“Como o nome o indica, os autistas escutam a si mesmos. Eles ouvem muitas coisas. Isto desemboca inclusive normalmente na alucinação, que sempre tem um caráter mais ou menos vocal. Nem todos autistas escutam vozes, mas articulam muitas coisas e se trata de ver precisamente onde escutaram o que articulam. Lacan - O Sr. trata autistas? Dr. Cramer - Sim. - Então, o que o Sr. acha dos autistas? - Que precisamente não conseguem ouvir-nos, que permanecem acuados. - Mas isso é algo muito diferente. Eles não conseguem escutar o que o Sr. tem para dizer-lhes enquanto o Sr. se ocupa deles. - Mas também nos custa trabalho escutá-los. Sua linguagem continua sendo algo fechada. - É muito precisamente o que faz com que não os escutemos. O fato de que eles não nos escutam. Mas finalmente há sem dúvida algo para dizer-lhes. - Minha pergunta apontava um pouco mais longe. Por acaso o simbólico – e aqui utilizarei um curto circuito – isso se aprende? Existe algo em nós desde o nascimento que faz com que estejamos preparados para o simbólico, para receber precisamente a mensagem simbólica, para integrá-la? - Tudo o que disse implicava isso. Trata-se de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico, que se congela, poderíamos dizer. Mas o senhor não pode dizer que não fala. Que o senhor tenha dificuldade para escutá-lo, para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de personagens de preferência verbosos”.
O que tem a dizer o psicanalista sobre o autismo?
Jacques Lacan A locução sobre as psicoses da criança (1968)
Caderno de Stylus
“Mas o que me pergunto a quem tiver ouvido a comunicação que questiono é se, sim ou não, uma criança tapa os ouvidos – dizem-nos: para que? para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pós verbal, visto que é do verbo que se protege?”
ISSN 1676-157X
Jacques Lacan Conferencia em Genabra sobre o sintoma (1975)
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Caderno de
stylus O que tem a dizer o psicanalista Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano sobre Escola de Psicanáliseodosautismo? Fóruns do Campo Lacaniano
2 epfcl brasil
2 outubro 2013
ISSN 1676-157X outubro 2013 nO 2
escola de psicanálise dos fóruns do campo lacaniano - brasil
Caderno de
stylus O que tem a dizer o psicanalista sobre o autismo?
Stylus Rio de Janeiro
nº02
p.1-116
outubro 2013
© 2013, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Caderno de Stylus É uma publicação ocasional da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br - revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da Afcl/Epfcl- Brasil Diretora: Delma F. Gonçalves Secretária: Andréa Milagres Tesoureira: Madalena Kfuri Equipe de Publicação de Stylus Ida Freitas (coordenadora) Angela Costa Conrado Ramos Geísa Freitas Lia Carneiro Silveira Luis Achilles R. Furtado Silvana Pessoa Editoração Eletrônica 113dc Design+Comunicação Tiragem 500 exemplares
E74q
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil
O que tem a dizer o psicanalista sobre o autismo?/ Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – Rio de Janeiro: AFCL, 2013. 116 p. (Caderno Stylus, n. 2) 1. Autismo. 2. Psicanálise. I. Título. II. Série CDD-150.195
Ficha Catalográfica elaborada por: Lucilene Santos R. Vitor – Bibliotecária - CRB7/5241
sumário 05 editorial: Ida Freitas
documentos 11
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ISTÓRICO DO MOVIMENTO PSICANÁLISE, AUTISMO E H SAÚDE PÚBLICA CARTA DA EPFCL–BRASIL AO MINISTÉRIO DA SAÚDE POLÍTICA E ÉTICA DA PSICANÁLISE PARA O TRATAMENTO DAS PSICOSES: A subversão como resposta à segregação
psicanálise e instituição 31 37
Sheila Abramovitch: Autismo na saúde mental e a psicanálise Maria Vitória Bittencourt: Qual o lugar da psicanálise na instituição?
teoria e clínica psicanalítica do autismo
45 Luis Achilles Rodrigues Furtado: Autista: sujeito e indivíduo 51 Georgina Cerquise: Observações sobre o autismo a partir do caso clínico de Leo Kanner 59 Beatriz Oliveira: O Caso Dick em questão: reflexões acerca do tratamento possível da psicose 69 Samantha A. Steinberg: A psicanálise pode atender os sujeitos com Asperger? – Pensando a direção de tratamento no autismo a partir dos conceitos de gozo e linguagem 79 Bernard Nominé: A propósito do autismo: há, certamente, algo a dizer 83 Martine Menès: O autista, um sujeito a supor 93 Patrícia Oliveira: Autismo e Linguagem 101 Pascale Macary-Garipuy e Marie-Jean Sauret: Os autistas escrevem
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Editorial
Editorial A categoria nosográfica do autismo tornou-se, nos últimos anos, objeto de muitos debates, tanto nacional como internacionalmente, realizados por psicanalistas e profissionais da área de saúde, que, surpreendidos com alguns atos institucionais e políticos que expressam a clara intenção de excluir a psicanálise do tratamento do autismo e, portanto, retirar o direito do sujeito autista de se beneficiar com a oferta analítica, vêm-se organizando no sentido de se posicionar, política e eticamente, diante dos órgãos públicos envolvidos e da sociedade como um todo. É assim que muitas Instituições de Psicanálise em todo o Brasil têm-se mobilizado politicamente e se apresentado teoricamente no sentido de declarar ampla e abertamente como a clínica psicanalítica, que é a clínica do sujeito em sua singularidade, pode e deve continuar a receber para tratamento, tanto na rede pública como privada, casos de autismo. Em março deste ano, aconteceu, em São Paulo, a Jornada “Autismo, Psicanálise e Saúde Pública”, que contou com a participação de alguns dos colegas da EPFCL – Brasil, especialmente do Fórum São Paulo, que está participando ativamente do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública e, representando muito oportunamente, a EPFCL – Brasil nessa iniciativa fundamental para a psicanálise. Assim é que, por sugestão do Fórum São Paulo, a Equipe de Publicação de Stylus, com apoio e aprovação da Comissão de Gestão, deliberou a publicação do II Caderno Especial de Stylus, este que você tem em mãos, contemplando o tema do Autismo, por reconhecer a importância de não só trazer a público esse debate, mas também de documentar, através do escrito, o quanto os psicanalistas se têm dedicado, teórica e clinicamente, às questões que envolvem o autismo e a psicose infantil. A fim de contextualizar o referido movimento, apresentamos três documentos na abertura deste Caderno. O primeiro deles é um Histórico do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, que situa como os profissionais de saúde, em conjunto com os psicanalistas, vêm-se organizando no sentido de manifestar seu repúdio às ações da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em relação ao tratamento do autismo. O segundo documento é uma Carta da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, endereçada ao Ministério da Saúde, em atenção ao documento “Linha de cuidado para atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no sistema único de saúde”, em que os relatores tecem considerações gerais a respeito da posição ética e política da comunidade analítica da EPFCL – Brasil, em relação ao atendimento do autismo, para, em seguida destacar, pontos cruciais do documento em questão, propondo modos de inter-
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FREITAS, Ida
venção pautados nos fundamentos da psicanálise, que considerem os aspectos subjetivos. O terceiro é um importante e consistente documento – com autoria de Ana Laura Prates Pacheco, Sandra Berta e Beatriz Oliveira –, elaborado pelo Grupo de Trabalho 21, um dos grupos constituídos para composição de documentos e ações do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, em dezembro de 2012. Esse trabalho localiza a psicanálise no campo da política e da ética, situando o autismo no campo das psicoses. Partindo de uma definição geral do sujeito psicótico enquanto aquele que está na linguagem, porém fora do discurso, esse trabalho coloca que “o sujeito autista nos indaga ainda mais com sua tipologia particular, e sua posição no polo limite da relação com o Outro da linguagem. Assim, ele nos possibilita declararmos a sustentação radical de uma política da direção do tratamento que responda com a subversão contra a segregação”. A seguir, encontramos dois textos que abordam a prática da psicanálise com a psicose infantil nas instituições de saúde pública. O primeiro deles, “Autismo na saúde mental e a psicanálise”, propõe uma leitura crítica em relação ao discurso psiquiátrico, que, através da profusão de diagnósticos classificatórios e de tratamentos, se propõe científico, não levando em consideração a subjetividade das crianças autistas. Apoiada em dados da Organização Mundial de Saúde, Sheila Abramovitch se pergunta se estamos diante de uma epidemia do autismo e faz um breve percurso histórico e crítico apontando para “a defasagem existente entre a necessidade de atenção em saúde mental e a oferta da rede de serviços capaz de atender a essa demanda”. Em continuidade, com a pergunta “Qual o lugar da psicanálise na instituição?” –, acompanhamos também um caminho crítico histórico, mas agora da inserção da psicanálise nas instituições de atendimento a crianças. Através de sua experiência institucional em um hospital-dia na França, Maria Vitória Bittencourt apresenta formas de intervenção que tratam de colocar em prática a doutrina analítica, para construir a clínica propriamente dita. Conclui seu argumento com a proposição de que “as instituições não são feitas para a psicanálise, todavia, existe um lugar para a psicanálise nas instituições na medida do tratamento real que resulta do ato de cada analista”. Na sequência, está disposta uma série de artigos que, trazendo ricas contribuições a propósito da teoria e da clínica psicanalítica referente ao autismo em particular e às psicoses infantis em geral, demonstram a vasta experiência advinda de uma práxis e forte dedicação dos psicanalistas a essa causa, em nossa comunidade e para além dela. Iniciando essa série, Luís Achilles Rodrigues Furtado interroga o uso da noção de sujeito e de indivíduo no ensino de Freud e Lacan, apontando para equívocos
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Editorial
