, como objeção ao saber. Porém, estas últimas questões demandam um outro momento para serem discutidas. Por fim, a definição de Figueiredo e Vieira (2002) se faz pertinente neste momento: a partir do relato do caso temos um texto que já faz o recorte do analista, com as passagens escolhidas e privilegiadas em determinado momento. Este caso marca a formação da analista, motivo pelo qual ele se constrói em meio a dúvidas, anseios e descobertas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FIGUEIREDO, A. C., VIEIRA, M. A. Psicanálise e ciência: uma questão de método. In W. Beividas (Org.).
2 A repetição do termo sentido, ainda que não coadune com a Língua Portuguesa, está nesta frase para enfatizar a falta de sentido que permeava atos e palavras deste par mãe-criança.
258
Psicanálise, pesquisa e universidade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. FONTENELLE, Lucia; ARAUJO, Alexandra Prufer de Q.C.; FONTANA, Rosiane S.. Síndrome de Moebius: relato de caso. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo, v. 59, n. 3B, Set. 2001 .
LACAN, J. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SAURET, Marie-‐Jean. O infantil e a estrutura, Conferências em agosto de 1997, Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 1998 OLIVEIRA, B. S. A.; CARVALHO, L. B. C. O atendimento de crianças: questões sobre estrutura psicótica. In: BRAUER, J. F. (Org.). A Criança no discurso do outro: um exercício de psicanálise. São Paulo, Iluminuras. 1994
259
O Homem Condutor: um Caso de Histeria Masculina? Michelle Barrocas Soares Esmeraldo1 Júlio César D. Hoenisch2
O sintoma, tal como o sonho, é entendido por Jeanneau e Perron (2005) como uma formação de compromisso por meio da qual o desejo abre um caminho para a satisfação, mesmo que apenas parcial. Estudar o sintoma histérico é permitir dar-se conta das inúmeras formas com as quais se manifesta no sujeito – homem ou mulher. Os sintomas, na histeria, variam entre os mais corporais, em casos de conversão, e os mais psíquicos, nos relatos de fobia (Schaeffer, 2005). Lacan (1985) afirma que “nada na anatomia nervosa recobre, seja o que for, do que é produzido nos sintomas histéricos. É sempre de uma anatomia imaginária que se trata” (p. 204). O sintoma, fonte de gozo, basta a si mesmo. Para Nusinovici (2005), é necessário, portanto, que o sujeito perceba a existência de um saber e uma causa que lhe dizem respeito, e para cujo conhecimento o analista vem a ser o suporte. Ocupando um lugar na clínica-escola de uma universidade, um homem de quarenta anos obteve esse suporte e a produção de um estudo de caso foi possível. As entrevistas iniciais sugeriram fortes indícios de que se tratava de um caso de histeria masculina. Casado, pai de dois filhos, ele se queixava frequentemente 1
Psicóloga, Mestranda em Psicologia pela UFRN, michelleesmeraldo@gmail.com
2
Psicólogo, Mestre em Psicologia, Professor visitante da UEFS/BA, cesarhoenisch@gmail.com
260
de medo de ficar só em casa ou de sofrer violência fora dela. A busca por atendimento psicológico se deu também pelo relato de dores na cabeça, “uma sensação de estar flutuando” (sic), e agressividade. Freud (1974), discorrendo sobre “Dostoievski e o parricídio”, analisa que “sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas que amava”. Assim também se davam as relações entre o paciente e a família. O surgimento de tais sintomas foi associado ao trabalho de motorista que exerceu, por dois anos, em uma empresa de ônibus. No caso do pintor Haizmann, Freud (1977) considera que “ele ficara abatido, era incapaz ou não tinha disposição de trabalhar adequadamente, e estava preocupado sobre como ganhar a vida; isso equivale a dizer que sofria de depressão melancólica, com uma inibição em seu trabalho e temores (justificados) quanto ao seu futuro”. As preocupações do paciente com o retorno ao trabalho eram recorrentes. Alguns diagnósticos psiquiátricos lhe foram conferidos em consultas médicas que antecederam a entrada em atendimento: Síndrome do Pânico, Ansiedade e Estresse. Atualmente, uma crise de angústia pode ser rapidamente confundida com uma “síndrome do pânico”, que, segundo Sterian (2001), aparece como a fase aguda de uma neurose histérica, cujas origens estão na infância. Então, uma rápida contextualização dessa etapa da vida do sujeito faz-se imprescindível. Ainda criança, perdeu a mãe e foi abandonado pelo pai, sendo, com isso, inserido em um entorno de desafeto junto à avó e de trabalho precoce. “Guarda mágoas” (sic) de muitos familiares e considera difícil esquecê-las. A histeria do homem condutor pode ser evidenciada na questão com o pai e na relação estabelecida com sua posição feminina; conforme afirma Freud (1977), ainda na história de Haizmann, “com o luto
261
do pintor pelo pai perdido e a intensificação de seu anseio por ele, também sucede nele uma reativação de sua fantasia de gravidez há muito tempo reprimida, e ele é obrigado a se defender dela com uma neurose e com aviltamento do pai”. As primeiras sessões eram marcadas por um silêncio inicial do paciente, quebrado após a pergunta da analista sobre o que se passava em sua mente. Queixava-se da cabeça – dormência e esquecimento – e de dores nos joelhos e pernas; alegou não dirigir a palavra ao outro até que este tome a iniciativa. Na sessão seguinte, o silêncio foi estabelecido e a fala do sujeito aguardada. Ele fitava o olhar à analista e ria, levantando-se do assento e caminhando pela sala. Repetiu a cena algumas vezes, aproximou-se da parede e deu golpes com a mão. A abordagem do acting, para Sophie de Mijolla-Mellor (apud Mijolla, 2005), “avizinha-se da noção de uma ação que se produz sob a pressão de desejos inconscientes e leva a um comportamento inapropriado, até destrutivo”. A autora acrescenta que “cumpre ao psicanalista controlar, graças ao apego transferencial, os impulsos e os atos interativos do paciente”. Nas sessões que se seguiram, o discurso se intensificou. O principal tema era o sofrimento por conta da empresa, considerada por ele como responsável central pelo adoecimento. Levantava-se e caminhava pela sala, não interrompendo a fala. Segundo o paciente, estar sentado lembrava-lhe a função de motorista de ônibus e o angustiava mais ainda. Após questionamentos acerca da semelhança entre a cadeira da sala de atendimento e a do ônibus, ele percebeu que sua ansiedade era sem fundamento, passando, aos poucos, a permanecer sentado enquanto durasse a sessão. Em comparação com o caso do pintor Haizmann, Freud (1977) afirma que “a catástrofe nos negócios com que ele próprio se sente
262
ameaçado, arremessa para cima a neurose, como um subproduto, e isso lhe concede a vantagem de poder ocultar suas preocupações sobre a vida real por trás de seus sintomas”. Com rigor, o paciente obedecia os horários estipulados para ingestão dos medicamentos receitados pelo último psiquiatra. Para aquele, o antidepressivo, o benzodiazepínico e o neuroléptico eram os principais responsáveis por uma melhora no seu bem-estar. Quando não mais faziam o efeito esperado, procurava trocá-los. Intervenções lhe foram feitas a fim de que compreendesse que a ingestão de medicamentos era insuficiente, mudanças em alguns aspectos da vida também eram de suma importância. Sterian (2001) considera que “fazer uma pessoa pensar em si mesma não apenas como um diagnóstico, um número ou uma unidade de consumo, oferece-lhe a chance de reinserir-se em sua própria história de vida, de assumir-se enquanto sujeito de seus próprios desejos, necessidades e possibilidades. Para que, a partir daí, ela possa elaborar as limitações ou frustrações que sua existência for lhe trazendo”. Sente-se faltante – “abandonado” (sic) – por não ter o apoio dos pais, considerados por ele muito importantes em situações de crise. Em “Dostoievski e o parricídio”, Freud (1974) analisa que “se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos e nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é restabelecida. O superego se tornou sádico e o ego se torna masoquista, isto é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina”. Devido ao sentimento de raiva, muito evidente no homem condutor, afetações com coceiras eram frequentes, ele, então, respondia ao estímulo, obtinha alívio, mas tornava a área ferida. Para Freud (1901), “nos casos mais graves de psiconeuroses, os ferimentos auto-infligidos ocasionalmente aparecem como sintomas patológicos e, nesses
263
casos, nunca se pode excluir o suicídio como um possível desfecho do conflito psíquico”. Este último apareceu como conteúdo manifesto em pelo menos duas sessões. O desejo de suicídio seria uma forma de fuga e não enfrentamento do que lhe angustiava, evidenciando-se o desinvestimento libidinal em si próprio. O contexto ao qual o paciente se submetia em seu exercício como motorista era dos mais estressantes: dormia em média três horas diárias, testemunhava momentos de assaltos e a cada erro que cometia, ou com o passageiro ou com o ônibus, era cobrado, podendo, inclusive, ter que ressarcir do salário para cobrir os gastos. Ele acreditava que estava “doente dos nervos” (sic). Segundo Costa (1989), “a doença dos nervos estava sempre relacionada com o trabalho: desentendimentos com colegas ou patrões; má remuneração; condições de trabalho difíceis; ameaça de desemprego ou o próprio desemprego etc.”. Outros sintomas, como arrepios, tremores, agitação, insônia, irritabilidade, choro, foram relatados enquanto manifestações do sentir-se ameaçado pelo outro ou pelo entorno. O homem condutor dava importância a toda ruindade circundante, da grama mal cortada em espaço público à poeira no móvel da casa. Com isso, não deixava de reclamar. Impunha-se ao outro sem pestanejar, mantendo-se firme ainda se contrariado. O autor acima citado alega que “a reação diretiva (conselhos, opiniões taxativas, discordâncias bruscas e peremptórias etc.) seria indicativa de uma intolerância sintomática à manifestação do conflito inconsciente”. A esposa tentava acalmá-lo em tais situações e partilhava das dificuldades que o paciente enfrentava, como por exemplo, a impotência sexual. Embora se saiba que alguns medicamentos possam causar efeitos colaterais que atinjam a vida sexual, Lucien Israël (1994, apud Alonso; Fuks, 2004) afirma que “os histéricos são ocasionalmente impotentes,
264
mas permanentemente frígidos: não sentem”. Quanto à frigidez, logo no início do tratamento, ele relatou que, certa vez, o órgão peniano estava ereto e somente a parceira sentia prazer. A freqüência do paciente às sessões mostrava a falta de comprometimento com o cuidar de si, prejudicando, com isso, o seu quadro clínico. Duas sessões eram feitas semanalmente. Com o passar do tempo, ele aparecia na instituição apenas uma vez, e, em muitas semanas, não compareceu. Sempre teve uma justificativa para explicar a falta. Como afirma Costa (1989), “se o indivíduo crê realmente que a doença dos nervos é uma afecção neurológica, então dificilmente aceitará a idéia de psicoterapia, e reivindicará muito naturalmente um tratamento exclusivamente medicamentoso. Estaria aí uma das razões pelas quais se mostra tão rebelde à atividade psicoterápica”. Os primeiros questionamentos incitados sobre o homem condutor foram “o que se pode fazer com esse paciente?” e “como obter a melhora de sintomas tão emergentes?”. A agressividade inicial dele era clara, temores houve acerca do uso da força física por parte do paciente contra a pessoa da analista, já que a expressão de raiva transpassava a palavra. O sentimento de impotência diante dele se extendeu por muito tempo, o paciente falava repetidamente do contexto limitante que vivenciava. Supunha o saber na analista e questionava se ficaria bom. Para ele, primeiramente, ela ocupou o lugar de irmã, para depois, tornar-se uma amiga que o ajudou. O desenrolar da escuta do caso propiciou àquele que busca um saber sobre si alguns momentos de retificação subjetiva e a consequente diminuição do sofrimento psíquico, uma vez que passou a vislumbrar alternativas de trabalho e manteve o desejo de concluir a construção da casa e da compra de um veículo, que promoveriam, assim, melhores condições
265
para sua família. O manejo analítico foi cuidadoso, tendo em vista a necessidade de um suporte que desse conta da intensa angústia de um sujeito cujo corpo é lugar de um excessivo investimento libidinal e de um desassossego sobre sua posição no mundo.
Referências Bibliográficas: ALONSO, Silvia Leonor; FUKS, Mario Pablo. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. COSTA, Jurandir Freire. Psicanálise e contexto cultural: imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 167 pp. FREUD, Sigmund. (1901). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. Vol. II. 1996. ________ (1928). Dostoievski e o parricídio. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI.
________ (1923a). Uma neurose demoníaca do século XVII. In Obras Completas (V. 19). Rio de Janeiro: Imago, 1977.
LACAN, Jacques. O seminário – Livro 3 – as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985. MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional da psicanálise: conceitos, noções, biografias, obras, eventos, instituições. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005. 2204 pp. STERIAN, Alexandra. Emergências Psiquiátricas: uma abordagem psicanalítica. 3ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
266
Da Ilusão de Completude ao Encontro Simbólico: a Peregrinação Amorosa do Sujeito Desejante em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector Daniel Migliani Vitorello1 Mariana Rodrigues Festucci Ferreira2
Não é mesmo com bons sentimentos que se faz Literatura: a vida também não. Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la (...). Clarice Lispector em “Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres”, 1998 [1969], p.26.
Este artigo propõe um diálogo entre a Psicanálise e a Literatura a partir do romance “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, escrito por Clarice Lispector; trata-se da narrativa da peregrinação amorosa dos personagens Lóri e Ulysses, que segundo nossa leitura, metaforiza a constituição do sujeito faltante. Tanto a Psicanálise quanto a Literatura são campos do saber que se inscrevem culturalmente, lidando com a experiência humana veiculada pela linguagem. A linguagem é a chave que abre as portas e que constitui a dimensão simbólica, onde é possível a cada ser humano se diferenciar dos animais (na capacidade de postergar a obtenção do prazer) e mesmo entre seus semelhantes (no modo como lida com os desencontros entre a linguagem e o desejo), legitimando um estatuto de sujeito que tem consciência acerca da Professor do Centro Universitário Anhanguera de Santo André e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de SP.e-mail: danielmigliani@ig.com.br 1
2
Graduanda em Psicologia pelo Centro Universitário Anhanguera de Santo André. e-mail: marianafestucci@yahoo.com.br / marianafestucci@hotmail.com
267
própria existência, e que encerra em seu âmago um conjunto de significâncias que ultrapassam qualquer saber, tornando-o único. Em psicanálise, a linguagem opera sobre o sintoma (...) a criação literária pode ser um sintoma porque o sintoma por si só é uma invenção (...) e toda criação supõe que o simbólico suscitou uma falta no real, onde por definição nada pode faltar (...). Assim, o sintoma cria a singularidade do sujeito, [submetido, por sua vez] à grande lei do querer-ser, que (...) represa, crava o gozo, ao passo que o inconsciente o desaloja (Soler, 1998, p.16-7).
A narrativa literária e a clínica psicanalítica são veículos que expressam o drama da existência humana, evidenciando a falta estrutural do sujeito desejante e os meios que ele utiliza para fazer suplência a esta falta, através de seus sintomas e suas construções fantasmáticas; mas ainda que se aproximem quanto ao campo de atuação, Literatura e Psicanálise guardam suas especificidades e autonomia. A Psicanálise aproxima-se do Real na leitura que faz dos sintomas que veiculam o gozo humano, a fim de produzir um saber para melhor situar o sujeito na relação com a sua falta. Já a Literatura subverte a realidade, pois lidando de forma criativa com a letra eleva-a de mera transmissora de significado à significante, abrindo uma litura na terra, ou seja, uma fenda para o Real, o que mobilizará cada sujeito que entra em contato com ela a construir sua própria história. A Literatura constitui um sintoma que veicula o gozo de significado, que retirado da cadeia significante, transmuta-se numa letra que é fora do significado, e conseqüentemente, real. Ela é capaz de constituir-se como um objeto, como algo novo que ultrapassa o significado, e assim, o gozo que produz não é o gozo puro da letra, mas um gozo que, assemelhando-se ao chiste, produz efeito de significado que irrompe do literal, indo além e
268
confrontando a intenção do sujeito; a Literatura constituiria então um “savoir-faire” da letra, que é capaz de mobilizar o conhecimento inconsciente, sem fazer o significado ressoar (SOLER, 1998). Esse gozo, no entanto, não é pleno; ele não constitui um escudo impenetrável contra o sofrimento,pelo contrário, pois há um resto do movimento pulsional que resiste a ele, de tal forma que não se renuncia totalmente ao desejo, mas também não se livra da angústia de castração, da pulsão de morte, da atuação do supereu. Não se trata de uma conciliação simples entre o princípio do prazer e o da realidade, e sim, de uma co-existência, que se faz de maneira conflituosa; trata-se de uma tentativa de se organizar em torno do vazio que marca o sujeito. Lacan postulava que a arte literária inscrevia a verdade do sujeito sem dar-se conta disso, e que buscar um sentido único para esta verdade constituía um reducionismo; reportando-se a Freud (que afirmava que na matéria com a qual a Psicanálise lidava, o artista sempre a precedia) ele recomendou portar-se perante o texto literário como um não-saber: “na berlinda, é pela verdade deles [do que os textos literários veiculam] que espero” (Lacan, 2003 [1971], p.13). A arte criativa vai além do sonho, e de outras formações do inconsciente; ela atua como uma saída sublimatória que realiza uma dessexualização das pulsões sem recorrer aos processos de recalcamento, regressão e foraclusão, representando uma saída que universaliza a satisfação encontrada pelo artista, através da substituição de um objeto sexual por outro objeto, de valor social: Importa antes de tudo dissimular o egoísmo dos pensamentos do sonho e a tendência natural do eu a neles atribuir a si mesmo o papel de herói, atraindo o leitor (...) através
269
de um prazer puramente formal e que Freud chama de “prêmio da sedução”. Como o criador dá a impressão de que está se entregando a um simples jogo, que parece exemplarmente lícito, a testemunha pode esquecer a que ponto esse jogo pode ser sério, isto é, a que ponto está carregado de afetos (Kaufmann, 1996 [1993], p. 500501).
A arte criativa não depende de relações transferenciais que lhe confiram sentido; ela não convoca um ouvinte, está lá por si mesma, para quem quiser dela se apropriar. Do contato com a arte, o sujeito se mobiliza a encontrar um sentido por si mesmo, tomando de empréstimo as criações do artista para dar vazão aos seus próprios anseios. Além disso, o texto literário permite ao sujeito se confrontar com a castração, mas sem evocar todo o terror que o contato direto com o inominável suscitaria; ele o faz de maneira suavizada, possibilitando que o sujeito lide com o insuportável, relativize a dor da falta sem negar a castração, ou em outras palavras: finja a dor. Por isso é que perante a arte, bem como todo o sofrimento que o sujeito expressa, cabe a Psicanálise compartilhar do enigma, controlando os impulsos de atribuir relações de causa e efeito, ou de cessar a causa da dor; a Psicanálise prima que o sujeito se haja com o seu sofrimento, ao invés de suprimi-lo; conforme aponta Lóri, personagem do romance “Uma aprendizagem...”: (...) não se podia cortar a dor — senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato (Lispector, 1998 [1969], p.18).