e sobreposições teóricas desses termos, especialmente no que concerne à clínica do autismo. Ao tratar do problema conceitual implicado no trabalho com pessoas autistas, o autor traz a seguinte questão: “se o sujeito é definido como aquilo que é representado por um significante em oposição a outro significante, seria justo dizermos que não há sujeito no autismo”. “Será? A clínica nos mostra isso?” Responde a essas questões apoiado na noção de indivíduo utilizada por Lacan na década de 70 e nos questionamentos sobre a diferença entre sujeito barrado e sujeito dividido, segundo as indicações de Solange Faladé. Georgina Cerquise vem a seguir, fazendo um estudo teórico e clínico através da literatura psiquiátrica. Para tal, utiliza-se do caso de Jonh F., que é abordado por Leo Kanner, com a intenção de comparar as diferenças e semelhanças entre a definição clássica de esquizofrenia infantil e os distúrbios autísticos do contato afetivo. Dentre outras importantes observações, a autora, a partir da leitura psicanalítica do material pesquisado, faz a proposição de que, no autismo, o sujeito não constitui sua imagem especular e, portanto, não ascende à formação de seu eu. Outro caso clínico da literatura que concerne à psicose infantil, é eleito como objeto de pesquisa no artigo de Beatriz Oliveira, desta vez da literatura psicanalítica, a saber, o caso Dick, de Melanie Klein. A autora propõe a hipótese de que Dick “estaria num estado autístico do qual pudera sair a partir das intervenções de Melanie Klein”. Tal hipótese implica necessariamente a aposta do analista ao tratamento das psicoses. O presente estudo possibilitou ainda uma aproximação entre as esquizofrenias infantis e os casos de autismo. Adiante, questionando-se sobre as possibilidades clínicas da psicanálise para com os casos que apresentam o diagnóstico de Síndrome de Asperger, Samantha A. Steinberg faz a seguinte proposta, que desenvolve ao longo de seu artigo: “o que angustia o autista é exatamente esse encontro com o desejo do Outro real, como nos define Lacan. Nesse encontro, haveria uma clivagem: o Outro real, relacionado à Coisa, é repelido, rejeitado, mas não os significantes em si. Parece-me necessário fazer essa diferenciação para podermos pensar o autismo e a Síndrome de Asperger. A cadeia significante como tal, ‘desencarnada’, não parece ser um problema para esses sujeitos”. Dando seguimento aos textos aqui publicados, Bernard Nominé, ao retomar a fórmula de Lacan, quando questionado a propósito dos autistas –”há, certamente algo a lhes dizer” –, pergunta-se: “qual pode ser a resposta do psicanalista diante dos pacientes autistas, de suas famílias, e das associações que os abrigam”? Entre os argumentos desenvolvidos por Nominé, destaca-se, a nosso ver, sua crítica à oposição feita atualmente entre a psicanálise e a origem supostamente genética do autismo, quando, numa advertência aos analistas, afirma: “é necessário precisar que os psicanalistas não têm que temer os avanços da ciência genética. O cogni-
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FREITAS, Ida
tivismo e a neuropsicologia inspiram-se nas neurociências apenas por oposição à psicanálise, isto é, para não saber nada da estrutura da linguagem, pois não é a psicanálise em si mesma que assusta, mas sua opção em se apoiar na estrutura da linguagem. Optar pela ciência contra a psicanálise é, portanto, uma aberração; a psicanálise não se opõe em nada às descobertas da ciência”. Na sequência dos trabalhos, Martine Menès vem nos brindar com uma primorosa transmissão, a partir de um caso de autismo de sua própria clínica e que acompanhou por nove anos. Apostando no autista como um sujeito a supor, a autora se pergunta se a psicanálise tem algo a aprender com o autismo e, ainda, se tem algo a inventar com o autista. Propõe que, no tratamento com o autista, o analista não está como sujeito suposto saber, nem mesmo como sujeito que suspeita saber, mas como somente coisa, anterior ao Outro. Numa cuidadosa descrição do tratamento de Nora, Menès tece suas articulações teóricas, destacando as relações desse sujeito com a imagem, com o corpo, com a linguagem e com o objeto. “Autismo e linguagem” é mais um artigo que apresenta um breve apanhado sobre a história da psiquiatria infantil e do surgimento do termo “Autismo”, bem como as últimas modificações que sofreu em relação à sua nomenclatura e forma de ser diagnosticada, para depois descrever um caso clínico, abordando suas particularidades e explorando cientificamente suas principais características, conciliando assim teoria e prática. O derradeiro artigo do II Caderno Especial de Stylus, que se intitula “Os autistas escrevem” apresenta uma argumentação teórica e clínica das relações do sujeito autista com a linguagem falada e escrita, apoiando-se, para tal, em muitos momentos do ensino de Lacan, mas também em diversos autores que contribuíram para se pensar essa categoria nosográfica. Como podemos notar, através da leitura atenta dos trabalhos aqui apresentados, não é pouco o que tem a dizer a psicanálise e não é sem valor o que tem a fazer o psicanalista na sua abordagem ao sujeito autista. A Equipe de Publicação de Stylus tem enorme satisfação em poder trazer a público a presente coletânea de textos, que vêm documentar algumas das razões pelas quais a psicanálise não se pode render a mais uma tentativa de inibir sua atuação. Desejamos a todos uma leitura profícua! Ida Freitas
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documentos
Histórico do movimento psicanálise, autismo e saúde pública O “Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública”, com início no final de 2012, congregou uma série de profissionais da área da saúde, em rede virtual, para manifestarem seu repúdio a algumas ações da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em relação ao tratamento do autismo. Segue abaixo um breve histórico destas ações que circulou entre os integrantes deste movimento: - em maio de 2012, um ofício foi enviado pelo Coordenador de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São Paulo, Sergio Tamai, Superintendente do Hospital São Paulo. Nele constava a informação de que o convênio entre a SPDM e a Secretaria do Estado que mantinha o CRIA – Centro de Referência da Infância e Adolescência – seria cancelado. As justificativas para este cancelamento, que implicaria o encerramento das atividades de tal serviço foram duas: a de que o serviço atendia crianças com diferentes quadros patológicos e não somente crianças com autismo; e a de que o serviço trabalhava com referencial teórico da psicanálise, não considerado o mainstream (sic) da psiquiatria atual. Neste momento, o cancelamento foi revogado a partir de uma manifestação contrária a este. - em agosto de 2012, sai no Diário Oficial o edital de No 148 – DOE de 08/08/12 – Seção 1 – p. 79, uma proposta de criação de rede credenciada de instituições privadas especializadas no atendimento de pessoas com autismo. Este edital partiu da consideração de que havia uma insuficiência de equipamentos próprios do Estado para o atendimento desses pacientes. Houve, ainda neste edital, a exigência de que os psicólogos tivessem especialidade em Terapia Cognitivo Comportamental. Ou seja, duas questões graves se colocaram: de um lado, o não investimento na rede já existente, para que houvesse ai melhorias para melhor atender aos pacientes, e de outro uma exigência exclusiva de um campo teórico no que se refere ao atendimento de pessoas com autismo. - em novembro de 2012, uma nova carta, contendo menção de caráter irrevogável é enviada à Superintendência do Hospital São Paulo, afirmando o cancelamento do convênio mantenedor do CRIA. Os argumentos deste documento foram os mesmos que os anteriores.
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No entanto, a gestão de saúde mental é mudada e exige-se desta uma explicação sobre o fechamento do CRIA. Essa medida de fechamento foi revogada e um novo convênio é firmado em dezembro de 2012. Para a efetivação do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, em dezembro de 2012, foram constituídos vários grupos de trabalho em torno de temas específicos e necessários para a composição de documentos e ações em nome deste movimento. Desde o início, a EPFCL-Brasil e o FCL-SP apoiaram o movimento, em particular por meio das redes de pesquisa do FCL-SP: psicanálise e infância, psicoses e saúde pública. O grupo que representou estas redes foi o de número 21 com a proposta de trabalhar o tema: “Política da Psicanálise para o Tratamento das Psicoses”. Este grupo apresentou um texto em jornada realizada nos dias 22 e 23 de março de 2013 na Universidade de São Paulo, cujo teor encontra-se publicado neste número. Também em fevereiro de 2013, o Ministério Público lançou um documento intitulado “LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E SUAS FAMÍLIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE”, para consulta pública, o qual deveria ter sido lançado no dia 2 de abril de 2013, Dia Mundial do Autismo. Esse documento foi apoiado pela EPFCL-Brasil e pelo grupo 21 por meio da carta enviada ao Ministério Público, que também encontra-se publicado neste número de Stylus. É importante esclarecer que este documento do Ministério Público foi escrito por vários profissionais ligados à Secretaria da Saúde Mental. Inicialmente, foi composto um grupo que contemplava profissionais da Secretaria da Pessoa com Deficiência e da Saúde Mental. No entanto, a Secretaria da Pessoa com Deficiência escreveu outro documento sobre reabilitação do portador de autismo, oficialmente lançado no dia 2 de abril de 2013. O documento, apoiado pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Mental, foi oficialmente lançado durante o Congresso Brasileiro de CAPSi (CONCAPSi) realizado no Rio de Janeiro, nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2013. (www.congressobrasileirodecapsi.com.br). Atualmente, o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Mental continua organizado e propondo intervenções com o objetivo de tornar público o direito do sujeito autista ao tratamento psicanalítico.
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EPFCL Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil Ao Ministério da Saúde, Em atenção ao documento: LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E SUAS FAMÍLIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. (RELATORES: Ana Laura Prates Pacheco, Ana Paula Gianesi, Ana Paula Pires da Silva, Andrea Fernandes, Beatriz Almeida, Beatriz Oliveira, Elizabeth da Rocha Miranda, Gláucia Nagem, Ida Freitas, Luis Achilles Rodrigues Furtado, Maria Anita Carneiro Ribeiro, Raul Albino Pacheco Filho, Sandra Berta, Silvana Pessoa, Sonia Alberti, Sonia Magalhães, Tatiana Assadi, Zilda Machado.) Prezados Senhores, Nós, representantes da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-Brasil), com a expressão de nosso respeito, vimos por meio desta carta manifestar nossas considerações a respeito desse documento, que consideramos de fundamental importância no atual contexto da saúde pública em nosso país. Em primeiro lugar, gostaríamos de informar que a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-Brasil) é o nome da associação nacional que integra a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (IF-EPFCL). Essa associação reúne psicanalistas e não psicanalistas em diversas cidades em várias partes do mundo, e o seu objetivo principal é o de contribuir para a presença e a manutenção dos desafios do discurso analítico nas conjunturas do século. Por se tratar de uma comunidade de trabalho de orientação psicanalítica lacaniana, contamos com a participação de diversos colegas que há décadas trabalham – em nível público e privado, e em diversos países – com sujeitos diagnosticados como portadores do “espectro autista”. Essa experiência, amplamente divulgada por meio de nossas revistas e demais publicações, nos autoriza a nos posicionarmos diante da proposta do Ministério da Saúde que, segundo nossa avaliação, traz avanços significativos na linha de cuidado e atenção a esses sujeitos. Antes de destacarmos os aspectos que consideramos mais relevantes no docu-
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mento que agora se apresenta para consulta pública, permitam-nos fazermos algumas considerações gerais a respeito de nossa posição ética e política em relação ao atendimento desses sujeitos. 1) Consideramos que a categoria clínica AUTISMO engloba um conjunto vasto de sinais, sintomas, reações e posicionamentos subjetivos distintos, que por sua ampla diversidade não poderia ser contemplada por uma classificação uniforme e universal. Dessa forma, consideramos importante a escolha do termo “espectro do autismo”, ainda que em nossa terminologia específica utilizemos mais frequentemente a expressão “estado autista”; 2) Consideramos que os transtornos do “espectro do autismo” são em grande parte decorrentes de causa sobredeterminada por muitas dimensões (orgânica, psicopatológica, histórica etc.), fato que, de resto, pode-se inferir da maioria das afecções e transtornos que afetam o ser humano, sobretudo os transtornos ditos mentais. Destacamos, de qualquer forma, que uma possível origem orgânica do autismo não altera em nada o fato de que essas crianças e adultos possam ser amplamente beneficiados por terapias relacionais de forma geral e, especificamente, pelo tratamento psicanalítico; 3) Destacamos que a Psicanálise, enquanto campo próprio do conhecimento humano é, a um só tempo, um procedimento para a investigação de processos mentais, um método (baseado nessa investigação) para tratamento e uma coleção de informações psicológicas obtidas por essa investigação, que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. Como em qualquer disciplina científica, sem exceção, contanto que se reconheça uma concepção não positivista de ciência – como diversos colegas das ciências físicas, biológicas e humanas reconhecem – considera-se que não há fatos que independam das teorias subjacentes ao próprio campo em questão. Assim, a Psicanálise conta com sua própria concepção de sujeito: uma diagnóstica, coerente com essa concepção; e uma terapêutica, afim; 4) Não obstante ao fato de constituir-se como um campo científico específico, é mister destacar, ainda, que o tratamento psicanalítico é efetuado por profissionais de diferentes abordagens no interior do próprio campo psicanalítico, do mesmo modo como há diferenças nas demais abordagens da Psicologia Clínica, bem como em qualquer disciplina que reivindique uma prática clínica, inclusive a própria medicina. Essa diversidade não é decorrente na falta de rigor ou de fundamentos adequados, mas é inerente ao próprio movi-
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mento do surgimento da Clínica ao longo da história, como vários autores têm demonstrado. A diversidade entre os psicanalistas, portanto, não é vista entre os pares deste campo como algo necessariamente negativo, ou algo que deva ser eliminado a priori; mas, antes, como um fato decorrente do estado atual de nossa praxis, e cujo debate livre deve ser reconhecido e aprofundado pelos atores que participam do próprio campo, como é prática comum nas Universidades, Institutos e Escolas destinadas à formação dos psicanalistas. Essa diversidade, é importante ressaltar, é amplamente reconhecida por diversos Estados de Direito, inclusive o Brasil; 5) O reconhecimento dessas diferenças não nos impede de afirmar, entretanto, que o objetivo geral da Psicanálise com sujeitos ditos autistas é o de minimizar suas angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de laço social. Trata-se, evidentemente, de um trabalho a longo prazo, cujos resultados não podem necessariamente ser avaliados por meio de critérios mecanicistas ou quantitativos; 6) A Psicanálise, por não operar com o binômio normal/patológico, e por não considerar as distintas estruturas psíquicas humanas a partir do conceito de doença, não se propõe, portanto, a curar o autismo, mas sim a considerar que o sujeito autista tem o direito a um tratamento psicanalítico. Levando-se em conta tais pressupostos e fundamentos que orientam nosso Campo Lacaniano, gostaríamos de destacar alguns pontos do documento LINHA DE CUIDADO PARA A ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E SUAS FAMÍLIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE que consideramos fundamental. São eles: 1) O reconhecimento por parte do Ministério da Saúde de que “as concepções e posições sobre os transtornos autísticos, bem como a respeito das formas de diagnosticar e tratar esses quadros são variadas e, muitas vezes, divergentes”; 2) O reconhecimento de que “a condição de doença para o autismo é bastante discutível, daí também a noção de espectro para designar um conjunto relativamente amplo de características e condições admitidas na identificação desses agravos à saúde”;
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3) O reconhecimento de que “As possíveis etiologias também não são consensuais, ao contrário, continuam suscitando polêmica e variações de entendimento e explicação”. E em relação à Rede e aparelhos de cuidados, apreciamos sobremaneira o conceito de Projeto Terapêutico Singular – PTS apresentado neste documento. Destacamos as seguintes recomendações: 1) “É essencial no acompanhamento proposto o entendimento ou a tentativa de entender os modos de funcionamento do sujeito, das relações que ele estabelece e seus impasses. A terapêutica deve partir das pistas que o sujeito oferece, das rotinas que estabelece o que elege e o que evita”; 2) É essencial a inclusão “da escuta da família e de outros atores importantes para a pessoa em questão, para que seja possível uma aproximação, com vistas à construção da direção do tratamento”; 3) “Os CAPS são dispositivos de cuidado e não abordagens terapêuticas. Devem, portanto, contar com uma diversidade de abordagens para fazer frente à diversidade das necessidades das pessoas que são atendidas”; 4) “Na ajuda terapêutica à pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo é importante conjugar em seu tratamento, portanto, aspectos subjetivos (favorecendo a pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo como sujeito de desejo e agente social), operacionais (construindo ferramentas para suas aprendizagens) e de treinamento (estimulando autonomia e independência cotidiana)”; 5) “Todo projeto terapêutico singular para a pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo precisa ser compartilhado com a família, necessita ser multiprofissional e estar aberto às terapêuticas que venham realmente ajudar as suas dificuldades.”
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Finalmente, reafirmamos a importância de que o Estado possa continuar garantindo a oferta de um atendimento clínico que leve em conta a singularidade do sujeito, mais além do transtorno. Colocamo-nos à disposição para possíveis consultas ou contribuições que julgarem relevantes nesse processo de implantação dessa linha de cuidado. Cordialmente, Comissão de Gestão da EPFCL-Brasil (Delma Gonçalves Fonseca, Andrea Milagres, Madalena Kfuri)
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Texto grupo de trabalho 211 Política e ética da psicanálise para o tratamento das psicoses: A subversão como resposta à segregação Ana Laura Prates Pacheco Sandra Berta e Beatriz Oliveira Como responderemos nós, os psicanalistas, à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes? (LACAN, Alocução sobre as psicoses).
Introdução A proposta desse tema de trabalho para a Jornada Autismo, Psicanálise e Saúde Pública coloca, de saída, um posicionamento em relação a como compreendemos a articulação possível entre esses três termos. Dessa forma, o título de nosso trabalho aponta para uma localização da Psicanálise no campo da Política e da Ética, e uma localização do Autismo no campo das psicoses. Consideramos que não há fatos que independam das teorias subjacentes ao próprio campo em questão, e que não há Clínica que possa dispensar um rigoro1 Ana Paula Gianesi e Tatiana Assadi (pela CG do FCL-SP); Ana Paula Pires da Silva (membro do FCL-SP); Ana Laura Prates Pacheco e Beatriz Oliveira (coordenadoras da Rede de Pesquisa em Psicanálise e Infância); Beatriz Almeida, Glaucia Nagem de Souza e Sandra Berta (coordenadoras da Rede de Pesquisa Sobre as Psicoses); Ana Laura Prates Pacheco, Raul Albino Pacheco Filho, Rodrigo Pacheco, Sandra Berta e Silvana Pessoa (pela Rede de Pesquisa em Saúde Pública).