O sujeito que recusa a incompletude do Outro, dispondo dessa maneira o princípio do prazer e o da realidade em pólos antagônicos, tenta a qualquer custo expulsar a angústia da castração, o que só agrava o seu sofrimento; nesse sentido, tanto a Literatura quanto a
270
Psicanálise propõem a reintegração do desejo à existência humana, conduzindo o sujeito a descobrir dentro de si mesmo formas de metaforizar sua falta constitutiva (KEHL, 2009). Clarice Lispector e Jacques Lacan, na estreita relação que mantinham com as Artes mais intimamente com a Literatura, tentavam costurar em torno do vazio que gera a angústia. - “Eu tenho à medida que designo – este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matériaprima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias: mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela conseguia”.3 - “É justamente por esse impossível que a verdade provém do Real (...) digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras”.4 - “Porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade (...). Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita”.5 -“Para nós se trata de tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por ausência da única parte do real que não pode vir a se formar em ser”.6
Num primeiro momento tem-se a impressão de que o trecho acima é o recorte de uma conversa entre dois sujeitos; tratam-se, entretanto, de excertos da obra de Lispector e Lacan, que ao sugerirem um diálogo, o fazem contigencialmente, pois ainda que estivessem inseridos num mesmo período histórico, não há evidências de que tenham tido contato com a obra um do outro. Ele pela clínica, ela pelo texto, tentavam tricotar uma teia de significantes em torno do vazio deixado por “das Ding”, o objeto do gozo impossível, para sempre perdido.
3 Clarice Lispector, em “A Paixão segundo G.H.”, 1998. 4 Jacques Lacan em “Televisão”, 1974. 5 Clarice Lispector em “Água-viva”, 1973. 6 Jacques Lacan, no seminário XX, “Mais-ainda”, 1982, 66p.
271
Lacan concebe a falta como uma mola que mantém a relação do sujeito desejante com o mundo; na busca por uma satisfação passada e ultrapassada “o novo objeto é procurado e encontrado, mas nunca é o mesmo objeto, nem poderia sê-lo, pois é encontrado e apreendido em outra parte e não no ponto onde é procurado” (Plastino, 2008, p.70); ele é o objeto perdido, “das Ding”, a Coisa, representado pela Mãe, a partir da onde se tricotará uma teia de significantes que o ocultam. Diz Ulysses para Lóri em: “Uma aprendizagem...”: (...) uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida (Lispector, 1998 [1969], p.12).
Em Eros, o sujeito inicialmente é marcado pela ilusão de completude que o remete ao estado primordial do gozo absoluto, depois evolui pela via simbólica, que o situa na sua incompletude; tal percurso é atravessado imaginariamente por Lóri e Ulisses, personagens de “Uma Aprendizagem ou o livro dos Prazeres”. Lóri é uma professora primária que não se permitia envolver-se afetuosamente com as pessoas por medo de sofrer, vivendo alheia; voltando-se para si mesma, ela só se deparava com o vazio: Mas ah, a falta de sede (...). A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto não tivesse o alívio de enfim morrer (...).Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito (...).. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor(...). Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. E uma jóia diamante (...) tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar (Lispector, 1998 [1969], p.10-1).
Ela então conhece Ulisses, professor universitário que casualmente aparece em sua vida. Lór tenta seduzir Ulisses (lembremos que seu nome remonta a Loreley, figura mítica do folclore alemão que seduzia os pescadores e os levava para o fundo do mar). Ela “sucumbia a 272
uma completa irresponsabilidade: (...) ser possuída por Ulisses sem ligar-se a ele, como fizera com os outros” (Lispector, 1998 [1969], p.20). Lóri na verdade não seduz ninguém – pelo contrário, acha-se seduzida, pois vive à procura de formas de agradar um homem e assim ver o desejo por ela manifestado. Ulisses (lembremos que seu nome remonta ao personagem da tragédia grega Odisséia, que venceu os obstáculos com o uso da inteligência e controle dos instintos) resiste ás investidas sedutoras de Lóri e acaba mobilizando-a de um modo que nenhum dos cinco amantes que ela tivera até então haviam feito. Quando Lóri conhece Ulisses, ela imagina que ele a completa, que ele seja o porta-voz do sentido de sua existência: “era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo” (Lispector, 1998 [1969], p.10). “Aquele sábio estranho que no entanto não parecia adivinhar que ela queria amor” (Lispector, 1998 [1969] p.8), como toda histérica, não corresponde a sua demanda. Tendo naufragada a esperança de que Ulisses desse um sentido a sua existência, conferindo-lhe a plenitude – “Quando esta [esperança] morreu, ao ver que ele não tinha a menor intenção de ensinar-lhe um modo de viver”, Lóri se reconhece como sujeito desejante – “já era tarde: estava presa a ele porque queria ser desejada” (Lispector, 1998 [1969] p.18). Ulisses não corresponde à demanda de Lóri e assim lhe faz lidar com a sua própria falta. Lóri acaba reconhecendo que “um ser não transpassa o outro como sombras que se trespassam” (Lispector, 1998 [1969], p.20). De dois não se fazia um; ela seria para sempre
273
faltante. E o reconhecimento dessa falta colocou em causa o seu desejo, impulsionando-a a se movimentar: “Tudo isso ela já aprendera através de Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora tinha (...) já (...) leves incursões pela vida” (Lispector, 1998 [1969], p. 15). Antes de se aproximar de Ulisses, Lóri encarava a morte como algo que colocaria um termo ao vazio que representava a sua vida; depois que por amor colocou em causa o seu desejo, ela “pensou por um instante se a morte interferiria no pesado prazer de estar viva. (...) nem a idéia de morte conseguia perturbar o indelimitado campo escuro onde tudo palpitava grosso, pesado e feliz. A morte perdera a glória” (Ibidem, p.81). Lóri, que até então vivera alheia do mundo, passa a estabelecer vínculos afetivos, se entregando com prazer a atividade de ensinar seus alunos. Antes ela não sentia o “gosto” das coisas, vivia automaticamente, mas agora: Lóri entrava, ela própria em agasalho com as crianças (...)falou-lhes que aritmética vinha de "arithmos" que é ritmo, que número vinha de "nomos" que era lei e norma, norma do fluxo universal da criança. Era cedo demais para lhes dizer isso, mas gozava do prazer de falar-lhes, queria que eles soubessem, através das aulas de português, que o sabor de uma fruta está no contato da fruta com o paladar e não na fruta mesmo.Não havia aprendizagem de coisa nova: era só a redescoberta. E chovia muito esse inverno. Então usou a outra mesada do pai e procurou — com que prazer andava pelas lojas procurando até achar — e procurou e comprou para todos os alunos e alunas de sua classe, guarda-chuvas vermelhos e meias de lã vermelha.Era assim que ela afogueava o mundo (Lispector, 1998 [1969], p.53-54).
Lóri estava “caminhando com as próprias pernas”; quando vai ao encontro de Ulisses, ao contrário do que fazia antes (quando colocava vestidos sensuais e excesso de maquiagem, pensando em formas de seduzí-lo) “Ela nem precisava pensar no que ia vestir (...) assim encontrou-a ele e olhou-a com admiração: ela estava extravagante e bela” (Lispector, 1998 [1969], p.54).
274
Ulisses considera que Lóri está pronta e então manifesta o desejo que tanto tempo guardara em silêncio: “Agora eu quero o que você é, e você quer o que eu sou” (Ibidem, p.74). É aí que os dois amantes se entregam ao encontro amoroso,faltoso por excelência: Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que estava antes encarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece quando eu estou me dando é que recebo, recebo. Cuidado, há o perigo do coração estar livre? Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos escuros do homem, percebeu que nesse seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No entanto vinha uma segurança estranha também: vinha da certeza súbita de que sempre teria o que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher (...)Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de ser um animal vivo. E através do grande amor de Ulisses, ela entendeu enfim a espécie de beleza que tinha. Era uma beleza que nada e ninguém poderia alcançar para tomar, de tão alta, grande, funda e escura que era. (Lispector, 1998 [1969] p.77-81).
Há, portanto, um amor para além da identificação, da ilusão de completude que remete ao gozo primordial: “o ser amado absoluto de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro deserto – este mundo pode ganhar vida” (Kehl, 2009, p.549). O amor, numa leitura lacaniana, implica na falta, no encontro sempre faltoso; ele visa atingir a falta que reside no núcleo do objeto, objeto este trabalhado na dialética com o Outro, objeto que está mais-além de si mesmo, que se inscreve como falta simbólica, pois foi trabalhado pelo significante. “Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres” contextualiza a peregrinação dos amantes pelos desertos do imaginário até o encontro do oásis simbólico, onde se tornam
275
capazes de promoverem um encontro faltoso, se reconhecendo como sujeitos desejantes; para tal encontro é que tanto Literatura quanto Psicanálise convergem com seus campos de atuação. Referencial bibliográfico: KAUFMANN, p. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de freud a Lacan. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1996 [1993], 785p.; KEHL, M.R. A psicanálise e o domínio das paixões. In: NOVAES, A. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 537-68p; LACAN, J. Lituraterra e Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003; _______. Seminário XX: mais-ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982; LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres [versão digital]. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 [1969]; ______. Água-viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. 118p; ________. A paixão segundo G.H. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 180p; MARCOS, C. Do que se pode ler em Clarice Lispector: sublimação e feminino. Disponível em: www.scielo.com.br. Acesso em: 10 de novembro de 2009; PLASTINO, G. O discurso da falta em Clarice Lispector: laços de família. 2ª ed. Osasco: Edifieo, 2008. 164p; SOLER, C. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998.
276
Sintoma, Sinthome e Final de Análise Roseane Freitas Nicolau1
O sinthome é a última escrita que Lacan propõe para o sintoma. A mudança na ortografia do termo recoloca o postulado do sintoma como formação do inconsciente, passando a designá-lo como aquilo que bordeja o buraco da castração, no qual o sujeito se sustenta. Sublinha também a diferença entre sintoma mórbido e sinthome invenção. O sintoma mórbido tem a estrutura de uma metáfora que vem suprir a metáfora do Pai. Já o sinthome é da ordem da invenção a partir da irredutível père-version, com a função de compensar a carência do pai. Esta distinção tem conseqüências clínicas importantes para pensar a direção da cura e o final de análise, pois assinala a travessia da análise como marcada pelo tempo do encontro com o real, onde um dizer se sustenta a partir do impossível. Proponho seguir os trilhamentos de Lacan sobre o sintoma para trabalhar a travessia de uma análise como correlativa à passagem dos sintomas mórbidos ao sinthome, tronco da estrutura particular de um sujeito, lugar de sua sexualidade. O sintoma definido como metáfora e concebido como efeito da estrutura responde à questão do inconsciente estruturado como linguagem, contendo uma mensagem cifrada a qual pode ser dissolvida graças à interpretação. Lacan dá ao sintoma estatuto de uma formação significante, considerando-o, como Freud, uma mensagem cifrada em código à espera de 1
Psicanalista, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFPA e coordenadora do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”.
277
interpretação. Endereçado ao Outro, o sintoma recebia dessa instância significação. Temos então que o sintoma é um saber que se lê, o que aponta a uma dimensão de sentido, mas que, enquanto saber, diz de um impossível. Por isso, mal grado a interpretação, um sintoma não se dissolve. Porque o sintoma insiste? A resposta de Lacan é: por causa do gozo. Inicialmente, Lacan isolou a dimensão do gozo em termos de fantasma, que se encontra na origem da repetição sintomática. Assim, ele opôs sintoma e fantasma a partir de traços distintivos, estabelecendo uma relação do sintoma com o significante e da fantasia com o objeto. A partir disso, na clínica, encontramos uma motilidade do sintoma, porque está inscrito na cadeia significante, e uma fixidez da fantasia, porque remete a uma cena. A fantasia é então o que há de real na experiência de uma análise, pois se trata de um resíduo, um resto do qual é impossível falar. Ela concerne à estrutura do sujeito, por isso não se modifica. Já o sintoma tem por função tamponar o fantasma, sendo determinado por ele e por isso mesmo é por ele que se poderá ler algo da fantasia do sujeito. Por isso, o analista trata o sintoma sem o liquidar, pois há algo dele que permanece e opera sobre o gozo propiciando a travessia do fantasma. A construção do fantasma em uma análise perpassa a questão do saber, intervindo sobre a ignorância do sujeito a respeito de sua causa. Neste percurso, construir equivale ao esvaziamento de gozo do sintoma, surgindo com ele algo que aponte ao desejo. Com esta noção a direção da cura visava um ultrapassamento do sintoma, para que através de uma construção o sujeito pudesse atravessar o fantasma. À questão da insistência do sintoma, Freud dá a pista, apontando o sintoma como uma saída precária, mas a única que pode garantir uma certa ordenação ao sujeito. Tido por Freud
278
como um arranjo entre desejo inconsciente e exigências defensivas, ele jamais será eliminado, pois é a própria divisão do sujeito que o produz. Em 1974, ao introduzir o nó borromeano em seu ensino, Lacan enlaça a enunciação freudiana do inconsciente e sua consistência com o sintoma. O nó borromeano escreve o sintoma, uma invenção que enoda os três registros – Real, Simbólico, Imaginário – implica uma equivalência dos três elos e mantém como suporte a estrutura do sujeito. O nó é feito por dois círculos apenas sobrepostos, atados por um terceiro, de modo que, quando um é rompido, os outros dois ficam soltos. Mas o nó borromeano mínimo de três não é suficiente para Lacan enquanto resposta ao que mantém unido R, S e I. A pergunta pelo que enoda vai em busca de um organizador, que será um quarto elemento. A resposta aparece sob a forma do que, segundo Lacan, Freud chamou de realidade psíquica, que engloba o fantasma, isto é, desejo e gozo, ou o que Lacan teorizou como o Nome-do-Pai. O quaro realiza uma função de suplemento em relação aos outros três; reúne-os, mas mantém uma exterioridade. Não faz complemento. Sustenta o buraco da não-relação sexual. Assim, nas últimas colocações do Seminário R.S.I (1974-1975), Lacan introduz um quarto elo, o do Nome do Pai ou o Sinthome, atribuindo-lhe o papel de amarrar de forma diferente as três consistências do real, do simbólico e do imaginário. O que faz a ligação entre as três dimensões distintas é o Nome do Pai. Para que o sujeito se sustente, Lacan diz que há necessidade da presença de um quarto termo, isto é, do complexo de Édipo ou do Nome-doPai, fazendo equivaler o sintoma e o Nome-do-Pai. O sintoma supre o malogro do Nome do Pai, malogro simbólico ao barrar o gozo.
279
No enodamento da tríade, o Imaginário faz corpo, bordas contornadas pela pulsão e é a consistência que produz o sentido. O Simbólico é o campo do possível, de ordem significante que faz buraco e inscreve o recalque. O Real é o campo do impossível, é o que ex-siste ao furo. Assim, enodam-se consistência, buraco e ex-sistência, traçando uma escrita para além do significante que toca algo do real da estrutura. O nó é uma escrita afetada pelo inconsciente, em que o gozo do Outro (JA) surge na interseção do Imaginário e do Real; o gozo fálico (JФ), na interseção do Real e do Simbólico; e o sentido, na interseção do Imaginário e do Simbólico. No centro do nó situa-se o objeto a, que enlaça o sentido, o gozo do Outro e o gozo fálico. Um enlaçamento pela via da separação entre os gozos. O gozo do Outro está fora do simbólico, e o gozo fálico, fora do corpo. Definido como metáfora, como efeito de linguagem, o sintoma é formalizado na escrita do nó com outra envoltura formal e faz a mostração do Real, que ultrapassa os limites do significante e enuncia a ex-sistência. O ‘não cessa de não se escrever’, embora não seja uma definição do Real, é o modo como se apresenta o real da estrutura, esta que se sustenta no real e não é redutível ao simbólico. Nessa estrutura, o sintoma registra-se no Simbólico e vem do Real, ou seja, uma emergência vinda do Real. No sintoma identificamos o que se produz no campo do real. Na teoria do nó marca-se um além que sugere a direção da cura, implicando uma escrita de um ‘saber-fazer’ com o sintoma. O momento da instalação do significante corresponderia à inscrição sintomática, e a realidade do sujeito é constituída pelo enodamento dos três registros, heterogêneos, porém amarrados homogeneamente, inaugurando o inconsciente.
280
A partir da leitura de Joyce (1975-1976) o sintoma não é mais uma mensagem cifrada a qual pode ser dissolvida graças à interpretação, pois esta nova leitura vai partir de um núcleo psicótico que escapa à rede discursiva. Do sintoma ao sinthome é o trajeto de uma análise especificado no seminário O sinthome. O sintoma leva à análise quando num determinado momento já não cumpre mais a sua função na economia do gozo. Apresenta-se, então, uma demanda de análise, a princípio queixa imaginária que virá se transformar em sintoma analítico, articulado na transferência ao sujeito suposto saber, e que no final de análise apontará para a produção de um sinthome enquanto uma escrita particular ligada àquilo que do real não ascende ao significante e funda o desejo. Mas, a princípio, é para dar conta do sintoma que faz sofrer e que também satisfaz, que o analisante busca e trabalha em análise. Para o neurótico que procura uma análise, no lugar do gozo se produz a angústia, pois o sintoma como possibilidade de gozo de algum modo fracassou. A operação analítica, uma verdadeira operação topológica, através de junções e suturas fará com que no final do percurso o sujeito se depare com o sinthome, com th, irredutível da estrutura, que possibilitará o gozo, não- todo naturalmente. A análise seria então a produção da escrita do sinthome. Ao desafio da persistência do sintoma, Lacan responde com a noção de sinthome, formação significante carregada de gozo, único suporte do ser, único ponto a dar consistência ao sujeito. Ele é formalizado na sua função de corrigir, de fazer a reparação da estrutura no mesmo lugar onde se produz o erro do nó. Sustentado na letra e na escrita do nó borromeano, o sinthome não será interpretado, nem resolvido, nem atravessado como se propunha em se tratando de fantasma.