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so conjunto de referenciais teóricos, sob pena de reduzir-se a uma terapêutica com eficácia apenas simbólica e inefável, equiparando-se à magia. Freud, ao contrário, é responsável pelo reingresso da verdade no campo da ciência, o que possibilita sustentarmos uma Clínica Psicanalítica a partir da causalidade psíquica. Destacamos, portanto, que é somente a partir da concepção inédita de sujeito, trazida pela Psicanálise – sobretudo a partir do ensino de Jacques Lacan – tributária de sua relação fundamental com a linguagem, que podemos pensar de um modo não normativo na questão ética que os sujeitos psicóticos nos convocam a responder qual seja: a da possibilidade de se estar na linguagem, mas fora do discurso. A partir dessa definição geral do sujeito psicótico e de sua peculiar relação com a linguagem, o sujeito autista nos indaga ainda mais com sua tipologia particular, e sua posição no polo limite da relação com o Outro da linguagem. Assim, ele nos possibilita declararmos a sustentação radical de uma política da direção do tratamento que responda com a subversão contra a segregação.
I. O autista: um analisante de pleno direito Pensar a política da Psicanálise para o tratamento das psicoses em geral e, em particular, para as pessoas com o chamado “transtorno do espectro autista” implica, antes de mais nada, adotar uma posição ética contrária à segregação. O que orienta a Clínica Psicanalítica é exatamente o impossível de universalizar. Como nos lembra C. Soler (1998, p. 289): “Penso que o desejo da diferença absoluta ao qual se devota o psicanalista, é suportado pela necessidade para os sujeitos um a um de se extraírem do lote para não desaparecerem no um entre outros, sempre anônimo”. As questões que vêm sendo debatidas sobre o tratamento para os sujeitos considerados em estado autista remetem necessariamente a uma outra questão maior que se refere à necessidade de se tomar como sujeito de pleno direito qualquer um, independentemente de sua idade, raça, sexo, condição social e, principalmente, psíquica. Foi esse pensamento subversivo que permitiu a Freud, desde 1905 – antes mesmo de analisar o caso do pequeno Hans – abrir para a criança seu lugar como sujeito para a Psicanálise, na medida em que não recua diante de suas descobertas clínicas desde as histéricas, e se interroga pelo “infantil” que se impõe nas construções neuróticas. De fato a Modernidade, ao supor deter o saber sobre a criança, a coloca, paradoxalmente, no lugar de objeto. Segundo Prates Pacheco (2012, p. 279): “para o bem ou para o mal o Discurso Universitário cria a criança no lugar do objeto, deixando o sujeito no lugar de algo a ser produzido pelo saber”. E ela acrescenta
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que rapidamente “A Criança” passa a ser um significante absorvido pelo Discurso do Mestre “que passa a agenciar, a partir de então, um saber sobre A Criança: a Pedagogia, a Pediatria, a Pedopsiquiatria”. Nessa mesma direção entendemos o que Rosine Lefort (1997, p. 147) dirá a respeito da situação em que se encontravam as crianças institucionalizadas: [...] a questão da patologia de crianças pequenas em instituição hospitalar, cujo funcionamento corporal é submetido apenas a um S2 que se encontra no lugar de agente no discurso universitário – que faz mandato “come!”, “vai para o penico!” ou “dorme!” – tem como efeito o surgimento de sintomas que não se apresentam como respostas do sujeito. Segundo Quinet (2006, p. 49): A inclusão do sujeito no tratamento tem duas vertentes que devem caminhar juntas: por um lado, a inclusão do sujeito do inconsciente, com sua fala, sua história e seus sintomas, manifestações de sua singularidade. Isto significa incluir o sujeito no saber sobre sua patologia, seu pathos, seu padecimento. [...] A inclusão no campo social é também tributária do conceito de sujeito em Lacan, na medida em que não há sujeito sem Outro [...] O conceito de sujeito, portanto, é ao mesmo tempo individual e coletivo. Não há sujeito sem Outro – daí a dificuldade de encontrarmos as manifestações do sujeito no autismo, onde há um curto-circuito da alteridade. Como, então, pensar a questão da inclusão do sujeito no caso de pessoas que, por princípio, são consideradas fora do laço com o Outro, como é o caso dos autistas? Eis o desafio da Psicanálise, ao considerar o sujeito autista um analisante de pleno direito.
II. Inclusão, exclusão e segregação Sabemos que delimitar um conjunto dos autistas estabelecendo para estes normas e protocolos de tratamento, longe de incluí-los, reforça sua condição de sujeitos fora das normas, o que promove ainda mais sua segregação. Advertimos aqui que estamos diferenciando os paradoxos do binômio “inclusão X exclusão” da segregação, em particular como foi trabalhada por Lacan (2003) em 1967. Para abordarmos brevemente o que diz respeito ao suposto binômio “inclusão X exclusão”, colocaremos algumas questões de base: trata-se de uma relação de
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complementaridade? Será que não poderíamos pensar as relações entre exclusão X inclusão como sendo de ordem suplementar, incluindo aqui a categoria do impossível? Como poderemos, a cada vez, atualizar essas questões quando nos referimos às intervenções clínicas nos diferentes níveis em que elas se apresentam? Considerando tratar-se de uma relação suplementar, propomos que o tratamento da exclusão da diferença considere, sobretudo, a resposta singular que inventa versões que subsidiem espaços diferentes para o que é da ordem da exclusão. Temos, então, a possibilidade de abalar o binômio “exclusão X inclusão”, acrescentando o impossível (via o suplementar, em questão). Acrescentemos, ainda, um quarto termo, qual seja, o desejo do analista. O desejo do analista é a condição absoluta de manter toda relação de complementaridade em enigma. Ele cava um fosso em binômios tais como o de inclusão X exclusão. Quinet (op. cit., p. 49), ao se perguntar pelo laço social nas psicoses, escreve: A inclusão como inserção social é receber do exílio aquele que cortou os laços com as exigências da civilização, tais como renunciar às pulsões sexuais em função do outro. [...] A inclusão de que se trata é a inclusão da diferença radical no seio da sociedade de supostos iguais – por exemplo, a sociedade de cidadãos.// Por muito tempo, houve uma foraclusão da inclusão na história da psiquiatria que adotou outro binômio: exclusão e reclusão. [...] Em vez de foracluir a inclusão, trata-se de incluir a foraclusão. Incluir a foraclusão é um imperativo ético que se atualiza, a cada vez, na clínica. Trata-se de uma resposta que, a seu modo, evoca o que Freud nomeou a Coisa, e para a qual Lacan inventou o neologismo “êxtimo”. A saber: aquilo que fosse excluído originalmente será considerado como o mais íntimo do sujeito; um interior excluído que escreve – como modo lógico necessário: não para de escrever – uma resposta do ser falante no seu laço ao Outro. Esse interior excluído que é retroativamente o exterior incluído, a ser reconhecido como o mais íntimo de nosso ser, foi o que Lacan propôs ao falar da ética da psicanálise. A Coisa Freudiana se deduz como lugar da perda fundante do ser falante. A possibilidade de criar um sistema no qual o sujeito encontre asilo ao exílio da sua existência de linguagem ameaçada por essa obscenidade do Outro. Segundo Berta (2010, p. 132): “Das Ding é o fora-do-significado, em função disso, o sujeito construir uma relação patética (pathos) com esse fora, conservando uma distância e extraindo um afeto primário – a angústia – anterior a todo recalque”. Evoquemos neste ponto preciso o que é da ordem da segregação, entendida como a facticidade real (LACAN, 1967/2003). Facticidade, termo que evoca o Dasein Heideggeriano, se diferencia da contingente factualidade dos objetos da
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experiência (HARARI, 2007, p. 192). A facticidade exige uma construção que enlaça os acontecimentos, indica seja a contingência do evento, seja a insistência em poder deles fazer uma ficção subjetiva para dela retirar o seu caráter absurdo. Eis a proposta de Lacan ao diferenciar o que é da ordem dos acontecimentos e o que é da ordem de uma construção (elaboração) dos mesmos. Porém, podemos acrescentar que isso não depende tão somente das identificações (facticidade imaginária), mas dos modos de gozo, entenda-se com isso os modos de responder ao impossível. Evoquemos ainda que a facticidade simbólica remete aos usos do Mito do Complexo de Èdipo, foracluído quando se trata da psicose. Nas últimas décadas os psicanalistas vêm respondendo à segregação da psicanálise, debatendo sobre os diferentes entraves e mal-entendidos que levaram a medidas por parte do Estado que tende a desconhecer o mal-estar e o tratamento do impossível, tendendo a intervenções que supostamente evidenciariam sua eficácia a partir da quantificação. Tais quantificações têm produzido um sintoma que levou ao pior, na sociedade, em particular no século XX: a segregação. Quantificações que não somente dizem dos diagnósticos, mas da falta de perguntas pelo que é da ordem da existência, ou seja, em termos psicanalíticos, pelo que é da ordem do impossível e das respostas subjetivas possíveis que não o neguem sistematicamente. Em contrapartida, a clínica psicanalítica deverá acolher e questionar eticamente “a angústia do indivíduo diante da forma concentracionista do vínculo social” (LACAN, 1949/1998, p. 102).
III. A querela da etiologia e do diagnóstico Ora, se a partir da Psicanálise sabemos que as respostas do sujeito dependem em grande medida do discurso predominante no laço social vigente, precisamos introduzir neste debate a questão do diagnóstico no contexto da Psiquiatria contemporânea. Concordamos com a afirmação de Quinet (op. cit., p. 22) de que: [...] fundar uma prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a transtornos, que por conseguinte devem ser eliminados com medicamentos, é abandonar a clínica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma estrutura clínica, que no caso, é a estrutura do próprio sujeito. Por todas essas razões: [...] restituir a função diagnóstica no tratamento psiquiátrico a partir de uma clínica do sujeito é um dever ético que a Psicanálise propõe para a Psiquiatria.
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Isto é uma forma de sair do discurso do capitalista que condiciona desde o diagnóstico até o tratamento para restituir à medicação seu justo valor paliativo e não resolutivo do sofrimento mental. Pois a Psicanálise não se opõe à Psiquiatria, mas sim a todo Discurso que suprime a função do sujeito (Ibid., p. 22). Nesse ponto, é preciso destacar que a Psicanálise, enquanto campo próprio do conhecimento humano é, a um só tempo, como queria Freud, seu fundador: um procedimento para a investigação de processos mentais, um método (baseado nessa investigação) para tratamento e uma coleção de informações psicológicas obtidas por essa investigação, que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. Segundo Pacheco Filho (2012), os adversários do Positivismo, no Campo Epistemológico, questionam justamente a ideia de um desenvolvimento linear, gradualmente progressivo e contínuo das investigações e realizações científicas e privilegiam uma concepção de corte epistemológico, revolução e ruptura. O autor acrescenta ainda: “São autores que, além do mais, contestam a separação radical entre fato e teoria p.187. E segundo Hanson (1967/1975, p. 127-8): [...] observações e interpretações são inseparáveis – não apenas no sentido de que nunca se manifestam separadamente, mas no sentido de que é inconcebível manifestar-se qualquer das partes sem a outra. [...] Separar a urdidura do tecido destrói o produto; separar a pintura da tela destrói o quadro; separar matéria e forma numa estátua torna-a ininteligível. Assim também, separar os sinais-de-apreensão-de-sensações da apreciação-do-significado desses sinais destruiria o que entendemos por observação científica... A concepção de observação proposta pelos neopositivistas – por meio da qual o registro de dados sensórios e nossas elaborações intelectuais relativas a eles se mantêm apartados – é um golpe analítico equivalente ao de um açougueiro lógico. Pacheco Filho (op. cit., p.188) também afirma que “o aspecto importante a registrar é o fato de que o campo de uma nova disciplina científica sempre se constitui a partir de uma ruptura com a ordem científica anterior (um corte epistemológico), em que surgem novos ‘compromissos de investigação’ adotados pela comunidade do campo”. Nessa mesma direção, Nogueira (1997, p. 7) sustenta que “a pesquisa feita por Lacan situa epistemologicamente o campo freudiano da linguagem considerando a materialidade do significante”. E acrescenta que “há aí uma exigência de rigor de pesquisa que coloca esta clínica no nível de promissoras conquistas científicas da realidade propriamente humana”.
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Assim, a Psicanálise conta com sua própria concepção de sujeito: uma, diagnóstica, coerente com essa concepção; e outra, terapêutica. Do ponto de vista da Psicanálise de orientação lacaniana, a categoria clínica AUTISMO engloba um conjunto vasto de sinais, sintomas, reações e posicionamentos subjetivos distintos, que por sua ampla diversidade não poderia ser contemplada por uma classificação uniforme e universal. Dessa forma, em nossa terminologia específica, utilizemos mais frequentemente a expressão: “estado autista”. Consideramos que os chamados transtornos do “espectro do autismo” são em grande parte decorrentes de causa sobredeterminada por muitas dimensões (orgânica, psicopatológica, histórica etc.), fato que, de resto, pode-se inferir da maioria das afecções e transtornos que afetam o ser humano, sobretudo os transtornos ditos mentais. O autismo enquanto “estado” pode ser encontrado, sobretudo quando ocorre na primeira infância, em diversas estruturas e tipos clínicos – se levarmos em conta o diagnóstico estrutural, próprio da Psicanálise – e mais frequentemente na Psicose de tipo esquizofrênica prematuramente desencadeada. Por outro lado é possível também reconhecer um tipo clínico específico em certos sujeitos, no qual encontramos o que chamamos de uma “patologia da libido” (SOLER, 1999), libido aqui tomada conceitualmente enquanto órgão produzido pelo encontro com a linguagem. Segundo Soler (Ibid., p. 226), poderíamos dizer que “essas crianças, na condição de sujeitos, permanecem puros significados do Outro”, e dessa forma, “são sujeitos, mas não sujeitos que enunciam”. E aqui, precisamos voltar à tão debatida questão da etiologia, a partir da Psicanálise, cujo campo epistemológico e clínico, com uma noção própria de causalidade psíquica rejeita o binômico inatismo X ambientalismo. Citemos, a esse respeito, nosso colega Bernard Nominé, membro da EPFCL-França, em trabalho apresentado sobre o tema no VIII Encontro Internacional da IF, em 2012: Entretanto é necessário precisar que os psicanalistas não temem os avanços da ciência genética. O cognitivismo e a neuropsicologia se inspiram nas neurociências apenas para se opor à psicanálise, quer dizer, por não saberem nada da estrutura de linguagem. [...] Optar pela ciência contra a psicanálise é, portanto, uma aberração; a psicanálise não se opõe em nada às descobertas da ciência. É bastante provável que haja no espectro autístico patologias hereditárias. Ao mesmo tempo, mesmo nessas patologias aparentemente hereditárias, não se conseguiu isolar um gene responsável. Suspeita-se de pelo menos quatro sequências possíveis. Com isso, não há como propor uma triagem séria! Os falsos positivos seriam bem mais numerosos e o teste provocaria mais mal do que bem. Bertrand Jordan, biólogo molecular, pesquisador no CNRS, de quem dificilmente se pode
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suspeitar de ter um a priori favorável à psicanálise, escreve o seguinte: “Sendo o autismo também um problema da relação, a profecia corrente de um teste muito impreciso corre o riso de ser autorrealizadora: designado como sendo de alto risco, a criança será alvo da solicitação inquieta de seus pais, assim, se ela não fosse já autista, poderia se tornar...”. Vindo de um geneticista advertido, essa observação tem o seu peso. Esse pesquisador em genética se preocupa em nos lembrar que não se pode confundir genótipo e fenótipo. O genótipo se manifesta em fenótipo sob a influência de contingências diversas que são incalculáveis. A transmissão do genótipo não basta em si mesma para escrever um destino. A tentação é grande, para alguns, de apelar à genética para compensar a questão da causa. Destacamos, de qualquer forma, que um possível traço de origem orgânica na etiologia dos estados autistas não altera em nada o fato de que essas crianças e adultos possam ser amplamente beneficiados por terapias relacionais de forma geral e, especificamente, pelo tratamento psicanalítico. Nesse contexto, o perigo de se tratar um sujeito em estado autista a partir de protocolos universalizantes, como se estes indivíduos fossem todos iguais, é continuar mantendo-os no anonimato no qual se situam desde muito cedo.
IV. O tratamento psicanalítico de sujeitos em estado autista Como é possível, então, ao psicanalista responder de forma a subverter o anonimato de pessoas em estado autista? Como escutar “seres não falantes” para que possam fazer um uso da língua tal que seja possível um apaziguamento e, talvez, uma suplência? Não obstante ao fato de constituir-se como um campo científico específico, como procuramos sustentar, precisamos reconhecer que o tratamento psicanalítico é efetuado por profissionais de diferentes abordagens no interior do próprio campo psicanalítico, do mesmo modo como há diferenças nas demais abordagens da Psicologia Clínica, bem como em qualquer disciplina que reivindique uma prática clínica, inclusive a própria medicina. Essa diversidade não é decorrente da falta de rigor ou de fundamentos adequados, mas é inerente ao próprio movimento do surgimento da Clínica ao longo da história, como vários autores têm demonstrado. A diversidade entre os psicanalistas, portanto, não é vista entre os pares deste campo como algo necessariamente negativo, ou algo que deva ser eliminado a priori; mas, antes, como um fato decorrente do estado atual de nossa praxis, e cujo debate livre deve ser reconhecido, e aprofundado pelos atores
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que participam do próprio campo, como é prática comum nas Universidades, Institutos e Escolas destinadas à formação dos psicanalistas. Essa diversidade, é importante ressaltar, é amplamente reconhecida por diversos Estados de Direito, inclusive o Brasil. O reconhecimento dessas diferenças não nos impede de afirmar, entretanto, que o objetivo geral da Psicanálise com sujeitos autistas é o de minimizar suas angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de laço social. Trata-se, evidentemente, de um trabalho a longo prazo, cujos resultados não podem ser avaliados por meio de critérios mecanicistas ou quantitativos. Se por um lado a Psicanálise, em sua origem, permitiu à criança tomar seu lugar enquanto ser falante, por outro é fundamental que uma pessoa em estado autístico possa encontrar, na cultura, um outro que não o trate de forma anônima tal como ele mesmo parece se colocar: sem nome, sem desejo. Sabemos que o tratamento dos ditos autistas toca no limite do insuportável: se deparar com alguém que recusa um laço com o outro. Para suportar este encontro, é fundamental sustentar uma posição em que o único desejo em jogo, da absoluta diferença, permita uma aposta constante de que o nascimento do Outro seja possível. A partir de nossa experiência com esses sujeitos, podemos afirmar que a via da Psicanálise é a da ética que aposta na diferença absoluta: da repetição estereotipada extrair um gesto que faça laço; da ecolalia, uma voz que se faça escutar. Sabemos que não há garantia de que um Outro venha a nascer, como diziam Rosine e Robert Lefort; mas sem essa aposta, é certeza que o anonimato e a segregação continuarão sendo o destino para estas pessoas. Como diz Nominé (2001, p.15), para isso “é preciso situar o encontro com um psicanalista que saiba produzir, com tato e prudência, um pouco de alteridade para fazer suplência a este Outro que tarda a nascer”.