281
Para concluir, com a topologia dos nós e a elaboração topológica da função da suplência, Lacan traz novos aportes clínicos que permitem dar conta da regulação de gozo e do final de análise. A partir do seminário 23, podemos dizer que uma análise começa com o sintoma e termina com o sinthome. Os sintomas mórbidos que estão no início de uma análise são metáforas que visam manter articulado o desejo do sujeito; e o que chamamos com Lacan o sinthome, cuja função é ilustrada por Joyce através de sua escrita, seria aquilo que, para além dos sintomas, constitui o irredutível. Com isso, há uma mudança radical que define a etapa final do processo psicanalítico em termos de destituição subjetiva. A partir daí tratamos o sintoma sem o liquidarmos, pois há algo nele que não se dissolve e operamos sobre o gozo propiciando a travessia do fantasma e a produção do sinthome. A travessia agora implica em reencontrar o sinthome irredutível, com o qual o sujeito poderá obter o gozo possível. O final de análise seria então a identificação com o sinthome. Saber se virar com seu sinthome, saber manipulá-lo como se faz com a imagem. Referências bibliográficas LACAN, J. O Seminário, Livro 22: RSI (1974-1975). Inédito. ______. Conferencia in Ginebra sobre el sintoma (1975). In: Intervenciones y Textos. Buenos Aires: Manantial, 1988. ______. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
282
“Imagine O Que Eu Não Falaria Se Eu Não Fosse Gago!”: O Que Fala Essa Gagueira?
Roseane Torres de Madeiro1 Roseane Freitas Nicolau2 Jamile Luz Morais3
Este trabalho é fruto de reflexões suscitadas no Grupo de Pesquisa “A Psicanálise, o sujeito e a instituição” e toma como ponto de partida fragmentos de um caso atendido no âmbito institucional. Este caso, inicialmente mediado por uma clínica-escola, foi então levado ao referido grupo, o qual tem como objetivo investigar o lugar do sujeito e de seu corpo nos serviços de saúde, na tensão existente entre os discursos médico e psicanalítico. Nesse contexto, observa-se que o sujeito, uma vez manifestando uma doença, geralmente diagnosticada por uma instituição de saúde como de “causa psicológica”, solicita do analista uma resposta imediata para o seu sofrimento. Tal situação aconteceu com Antônio, que chega à clínica de psicologia por encaminhamento de um fonoaudiólogo, o qual teria atribuído ao seu sintoma de gagueira uma causa de ordem emocional. 1
Psicóloga, Membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, Sujeito e Instituição”, Aluna especial do Programa de Pós Graduação da UFPA. 2 Psicanalista, Professora Drª. do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPA e Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, Sujeito e Instituição”. 3 Psicóloga, Mestre em Psicologia, Residente em Oncologia, Membro do Grupo, “Psicanálise, Sujeito e Instituição”.
283
Sendo assim, considerando o fenômeno da gagueira em Antônio, como podemos concebê-lo a luz da psicanálise? Para discutir esta questão, vale retomar o texto de Freud (1926/ 1996) intitulado Inibição, Sintoma e Ansiedade, no qual ele nos fala da inibição como sendo “uma expressão de uma restrição de uma função do ego” (p. 93), como a função sexual, a de alimentação, de locomoção e do trabalho. Dito isto, no caso de Antônio, poderíamos atribuir sua gagueira simplesmente como uma inibição? Se tomarmos como base somente a lingüística ou uso corrente da palavra inibição, diremos que a gagueira de Antônio seria apenas uma restrição de uma função, a fala. No entanto, Freud salienta para um mais além desta inibição ao apontar para o fato de que uma inibição, quando patológica, pode se constituir como um sintoma, como afirma: Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso lingüístico, portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta (FREUD 1926/ 1996, p. 91).
Diante da afirmação, é possível dizer então que Antônio, ao trazer ao analista sua gagueira como queixa, denuncia seu próprio sintoma da seguinte forma: “Não sou doido, nem burro, sou gago!”. Ao se dizer gago, endereçando seu sintoma à analista, desejava erradicá-lo: “A senhora vai ter que dar um jeito nessa minha gagueira!”. Entretanto, sabe-se que a psicanálise não se dirige a eliminação dos sintomas, mas sim, toma-os como via de acesso ao desejo, pois só por meio do sintoma, ou melhor, de sua repetição, é que o analista pode apontar para o sujeito a posição que ele ocupa no campo do Outro, proporcionando uma redistribuição da economia psíquica e, consequentemente, uma possível resignificação. Desta 284
maneira, a instauração desse sintoma em Antônio constitui-se através de um paradoxo entre um sofrimento e uma solução, entre um conflito e uma satisfação inconsciente. Antônio incomodava-se por ser gago, contudo, obtinha uma boa dose de satisfação inconsciente com seu sintoma. Lacan (1962-63/ 2005), ao formular teorizações acerca da inibição, afirma que nela se exerce um desejo, desejo este oposto àquele que a função satisfaz naturalmente. Seguindo este pensamento, supõe-se que em Antônio, a função da fala fora inibida em detrimento de um desejo de não dizer aquilo que, para o seu Eu consciente, seria intolerável. Em suas palavras: “Imagine o que eu não falaria se eu não fosse gago!” Antônio parece apontar um desejo inconsciente que o sintoma vem disfarçar. Resta desta operação um “não dito”, em que, concomitantemente, o sintoma está para velar e denunciar. Afirma Lacan: Por que não nos servirmos da palavra impedir? É disso mesmo que se trata. Nossos sujeitos ficam inibidos quando nos falam de sua inibição, e nós mesmos o ficamos ao falar em congressos científicos, mas no dia-a-dia, eles ficam mesmo é impedidos. Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu [...] Impedicare significa ser apanhado na armadilha e é afinal, uma noção extremamente preciosa. Implica de fato a relação de uma dimensão com algo que vem interferir nela e que no que nos interessa, impede não a função, termo de referência, e não o movimento, que fica dificultado, mas justamente o sujeito. [...] Assim escrevo impedimento na mesma coluna que sintoma (p.19).
Diante disso, observa-se que ao relacionar o termo “inibir” com a expressão “impedir”, Lacan nos fala que o sujeito é impedido, barrado, pelo seu próprio sintoma. Sabese que o sintoma surge do conflito entre a pulsão e a cultura. Ao ser castrado, o sujeito acaba sendo impedido de obter total satisfação da pulsão, sendo possível apenas uma satisfação parcial. Para a Psicanálise este “dizer tudo” que certamente comportaria um gozo êxtasiante é da ordem do impossível, pois ainda que Antônio não fosse gago, ele não poderia falar tudo.
285
Neste sentido, o sintoma assume ao mesmo tempo uma função de solução a “uma luta defensiva contra um impulso instintual desagradável” (FREUD, 1926/ 1996, p.101), e uma função de barreira a uma satisfação pulsional. Com relação ao sujeito que tem a marca da gagueira como algo preponderante em seu discurso, Tassinaria (2001) sugere que é importante concebê-la como uma máscara e supor que atrás dela há um sujeito. Ela conceitua esta marca como sendo “uma marca de descontrole da forma da fala, uma espécie de renitência de uma instância constitutiva desse sujeito em submeter seu dizer à fluência melódica vigente na língua” (p. 78). Ora, se o sujeito do desejo é encontrado em sua afânise, através do deslizamento significante, como Antônio poderia construir um saber sobre o mal que lhe causa, se este era impedido de falar? Paradoxalmente, no caso de Antônio, ser impedido de falar por si só já dizia muito sobre o seu desejo, na medida em que a inibição da fala de Antônio, por estar encadeada à cadeia de significantes, pôde ser metaforizada e significada, tratando-se de uma inibição sintomática. Isto posto, o quê fala essa gagueira? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FREUD, S. (1926) Inibição, Sintoma e Ansiedade: In:. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XX LACAN, Jacques. O Seminário: livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005. TASSINARI; I. M. Do sintoma ao sujeito: contribuições da Psicanálise para o atendimento de um paciente gago. In: Gagueira e subjetividade: possibilidades de tratamento. Organizadores: Silvia Friedman e Maria Cláudia Cunha. Porto Alegre: Artmed, 2001.
286
Considerações Sobre a Constituição da Subjetividade na Psicose: Caso Schreber
Ana Ilki Meireles Oliveira1 Discutir acerca da constituição da subjetividade é falar de um processo complexo que se estrutura a partir da relação mãe, filho e campo simbólico. Segundo Elia (2004), é através do convívio social que nós, seres humanos, encontramos todo o amparo necessário para o nosso desenvolvimento e ele dar-se-á através de um adulto próximo, para Freud, ou pelo Outro, para Lacan. É esse Outro que irá transmitir através da linguagem e inicialmente para ele mesmo “uma estrutura significante e inconsciente [...] e não poderia ser simplesmente o conjunto de valores culturais” (ELIA, 2004, p. 40). O bebê, por sua vez, introduz o que Lacan denominou de significante, suscitando em seu corpo “um ato de resposta que se chama de sujeito” (ELIA, 2004, p. 41) e é nesse momento em que o sujeito é introduzido no campo da linguagem que ele deverá ser compreendido. Lacan (apud ROSENBERG, 1994) afirma que a formação da subjetividade constituir-se-á a partir do Outro. Pode-se considerar que a criança aliena-se na imagem do Outro, sua demanda será o de “ser desejado pelo outro” ou “ter o desejo do Outro como seu desejo”. É a mãe quem cria a demanda na criança e esta pela alienação, pelo temor da perda
1
287
do amor da mãe e pela não constituição ainda da sua subjetividade, insiste em responder-lhe a solicitação. No Seminário V “As formações do inconsciente”, Lacan (1958) sugere o Édipo dividido em três tempos. No primeiro tempo, a criança encontra-se numa relação dual com a mãe, supondo ser a falta dela. A partir desse momento, advém o que Lacan denominou segundo tempo do Édipo, que é marcado pela entrada de um terceiro nomeado de significante Nome-do-Pai, que vai para além da relação dual: é a lei do pai que intervém, não com sua presença, mas com sua palavra. O terceiro tempo do Édipo marcará seu declínio, no qual a função paterna representa a lei e simboliza um valor estruturante, capaz de determinar o lugar exato do desejo da mãe, condição esta para que a lei paterna seja representativa da lei. A passagem pelos três tempos do Édipo fará com que a criança interiorize a lei, inserindo-se na cultura e na linguagem. Dessa forma, compreendemos a estrutura psicótica a partir de uma falha ocorrida na relação primordial. Utilizaremos alguns desses aspectos fundamentais para compreender a constituição da subjetividade e sua implicação na psicose de Daniel Paul Schreber. Podemos afirmar que o início da psicose em Schreber se deu após ele ser nomeado ao cargo de Presidente da Corte de Apelação de Dresden, o qual corresponde simbolicamente à função paterna, uma vez que ele é encarregado das leis. É acerca da falta desse nome – Nome-do-Pai – e de suas conseqüências que pretendemos refletir sobre a função dos pais de Daniel Paul Schreber com relação à psicose.
288
Niederland (1981) aponta que, em relação ao pai, pode-se argumentar que ele foi o tipo de pai simbiótico cuja presença onipresente, cuja usurpação da função materna e cujos outros
traços
dominadores
(tanto
francamente sádicos
quanto
paternalisticamente
benevolentes; tanto punitivos quanto sedutores) prestaram-se a sua fusão com a bizarra hierarquia divina que caracterizou o sistema delirante do filho. Admitimos que o maior pavor de Schreber era o de ter de assumir o lugar do pai. No entanto, pelas observações feitas ao longo do percurso das pesquisas psicanalíticas acerca do caso, sabemos que Schreber não podia aceitar um papel masculino ativo em um sentido mais amplo. Quando Schreber foi solicitado a se tornar um membro do Reichstag, ele adoeceu pela primeira vez – na época, isso significava opor-se a Bismarck, o “Chanceler de Ferro”, indiscutível figura de pai. Quando foi chamado a ocupar o cargo de juiz presidente da Corte Superior, novamente caiu doente, e desta vez para sempre. Impossibilitado de enfrentar o poderoso pai em uma competição árdua como membro do Reichstag ou de ocupar um lugar de pai, já que ele seria responsável pelas leis, como Presidente da Corte Suprema, Schreber adoecia todas as vezes em que se via frente a tal ameaça. O olhar primordial deve estar presente na relação mãe-filho e é através dele que a criança irá se reconhecer como sujeito, caso contrário, ela se perceberá como um ser despedaçado, objeto. Houve uma falha nesse olhar que deixou Schreber preso como objeto de gozo do pai. Moritz Schreber coloca os filhos no lugar de coisas, objetos, no momento em que os usa para seus experimentos na medicina, assim como na educação dada a eles. O pai de Schreber utilizava-se de uma educação autoritária e submissa, na qual impunha seus desejos
289
acima dos desejos de seus filhos. “Ocupar esse lugar de objeto desejado tem uma função importante na fundação de um sujeito. Mas se se ocupa esse lugar de objeto então não se pode ocupar um lugar de sujeito”. (BRAUER, 1998). Entende-se que a entrada de Moritz deveria intervir na relação dual que Schreber estabeleceu primeiramente com a mãe, porém, Moritz não interdita essa relação mãe-filho, mas sim prolonga essa relação narcísica, não permitindo a entrada do terceiro, isto é, do significante Nome-do-Pai. Acerca disso, Waelhens (1990, p. 98) explica: É na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no malogro da metáfora paterna, que designamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que separa da neurose. Ou ainda: para que se desencadeie a psicose, é preciso que o nome do pai, ‘verworfen’, foracluído, ou seja, nunca advindo no lugar do Outro, seja chamado ali em oposição simbólica ao sujeito.
Em relação à entrada do significante Nome-do-Pai, ou seja, a castração simbólica, Julien (1999, p. 39) assinala: “Teu quarto é teu quarto e o meu é o meu. Meu gozo não tem nada a ver contigo; meu gozo se volta para uma mulher, uma mulher da minha geração, causa do meu desejo”. Podemos afirmar que é exatamente isso que Moritz não faz, ele não permite a entrada da mãe, Pauline, na relação dele com Schreber, cabendo a ele toda a função de mãe nesta relação.
290
Para Waelhens (1990, p. 96), “a partir do momento que o significante da castração é foracluído, a única saída aparente para Schreber consiste em regredir ao nível dessa condição, que não é outro senão o da união dual”. Moritz declarava através de seus escritos que a mulher deve ser inexistente, que não pode se posicionar a não ser pela ordem do marido e deve ser uma mulher apagada. Moritz era um pai que sabia tudo, orientava tudo, supervisionava tudo. Em relação ao tema educação, afirmava: “o educador é um homem que tem resposta para tudo” (MANNONI, 1977, p. 28). Em relação à mãe, apontava: “que a mãe se apague, é a voz do pai que importa”. (MANNONI, 1977, p. 46). É isso que podemos constatar na educação destinada a Schreber, pois não é possível encontrar a voz do pai Moritz na mãe Pauline, cabendo sempre a Moritz os cuidados do filho. A mãe só existiria a partir do discurso do pai, mas, como já vimos, Moritz anulava as mulheres, não as valorizava, conseqüentemente também anulava Pauline da relação com Schreber. Do lugar do pai no triângulo simbólico, restou o significante confundido com o significado precisamente ali onde ele deveria estar e nunca esteve. “Através de nada menos do que um pai, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas através de Um – Pai” (WAELHENS, 1990, p. 99). Esse Um - Pai surge no real, no tempo em que alguém venha ser personagem da figura paterna e se impor ‘na posição terceira’, isto é, no campo de alguma das relações erotizadas entre o sujeito e seu objeto, ou melhor, entre o ideal e a realidade.
291
Percebemos que Schreber teve um pai em excesso, muito presente, passando-nos uma compreensão de um pai como figura muito forte, que submetia Schreber a uma educação subordinada, obediente e dependente. Assim, o filho de Moritz recebeu de alguma forma a missão fracassada em si de encarnar a verdade do pai, no dizer de Mannoni (1977) foi submetido, na sua relação com o pai, a uma perversão da demanda de amor. Adestrado, amado, ao preço de não ser, tendo seu desejo inteiramente governado pelo pai, alimentou seu delírio e por amor de Deus ficou submetido a uma posição feminina, encontrando sua verdade através do delírio.
Referências BRAUER, J. O Sujeito e a Deficiência. Revista Sobre a Infância com Problemas, São Paulo, ano III, v. 5, 2º semestre de 1998. ELIA, L. O Conceito de Sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. FREUD, S. Observações Psicanalíticas Sobre um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides) Relatado em Autobiografia. In: FREUD, S. Obras Completas, vol. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. JULIEN, P. As Psicoses: um estudo sobre a paranóia comum. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. LACAN, J. O Seminário V: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
292
MANNONI, M. O Psiquiatra, Seu “Louco” e a Psicanálise. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. MANNONI, M. Educação Impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. NIEDERLAND, W. G. O caso Schreber: um perfil psicanalítico de uma personalidade paranóide. Rio de Janeiro: Campus, 1981. ROSENBERG. A. M. O Lugar dos Pais na Psicanálise com Crianças. São Paulo: Escuta, 1994. SCHREBER, D. P. Memórias de Um Doente dos Nervos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal,1985. WAELHENS, A. A Psicose: ensaio de interpretação analítica e existencial. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
293
De um Sintoma no Corpo a um Sintoma Analítico: uma Clínica a Partir dos Fenômenos Psicossomáticos
Ingrid de Figueiredo Ventura1 Roseane Freitas Nicolau2 Jamile Luz Morais3
Este trabalho propõe debater a particularidade da direção da cura diante do fenômeno psicossomático (FPS), considerando sua diferença com relação ao sintoma. Através dos estudos e discussões no Grupo de Pesquisa O Sintoma do Corpo, nos deparamos com algumas afecções que o afetam sem comportarem uma causa orgânica comprovada. Tais afecções, geralmente diagnosticadas pelo saber médico como “psicossomáticas”, impõem-se como um entrave na direção do tratamento, pois admitem uma modalidade de gozo fixada ao corpo, como uma escrita não passível de decifração, distinguindo-se do sintoma, o qual, por se constituir como um retorno do recalcado, pode ser interrogado, convertendo-se em um enigma. Por esta razão é que Szapiro (2008) nos diz que receber um paciente com enfermidades “psicossomáticas” se coloca como um desafio ao analista, na medida em que se 1
Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ e coordenado pela Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. Endereço eletrônico: ifpsi@yahoo.com.br. 2 Psicanalista, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com Formation Doctorale na École des Hautes Études em Sciences Sociales em Paris (França), professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFPA e coordenadora do grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ. Endereço eletrônico: rf-nicolau@uol.com.br. 3 Psicóloga, mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ e coordenado pela Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. E-mail: jamilemorais_11@yahoo.com.br.