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psicanálise e instituição
Autismo na saúde mental e a psicanálise1 Sheila Abramovitch Em virtude do contexto socioeconômico e político em que vivemos hoje, no Brasil, torna-se imprescindível um olhar crítico e atento da Universidade aos diversos segmentos que compõem nossa sociedade, na busca constante de melhores condições de vida para toda a população, o que inclui, necessariamente, saúde mental. Também é fundamental uma leitura crítica em relação a um determinado discurso, que com sua profusão de diagnósticos classificatórios e de tratamentos se propõe científico, mas que não leva em conta a subjetividade das crianças ditas autistas. As crianças autistas não são agrupáveis em uma única categoria. Apresentam-se por meio de subtipos clínicos, que vão desde leves traços autísticos até a síndrome completa, o tipo concha de Francis Tustin. Não existe um padrão único, mas sim uma ampla faixa de expressão da síndrome. Podem ser apáticas, hiperativas, agressivas... e apresentarem psicopatologias graves, não correspondendo à expectativa nem dos pais nem da escola. Tratar de crianças autistas é uma tentativa de oferecer-lhes outro percurso de vida, que se constitui em um ato político e social, na medida em que o objetivo, além de proporcionar uma redução do sofrimento psíquico, resgata o lugar de cidadão desses sujeitos, seja por meio da inserção escolar, da inscrição em uma vida social e, a longo prazo, também profissional. Diante da gravidade e da especificidade da faixa etária em questão, faz-se necessária a conjugação de diferentes áreas do saber, para um enfrentamento das vicissitudes inerentes a estes pequenos sujeitos enigmáticos. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, no último dia 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, fez um alerta sobre a necessidade de um maior envolvimento de todos na luta contra essa doença, que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), tem uma prevalência de mais de 5 em cada 10 mil crianças, ou seja, 10% da população mundial têm algum tipo de patologia do espectro autista. Esta classificação amplia o diagnóstico de autismo, que passa a agrupar todos os tipos de autismo, não discriminando o autismo primário, daquele secundário a alguma causa orgânica. 1 Comunicação oral no colóquio A importância da Psicanálise para a Psiquiatria do século XXI, em 5 de julho de 2012, na UERJ. Evento preparatório para o VII Encontro da IF-EPFCL. Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outras Especificações.
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ABRAMOVITCH, Sheila
Será que estamos diante de uma epidemia de autismo? No Brasil, as estimativas indicam que os números podem chegar a 2 milhões de casos do espectro autista. No enfrentamento desse problema, nos deparamos com a defasagem existente entre a necessidade de atenção em saúde mental e a oferta da rede de serviços, capaz de responder a essa demanda. Alheado a isso, não há uma política de saúde mental adequada para a população infantil e que contemple particularidades, como seus fatores de risco e proteção. Desde a década de 70, a partir da descentralização do atendimento na área da psiquiatria, iniciou-se a construção de uma rede de serviços em substituição ao modelo hospitalocêntrico, mas é apenas nos anos 80 que as crianças portadoras de transtornos psiquiátricos são incluídas oficialmente na oferta de um tratamento diferenciado, rompendo, assim, com a cronificação hospitalar. A partir da década de 90, as crianças foram incluídas nas novas modalidades de CAPSI. O CAPSI (Centro de Atenção Psicossocial Infantil) é a principal ação brasileira hoje, porque responde à necessidade de ampliação de acesso ao tratamento para casos que até então estavam fora do sistema de saúde mental. O CAPSI é um dispositivo clínico-político que fundamenta a mudança de paradigma do modelo assistencial no Brasil. E em 2002, a proposta de CAPSI foi somada à da inclusão escolar, permanecendo, ainda, certa desorientação em relação ao que deve ser tratado em âmbito clínico e o que é passível de ser educável. Os CAPSIs apresentam diversas abordagens, e a psicanálise não se inscreve como mais uma modalidade de tratamento, mas vem romper com todas elas. Vem instaurar a particularidade versus o ideal, pois não existe um modelo de criança perfeita, e nem de uma instituição que vá “dar conta de tudo”. Estamos diante do que Freud chamou de psicanálise em extensão, ou seja, da aplicação dos conceitos psicanalíticos em outro local que não o setting analítico. Não podemos falar de um autismo genérico, mas sim de uma criança autista, a partir de uma relação específica com sua mãe, e da impossibilidade de uma teoria única explicar tantas diversidades. Existem situações clínicas, no entanto, e o autismo se inclui entre elas, em que há dificuldades de o sujeito ascender ao simbólico, há um malogro na constituição de um sujeito desejante, logo no início da vida (ABRAMOVITCH, 2000). A criança autista tem uma maneira particular de estar no mundo. Sua fala pode ser incompreensível, portar gritos ou ecolalias, pode se bater, morder, repetir frases, cenas ou mesmo um filme inteiro. Pois, considerando-a uma criança psicótica, ela “é inscrita na linguagem, mesmo quando, e isto é patente no autismo, não se inscreve como sujeito na fala” (STEVENS, 1990, p.33) Assim, elas nos mostram que estão fora do discurso compartilhado, mas inscritas na linguagem (SOLER, 2007), mesmo se sua voz se faz calar, nós falamos delas. As mais verborrágicas, as
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Autismo na saúde mental e a psicanálise
menos comprometidas, como as diagnosticadas Aspergers ou TID SOE,2 também apresentam o que Leo Kanner considerou o sintoma patognomônico, a alteração do afeto. Setenta anos se passaram desde a descrição original de Leo Kanner, em 1943. Desde então, a síndrome do autismo infantil precoce vem passando por uma série de categorizações que se desviaram muito de sua concepção inicial, a de ser um distúrbio primário do contato afetivo. A intuição genial de Leo Kanner foi ter reparado que o amor, o dom e a abnegação devem ser legitimados, porque, sem isso, o amor é uma intrusão e o alimento, um veneno (DEVROEDE, 1993). É necessário, portanto, para ascender à condição de sujeito desejante, o reconhecimento simbólico por parte do Outro, que cuida da criança, para retirá-la da posição de objeto. Na atualidade, o autismo passa a ser um transtorno invasivo do desenvolvimento, englobando uma série de outras categorias, estendendo o diagnóstico para o espectro autista. As técnicas cognitivas e comportamentais não dizem do afeto do sujeito. As crianças podem se tornar dóceis e domesticadas, mas o afeto não pode ser consertado, e ele continuará a comparecer no real do corpo. Esse corpo, que deixou de ser estritamente biológico, tornando-se sexual ou erógeno, é mapeado pelos significantes provenientes do Outro. O real deve ser pensado como o tempo que pré-existe às palavras, um momento pré-simbólico. Aprendemos com Freud que a angústia é o afeto básico, expressão da descarga pulsional no corpo, desligada de representação psíquica. Com Lacan, a angústia não é mais um sentimento, e nem um sintoma, mas sim expressão de um sinal, que não engana, porque a angústia é real. Ela surge como uma ameaça, que aponta para um perigo, quando confrontada com o desejo do Outro. As crianças autistas, em sua angústia, se sentem perseguidas pelos signos da presença do Outro, e vão tentar anular e evitar qualquer coisa que aponte para a existência do Outro; elas não solicitam, não pedem e, nem clamam e nem pedem ajuda, mas paradoxalmente, não podem se separar desse mesmo Outro. Tustin (1994) já havia nos comunicado que a separação não é geográfica, tampouco de corpos, mas a separação é subjetiva, e essa é tarefa impossível para crianças autistas (SOLER, 2007). “A oferta analítica inaugurada por Freud já era, ela mesma, uma resposta ao que ele chamou de mal-estar” (Idem, 2012a, p). Uma resposta não-toda. A psicanálise vem responder ao mal-estar da criança autista, propondo que ela fale sobre o que causa o seu desejo, do jeito que ela puder falar. Necessariamente, passa por fazer falar os pais, porque, sabemos que quando algo se move do lado dos pais, por vezes, isso tem efeitos sobre o filho. Esses pais são aqueles que buscaram um tra2 Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outras Especificações.