294
faz necessário sustentar uma fala atrelada a estas afecções, as quais se encontram presas ao registro do real do corpo. A especificidade nestes fenômenos está na dificuldade do paciente em se articular com a dimensão subjetiva, uma vez que ao buscar uma resposta imediata para seu sofrimento, localizado em um ponto irrepresentável do seu corpo, impossibilita que uma demanda se constitua pela via da transferência de amor. O sintoma, diferentemente, evidencia uma vinculação com uma representação, configurando-se como uma formação do inconsciente. Neste caso, existe a possibilidade, em transferência, de o sujeito comparecer, fazendo associações que remetam às estas representações, ou seja, ao conteúdo recalcado. Para Freud (1926/1996) o sintoma aponta para o sujeito do inconsciente, sendo resultado de um trabalho de substituição para uma satisfação pulsional, produto do processo de recalque. Já o FPS, manifesta-se no corpo não como um retorno desta operação, mas sim como uma espécie de “matéria bruta”, que não foi lapidada, transformada em sintoma. Ao se referir ao FPS, no Seminário 11, Lacan (1964/1998) salienta que este não pode ser considerado um significante, tendo em vista que não há a afânise do sujeito. Para ele, a afânise diz respeito ao desaparecimento do sujeito do inconsciente na linguagem, por meio do deslizamento na cadeia significante. Isto quer dizer que para o sujeito ex-sistir na linguagem, uma vez que aparece justamente em sua falha, ele deve primeiramente estar afanisado na cadeia. Lacan nos diz que a eclosão de um FPS acontece devido à holófrase, termo que emprestou da lingüística para falar da condensação do primeiro par de significantes S1—S2, os quais, ao não se articularem, impedem o deslizamento da cadeia e a afânise. Logo, sem a última, não há possibilidade de desaparecimento e aparecimento do sujeito, prejudicando
295
assim o registro simbólico e qualquer enlace com a esfera subjetiva. Partindo desse pensamento, Lacan (1966), na conferência intitulada Psicanálise e Medicina, usou a expressão falha epistemo-somática para se referir aos FPS, indicando que estes refletiam uma “ignorância” do sujeito com relação ao saber sobre seu corpo, seu desejo e sua história. Tal “ignorância”, por sua vez, explica o motivo pelo qual esses pacientes encontram dificuldade de se implicarem subjetivamente, circunscrevendo uma fala fixada aos sintomas físicos pelos quais foram atravessados. Nesse sentido, tomando a formulação de Lacan sobre a falha epistemo-somática, podemos dizer que ela mostrou seus efeitos em Elisa, paciente atendida no contexto da pesquisa O Sintoma do Corpo. Elisa, em um primeiro momento, não se implicava com seu sofrimento, deixando-se levar por uma fala em torno de sua doença: O Lúpus Eritematoso Sistêmico. Nas palavras de Elisa: “Essa semana foi horrível, quase não consegui dormir direito, meu coração batia forte, aquelas dores voltaram. Quando isso acontece fico muito ansiosa, não sei o que fazer. E o pior, há quatro dias acordei cheia de manchas na pele! Não agüento mais, todo hora é uma coisa, fui na médica e ela disse que pode ser psoríase, minha cabeça está só casquinha, sabe”. Elisa, em sua fala, além de denotar sua falta a saber, ficava presa num dizer vazio, direcionado a todos os sintomas físicos que tinham lhe ocorrido durante a semana, procurando, assim como fazia com seu médico, uma espécie de “diagnóstico emocional”, que supostamente explicaria a causa de sua doença. Sobre isso, Ornellas (2004) pontua que o paciente, ao procurar um médico para obter uma explicação sobre a sua patologia, espera uma autenticação para a mesma e, portanto, uma falsa demanda de cura. Identifica que nestas
296
situações está em jogo uma satisfação específica, ou seja, um gozo específico, já que o sujeito se apresenta fixado no corpo. Diante desta repetição, existiria alguma possibilidade desta paciente se implicar com algo subjetivo de sua história? A fim de discutir esta questão, retomamos a seguinte afirmação de Lacan (1964/1998, p. 215): É na medida em que uma necessidade venha estar interessada na função do desejo que a psicossomática pode ser outra coisa que não essa simples bravata que consiste em dizer que há um duplo psíquico para tudo que se passa no somático. Sabe-se disso há muito tempo. Se falamos de psicossomática é na medida em que deve aí intervir o desejo. É no que o elo do desejo é aqui conservado, mesmo se não podemos dar conta da função da afânise do sujeito O que nos diz Lacan é que mesmo a psicossomática não sendo um significante, isso não denota abolir a idéia de que um indivíduo afetado por uma lesão deste tipo não possa se manifestar como sujeito. De modo diverso, podemos dizer que, momentaneamente, este indivíduo não quer se haver com o seu desejo inconsciente. Assoun (1997) considera o FPS como uma “fuga” do sujeito de sua neurose. Ao afirmar que a doença põe a neurose em suspensão, o autor nos coloca que o sujeito, apesar de por um momento manter-se escondido atrás do real de sua patologia, está lá, esperando uma implicação subjetiva. No momento em que é acometido por uma afecção “psicossomática”, é capaz de substituir sua neurose por um fenômeno desta ordem, “fugindo” de sua constituição fantasmática, que permanece suspensa. Pontua que a enfermidade somática surge como se fosse um “despertador”, um chamado para a cadeia de significantes que está parada, gelificada, carente de simbolização. Seria a chamada para a eclosão de um sintoma neurótico. É possível afirmar que as afecções somáticas também seriam uma forma de aviso
297
dirigido ao sujeito, ao sinalizar (através da lesão) que este deve deixar a neurose emergir. É o verdadeiro encontro entre as pulsões de vida e de morte, pois enquanto a pulsão de morte lança o sujeito para a morte, destruindo os órgãos e causando prejuízo ao corpo, a pulsão de vida, através de uma castração pelo real, convida-o a voltar a sua condição: a de sujeito do inconsciente. O autor relaciona o FPS com um masoquismo corporal, o qual levaria o corpo a gozar se utilizando de suas partes complacentes e, consequentemente, fazendo o paciente pagar a dívida daquilo que não foi simbolizado. Sendo assim, o fato de Elisa estar presa numa fala direcionada às suas afecções, em torno do Lúpus, isso não significa dizer que não devemos apostar na emergência do sujeito do inconsciente. No entanto, como o analista pode conduzir uma fala colada no corpo em direção a outra, dirigida ao seu desejo? Wartel (1987/1990) nos diz que não há outra saída senão a partir do silêncio do analista, de uma posição ética, de não resposta. É apostando na possibilidade da associação livre, por meio da posição de causa de desejo do analista, é que entre um dito e outro, entre um significante e outro significante, possa surgir o sujeito do desejo e do inconsciente. Retornando ao caso de Elisa, poderia ela se haver com um significante que a representasse a outro significante e assim entrar em contato com sua história? Atendida no contexto de uma instituição hospitalar, Elisa chega com a analista, representante de um saber psi, a fim de encontrar uma resposta imediata para seu sofrer. Ao se deparar com a não resposta, referindo-se às suas queixas físicas, deixa escapar o significante medo, dizendo: “Quando me sinto assim, com muitas dores, me dá um medo...”. Ao solicitar que falasse desse medo, ela diz: “Tenho medo de ficar sozinha em casa, vai que me dá um
298
troço, não vai ter ninguém pra me acudir... tenho medo que as pessoas esqueçam de mim, esqueçam que eu existo” . Ao falar disso, lembra de uma cena contada por sua avó, referente ao abandono que havia sofrido na infância, por sua mãe biológica. Disse que nunca havia contado a ninguém o medo de ser abandonada e que até aquele instante não entendia o motivo pelo qual seus pais deixaram que ela fosse criada por outra família, como demonstra em seus relatos: “Tudo bem que a minha avó me tirou dela por causa da forma irresponsável que ela me criava. Onde já se viu deixar um bebê sozinho numa casa. A vovó me disse que tinha meses quando aquela outra [falando de sua mãe biológica] me deixou na casa que a gente morava sozinha, deitada numa rede. A vovó escutou meus gritos fora da casa, pediu que arrombassem a porta e quando ela chegou lá eu estava toda cagada, mijada. Ela ficou revoltada com essa situação e disse pra mamãe que não ia mais ficar lá. Tudo bem que a vovó me tirou dela, mas ela me deixou e não me criou porque não quis”. Ao se haver com o significante medo (S1), Elisa pôde redistribuir sua economia gozosa, deixando de falar do corpo parar falar da história de seu sintoma, de seu desejo. Vale ressaltar que tudo isso só foi possível porque acreditamos que, em psicanálise, o trabalho caminha na direção de uma escuta que aponte para um sujeito possuidor de um corpo erotizado e recoberto pela pulsão e não apenas para um corpo tomado simplesmente no campo da biologia. Nicolau (2008) ressalta que é preciso escutar o que pode estar para além da doença, ou seja, aquilo que está em jogo na afecção psicossomática: uma insistência que aponta para a dimensão de um não querer saber. Trata-se de uma operação, na transferência, que possibilite um enlace com algo de sua própria história, promovendo uma nova regulação
299
de gozo para o sujeito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOUN, P. Corps et symptôme - clinique du corps: Tome 1. Paris: Econmica Ed, 1997. FREUD, S. “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas – (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XX. LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. ______. “Psychanalyse et médécine” (1966). In: Petits écrits et conférences – 1945- 1981. Inédito. NICOLAU, R. F. A psicossomática e a escrita do real. In: Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, vol. VIII, n. 4, p. 959-990, 2008. ORNELLAS, J. G. “Luzes sinistras”. In: Revista da Escola Letra Freudiana – O corpo do Outro e a criança. Rio de Janeiro, Ano XXIII, n. 33, p. 113-126, 2004. SZAPIRO, L. Elementos para una teoría y clínica lacaniana del fenómeno psicosomático. Buenos Aires, Grama Ediciones, 2008. WARTEL, R. Que esperam de nós os médicos? (1987). In: Psicossomática e Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
300
A Criança como Sintoma dos Pais em Casos de Disputa de Guarda Karine da Rocha Queiroz1 Dra. Júlia S. N. F. Bucher-Malusche2 A dissolução conjugal pode ser um acontecimento traumático para um casal, principalmente quando a decisão é apenas de uma das partes, podendo gerar ressentimentos. Quando se tem filhos, a separação pode se tornar ainda mais delicada, principalmente quando envolve crianças, onde muitos pais quando do desacordo recorrem às varas de família para tentar resolver questões pertinentes à guarda dos filhos. O grande problema é quando na tentativa de salvar o casamento ou se vingar do excônjuge os pais usam a criança como arma para atingir o outro. Porém os pais não podem esquecer que sempre que uma das partes ganha, quem perde é a criança, que muitas vezes é revitimizada por meio do processo de disputa de sua guarda, dos conflitos de seus pais. Este trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado em psicologia, onde foi realizada uma leitura psicanalítica sobre “O princípio do melhor interesse da criança em casos de disputa de guarda”. A pesquisa foi voltada a verificar se existem garantias no âmbito jurídico de que os interesses da criança serão resguardados, colocando estes acima dos impasses de seus pais. 1
Psicóloga, aluna do mestrado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, especialista em Psicologia Clínica de Base Analítica pelo Centro Universitário Luterano de Manaus – ULBRA. (karine.psi@gmail.com)
2
Doutora em Ciências Familiares e Sexológicas, pós-doutorada nos EUA e Alemanha. Professora titular da Universidade de Fortaleza e pesquisadora colaboradora sênior da Universidade de Brasília.
(juliasursis@gmail.com)
301
Interesses estes que dizem respeito também a criança continuar a conviver com o genitor nãoguardião após a dissolução conjugal, de forma em que esta não se sinta culpada por continuar a amar ambos os pais, não sinta a separação dos pais como um desamparo. Para isto, foram realizadas entrevistas com juristas e peritos (psicólogos e assistentes sociais) que atuam em casos de disputa da guarda dos filhos, no Fórum da cidade de Fortaleza. Quando das entrevistas, no que competem as conseqüências que o desacordo dos pais podem causar a criança, foi verificado que os juristas e psicólogos entrevistados enfatizavam a questão de sintomas apresentados pela criança no decorrer do processo, como consequencia da angústia que as brigas de seus pais estavam causando. Neste trabalho, serão recortadas algumas falas destes profissionais, para abordar a questão da criança como sintoma de seus pais em casos de disputa de guarda. Alguns genitores, não sabendo separar conjugalidade da parentalidade após a dissolução conjugal, podem fazer a criança ter que tomar partido na peleja causando um enorme conflito emocional na criança. Nestes casos, o grito de solidão desta criança pode aparecer em forma de sintomas. Neste sentido, a juíza pontua: “Quando elas têm problemas dessa natureza (se referindo a tentativa dos pais afastarem a criança do convívio um do outro), aquilo é um desastre pra criança sabe, porque aquilo afeta a vida inteira da criança né, é na escola, em casa, ela fica retraída, não é mais a criança, aquela coisa bela, não tem mais aquela liberdade e você vai ter uma criança maltratada”.
302
Para Lacan (1969) o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar, representando a verdade do casal parental. Ou seja, há a relação entre a estrutura familiar e o sintoma da criança, existindo uma apropriação sintomática da criança através de suas produções fantasmáticas, ou de um assujeitamento mortífero ao desejo do Outro. Neste sentido, Mannoni (1967) observa que a criança é parte de um discurso coletivo e que diante da intrusão dos pais, não resta outra saída senão responder com o sintoma por meio de problemas escolares, reações somáticas, entre outros. Para a mesma autora, é a palavra do pai, a palavra da mãe que pesa para a criança. Assim, enquanto a criança estiver sob o império dessa palavra mortífera será escrava do desejo de seus pais, onde seus próprios desejos ficarão soterrados. Para o sujeito ter acesso ao desejo, que o constitui, é necessário então que ele não seja bloqueado pelas palavras parentais. A psicóloga nesse sentido pontua: “O que está por trás (do processo de disputa de guarda) é uma separação mal resolvida, por aquela convivência que se perdeu, então é espírito de vingança, onde os pais usam os filhos como moeda de troca”. Checchinato (2007), se referindo ao trabalho de Lacan “Duas notas sobre a criança” (1969) lembra que a psicanálise entende o sintoma como um fenômeno subjetivo, que ao mesmo tempo em que faz sofrer, propicia gozo. Existem assim alternativas: ou sintoma se apresenta como uma disfunção (recalque), onde a criança se vê depositária daquilo que é insuportável no pai ou na mãe, ou como lesão de órgãos, que é o sintoma que aparece no corpo.
303
De acordo com a psicóloga ouvida, em seu trabalho com crianças no contexto da disputa de guarda esta afirma: “Essa questão do desenvolvimento tanto emocional quanto físico mesmo, porque tem somatização muitas vezes, que são conseqüências negativas que a gente percebe, tanto no âmbito escolar como as somatizações, questão biológica né, física e a questão emocional mesmo”. A criança assim pode ser alvo da projeção dos problemas de seus pais, das frustrações destes. Nos casos da disputa de guarda, muitos pais induzem as crianças a mentir, a não ir aos passeios com o outro genitor, escondendo a criança, inventando doenças, se vitimando, denegrindo o genitor não guardião. Assim como o genitor não guardião, pode tentar pactuar com a criança, contra o genitor guardião. Quando a criança é coloca nesta situação, pode se sentir perdida, até mesmo culpada por amar ambos os pais e desejar tê-los por perto mesmo após a dissolução conjugal. A criança pode acreditar que foi ela que provocou o sofrimento dos pais, que o desenlace é por sua causa (Dolto, 2003). Ainda segundo a mesma autora, reações psicossomáticas podem vir a surgir devido à angústia que a criança sente em relação à separação dos pais, onde a criança não sabendo explicar verbalmente o que sente expressa no corpo. A psicóloga nesse tocante coloca: “Muito comum as somatizações, são problemas gástricos, refluxo, a criança chega a ter gastrite né, muito problema de pele também.” Dolto (2003) lembra o ensinamento lacaniano de que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, mostrando que há partes no corpo do sujeito que são expressivas sem que
304
este saiba, ou seja, os sintomas constituem uma linguagem a ser decifrada, onde no caso das crianças, está pode expressar no corpo o que não consegue falar. Como foi dito, o sintoma surge como um S.O.S, sendo a verdade do casal parental. Retomando o trabalho de Checchinato (2007) este lembra que a valorização ou desvalorização que um pai faz do outro para a criança, a marca. Para o autor nunca é demais escutar que lugar o pai da criança ocupa no discurso da mãe e o lugar da criança no discurso de ambos os pais. Levando esta questão para o contexto da disputa da guarda de crianças, é necessário que os profissionais que atuam em cada caso, fiquem atentos para o discurso dos genitores, os motivos alegados para a dissolução conjugal, que função eles delegam à criança a ocupar neste cenário. Nesta mesma perspectiva, Kupfer (1994) pontua que pais e criança são determinados pelas leis do simbólico, da linguagem, isso permite que haja uma circulação de doenças por meio da amarração discursiva. Porém como a autora lembra, ao contrário do adulto, a criança depende por vários anos de cuidados especiais e isso a faz submeter-se aos desejos de seus pais. As manifestações sintomáticas são justamente então a resposta da criança às neuroses nos Outros reais que são seus pais, ou seja, os pais escrevem algo de sua própria neurose sobre o corpo da criança. Rosenberg (1994) partilha do mesmo entendimento, afirmando que as crianças costumam fazer sintomas em lugares que se tornam insuportáveis para seus pais, sendo uma maneira de a criança se fazer ouvir. Neste sentido, a criança pode, por meio do sintoma, reatualizar conflitos não resolvidos de seus pais.
305
Assim, uma das partes ou o casal pode utilizar o processo judicial como manutenção do vínculo (Zimerman e Colto, 2002) como último recurso ao seu apelo psíquico e em sua angustia em responder suas questões, pode esquecer que no meio do conflito existe uma criança que espera de seus pais nada menos que estes exerçam sua função enquanto pais, estando estes juntos ou separados.
Referências Bibliográficas CHECCHINATO, D. Psicanálise de pais. Criança sintoma dos pais. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. KUPFER, M. C. Pais: melhor não tê-los? In: O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Escuta, 1994. LACAN, J. Duas Notas sobre a criança. (1969). In Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003. MANNONI, M. A criança, sua doença, e os outros. (1967). São Paulo: Via Lettera, 1999. ROSENBERG, A. M. A constituição do sujeito e o lugar dos pais na análise de crianças. São Paulo: Escuta, 1994. ZIMERMAN, D; COLTO, A. Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. São Paulo: Millennium, 2002.