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ABRAMOVITCH, Sheila
tamento, que leva em conta a causalidade psíquica, e não tomam seu filho, apenas, como um deficiente. A psicanálise propõe acolher as crianças autistas em seu sofrimento, e também em suas escolhas, mesmo que mínimas. A Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ, propõe um projeto de pesquisa, por meio das ações integradas do SUS, nomeado Pedrinho. Esse projeto cumpre o papel de articular ensino, pesquisa e assistência a estudantes, por meio de oficinas terapêuticas. Como exemplo do trabalho, trazemos um recorte da oficina de artes, em que: João e Pedro se encontram com suas terapeutas. João só faz gritar, dia após dia sua ligação com o mundo é gritar. Recentemente, escolheu uma das terapeutas, à qual endereça seus gritos. A terapeuta não consegue acalmá-lo, apenas acolhe/ suporta seus gritos. Pedro, criança solitária e que não estabelece relação pelo olhar, traz de casa, sempre, o mesmo objeto, um boneco maltrapilho, e permanece manipulando-o. Acaba a oficina, e é reconduzido para casa, por sua mãe, aparentando que não está nem aí para o Outro, e nem para o outro. Certo dia, João gritava tanto, que beirava o insuportável. Pedro ficou tão afetado com os gritos, que sua angústia foi sentida por sua terapeuta de referência, que pensou em tomá-lo em seu colo, abraçá-lo e protegê-lo de João, como, provavelmente, sua mãe o faria. Nisso, interveio a terapeuta de João: “Pedro! Você também grita!”. Pela primeira vez, Pedro olhou. O efeito surpresa promoveu um corte, que possibilitou a Pedro olhar para quem estava falando com ele. A voz da terapeuta de João foi um corte separador, advindo do real, que promoveu apaziguamento pulsional em Pedro, mas, também em João, que parou de gritar. Em tempos de sustentabilidade, podemos concluir que as oficinas terapêuticas são uma modalidade de oferta de atenção da abordagem clínica. Um encontro com o enigma do autismo, que pode produzir “um efeito de certeza – em outras palavras, certeza de que isso quer dizer alguma coisa, sem que se saiba o que isso quer dizer” (SOLER, 2012b, p. 39). É uma tentativa de fazer emergir um sujeito, desejante, lá onde tudo, ou nada se espera. Não falemos em cura, mas de viver uma vida possível em sociedade. Vale a aposta!
referências bibliográficas ABRAMOVITCH, S. Considerações acerca do autismo infantil precoce. Dissertação de mestrado, defendida em abril de 2000, PUC-Rio.
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Autismo na saúde mental e a psicanálise
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Qual o lugar da psicanálise na instituição?1 Maria Vitoria Bittencourt Em princípio, poderíamos responder logo a essa questão: não, a psicanálise não tem seu lugar na instituição, cujo termo mesmo indica que se trata de algo estabelecido pelo discurso do mestre. Ainda mais na nossa atualidade. Aqueles que trabalham em instituições, qualquer que seja a função, constataram que atualmente a lógica do mestre moderno se instalou de vez com sua palavra de ordem – a eficácia produtiva. Trabalhar mais, em menos tempo, para reduzir os custos e aumentar o lucro. Isso é aplicar a lógica do trabalho em cadeia para o trabalho em instituição. Então, que necessidade levou a psicanálise a ter seu lugar nas instituições? Como se trata de uma prática que se fundamenta no particular de um tratamento, por que deveria se exercer na instituição? Para responder, tentaremos retomar alguns pontos de história para apreender como essa prática, que procede da esfera privada, se introduziu na instituição, sobretudo aquelas que atendem as crianças. Foram os alunos de Freud, principalmente as mulheres, que criaram serviços, abrindo assim um campo de tratamento de crianças que, até então, eram consideradas como débeis. Desta forma, a psiquiatria infantil foi profundamente marcada pela psicanálise, com a influência de Melanie Klein na sua abordagem da psicose infantil e de Anna Freud na sua perspectiva educativa. Importante notar que ambas não eram médicas. A primeira a ser diretora de um centro para adolescente foi Hermine Von Hug Helmutt, nomeada por Freud para esse lugar. Para esses fundadores, tratava-se de pensar um lugar institucional que seria como um substituto materno, no registro da mãe toda amor: era a famosa função do continente materno, inspirado do modelo de Winnicott da mãe suficientemente boa, tendo um objetivo de ordem pedagógica e educativa. No que se refere às crianças psicóticas, logo se percebeu que essas respostas tinham seus limites e a teoria analítica vem assim responder a essa expectativa e abrir um campo para a clínica. Assim, os hospitais-dia na Europa, e principalmente na França, foram criados nos anos 60, tendo sempre essa marca da fundação, ou seja, uma finalidade educativa e psicopedagógica. 1 Esse texto foi publicado no Mensuel n° 39 da Ecole de psychanalyse de Forums du Champ lacanien France, Janeiro 2010.
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Aliás, foi nessa época que surgiu a antepsiquiatria que promovia a liberdade aos pacientes, pois segundo essa corrente, o psicótico sofria de repressão social. Então, o objetivo era suprimir a internação, pois a causa da patologia se inscrevia nas doenças da sociedade. Assim, assistimos à criação de várias instituições e de utopias comunitárias notáveis. Isso foi devido, não somente à difusão da teoria analítica, mas também à influência do ensino de Jacques Lacan, que sempre encorajou seus alunos a trabalhar em instituições, daí sua famosa fórmula: não devemos recuar diante da psicose. Lacan, ele mesmo, sempre manteve uma ligação com as instituições psiquiátricas na sua prática de apresentação de pacientes. “Dr. Lacan”, como seus alunos o chamavam. Se, de um lado, o ideal materno permanecia presente nas instituições, de outro lado iniciou-se o reino do simbólico, inaugurando assim a instituição modelo de enquadramento, reestabelecendo a marca de uma lei, de regras sociais, portanto do registro do pai. Assim foi instaurada a utopia da função paterna e sua consequência: a ideologia da escuta, da palavra. É preciso não esquecer que a ideologia da escuta é um efeito da psicanálise, um termo que se tornou banalizado graças a seu efeito terapêutico inegável. Lacan sempre insistiu que é preciso ouvir os psicóticos para aprender alguma coisa da clínica. Toda a questão é integrar essa escuta ao discurso analítico. Pois, como disse Lacan em Televisão (1974/1993, p. 31), o inconsciente implica que o escutemos, mas não sem o discurso analítico, isto é, “não sem o laço social determinado pela prática de uma análise”. Porém, um grande mal-entendido se instalou: primeiramente as palavras não procedem do mesmo discurso, em seguida a palavra não é feita para comunicar, nos ensina Lacan, mas para satisfazer o gozo do blá-blá-blá, o qual vira facilmente do lado da “lei do coração benevolente”. Neste curto resumo, podemos constatar que uma certa orientação analítica produziu preconceitos que, de certa maneira, presidiram ao lugar do analista na instituição. Primeiro, aquele da completude mãe-criança na qual a instituição viria preencher a carência pela sua função de continente materno. Lacan (196970/1991, p. 129) denunciou esse mito quando evocou os estragos que o desejo da mãe pode acarretar – a mãe “é um grande crocodilo na boca do qual vocês estão”. Em seguida, a ideia de definir o lugar do analista como “analisador da instituição”, onde se tratava de escutar os terapeutas2 e interpretar o sintoma da equipe. Maneira bastarda de aplicar a psicanálise, supondo um sintoma coletivo, cujo resultado só faz reforçar a identificação ao grupo, anulando o que existe de singularidade no sintoma do sujeito. 2 Esse termo, terapeuta, se refere a todos os profissionais da equipe: fonoaudiólogos, educadores, pedagogos, médicos, psiquiatras e assistentes sociais.