306
Psicanálise e Política : o Psicanalista como Sintoma da Cultura
Juçara Rocha Soares Mapurunga1 Henrique Figueiredo Carneiro2 Lacan posicionou-se diferentemente de Freud com relação ao mal-estar na cultura, pois ao contrário deste, para quem só há sociedade fundada sobre a função paterna, o malestar sendo visto como efeito do recalque, acreditava que a queda do saber do mestre transformado pelo saber científico é o que justifica o mal-estar nas sociedades atuais, caracterizadas pela ciência e pelo capitalismo, em que um dos aspectos do gozo se encontra no consumo de bens. O início do declínio da figura paterna começou no século XIX, com o choque de valores trazido pela economia industrial, onde os novos valores que surgiram eram os da economia mercantil, atrelando um declínio do Nome-do-Pai às modificações da economia, estando em baixa os valores ligados aos ideais simbólicos. O nascimento e a evolução da democracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa da tradição, pois visa o desaparecimento da hierarquia, julgada responsável pelas desigualdades, e encontra seu fundamento no discurso da ciência . A grande filosofia moral dos dias de hoje, é que cada ser humano deveria encontrar em seu meio aquilo com o que se satisfazer plenamente. É a sociedade do gozo do consumo dos objetos. Nesta cultura, pautada no 1
Psicóloga (UFC), psicanalista, mestre e doutoranda em Psicologia pela UNIFOR (Universidade de Fortaleza); membro do LABIO (Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto), e da CLIO – Associação Psicanalítica. E-mail: jucara@mapurunga.adv.br 2 Doutor em fundamentos y desarrollos psicoanalíticos (UPCO-Madrid). Professor Titular e coordenador do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Coordenador do LABIO (Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto) e da CLIO (Clínica do Objeto). Membro do GT Psicopatologia e Psicanálise da ANPEPP. Pesquisador da AUPPF (Associação Universitária de Pesquisadores em Psicopatologia Fundamental). E-mail: Henrique@unifor.br
307
discurso do capitalista, e iludida pela universalidade da ciência que prometem a completude e a felicidade extrema numa clara tentativa de fazer desaparecer a castração, o discurso do psicanalista e sua ação política é uma saída ao trazer à tona o encontro com a castração, que funda o sujeito humano, mas, é, também um sintoma. Discutir a posição política do psicanalista como um sintoma da cultura é o nosso objetivo. Além de ser efeito dessa cultura, o psicanalista é, também, sintoma, ao trazer à tona o discurso da castração em confronto com o imperativo categórico do gozar a qualquer preço. Hoje, sabemos, a palavra de ordem da ideologia liberal é assegurar o gozo a todos . “E isso se tornou a nova moral. A nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer plenamente seu gozo, sejam quais forem suas modalidades.” (Melman, 2003, p. 60). Dentro dessa nova moral, fundamentada no saber da ciência, que se transmite em seus enunciados e exclui o sujeito da enunciação, tão caro à verdade psicanalítica, qual a posição do psicanalista? Nesse sentido, Eric Laurent (2007, p.144), assente dizendo: “ O analista mais que um lugar vazio, é aquele que ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e particularidades individuais “. Os analistas não devem apenas escutar; eles precisam saber transmitir a humanidade do interesse que a particularidade de cada um tem para todos”. Além da escuta clínica, o psicanalista hoje deve transmitir a particularidade que está em jogo na verdade de cada sujeito, ao invés do saber universal do indivíduo científico. A democracia trouxe a atualização política desta mutação cultural em andamento.. O nascimento e a evolução da democracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa
308
da tradição, pois visa o desaparecimento da hierarquia, julgada responsável pelas desigualdades, e encontra seu fundamento no discurso da ciência e na exclusão do ao-menosum que lhe é implícito. Assim nesse mesmo movimento democrático, o saber das ciências tomou o lugar do mestre, esse ao- menos-um, que escapa a castração. Observamos uma recusa a castração na sociedade de consumo, no discurso capitalista há uma recusa da verdade do discurso. Márcio Peter (2000, p.252) lembra que Lacan referindo-se à Max Weber, em relação à ética protestante e o capitalismo, disse: “O deslizamento calvinista que nos últimos séculos introduz o capitalismo se caracteriza por distinguir o discurso capitalista pela recusa da castração”. Na Conferência em Milão, 1972 : “Do discurso do psicanalista”, Lacan assegura: “Toda ordem, todo discurso que se entronca no capitalismo deixa de lado a castração”. ( Ibid). Lacan formulou uma noção diferente da de Freud, para o mal-estar próprio à cultura. Para Freud o mal-estar é visto como efeito do recalque, para Lacan é próprio da civilização caracterizada pela ciência e pelo capitalismo, que um dos aspectos do gozo se encontre no consumo de bens, advindo daí o mal-estar. Para Márcio Peter (2000, p. 221) é aqui que a clínica psicanalítica aponta para a emergência de novas formas do sujeito fugir ao mal-estar, pois dentro da linguagem, intensificada pelo poder da mídia, há sempre novos dispositivos identificatórios que oferecem ao sujeito novos modelos de evitar a angústia, por intermédio de ideais prontos para serem oferecidos em massa, para sujeitos universalizados, excluídos em suas diferenças, em suas singularidades e diferenças.: “É esse o debate no qual o analista está convocado pela cultura e que acontece não só por ser o analista ele também um sintoma da
309
cultura que interpreta, mas, mais ainda talvez, por ser o analista a única esperança de modificação dessa cultura.” O comentário de Márcio Peter (2000, p. 222): “O analista, ao se comprometer com a causa do inconsciente, quase sempre se contrapõe à causa do mercado, já que, para cada um de nós, o que conta é somente uma verdade particular, ficção fabricada para responder ao mal-estar.” , nos esclarece porque, o analista é um sintoma da cultura, pois a confronta com a incompletude do inconsciente. À ciência que se pretende totalizante com o seu saber, o analista confronta com a verdade do sujeito do inconsciente: “Por isso o analista é um sintoma da cultura, porque ao mesmo tempo em que ele é sua mais refinada produção, representa uma expressão da rebeldia à tirania desta civilização, que, por causa das características da condição humana, faz o homem procurar a completude que não existe na religião, no consumo de bens, no amor, no saber, ou em termos freudianos, na ilusão”(Ibid). Freud em seu percurso nos mostrou e serviu de modelo na atuação social e política do analista, quando observamos nele em operação uma tripla responsabilidade do fundador da psicanálise face ao campo social: responsabilidade clínica, primeiro, já que responde por entender o que é a reação terapêutica negativa na cura; responsabilidade teórica, já que desenvolve a questão da pulsão de morte e da segunda tópica; por fim, responsabilidade política, já que toma diretamente partido nessa questão da análise leiga. (Lebrun, 2004, p.204). Então na própria formação e atuação o psicanalista situa sua posição frente ao campo social e político. Colette Soler (1998, p. 257), aborda a questão da incidência política do psicanalista a partir de uma tese de Lacan em ‘Televisão’ (1974), em que ele indica, nada menos, que o passe do psicanalista poderia operar “a saída do discurso capitalista”. Lembrando que além disso, Lacan não cessou jamais de afirmar que a psicanálise tem de fato
310
um alcance político e que ganharia esse alcance se os psicanalistas consentissem em não esquecer por que eles são feitos, e a que os chama o discurso analítico. Para o discurso do capitalista, o passe do psicanalista anunciaria uma saída, como proclamou Lacan, pois essa posição não é nada mais do que o que esse anuncia na fórmula elaborada por Colette Soler (1998, p.262): “o psicanalista...- o psicanalista como produto transformado de uma análise- não é um proletário”. O psicanalista é aquele que pode fazer frente a todo discurso derivado do discurso do capitalismo ( aquele que deixa de lado a castração), porque tem por desejo e vocação de mudar alguma coisa na economia do gozo capitalista.Sendo assim, a posição do psicanalista na sociedade de consumo, é aquela de pretender emancipar os sujeitos dos impasses da versão capitalista do supereu. Por isso representa uma saída e uma solução. Ao fim de uma análise, caminha-se para uma redução do gozo e para a inscrição da diferença do desejo de cada um. Por fim passemos a palavra a Colette Soler, que resumidamente responde por que a psicanálise é a solução, a saída para o discurso capitalista: “Se nos perguntamos ‘por que a psicanálise?’como a uma certa época nos perguntávamos ‘por que os filósofos?’, nós a reportamos geralmente a um vício radical em uma civilização marcada pela ciência. Esse vício deve-se ao fato de que a ciência ignora o sujeito. É uma foraclusão. Daí a idéia de que a psicanálise está aqui a título de antídoto, fazendo valer o que chamei na ocasião de os direitos do sujeito. Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta a ciência”. (1998, p. 283). Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta à ciência. Como se o psicanalista fosse em seu sumo, em sua formação, em sua atuação o que falta para fazer frente ao mercado
311
de consumo. E isso é possibilitado através do posicionamento do psicanalista frente ao mundo social da atualidade, pois a própria formação do analista o leva continuamente a questionar que, se não há uma cura para o mal-estar na cultura, o analista sendo ele mesmo um objeto de mercado situa assim uma ética que vai além do terapêutico e de um consumismo de bens que prometa uma completude que não há. Para um mundo organizado pelo desabono da função paterna e pela retirada do pai real, pela pulverização da imago paterna, o psicanalista, é óbvio, não é capaz de trazer remédio, se é que se pode e é preciso curar disso, mas sua responsabilidade social é se pôr a trabalhar ali onde pode. E onde isso é possível é na sua própria formação, atuação e posição de analista que leva o saber aprendido no consultório para outros lugares sociais, onde pode proclamar a verdade de que o objeto do desejo, não é esse propagado pela sociedade de consumo, mas aquele que está para sempre perdido, que sempre desliza e nos escapa, mas que foi capturado por Lacan, naquela que foi sua grande criação conceitual: o objeto a, causa do desejo. Trazer a castração, a enunciação, não quer dizer querer voltar ao passado do pai da tradição, isso não tem volta. Não quer dizer que não aceitamos as vantagens da ciência, mas que criticamos seus enunciados e conhecemos como o social utiliza seu funcionamento e que estamos atentos às tentativas de apagamento das diferenças, e sempre que possível tentaremos fazer com que o que torna singular e particular cada sujeito possa contribuir para minorar um pouco o mal-estar próprio e indestrutível das culturas em que época que for, seja do desamparo ou do desalento.
312
Referências Bibliográficas LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário. Livro XVII. O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. LAURENT, Éric. A Sociedade do Sintoma. A psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007. LEBRUN, Jean-Pierre. Um Mundo sem Limite – Ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. LEITE, Márcio Peter de Souza. Psicanálise Lacaniana-Cinco seminários para analistas kleinianos. São Paulo: Iluminuras, 2000. MELMAN, C. O Homem sem gravidade – Gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003 b. SOLER, Colette. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.
313
Sintoma e repetição na neurose obsessiva Liliana Marlene da Silva Alves1 “é no instante mesmo que o S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, que surge o $, que é o que chamamos de sujeito dividido. Enfim, nós sempre acentuamos que desse trajeto surge alguma coisa definida como uma perda. É isso que designa a letra que se lê como sendo o objeto a. Não deixamos de designar o ponto de onde extraímos essa função do objeto perdido. É do discurso de Freud sobre o sentido específico da repetição no ser falante” (Lacan, 1969-‐70, p.13).
Este trabalho interroga a função da repetição em sua relação com o sintoma, como sugere o texto em epígrafe. Pretendemos verificar como o sujeito obsessivo responde ao encontro com a castração, momento em que é chamado a se articular frente à demanda do Outro e se colocar em posição de sujeito de desejo. Tomamos o exemplo de João, um menino de 2 anos que ao ser privado do seio materno responde de forma sintomática retendo seu cocô até as últimas consequências e diante do apelo desesperado da mãe, grita e se contorce até a exaustão, quando então pede para tomar banho e sob o chuveiro lhe entrega o objeto de sua demanda. Essa cena repete-se diariamente e a análise é indicada quando o exame médico localiza uma hérnia de umbigo iminente. Partiremos desse ponto para localizar teoricamente nossa questão. Primeiramente, é necessário tomar a questão do sujeito obsessivo em relação à demanda e ao desejo conforme 1
Psicóloga, membro do Fórum do campo Lacaniano do Rio de janeiro.
314
Lacan formula no Seminário 5, as formações do inconsciente. Sabemos que a demanda sempre pede a satisfação da necessidade, porém, incide sobre alguma coisa que vai além, na medida em que se articula no simbólico. Esse campo para além da demanda é condição necessária para que o sujeito se constitua satisfatoriamente e é nesse campo que se localiza o significante do desejo (- φ), desejo do Outro que não inclui totalmente o sujeito e que situa o Outro como castrado. Nesse caso destacamos as duas modalidades de demanda articuladas no sintoma apresentado. A demanda ao Outro (oral) e a demanda do Outro (anal) conjugam-se na encenação construída por João. Ao privar o sujeito do objeto oral, a mãe presentifica o além da demanda, situando-se como castrada, barrada pelo próprio desejo. Privado do seio João articula sua demanda à demanda do Outro, evidenciando tal como Lacan nos ensina, a função do cíbalo como objeto agalmático da mãe, o que na neurose obsessiva assume valor fundamental, uma vez que essa função só pode ser concebida “em sua relação com o falo, com a ausência dele, com a angústia fálica como tal” (Lacan, 962-1963, p. 328). Na sua primeira entrevista, João dirige-se diretamente para as massinhas de modelar com as quais faz um cocô colorido dizendo que é um jacaré. O cocô cuja função na constituição da subjetividade é nada menos que a função de objeto causa de desejo anal em sua conjugação com a função do pequeno a (Lacan, 962-1963, p. 322), recebe em análise diversas significações indicando seu valor do significante que representa o sujeito (S2) frente a outro significante (S1) nesse caso o seio.
315
Sendo assim, reaparece em um jogo cujas peças são sapinhos e João afirma, em associação livre, que no lago onde os sapinhos moram tem jacaré e que o jacaré come os sapinhos e mais ainda, que o jacaré é a mãe dos sapinhos. Partindo da fórmula “o desejo é o desejo do Outro” (1957-1958, p. 417), Lacan aponta para o caráter evanescente do desejo do obsessivo, que reside na dificuldade fundamental de sua relação com o Outro. Todo o problema do obsessivo está em dar suporte ao seu desejo, uma vez que este prefigura a destruição do Outro e localiza-se para além do Outro, o que leva Lacan a afirmar que o desejo do obsessivo é um “desejo em estado puro” (Lacan, 1957-58, p. 413). Diferente da histérica que “encontra apoio ao seu desejo na identificação com o outro imaginário” (Lacan, 1957-58, p. 415), o que dá aparência de apoio ao desejo obsessivo é um objeto redutível ao significante falo. Isso é demonstrado por João em um jogo encenado inúmeras vezes em análise, através do qual faz do seu excremento uma joia preciosa, “uma joia de cem mil quilates” (sic), causa de batalhas intermináveis com um ladrão que a espreita e ameaça tomar-lhe a qualquer momento. No nivel do sintoma verifica-‐se a angustia de castração que segundo Lacan (1964, p. 65), “é como um fio que perfura todas as etapas de desenvolvimento e cristaliza cada momento anterior à sua aparição propriamente dita – desmame, disciplina anal, etc., numa dialética centrada num mal encontro, que está no nível do sexual”. Neste caso, o seio cuja perda recorta o corpo do sujeito irremediavelmente atravessado pelo significante, reaparece de modo velado, como o significante sem sentido (S1), e denuncia a não existência da relação sexual. Por outro lado, a tentativa de incorporar o objeto anal, remete ao sintoma enquanto suplência à falta de relação sexual e a isso o sujeito
316
está fixado a tal ponto que chega a ameaçar fazer um novo furo, um buraco para abrigar o gozo no real do corpo, afinal o que é uma hérnia senão uma rasgadura na carne? No caso do neurótico, entretanto, o sintoma falha porque o sintoma na sua relação com a estrutura responde onde o Outro falta e assume um “valor de gozo insuficiente” (Soler, 1991, p. 70-‐71). No caso de João, o sintoma apresenta duas facetas. Por um lado instaura a repetição como insistência do gozo que ultrapassa os limites do principio do prazer, e por outro, constitui-‐se num apelo ao outro, como tentativa de encontrar alívio da tensão, ou seja, da manutenção da vida, o que não dá sossego, põe o outro a trabalho (entenda-‐ se aqui o outro como toda a sua família, mãe, pai, avô, avó, tios), todos enlouquecidos com esse sujeito que não quer fazer cocô. A repetição no sintoma é o que afirma o inconsciente, o que revela a existência do recalque porque o que retorna é o significante recalcado. No caso do obsessivo a repetição assume todo o seu valor, pois, como diz Lacan o obsessivo é o sujeito da repetição, basta observar suas manobras para transformar o Outro em um simples outro. Vejamos com Lacan o que é um obsessivo: “É, em suma, um ator que desempenha seu papel e assegura um certo número de atos como se estivesse morto” (Lacan,1956-‐ 1957, p. 26). Atos repetitivos, diga-‐se de passagem, técnicas auxiliares e substitutivas do recalque às quais Freud chamou de anulação e isolamento (Freud, 1926, p. 142). Essas técnicas tem a função de reforçar o recalque e ao mesmo tempo anular o desejo, ou seja, na tentativa de se proteger da morte, o obsessivo mortifica o próprio desejo, mortifica o
317
Outro, assumindo o comando de um jogo onde ele é o diretor, o ator e a plateia, reduzindo o Outro a um simples outro. Nesse sentido o sintoma obsessivo reveste-‐se desse caráter denegatório, como bem demonstra João em várias passagens de sua análise. Para Freud o uso dessas técnicas pelo obsessivo, deve-‐se a uma certa dificuldade na função do recalque, visto que, ao contrario da histeria onde a formação de sintomas se dá por metáfora incidindo no corpo, na neurose obsessiva os sintomas são predominantemente do eu, ou seja, ocorrem pela formação metonímica ou deslocamento, como podemos ver no jogo dos sapinhos onde o significante cocô, desloca-‐se para jacaré e em seguida para a mãe que come os sapinhos. Outra passagem de sua análise ilustra perfeitamente o uso do isolamento pelo obsessivo: Ele e a analista tomam sopa – no mesmo prato. João vai até a janela, observa uma criança brincando agachada e pergunta: “é menino ou menina?” No mesmo momento aproxima-‐se um menino, e ele então acrescenta: “É menina. Agora tem uma menina e um menino. Quando eles crescerem eles vão virar homen(xxxx) e mulhere(xxxx). Eu não quero virar homem! Vamos acabar com essa conversa e vamos continuar tomando a nossa sopa. Só que agora você vai tomar a tua sopa no teu prato e eu vou tomar a minha no meu”. (sic). Note-‐se o emprego do “x” no lugar do “s” e acima de tudo a ênfase dada ao “x” com a intensificação da pronúncia. Isso nos remete ao sexual como enigma diante do qual o sujeito tem que dar conta de sua posição. Chamado a entrar na partilha dos sexos
318
João inicialmente denega, isola, porque a diferença sexual é sempre fonte de angústia para o sujeito. Então com a frase: “vamos acabar com essa conversa” João usa o isolamento, porém, como o inconsciente é sempre afirmativo, reconhece seu desejo e continua o jogo no qual, de agora em diante, meninas e meninos tomam sopa em pratos separados. É importante considerar que se a repetição se funda no retorno do gozo, há nessa repetição um desperdício de gozo, cuja consequência é a função do objeto perdido, objeto a, porque o gozo ao se repetir se apresenta sob a forma de perda, onde Lacan aponta a função do traço unário no qual se origina tudo o que interessa aos psicanalistas como saber (Lacan, 1969-‐70, p. 44). Saber que esse traço repete como diferença, saber marcado por um significante sem sentido. A repetição remete ao encontro com a falta apontando um saber sobre o qual o sujeito não sabe, o inconsciente por assim dizer. Desse modo, pela repetição em análise João encontra a possibilidade de diluir seu gozo e sustentar sua condição de ser falante por meio da palavra. Seu cocô encontra diversas significações formando uma série: sapinho/jacaré, mergulhador/tubarão, joia/ladrão, homem/mulherzinha, na qual o deslizamento significante tem o efeito de introduzir o desejo na medida em que produz diferença, embora entre um significante e outro se estabeleça certa equivalência (Lacan, 1964, p. 240). O desejo é o que vai permitir que o sujeito se separe do Outro e o situe como campo, como um lugar de presença e ausência e sobre isso João nos ensina em outros dois momentos de sua análise: no primeiro desenha uma pessoa andando, um menino
319
que tem dez anos, se chama João e faz longas viagens no jogo da vida, onde sempre encontra um baú cheio de ouro do qual não poderá gozar, porque como diz ele “ninguém nunca vai saber o que pode acontecer se se chegar lá!”. No segundo momento faz um belíssimo jogo de palavras em resposta a uma intervenção da analista: “você é uma chata”. Corrige prontamente em associação: “isso aqui tá muito chato, vamos fazer outra coisa, vamos jogar xatrez, o bom e o velho xatrez!”. Como sujeito de desejo João introduz o terceiro elemento na sua relação com o Outro, o falo certamente, na medida em que o falo é o significante da falta. Como sujeito de desejo João sabe que não pode gozar do corpo do Outro, porque em seu corpo incide a lei que o determina e o confronta com a castração. Resta-‐lhe apenas brincar, jogar, fazer piada com esse baú em cujo ventre descansa o (a)uro, metonímia do impossível, ao qual poderá apenas tocar pelas bordas, através das palavras, reduzindo-‐o a meros significantes. REFERÊNCIAS: FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. (1926 [1925]), Edição Standard Brasileira, 3 ed. Vol. XX, Editora Imago, Rio de Janeiro -‐ RJ, 1990. _____________. O Seminário, Livro 4 – a relação de objeto (1956-‐1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1995. _____________. O Seminário, Livro 5 – as formações do inconsciente (1957-‐1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998. 320
_____________. O Seminário, livro 10 – a angústia. (1962-‐1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. _____________. O Seminário, livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. _____________. O Seminário, livro 17 – o avesso da psicanálise. (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. SOLER, Colette. Artigos Clínicos: Transferência, Interpretação, Psicose. Editora Fator, Salvador -‐ BA, 1991.
321
O sintoma na arte ou a arte como sintoma? Sérgio Scotti1 “O espírito desperto é o menos útil no domínio da arte; quando escrevemos, lutamos para fazer aparecer aquilo que nós mesmos não conhecemos.” Henry Miller
O filme “Instinto”, baseado no romance, “Ishmael” de Daniel Quinn, conta a
história do relacionamento de Ethan Powell, interpretado por Anthony Hopkins e Théo Caulder, interpretado por Cuba Gooding Jr., um ambicioso psiquiatra cuja missão é atender e avaliar o antropólogo Ethan, internado na ala psiquiátrica de uma prisão dos Estados Unidos, para onde foi enviado após ter atacado, ferido e morto soldados que o procuravam na selva africana, na qual desenvolvia pesquisas com gorilas, local em que havia desaparecido. O filme começa com o transporte e chegada do prisioneiro no aeroporto americano, onde ele, num ataque de fúria, agride os guardas locais, assustando sua própria filha e esposa que o aguardavam.
Tendo sido encaminhado imediatamente à prisão, Ethan passa a ser atendido por
Théo que busca tirá-‐lo de um mutismo auto-‐imposto, os dois sempre observados pelos guardas e pelo psiquiatra interno da prisão que o mantinha sob forte medicação. Théo consegue não só reduzir a medicação, como tirar Ethan de seu mutismo através do 1
Psicanalista, professor associado da graduação e pós-‐graduação do Departamento de Psicologia da UFSC, coordenador do Núcleo de Estudos em Psicanálise, + 1 do cartel de formação do Fórum de Florianópolis, sergioscotti53@gmail.com
322
recurso a uma engenhosa estratégia: o psiquiatra resolve fazer uma visita à filha do antropólogo e junto a ela recolhe algumas fotos da casa, da selva e do acampamento de Ethan na África, além de fotos dos gorilas e da própria filha de Ethan, Lyn.
Ao exibir a última foto, de sua filha, a Ethan e perguntar-‐lhe o que ele diria a ela,
Théo consegue que o “homem macaco”, como era chamado na prisão, dissesse: “Good bye”. A partir daí começa um diálogo e relacionamento entre os dois que trará para Théo o reconhecimento de seu supervisor e a possibilidade de ascensão na carreira, além do projeto de publicação de um “best seller”, sugerido pelo próprio supervisor de Théo. Mas este relacionamento trará muitos problemas também, principalmente para Ethan que é constantemente acossado pelo chefe dos guardas da prisão o qual havia estabelecido um sistema de banhos de sol, no qual somente um dos presos recebia o benefício. Ethan enfrenta-‐o e desmonta o sistema angariando assim o ódio do guardas e simpatia dos presos. Contando ainda com a ajuda de Théo, o sistema de distribuição de cartas de baralho entre os presos no qual o ás dava direito ao banho de sol e era surrupiado sempre pelo mesmo preso, até ser enfrentado por Ethan, é substituído por um sistema de sorteio em que todos têm direito ao benefício.
Além disso, o relacionamento entre Ethan e Théo desenvolve-‐se de tal forma que
aquele acaba tornando-‐se, de certa forma, o terapeuta do psiquiatra, numa surpreendente inversão de papéis. Ethan também conta a Théo que a partir de sua aproximação e aceitação pelo líder do grupo de gorilas que observava quando estava na selva, se tornou um entre eles 323
e passou a viver com os mesmos no meio da floresta africana. Tal experiência contada a Théo, deu ao antropólogo uma visão da história do homem que, em seu início, seria caracterizada pela convivência harmoniosa entre homens e animais, aqueles retirando da natureza somente o necessário para sua sobrevivência. Mas, com o tempo, surgiram os homens “captores” que a transformaram numa relação de dominação e controle. O próprio Ethan havia sido um “captor” quando aprisionou um gorila para o zoológico de sua cidade.
Numa cena impactante em que Théo tenta impor sua autoridade sobre Ethan,
este o imobiliza e faz aquele perceber que não estava perdendo nem seu controle nem sua liberdade, mas sim, suas ilusões. Noutra cena em que, mais uma vez, Théo tenta sensibilizar Ethan, levando-‐o numa visita ao zoológico em que se encontrava o gorila há tempos capturado pelo antropólogo, este se lembra de como, sentindo-‐se cuidado e protegido pelo olhar vigilante do gorila líder do bando ao qual se juntara, de repente se vê no meio de um ataque a tiros dos soldados que o procuravam na selva. O bando de gorilas é dizimado pelos soldados apesar da tentativa de Ethan em protegê-‐los, na qual este mata pelo menos dois soldados que, no fim, matam todo o bando e colocam Ethan, na prisão, por um ano, até ele ser resgatado pelo governo americano.
O trabalho de Théo com Ethan resulta no encontro deste com sua filha no qual ele
devolve a ela, um retrato dela quando criança, que o mesmo sempre levava consigo, demonstrando assim que nunca a esquecera, apesar de suas longas ausências que eram sentidas pela filha como descaso e rejeição.
324
Contudo, apesar dos progressos conseguidos por Théo, uma rebelião dos presos
começou porque o chefe dos guardas agredira Ethan que não quisera entrar em sua cela da qual haviam apagado inteiramente a história da humanidade, desenhada por ele nas paredes da mesma. Ethan, tentando proteger um dos presos, tal como fizera com os gorilas, ataca o chefe dos guardas, mas é dominado pelos outros guardas e volta ao seu mutismo.
Théo desconsolado procura Ethan na prisão e confessa a este que ele o fizera ver
o quanto procurava agradar a todos em função de sua ambição que agora lhe parecia totalmente sem sentido diante de seu fracasso. No entanto, o que Théo não sabia, é que Ethan, munido da caneta de Théo, escondida por ele dos guardas durante a visita ao zoológico, consegue abrir uma das grades da prisão e, com a ajuda dos outros prisioneiros que desviam a atenção dos guardas, escapa e volta à selva. O filme termina com Théo deixando-‐se molhar, com os braços erguidos, pela chuva que cai, cena que representa sua própria libertação.
O filme que é bastante despretensioso em termos artísticos, é de interesse pelo
que mostra sem o pretender. A primeira questão que nos surge é: por que um homem culto embrenha-‐se na selva por tanto tempo, para viver entre gorilas, o que já é bastante inverossímil, sustentando por uma concepção mais inverossímil ainda da relação entre feras e homens? Também nos chama a atenção um determinado aspecto de seu comportamento durante seu relacionamento com o psiquiatra. Desde seus primeiros
325
contatos com Théo que procurava reaproximá-‐lo de sua filha, Ethan mostrava-‐se extremamente resistente, expressando isso com a frase: “Deixe-‐a fora disso!”.
Por outro lado, foi por causa da foto dela que dissera suas primeiras palavras:
“Good bye”. Como também, foi o olhar espantado da filha a única coisa que o fez parar durante seu ataque de fúria no aeroporto. As duas coisas se mostram articuladas quando pensamos que uma foi causa da outra. O verdadeiro motivo da ida e isolamento de Ethan na selva africana foi sua filha, na verdade, o desejo incestuoso de Ethan por ela. Um desejo tão intenso e poderoso que só poderia ser aplacado pela distância continental. Num dos diálogos de Lyn com Théo, esta lhe conta que uma vez havia visitado seu pai em seu acampamento de Ruanda, e que ele havia ficado muito contente por revê-‐la e, mais ainda, por vê-‐la ir embora.
O desejo incestuoso de Ethan por sua filha, nos remete ao complexo de Édipo do
lado do pai, algo não muito comum na literatura psicanalítica, mas também, de maneira muito interessante, às possíveis relações entre o mito de Sófocles e o mito freudiano da horda primitiva (Freud, 1913/1973).
Na aproximação e interesse de Ethan pelos gorilas, veremos o retorno do
recalcado tanto quanto a confirmação de nossa interpretação edipiana através do mito da horda primitiva que se atualizam e entrecruzam no drama de Ethan, o “homem macaco”. Quando este finalmente consegue ser aceito pelo bando, após cuidadosas aproximações do líder, em que o antropólogo demonstra sua total submissão a ele, surge o interesse de Ethan por uma gorilazinha fêmea com a qual ele passa a brincar 326
constantemente sob o olhar vigilante do macho líder. Ser cuidado pelo olhar do gorila que o aceitava e tolerava, era uma experiência incrível para Ethan que se sentia assim protegido, na verdade, de seus próprios impulsos incestuosos.
Contudo, a ambivalência em relação ao pai/gorila não deixará de se manifestar,
por mais que Ethan tivesse se integrado ao bando de gorilas e rejeitasse o convívio com os humanos.
Quando Ethan não voltou mais ao seu acampamento porque passou a viver com
os gorilas, seus auxiliares e parentes certamente imaginaram que ele estivesse em perigo. Os soldados que o procuravam na selva estavam, na verdade, procurando “salvá-‐ lo” dos gorilas. E certamente Ethan saberia disso, tanto que em conversas com Théo, contava a este que em suas andanças pela selva com os gorilas, percebia sinais da presença próxima de humanos.
Mas, mesmo assim, Ethan mostrou-‐se muito “descuidado”, deixando pelo
caminho alguns de seus objetos, como o seu facão e binóculos que logo foram achados pelos soldados. Ou seja, pode-‐se dizer que ele colaborou assim para que fosse encontrado e que os gorilas fossem mortos.
Ao contrário do que pode parecer uma vitória de Ethan, ao conseguir fugir da
prisão e voltar para a selva, esta, na verdade, torna-‐se sua real prisão para onde retorna por não conseguir suportar seu desejo incestuoso mais uma vez.
327
Aqui nos reencontramos com o adágio de Freud de que a obra de arte equivale a
uma confissão do autor (Freud, 1908/1973). Não precisamos conhecer a biografia do autor da história que comentamos, pois se trata aqui de dramas universais que qualquer sujeito humano conhece em seu inconsciente. E é do inconsciente do autor desta história que podemos considerá-‐la como um sintoma, no sentido de uma formação do inconsciente que não sendo necessariamente patológica, demonstra a origem dos motivos dos personagens envolvidos em sua trama, tanto quanto a fantasia que a sustenta e que o autor nos apresenta através de sua ars poetica, como dizia Freud (1908/1973), o que nos seduz e permite que compartilhemos com ele dos mesmos fantasmas, como o do retorno à mãe natureza. Ou não, e nos deliciemos de qualquer forma, com a expressão, em uma obra artística, de um mito que era de Freud e que talvez não explique a origem da cultura humana, como também pretendia o mito de Ethan, mas nos dê alguma luz sobre como se estrutura a psiquê do homem.
O interesse deste trabalho é o de demonstrar que estes dois mitos, tão
fundamentais para história da própria Psicanálise, eles parecem se recobrir nesta outra história e que talvez se trate, na verdade, de apenas um mito, o Édipo, inclusive o de Freud que aparece como seu sintoma, tanto no mito da horda primitiva quanto em “Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939/1973). Se esse for caso, vemos que nem mesmo o pai da Psicanálise escapa a seu próprio adágio. Referências bibliográficas:
328
FREUD, S. (1908). El poeta y los sueños diurnos. Em: Obras Completas de Sigmund Freud, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 2, p. 1343–1348. __________. (1913).Totem y tabu. Em: Obras Completas de Sigmund Freud, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 2, p. 1745–1850. __________. (1939). Moises y la religión monoteísta: tres ensayos. Em: Obras Completas de Sigmund Freud, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 3, p. 3241–3324.
329
ESPAÇO ESCOLA
330
Cartel: espaço de saber articulado à política da psicanálise
Tereza Oliveira1 O desejo que levara Freud a fundar a Associação Internacional em 1910 – International Psychoanalytical Association -‐ (IPA), era o de resguardar sua invenção e assegurar a continuidade da psicanálise para além de sua pessoa e que esse novo modo de saber se estendesse além de sua morte. Assim, a preocupação constante de Freud era garantir a permanência da psicanálise e dar continuidade ao movimento psicanalítico mundial. Entretanto, desde a fundação da IPA, o pensamento freudiano foi desvirtuado. Freud via a necessidade de análise pessoal de seus adeptos até mesmo para que através da sua experiência pudesse dar provas da teoria desenvolvida por ele. O que se deu foi o avesso, ou seja, a prática de formação de analistas tomou um caráter de expansão de tipo burocrático e baseava-‐se num cumprimento rigoroso de atividades ritualizadas, ou seja, devia-‐se consultar o analista um número x por semana com sessões de duração fixa, durante um período, encontrar um supervisor para garantir a condução ética do caso. O estudo da psicanálise viria a garantir uma boa formação teórica. Dentro da IPA, opõe-‐se Lacan aos desvios teóricos que ela praticava e a ilusão de uma formação analítica completa nos moldes de uma licenciatura universitária. Para Lacan, essa 1 Tereza Oliveira – Psicóloga/psicanalista, Mestrado em Psicanálise Saúde e Sociedade, Universidade Veiga de Almeida, Rio de
Janeiro, participante de Fornações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e de Petrópolis, Membro da AFCL/EPFCL- Brasil, Membro da EPFCL. E-mail: tmropsi@gmail.com
331
ritualização da prática e da formação do analista não garantiria o laço que sustenta a posição do analista e do analisando, não há desejo do analista. Assim, o trabalho a que se refere à causa analítica, articula-‐se à política da psicanálise e não à uma política de representação. Na primeira metade da década de 1950, os seminários de Lacan na Sociedade Francesa de Psicanálise2, eram os que se dedicavam ao estudo dos textos freudianos3 dotando o movimento francês de uma política da psicanálise articulada com uma teoria da formação. Lacan articula a Escola Freudiana de Paris que nasce com o Ato de fundação em 21 de junho de 1964. Apresenta em ata pela primeira vez o dispositivo do cartel, proposta inovadora, como parte da forma de organização da Escola, julgando que essa fosse a maneira mais adequada para promover o avanço do trabalho de cada analista e consequentemente da transmissão da psicanálise. A Escola deve ser sustentada pelo discurso do analista, avesso ao discurso civilizatório, que é o discurso do mestre. Dessa maneira, o compromisso com a causa analítica inclui instituir o lugar e funcionamento do cartel na Escola. Assim, o trabalho a que se refere à causa analítica, articula-‐se à política da psicanálise e não à uma política de representação. O cartel só tem sentido numa instituição
2
Sociedade fundada por Lagache e Lacan. Marcou a ruptura com a IPA Lacan inicia os seus seminários retornando aos escritos clínicos de Freud, como o do “Homem dos Lobos” e o do “Homem dos Ratos” e com os “Escritos Técnicos de Freud”. Trata-‐se de um retorno ao vigor do ensino de Freud, retorno esse, aos fundamentos que constituem uma comunidade de Escola orientada para o real do clínica .
3
332
sui generis, chamada Escola para a psicanálise e Quinet (1994, p. XVI-‐XVII), ao comentar sobre essa instituição sui generis proposta por Lacan nos diz que a Escola veio para, “responder ao nível da organização institucional à estrutura que se depreende na prática psicanalítica do inconsciente, inventada por Freud e que assim como a estrutura do sujeito se organiza em torno de um furo a partir do postulado fundamental da psicanálise, a Escola como formação coletiva se estrutura em torno da ausência do conceito preestabelecido do analista”4.
O cartel como órgão de base da Escola, representa o organismo onde se deve cumprir um trabalho que traz a práxis original instituída por Freud, ou seja, a psicanálise. A Escola Freudiana de Paris, diz Lacan (1964, p. 17), na Ata de Fundação, “em sua intenção, representa um organismo onde deve se realizar um trabalho que, no campo que Freud abriu, restaura a lâmina constante de sua verdade”.5 Assim, “para a execução desse trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração baseada num pequeno grupo; cada um deles será composto por três pessoas, no mínimo, e por cinco no máximo – quatro é a medida certa. MAIS UMA encarregada da seleção, da discussão e do destino reservado a cada um. Após um certo tempo de funcionamento, se proporá aos elementos de um grupo sua permutação para outro. O cargo de direção não constituirá um caciquismo (chefferie) (...). Pela razão de que todo empreendimento pessoal levará seu autor às condições de crítica e de controle onde todo o trabalho a ser desenvolvido será submetido à Escola....” 6
4
Quinet, A. Prefácio, in O Cartel-‐ conceito e funcionamento na escola de Lacan, (org. Stella Gimenez) Aparecida São Paulo: Editora Campus: 1994. 5 Transcrição das discussões das jornadas sobre cartéis (abril/1975) publicada em Lettres de l’École Freudienne o o de Paris n 18 – 1976 in Letra Freudiana Escola, psicanálise e Transmissão, Ano I, n 0, Documentos para Escola – Circulação interna 6 Ibid,
333
O Mais-‐Um ao lado da responsabilidade tem um compromisso com a estrutura da Escola. Na constituição do cartel, quatro se escolhem livremente em torno de um tema. Não existe um saber pronto, mas um saber novo a se produzir como produto do trabalho, tal como acontece na clínica psicanalítica. A escolha do Mais-‐Um, passa pela suposição de saber, mas ele deve sair desse papel mediante seu próprio desejo para que emerja algo novo. Se ele responde do lugar de mestre, fortalece a consistência imaginária e de cola, está do lado da ocultação estrutural do desejo, um efeito do imaginário sobre o simbólico, gerando uma inibição do saber. O Mais-‐Um tem a função de cortar a consistência imaginária, assinalando seu caráter de saber não todo. O Mais-‐ Um se sustenta pelo corte oferecido pelo Nome-‐do-‐Pai. Os laços libidinais que unem o grupo no cartel são em torno do trabalho a partir da escolha do tema e o Mais-‐Um é escolhido em função de um traço. O Mais-‐Um deve situar-‐se no lugar onde possa manejar a transferência, da transferência a ele à transferência do texto. Entretanto, essa tarefa, não é uma tarefa sem custos, pois há o custo da perda das idealizações, acerca do saber, de ser um. Como nos diz Pedrosa (2002, p. 20): “Decidir na posição daquele que pode faltar é decidir sobre o destino das ambições no sujeito, e poder dar lugar ao trabalho, como a outra valia, se o que rende do luto é o trabalho”.7
7
Pedrosa, M. A. L, Estilete, Cartel, transmissão e garantia – a outra valia in Boletim da Associação dos Fóruns 0 do Campo Lacaniano Brasil, n 4, , Belo Horizonte, Minas Gerais.: 2004,
334
Se de um lado favorece o vínculo pelo trabalho, de outro, após concluída a tarefa, sua lógica, inclui a dissolução que está presente desde o início, como podemos ver na Ata de Fundação:”Após um certo tempo de funcionamento, se proporá aos elementos de um grupo a sua permutação para outro”(LACAN, 1964, ).8 Em abril de 1975, a Escola Lacaniana de Paris realiza uma “Jornada sobre Cartéis”, destinada a refletir sobre a experiência desses “pequenos grupos” e suscitar um debate sobre a formação de cartéis na Escola. A Jornada foi um lugar fecundo de discussão no qual Lacan alencou um debate acalorado sobre o Mais-‐Um. Lacan dizia, que o Mais-‐Um, deve ser qualquer um, uma pessoa, não a ausência,
“pensem, será um suporte possível dessa ‘mais uma pessoa’ da qual indiquei não a ausência, mas justamente a presença, pois não há um traço de sinal por ausência, no meu mais-‐uma no texto (...) esse mais-‐ uma sempre se realiza, sempre há alguém no grupo, mesmo que seja por um momento....”9 É interessante notar que aqui Lacan sugere a idéia do Mais-‐Uma, desligando-‐a do seu contexto original. O que marca esse debate, é que o lugar do Mais-‐Um é um lugar vazio, situando-‐ se em oposição a todo caciquismo imaginário. Nessa Jornada, Lacan articula esse ‘Mais-‐ Uma’ sob a forma do nó borromeano, nos dizendo que x+1 é o que define o nó borromeano ou nós trançados é “a partir de reiterar esse 1 – que no nó borromeano é 8
o
Op. cit. P.17, Letra Freudiana Escola, psicanálise e Transmissão, Ano I, n 0, Documentos para Escola – Circulação interna. 9 Ibid, p.69-‐/70.
335
qualquer um – que se obtém a individualização completa, ou seja, do que sobra – a saber
do x em questão – não há mais um por um”(p. 67).10 Em o R.S.I. O seminário (1974/1975, p. 74), na aula de 15 de abril de 1975, Lacan nos diz que: “Mas foi bem por isso que me vi, no fim dessas jornadas, tendo que responder a algo a que ninguém é claro, prestara atenção na Escola, ou seja, no que constitui o que a gente chama de cartel. Um cartel, por que?”11 Nessa aula, Lacan compara o cartel ao nó borromeano. Há três que encarnam o Simbólico, Imaginário e o Real, são as consistências mínimas que o constitui. A mais uma, segundo ele, estará aí mesmo que sejam três, isso faz quatro, donde a expressão do mais-um, é a que amarra, e no dizer de Maria Anita12, a amarração borromeana dos mesmos. Esse Mais-‐Um sempre se realiza, mesmo que seja por um momento. O Mais-‐Um não é o da adição e nem diz respeito ao somatório do cartel, não é um número, é o que faz elo nessa figura topológica. Aqui, Lacan começa a reverter radicalmente o sentido da figura do Mais-‐Um tal como era sugerida na Ata de Fundação da Escola, encarregada da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de cada um. Ao remeter ao funcionamento dos cartéis à figura topológica do nó borromeano, atribui o papel ou
10
o
Letra Freudiana Escola, psicanálise e Transmissão, Ano I, n 0, Documentos para Escola – Circulação interna. Lacan, J. .RSI.. O seminário.-‐ 12 A esse respeito, ver Maria Anita Carneiro Ribeiro, A função borromeana da função do mais-‐um no cartel,, Em torno do Cartel a experiência na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano, Belo Horizonte, Minas Gerais: 2004. 11
336
lugar ao da Mais-‐Um a qualquer um, ou seja, um ‘lugar vazio’ que pode ser ocupado por ‘qualquer um’. Em 5 de janeiro de 1980, na Carta de Dissolução13, Lacan dissolve a Escola Freudiana de Paris e nesse mesmo ano, na aula de 11 de março “, no seminário D’Écolage o Desplegue de la Escuela” quando lança a Causa Freudiana, continua apostando no dispositivo do cartel. Restaura o órgão de base (cartel), mas pelo viés do nó borromeano, acrescentando que o Mais-‐Um pode ser qualquer um, mas deve ser alguém, encarregado de “velar pelos efeitos internos do empreendimento e de provocar sua elaboração.” (p.45) 14,e não só de selecionar, discutir e dar saída ao trabalho de cada um. Ele é um agent provocateur.. Lacan ao retomar as características do cartel, ele não chama mais de grupo, como o fazia na Ata de Fundação da Escola e em 1980, precisa que esse produto seja individual e não coletivo. E ao Mais-‐Um cabe também produzir um trabalho como os cartelizantes. Esse produto, esse texto não é endereçado a um Outro ideal, mas a qualquer interlocutor que queira dar mais um passo na construção da psicanálise. Coloca que para prevenir “o efeito de cola [de colle] deve-‐se realizar a permutação no prazo estabelecido de um ano e de no máximo dois e não se espera outro progresso senão o de uma periódica exposição dos resultados, assim como das crises de trabalho.”
13
O texto original da Carta de Dissolução jamais foi divulgado, segundo Elisabeth Roudinesco. o Letra Freudiana Escola, psicanálise e Transmissão, Ano I, n 0, Documentos para Escola – Circulação interna,.
14
337
(p.51)15 Assim, o cartel no final desse tempo ele se dissolve, o que permite evitar a
inércia constatável nos grupos de trabalho que se eternizam e fazem obstáculo ao novo saber para o sujeito. Nesse instante de concluir, o Mais-‐Um marca o corte, desfazendo o nó borromeano. Aí o Mais-‐Um não vai fazer mais laço, este se desfaz e cada cartelizante vai para seu lado, retomando a sua solidão. Lacan fazia uma aposta na transmissão pelo matema. O cartel tem uma estrutura matêmica, da qual a mais simples apreensão é 4 + 1. A mesma palavra, cartel, tem uma referência matêmica, além de vir do latim cardo, que significa gonzo16, dobradiça. A palavra cartel provém de quatro, que faz referência ao nó borromeano. O cartel é dobradiça, porta de entrada na Escola. Para concluir, cito Delgado (2002, p.23): “Posso imaginar que com a provocação do cartel, Lacan estaria nos dizendo: Saiam de suas poltronas e produzam um escrito sobre o que formularam de suas análise e sua clínica e tragam a céu aberto para que um interlocutor qualquer possa levar a empreitada mais adiante. Se ainda não há uma conclusão, exponham ao menos suas crises de trabalho. Com certeza isso terá um efeito sobre seu ato”17.
BIBLIOGRAFIA CARVALHO, M. C. D. Cartel uma provocação? Estilete Boletim da Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, n0 8, Salvador. Bahia: maio de 2004.
15
Ibid Dobradiça de porta ou janela. 17 Carvalho, M. C. D. Estilete, Cartel uma provocação? Estilete Boletim da Associação dos Fóruns do Campo 0 Lacaniano – Brasil, n 8, Salvador. Bahia: maio de 2004. 16
338
CARNEIRO. M. A. R. Em torno do Cartel a experiência na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano, Belo Horizonte, Minas Gerais: 2004. LACAN, J. .RSI. O seminário.-‐ Letra Freudiana Escola, psicanálise e Transmissão, Ano I, no 0, Documentos para Escola – Circulação interna. PEDROSA, M. A. L, Cartel, transmissão e garantia – a outra valia in Estilete, Boletim da Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil, n0 4, , Belo Horizonte, Minas Gerais.: 2004, LETRA FREUDIANA ESCOLA, PSICANÁLISE E TRANSMISSÃO, Ano I, no 0, Documentos para Escola – Circulação interna,. QUINET, A. Prefácio, O Cartel-‐ conceito e funcionamento na escola de Lacan, (org. GIMENEZ, Stella, Aparecida São Paulo: Editora Campus: 1994.
339
O Passe: a razão de um fracasso
Ana Laura Prates1 Começarei esse trabalho justo no ponto onde terminei meu último texto escrito sobre o passe, chamado “Os tempos do passe”, que está publicado na revista Folhetim, n. 7. Naquele texto, procurei articular o passe com a idéia de artifício, a partir do livro de Jorge Seprum A escrita ou a vida – que, aliás, eu volto a recomendar a vocês que o leiam, pois suas afinidades com o passe são espantosas. Cito, então, um trechinho do meu trabalho: Essa idéia de artifício me parece preciosa porque aponta justamente para uma ação que produz um corte na infinitização da série significante que vela o real. A construção de uma obra artificial exige uma posição de desejo decidida e não se sustenta sem a presença do ato. Emprestar a materialidade da letra ao testemunho não é, portanto, algo espontâneo. Há, entretanto, algo que a letra/carta carrega – como diz Lacan em Lituraterra – que a faz sempre chegar a seu destino. “A borda do furo no saber, não é isso que a letra desenha? ” Deixo essa pista apenas indicada, para ser desenvolvida em outra oportunidade. (PRATES, 2008, p. 37)
Essa é, portanto, a oportunidade para desenvolver essa pista, que contém
em si uma hipótese: a de que o passe é o artifício através do qual, aquele que decide historisterizar-se de si mesmo, pode tentar desenhar a borda do furo no saber. O meu texto “Os tempos do passe”, entretanto, foi finalizado com a seguinte 1
AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, Membro do Fórum São Paulo.
340
afirmação de Lacan, extraída de “Televisão”: “Felizes os casos de passe fictício para formação inacabada: deixam esperança”. Ora, porque Lacan evoca a esperança nos passes fictícios para formação inacabada?
Vou abordar essa questão fazendo alguns recortes:
I. O passe: um fracasso? O passe foi – e é várias vezes – acusado, ao longo da história do movimento psicanalítico pós-‐lacaniano, de ter fracassado. Alguns chegam a atribuir ao próprio Lacan o reconhecimento desse fracasso. O dispositivo do passe foi apresentado por Lacan na famosa “Proposição de 9 de outubro de 1967” que, como vocês sabem, tem duas versões, ambas atualmente publicadas nos Outros Escritos. Desde que foi proposto, o passe gerou várias críticas e crises; rupturas e cisões. Em casos mais extremos e infelizes, tornou-‐se um poderoso instrumento de manipulação político-‐ institucional. Nas versões mais dramáticas, foi responsabilizado por alguns – como Perrier, por exemplo, de provocar o suicídio daqueles que ficaram mais de um ano sem receber qualquer resposta do júri – hoje chamado ‘cartel do passe’, ou que não foram nomeados AE.
Ora, de fato, se analisarmos o dispositivo de perto, chegaremos à conclusão
de que, o que não faltam, são oportunidades para que algo falhe e assim, produza o fracasso. Vamos elencar apenas algumas delas, em relação às quais não se pode dizer que sejam contingentes mas, antes, fazem parte da própria estrutura do dispositivo: 1) A nomeação dos AMEs – título outorgado aos analistas “que deram suas provas” na Escola, e que têm, assim, o direito e a responsabilidade de designar os passadores – é feita pela Comissão de Garantia da Escola – que, atualmente, é internacional. Essa Comissão, evidentemente, pode se
341
enganar, ainda que parcialmente, nessas nomeações, já que elas não se dão exclusivamente por critérios objetivos. 2) Os AMEs, por sua vez, têm a responsabilidade de designar, dentre seus analisantes, aqueles que estejam no momento do passe clínico e que estejam aptos a participar do dispositivo na Escola. Também eles, ainda que psicanalistas experientes e orientados pela ética da psicanálise, podem se equivocar quanto ao cálculo clínico desse momento. 3) Os passadores designados por seus analistas podem não estar de acordo com a avaliação de que estejam aptos a exercer essa função. E, mesmo que consintam em exercê-‐la podem, por várias razões mais ou menos objetivas ou subjetivas, não estar à altura do dispositivo. Além do mais, sabemos que uma neutralidade positivista, nesse caso, não apenas é impossível, como certamente indesejável. 4) O próprio passante pode estar equivocado quanto ao advento de seu momento de passe, seja no que diz respeito ao final da análise, seja no que tange à emergência do desejo do analista. 5) O cartel do passe, oriundo também da Comissão de Garantia também pode se enganar, sobretudo, como discutiremos mais adiante, no que se refere às não nomeações. E isso, como veremos, por uma razão estritamente lógica. Esse elenco de “pontos fracos” do dispositivo do passe é propositadamente superficial, destacando seus elementos imaginários, embora, como eu sublinhei, sejam inerentes à própria estrutura do dispositivo e não a eventuais desvirtuamentos. Deve-‐se somar a ele, portanto, os eventos conjunturais que podem colocar em risco a seriedade do passe, seja por desvios éticos, morais, ou por outros problemas de funcionamento. Por exemplo, uma comunidade que não esteja à altura das exigências clínicas do dispositivo.
342
Ora, esse levantamento, ainda que precário, mapeia quase a totalidade dos argumentos frequentemente utilizados por aqueles que se colocam contra o passe, ainda que, em alguns casos, se procure carregar mais na tinta, ocupando o passe o lugar de vilão protagonista do melodrama em que às vezes se transforma a história do movimento psicanalítico. Se analisarmos seus pormenores, entretanto, a única conclusão a que chegamos com alguma certeza, é a de que o passe é um dispositivo falível. Essa constatação é tão óbvia, quanto decepcionante para a maioria dos neuróticos, ávidos por garantias absolutas. Ironia que aqueles que mais se decepcionam ou que mais depreciem o passe sejam, justamente, os que parecem revelar, pela via da denúncia de seu fracasso, a expectativa idealizada que depositavam em seu sucesso. II. Quanto sucesso!
Mas, o que seria, então, o sucesso do passe? Talvez se possa dizer que a lista
de didatas da IPA – que Lacan chamou de Suficiências – seja uma história de psicanalistas bem sucedidos em suas carreiras. O final de análise proposto como identificação ao analista pode realmente ser uma história de sucesso.
Em outras paragens, mesmo lacanianas, o sucesso também é relativamente
comum, pois, como deixa claro Lacan no Seminário 24 “L´insue”, a identificação ao inconsciente pode levar, no mínimo, à resignação e, no pior dos casos, ao cinismo. E o homem cínico é, quase sempre, um homem de sucesso!
A esse respeito, gostaria de retomar um recorte do testemunho de Silvia
Franco publicado na Stylus n. 19, que me marcou muito desde que o ouvi pela primeira vez:
343
A incidência do discurso analítico com seus cortes permitiu evidenciar no percurso da última análise a posição do sujeito e o que havia sido a análise anterior desde o primeiro encontro: um sucesso. “Quanto sucesso!”, frase ouvida na primeira sessão da análise após relatar com empolgação o lugar onde havia conseguido chega após anos e anos de tratamentos psicológicos. A penúltima análise de ‘orientação lacaniana’ tinha renovado as esperanças de conseguir, através da sagração do eu, tapear o real sem-‐ sentido, traumático. A eficácia desse tratamento permitiu ao analista dar a análise por concluída, seguido de um convite para dividir o consultório e atividades psicanalíticas, o que permitiu ao analisante procurar um outro analista. Reafirmar a posição fantasmática do sujeito no lugar da ‘escolhida’ teve como uma das conseqüências a acentuação dos sintomas: o de não poder valorizar nada e o de não poder falar nada. (FRANCO, 2009, p. )
Vemos aqui destacada com precisão a problemática de uma análise que se
pretenda terminada pela via do sucesso. Numa época em que o discurso hegemônico é o Discurso do Mestre moderno, mais conhecido como Discurso do Capitalista, no qual os sujeitos são divididos entre winners and loosers, a crítica à ideologia regida pelo imperativo “Ao sucesso!” – como dizia uma antiga propaganda de cigarro – não apenas é necessária, como essencial para a vigência do Discurso Analítico no mundo. O sucesso, nesse sentido específico, como nos mostra Silvia Franco, só pode levar ao pior. Ora, por outro lado, é fundamental destacar que a crítica ao ideal de sucesso não pode, de modo algum, levar a psicanálise a se posicionar do lado de uma apologia aos que “fracassam ao triunfar” – ou menos ainda, dos que “triunfam a fracassar”. Freud foi sensível a essa dificuldade do neurótico em lidar com a consistência imaginária que um triunfo pode ter. Vocês se lembram do texto “Os que fracassam ao triunfar” (1916), no qual Freud analisa diversos casos de sujeitos que “amarelaram” na hora “H”. Justo quando está prestes a realizar um desejo há muito acalantado e esperado, o sujeito recua a ocupar aquele lugar. Há vários
344
aspectos muito interessantes levantados por Freud nesse texto, mas o que eu gostaria de destacar aqui, é a sua conclusão: o neurótico tem dificuldade de ir além do pai. Prefere a culpa submissa que mantém o pai em seu devido lugar, a ter que pagar o preço por sustentar seu próprio desejo.
Vejam, então, que esse tipo de fracasso calculado, tipicamente neurótico,
nada tem a ver com o passe. Ao contrário, o passe, tanto clínica quanto institucionalmente, exige um “ir além do pai, com a condição de que se possa servir dele”. Quem se dispõe à experiência do passe é alguém que não hesita em ocupar um lugar na Escola, ainda que, como nos lembra Dominique Fingermann em seu texto “O Momento do passe” – publicado na revista Stylus n. 14 – “a nomeação (AE) não é um batizado, uma sansão, um reconhecimento, uma condecoração, nem uma iniciação”. Aliás, como adverte Bernard Nomine na “Introdução à Jornada de Toulouse sobre o passe”, publicada na Revista Wunsch n. 9, não se deveria solicitar ao passante que se ofereça à experiência do passe, como a um sacrifício em nome do Outro da Escola de Psicanálise, mas, antes, que ele possa oferecer-‐se essa experiência. É claro que isso não quer dizer, tampouco, que o passe possa ser reduzido a uma experiência pessoal, fora do âmbito da Escola, já que, como o próprio Nomine ressalta: “o passe é uma experiência, qualquer que seja o lugar que se ocupe no dispositivo: passante, membro de um cartel do passe, passador” – e eu acrescentaria até mesmo ser membro do secretariado do passe, lugar que tenho ocupado nos últimos dois anos e que é a borda do dispositivo. Quanto ao lugar específico do passante, entretanto, Colette Soler – em seu texto “As condições do ato, como reconhecê-‐las?”, publicado na Revista Wunsh n. 8 – comenta que o passe não pode centrar-‐se na expectativa de que o passador revele qual objeto ele se fez para o Outro. Ela adverte: “Não encorajemos, portanto, os passantes ou os AE a nos expor o objeto que eles são, a famosa letra do sintoma
345
(...). Buscar o que não se pode encontrar, isso programa a decepção, o sentimento de fracasso e, às vezes, o mutismo aflito.”
Ora, se o fracasso de que se trata no passe, não é nem aquele provocado
pela impotência do neurótico que o inibe a ir além do pai, nem aquele programado pela demanda impossível de um suposto acesso ao real, de que fracasso se trataria? III. Do que não se pode falar, melhor se calar?
O título do meu trabalho – “O passe: a razão de um fracasso” – é uma
paródia do título da 2ª. Conferência de Roma proferida por Lacan, e por ele nomeada: “Psicanálise: razão de um fracasso”, que foi proferida em 15 de dezembro de 1967. No dia anterior, em Napolis, ele havia dado outra conferência, essa mais conhecida, denominada “O engano do sujeito suposto saber”. Lembremos ainda que estamos no ano da “Proposição de 9 de outubro” sobre o passe e que Lacan já vinha enfrentando forte oposição ao mesmo no interior de sua Escola – o que, inclusive, provocou a primeira cisão no movimento lacaniano. Talvez não tenha sido por acaso que Lacan tenha escolhido o dia de Saint Denis, patrono da França e mártir que foi decapitado e que é sempre representado com a cabeça na mão. Lembrem-‐se do que ele diz sobre sua cabeça ter sido entregue como propina à IPA, durante seu processo de excomunhão.
Vejam que Lacan nos convoca a tratar da dimensão do engano – meprise –,
que também pode ser traduzido por equivoco, tapeação ou confusão. Vejam o que diz Lacan: Guardem ao menos isso: meu empreendimento (entreprise) não ultrapassa o ato em que é apreendido (prise) e, portanto, não tem chance senão por seu mal-‐entendido (méprise). Cabe ainda dizer do ato psicanalítico que, sendo ele, por sua revelação original, o ato que nunca tem tanto sucesso quanto ao ser falho, essa definição não implica a reciprocidade. O que
346
equivale a dizer que não basta ele fracassar para ter sucesso, que o fiasco (ratage), por si só, não inaugura a dimensão do engano que está aqui em questão. (LACAN, 1967/2001, p. 340)
E ele acrescenta: Por isso é que há toda uma parte de meu ensino que não é ato analítico, mas tese sobre as condições que redobram o engano próprio do ato com o fracasso em sua recaída. Não ter podido alterar essas condições situa meu esforço na suspensão desse fracasso. (...) Será em Roma que, em memória de uma guinada de meu empreendimento, fornecereis amanhã a medida desse fracasso e suas razões. (LACAN, op. Cit. p. 340)
Ora, de fato, no dia seguinte, Lacan dirá, em Roma, que o mistério a respeito
do ato que franqueia a passagem de analisante a analista – e que ele vinha tratando em seu Seminário sobre o Ato e na “Proposição” – continua a se adensar. Ele se queixa: “E qualquer tentativa de introduzir nele uma coerência e, em especial para mim, de formular a mesma pergunta com que interrogo o próprio ato, determina, até mesmo em alguns que julguei decididos a me seguir, uma resistência bastante estranha”. (LACAN, 1967/2001b, p. 347). E conclui: “Não tenho razão de me surpreender pelo fracasso de meus esforços para desatar a estagnação do pensamento psicanalítico”. (LACAN, op. Cit. p. 349).
Como vocês notaram, considero que essas duas conferências devem ser
trabalhadas como se fosse uma só. E delas se deve extrair uma lógica. Eu leio a “razão” do título da segunda conferência no sentido matemático: a escrita de uma proporção, ou como diz Lacan, a “medida” do fracasso. O interessante é que ele nos convoca a medir esse fracasso. Diante da falha estrutural, do impossível de dizer, ele propõe o passe. Não se trata de um momento depressivo de Lacan, ou de um recuo tático. Ali onde o neurótico se depara com o fracasso, e o psicanalista com a “sombra espessa”, Lacan persevera, convocando seus alunos a extraírem do fracasso sua razão.
347
Tratemos de adentrar, portanto, como nos convoca Lacan, no campo da lógica, para acompanharmos com qual fracasso estamos lidando no passe. Vejam que, nesse ponto Lacan está desafiando o positivismo lógico e tomando Wittegenstein pelo avesso. No Tractatus, Wittegenstein propõe que tudo o que pode ser pensado também pode ser dito. Os limites da linguagem são, portanto, os limites do pensamento, de modo que uma completa filosofia do que pode ser dito será uma teoria completa do que Kant denominara o entendimento. Todos os problemas metafísicos decorrem da tentativa de dizer o que não pode ser dito. Ou, em outras palavras, como afirma Gabriel Lombardi em seu livro “Clínica y lógica de la autorreferencia”, a conclusão do Tractatus é: “do que não se pode falar, melhor se calar”.(p. 80)
A proposta de Lacan, me parece, vai no sentido oposto. Seu horror diante da
possibilidade da psicanálise cair no inefável, faz com que ele desafie o impossível. Não, evidentemente, no sentido de negá-‐lo, mas sim na tentativa – pela via do artifício – de transmitir seus limites. Para isso, ele precisará produzir uma reformulação no campo da lógica, e ele o fará introduzindo a categoria de “não-‐todo”. É assim que ele responde àqueles que, presumem que, na ausência do todo, melhor ficar com nada, ou cada um que tire o melhor de sua parte. VII. Mas então, é possível provar o real?
Essa é questão que se impõe àqueles interessados em abordar seriamente a
“clínica do passe”. Sabemos que Lacan, em vários momentos se seu ensino, flertou com a idéia de que seria possível provar o real. Suas incursões pela lógica, a esperança na formalização e o projeto de matemização da psicanálise certamente tem a ver com isso. Estaria, então, essa empreitada, também fadada ao fracasso?
348
Antes de nos precipitarmos a responder, podemos dizer que o encanto de
Lacan com Gödel tem a ver exatamente com essa problemática. Talvez possamos sustentar, com Gabriel Lombardi, que Gödel eleva a lógica à condição de “Ciência do Real”. Porque?
Segundo o grande matemático brasileiro Newton da Costa – criador da
lógica para-‐consistente, “Gödel mostrou que sob condições simples e aceitas como naturais, a maioria das teorias matemáticas não pode ser axiomatizada de modo completo.” Ou seja, “as verdades informais de uma teoria matemática não são sucessíveis de serem, todas, demonstradas.” (COSTA, 1985, p. 102). A partir de seu teorema sobre as proposições indecidíveis – ou Teorema da incompletude – Gödel conseguiu demonstrar, em 1931, que a consistência de um determinado sistema formal não pode ser provada no interior desse mesmo sistema. Newton da Costa (1985) cita, para exemplificar, a frase de André Weill: “Deus existe porque a matemática é consistente, mas o diabo também, porque não podemos demonstrar esse fato”. (p. 102) As proposições indecidíveis, portanto, são aqueles em relação às quais não se pode afirmar nem que sejam verdadeiras, nem que sejam falsas. Segundo Ricardo Kubrusly, do Departamento de Matemática da UFRJ: Caso admitíssemos a possibilidade do nem falso nem verdadeiro, os paradoxos perderiam seu caráter contraditório para ganhar um certo alheamento. Seriam remetidos para fora do sistema que se sentiria incapaz de decidir sobre a veracidade ou falsidade da afirmação considerada. O preço de nos livrarmos dos paradoxos seria o reconhecimento, por parte do próprio sistema, de suas próprias limitações. E ele acrescenta: Os paradoxos indicarão o limite dos nossos sistemas se não quisermos contradições. Há que evitá-‐los. E como fazê-‐lo?
349
Gödel mostra com seus teoremas que a aparição de paradoxos na matemática é inevitável. Para manter a consistência desejada temos de expulsá-‐los do sistema, não com a autoridade policial, mas com a humildade intelectual de reconhecer as próprias limitações de um sistema que não saberá julgar se verdadeiro ou falso, as afirmações veiculadas nos paradoxos. Estes se tornarão indecidíveis e serão responsáveis pela consistência do sistema matemático. O preço de consistência é a existência de indecidíveis. Gödel opera, assim, uma separação radical entre Verdade e Demonstrabilidade. Nas palavras de Gabriel Lombardi: Existem proposições que não podem ser deduzidas no sistema, ainda se essas mesmas proposições, vistas a partir do exterior, resultam intuitivamente verdadeiras. Assim, em vez de pensar que havia que descartá-‐las, Gödel admitiu que a contradição existe: uma proposição não demonstrável em um sistema lógico-‐formal pode ser ao mesmo tempo verdadeira fora dele. Há mais coisas entre o simbólico e o real que as que trama a filosofia de uma sintaxis pura. (LOMBARDI, 2008, p. 81).
É o próprio Lombardi (2008) quem diz: Há aqui uma prova do real, que permite uma refundação da matemática a partir de suas próprias impossibilidades lógicas (...). Essa demonstração do real como impossível não se consegue mediante a ‘revelação’ de uma verdade. Bem ao contrário, o que encontramos é o ato pelo qual Gödel substitui a verdade por uma noção ‘puramente formal’, desprovida de toda referência exterior ao símbolo. (...) A demonstração gödeliana do impossível se realiza, então, sobre a base da retirada da verdade (e também da falsidade entendida como negação da verdade). (p. 97)
Assim, a tese de Lombardi (2008) é a de que essa Verwerfung confessa da
verdade permite a Gödel criar a “Ciência do Real” na medida em que “o saber já não é fantasia que interpreta, mas articulação que enlaça de um modo novo a linguagem e o real” (p.104).
350
V. Isso só prova que eu fracassei
Ora, a questão fundamental que se coloca aqui para o passe – em particular
– e para a psicanálise – em geral – é a da possibilidade ou não de exclusão da Verdade, como preço a pagar pela formalização e pela demonstração da clínica.
Apesar da aposta de Lacan na possibilidade de formalização, não me parece
que ele aposte em colocar toda a psicanálise do lado da “Ciência do Real”. Se assim fosse, estaríamos, no passe, apenas na via da demonstração do final da análise e do desejo do analista. Mas, atenção: Isso não significa, entretanto, que a via da demonstração esteja excluída do passe, ou que a ele não se aplique a noção de indecidível.
Tomemos como exemplo a questão da nomeação:
1 – Podemos afirmar que a nomeação de um AE garante a verificação da presença do desejo do analista no passante A, pelo cartel do passe. Não vou entrar, nesse momento, no debate a respeito do estatuto dessa garantia – se ela é mais da ordem da probabilidade indutiva – ou seja, se está do lado da evidência, ou da probabilidade epsitêmica – ou seja, baseada no conhecimento. Mas deixo indicado que esse é um trabalho interessante a ser feito, a partir da introdução da idéia de “evidência-‐esvaziamento” no Seminário 23. 2 – Não podemos, em contrapartida, afirmar que a não nomeação garanta a verificação do não desejo do analista no passante B. Em relação ao não nomeado, não foi possível demonstrar nem a presença nem a ausência do desejo do analista.
351
Vou escrever assim: No passe: Se DA → AE (V) Se ̴ AE → ̴ DA (V) ou (F) -‐ INDECIDÍVEL Assim, encontramos novamente aqui o indecidível, que faz com que o dispositivo do passe, felizmente, não possa ser considerado “consistente”, na acepção matemática do termo. Ou melhor, ele só o seria se esse indecidível pudesse ser rejeitado do dispositivo. Mas, ao contrário, a decisão do cartel por uma não-‐nomeação apenas reforça a presença do indecidível nesse sistema. Vejamos como Lacan trata dessa questão no Seminário 23. Lacan estava muito empenhado em conseguir fazer um nó borromeano com quatro nós de três. Depois de dois meses “quebrando a cabeça”, ele diz: Não consegui demonstrar que ex-‐siste um modo de enodar quantro nós de três de uma maneira borromeana. Pois bem, isso não prova nada. Não prova que ele não ex-‐siste. Ainda ontem à noite, só pensava em conseguir demonstrar-‐lhes que ele ex-‐siste. O pior é que não encontrei a razão demonstrativa de que ele não ex-‐siste. Eu, simplesmente, fracassei. Que eu não possa mostrar que o nó de quatro nós de três, como borromeano, ex-‐siste, nada prova. Seria preciso que eu demonstrasse que ele não pode ex-‐sistir, e assim, por esse impossível, um real seria assegurado. Tratar-‐se-‐ia do real constituído por não haver nó borromeano que se constitua com quatro nós de três. Demonstrá-‐lo seria tocar um real. (LACAN, 1975-‐76/2007, p. 42-‐ 43). E Lacan acrescenta: Para lhes dizer o que penso disso, creio que esse nó ex-‐siste. Quero dizer que não é aí que toparemos com um real. Portanto, não me desespero para encontrá-‐lo, mas é um fato que não posso lhes mostrar nada dele. Assim, a relação entre
352
mostrar e demonstrar está nitidamente separada. Uma vez que isso fosse demonstrado, seria fácil mostrá-‐lo para vocês. (LACAN, op. Cit. p. 43)
E, efetivamente, como Lacan anuncia na aula seguinte, naquela mesma noite
Soury e Thomé apareceram na casa de dele com o famigerado nó.
Vejam, portanto, que Lacan transmite de forma precisa, através dessa
pequena anedota borromeana, a relação entre mostração e demonstração. Poderíamos supor aqui um retorno de Lacan a Wittegenstein, que propunha que aquilo que não pudesse ser demonstrado, deveria apenas ser mostrado, em silêncio. Seria a mostração da ordem de um “mutismo aflito”, como disse Colette Soler? Não me parece que seja essa a proposta de Lacan. Mas, por outro lado, também não estamos do lado da pura demonstração do impossível. A articulação muito peculiar que a psicanálise propõe, com o dispositivo do passe, entre demonstração e mostração, me parece possível graças ao fato de que, ao contrário da lógica, a psicanálise não pode forcluir de todo a Verdade, ainda que mentirosa, ou, como ele afirma no Prefácio da edição inglesa do Seminário 11 em 1976: Donde eu haver designado por passe essa verificação da historisterização da análise, abstendo-‐me de impor esse passe a todos, porque não há todos no caso, mas esparsos desparatados. Deixei-‐o à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa
Vejam que Lacan coloca o passe na dimensão do risco e, portanto, da aposta.
O passe pode falhar? Talvez a pergunta esteja mal formulada. O passe é falho por sua própria estrutura. E, se assim não fosse, teríamos finalmente encontrado a última palavra sobre o que é o analista. Lembremos o que dizia Lacan no seminário 23: é graças à falha que inconsciente e real de enodam. Assim, podemos concluir
353
que o passe só pode ser considerado um fracasso se for tomado por aquilo que ele não é: um dispositivo consistente. Quem entra no passe em busca da nomeação como uma confirmação vinda do Outro, tem uma chance muito grande de se decepcionar. A espera da nomeação em qualquer passante é patente, mas não pela via da chancela, e sim pela própria convicção íntima que implica a decisão causada pelo desejo de testemunhar. O que pode o passe oferecer, então, aos esparsos disparatados? Voltemos à idéia de experiência e deixemos falar nossa colega espanhola Maria Luisa de la Oliva, esparsa disparatada que não foi nomeada. Sobre sua experiência, ela diz: Posso dizer que haver passado pela experiência do passe, haver atravessado a experiência, me iluminou um certo setor de sombras da minha análise. O passe, como dispositivo que produz efeitos subjetivos em todo sujeito que faz a experiência, não deveria então reduzir-‐se à resposta do cartel enquanto a se há ou não nomeação. O que esperava Lacan do dispositivo era, antes, efeitos de transmissão do mesmo no coletivo analítico.
Ora, experiência e transmissão são quase antinômico; daí a ousadia de
Lacan de articulá-‐los no passe. Como afirma a própria Maria Luisa de la Oliva, em seu belo texto “A escrita e/ou a vida” publicado na revista Stylus n. 19, no qual comenta exatamente o livro de Jorge Seprum com o qual comecei este texto: “há um impossível na transmissão, ou também se pode dizer que a transmissão é precisamente a do impossível. (p. 36)
Sendo assim, eu diria que Lacan, assim como Guimarães Rosa, propõe um
dispositivo que é “não-‐todo” e, assim sendo, é também Nonada. Nonada é não-‐ nada, negação do “todo nada”. Um tiquinho de nada que nos permita testemunhar sobre essa aventura singular que é uma análise, sua extraordinária eficácia a suas conseqüências inéditas. Termino, então, respondendo a André Weil, com a fala de Riobaldo, ao terminar seu depoimento, no final de Grande sertão: Amável senhor
354
me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. O diabo não há! É o que eu digo, se for...Existe é homem humano. Travessia.
355