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Em minha experiência num hospital-dia na França, para evitar esse tipo de intervenção, instituímos o que chamamos de “exercício da não compreensão”, um modo de introduzir o discurso analítico no âmbito do trabalho institucional. Pois, compreender o paciente é o mal-entendido mais radical. Trata-se de uma maneira de ser o mestre, adaptar o que se diz com a realidade dos fatos, tomar ao pé da letra, saber tudo que o paciente quer dizer, tanto para os colegas quanto para a criança. Tomar como ponto de referência a não-compreensão faz com que algo possa ser produzido e tenha efeitos para o tratamento da criança psicótica. Assim, o exercício consistia numa apresentação de caso em que um analista, exterior ao hospital, vinha interrogar a equipe. Porém, esse caso deveria ser aquele que colocava questões à equipe, cujas dificuldades intervinham no atendimento à criança, dificuldades bem definidas. Um debate era assim lançado, em cada caso, em que se tentava encontrar uma resposta e/ou abrir novas questões à equipe. A apresentação tinha como finalidade a formalização, com o objetivo de transmissão, uma maneira de exercer a escuta que vem, desta maneira, remediar reuniões muitas vezes reduzidas a uma troca de informações. Tratava-se de colocar em prática a doutrina analítica para construir a clínica propriamente dita. Essa elaboração não era simples introdução à referência à psicanálise enquanto doutrina, mas uma leitura constitutiva dessa clínica. Longe de se reduzir a colagens teóricas sobre o caso, ela visava transformar o trabalho, causar efeitos na prática institucional. Um outro preconceito, fabricado pela ideologia da liberdade: para evitar etiquetar o sujeito numa categoria, não se estabelecia um diagnóstico de estrutura. Num hospital-dia o diagnóstico é fundamental, pois trata-se de avaliar a pertinência de uma admissão da criança assim como refletir sobre seu atendimento, o que vai sustentar os terapeutas no trabalho com as crianças. Lembro do caso de um menino de nove anos, cujo fracasso escolar se devia a seu comportamento social turbulento, intolerável ao meio escolar. Sua admissão foi questionada, pois não apresentava nenhum sintoma podendo afirmar uma estrutura psicótica. No início, ele apresentava um comportamento que foi qualificado de “rebelde”: não respeitava as regras, nem os horários e se opunha a participar de atividades que não gostava. Porém, com o passar do tempo, foi observado que atrás desse comportamento “rebelde”, a violência verbal fazia irrupção nos momentos em que ele ficava em face de um adulto. As injúrias vinham, desta maneira, testemunhar de uma espécie de proteção diante de seu sentimento de intrusão em face ao olhar do outro. O que parecia uma criança neurótica, revelou tratar-se de um caso de paranoia. Daí a importância de um diagnóstico de estrutura. Outro preconceito era o da extraterritorialidade, no qual se pensava que trabalhar num local exterior à instituição criaria as mesmas condições da consulta particular. Grande ilusão pensar o distanciamento geográfico como uma forma
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imaginária de independência. Ilusão de ser analista, quando não existe ser do analista: ele se verifica em seu ato em cada análise, uma por uma. Lacan fez um diagnóstico bem severo dessas experiências e seus efeitos para a transmissão da psicanálise, em dois textos de 1968 e 1969: Notas sobre a criança e Alocução sobre as psicoses da criança. No primeiro, Lacan (1968/2003, p. 369) fala do fracasso das utopias comunitárias a partir da constatação que, entre todas as formas de organização das sociedades, a família conjugal tem um papel primordial no que ela “destaca como a irredutibilidade de uma transmissão [...] implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”. A constituição do sujeito depende dessa transmissão de um desejo que não pode se fundir numa comunidade. No segundo texto, (LACAN, 1969/2003, p. 362), coloca como princípio que o lugar do analista concerne sempre à ética: [...] no campo de nossa função, que há uma ética na base dele, e que, por conseguinte [...] é no que concerne a uma formação passível de ser qualificada de humana que está nosso principal tormento. Toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo [...] porque o princípio do prazer é o freio do gozo. Essa fórmula, de 1968, vem concluir uma jornada sobre a psicose infantil. Lacan se dirigia aos analistas que insistiam com a ideia da pretensa harmonia entre a mãe e a criança, um preconceito que ainda existe em nossos dias. Devemos lembrar que, nessa época, Lacan havia efetuado uma virada no seu ensino com sua ênfase sobre a correlação do sujeito ao gozo, apresentada no prefácio ao livro das Memórias de Schreber. Nesse texto, Lacan afirma a ligação entre a paranoia e o sujeito do gozo. Isso não quer dizer que o sujeito do significante não tenha mais seu peso, mas ele acrescenta uma dimensão do sujeito enquanto objeto do gozo do Outro. Esse texto anuncia o seminário O avesso da psicanálise, em que Lacan (196970/1991) vai propor os quatro discursos. Podemos supor que, aquilo que chama em 1968 de “formação humana”, vai se tornar o discurso que, enquanto aparelho do gozo, permite ao sujeito de se inscrever no laço social. Não somente o discurso analítico. Toda formação humana não se refere exclusivamente à psicanálise, pois os efeitos terapêuticos não são um privilégio da psicanálise, outras práticas podem atingir esse mesmo ponto. O discurso do mestre também pode ter seus efeitos: vemos isso na suplência de alguns psicóticos pela identificação ao trabalhador ideal ou na procura de ideias religiosas. Refrear o gozo não quer dizer recalcar nem reprimir, mas tratar o real pelo
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simbólico e as leis que o determinam. É uma maneira de humanizar o gozo para remediar o fora-do-discurso da psicose. Isso pode ser verificado de maneira muito clara num hospital-dia. Assim que entramos podemos ouvir o sofrimento de crianças invadidas pelo gozo, com seus gritos e gemidos. Por exemplo, uma criança que se deita sempre no chão para mostrar como seu corpo não pode ficar de pé. Ou uma menina que berra quando percebe sangue nas calcinhas – mas, bastou a intervenção do analista lhe explicando que isso ocorre com todas as meninas que ficam menstruadas, ela logo se acalmou. Palavras para as coisas que se situam do lado do real. Essas considerações sobre o gozo concernem todos os membros da equipe que, muitas vezes, na procura de curar o psicótico, o “ furor sanandi” como Freud o chamou, tentam encobrir a angústia que pode suscitar o encontro com crianças psicóticas. Como disse Lacan em seu Pequeno discurso aos psiquiatras (LACAN, 1967/inédito): “A psicanálise se ocupa dessa coisa que se chama o real. Para isso, é preciso que eles (os psiquiatras) sejam fortemente blindados contra a angústia”. Às vezes, isso pode tomar uma forma de uma rivalidade com os pais – “eu, o superterapeuta, posso educar melhor do que esses pais chatos”. É sempre o mito de uma pretensa harmonia entre a mãe e a criança que o terapeuta tenta estabelecer. Isso leva o funcionamento institucional a uma idealização, que tem efeitos para a clínica. A psicanálise, ao restaurar a particularidade de cada caso, atua justamente contra essa tendência idealizadora. Podemos concluir que as instituições não são feitas para a psicanálise. Todavia, existe um lugar para a psicanálise nas instituições na medida do tratamento do real que resulta do ato de cada analista. Real que escapa ao tratamento estatístico, às regras de gestão, abrindo dessa maneira ao tratamento possível da criança psicótica. A experiência do analista em instituições vem provar esse fato. Finalmente, a psicanálise tem um lugar essencialmente ligado à ética, que é o avesso do ideal e da avaliação. Ética que consiste em levar em conta o inconsciente, o que existe de mais estrangeiro ao sujeito, que se manifesta a céu aberto na psicose. A orientação de Lacan sobre esse tema é preciosa no que permite abordar a psicose na dimensão do real, não fundando mais a clínica no registro do simbólico e sua referência paterna, mas, antes de tudo, no registro do gozo. A clínica diferencial pode ser abordada em termos de suplência onde trata-se de situar os diferentes modos que o sujeito inventa para um tratamento possível de seu gozo. O lugar do analista pode tomar várias funções: secretário, escriba, simples presença, para entender a particularidade de cada solução que a criança psicótica encontrou para domesticar esse gozo que invade seu corpo. Isso pode dar conta das estabilizações onde a escrita, a criação artística ou práticas diversas, podem fazer suplência à foraclusão, para uma restauração do imaginário, uma reconstrução da realidade ou
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uma invenção sintomática. Não se trata de calar o sintoma, mas somente aqueles que impedem o sujeito de falar, tais como a agitação, as alucinações, os gritos ou crises de angústia, que colocam em risco a inscrição social ou familiar. Depende dos analistas não ceder diante da oferta propriamente analítica, ou seja, de tratar o real do sintoma. Não é uma oferta de escuta ou de cura rápida, como é proposta por outras instituições – soluções do mercado para se assegurar do futuro da psicanálise: a AMP com a terapia curta ou a IPA com a psicoterapia de orientação analítica. Para isso, só existe o desejo que pode vir avaliar essa prática. Um desejo não anônimo que pode causar efeitos: aquele de interrogar o desejo que nos leva a oferecer uma resposta a tal demanda institucional. Qualquer que seja a prática do analista, sempre levará com ele os efeitos de sua análise pessoal, análise que produz efeitos onde quer que exerça. Daí a recomendação de Lacan – todos os que trabalham no campo das relações humanas devem fazer uma análise. Gostaria de terminar com uma questão que Lacan (1968/2003, p. 367) apresenta nessa mesma jornada de 1968, tendo já afirmado que não era uma pessoa triste: “Que alegria encontramos nós naquilo que constitui nosso trabalho?”. Eis um protocolo de avaliação de nossa prática.
referências bibliográficas LACAN, J. (1967). Petit discours aux psichiatres. Inédito. __________. (1968). Alocução sobre as psicoses da criança. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, pp. 359-368. __________. (1969). Nota sobre a criança. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, pp. 369-370. __________. (1969-70). Le Séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalye. Paris: Seuil, 1991. __________. (1974). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993.
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teoria e clínica psicanalítica do autismo
Autista: sujeito e indivíduo Luis Achilles Rodrigues Furtado Um ponto comum entre a obra de Freud e o ensino de Lacan é o permanente questionamento sobre o objeto da psicanálise, quer chamemo-lo de inconsciente ou de sujeito. Se Freud evitou utilizar o termo sujeito para priorizar o Inconsciente, evitando cair no risco de uma confusão com o campo da filosofia, Lacan foi mais ousado e aproximou-se dos campos da linguística e da lógica. Falamos de ousadia, porque o termo sujeito não deixou de ser objeto de mal-entendidos, principalmente quando falamos da clínica que coloca a normativadade psicanalítica em xeque: a clínica do autismo. No que tange às teorizações sobre o autismo, vemos, por parte de alguns lacanianos, problemas com o uso do termo “sujeito”. Tal uso nos permite notar alguma confusão entre o referente clínico e a função metapsicológica derivada da oposição entre significantes. Tratamos, neste trabalho, do problema conceitual implicado na lida com pessoas autistas. Esse problema poderia ser enunciado da seguinte maneira: “se o sujeito é definido como aquilo que é representado por um significante em oposição a outro significante, seria justo dizermos que não há sujeito no autismo”. Será? A clínica nos mostra isso? Ademais, se estas pessoas não são sujeitos, o que as diferenciaria dos animais, dos “mortos-vivos”, dos monstros (no sentido foucaultiano)? Quanto a estas indagações já nos respondemos (FURTADO, 2011), recorrendo a Freud e sua discordância quanto ao termo autismo. Esse termo abole a dimensão da erótica freudiana e, por consequência, a operação que possibilita a existência da psicanálise como uma clínica: a suposição do sujeito. Freud (1915/1986) define o Inconsciente como uma suposição que Lacan ratifica. Leiamos Lacan em seu seminário Mais, ainda (1985, pp. 194-195), no trecho em que lança a chamada “hipótese lacaniana” e fala, surpreendentemente, de indivíduo: O inconsciente, eu não entro nele, não mais que Newton, sem hipótese.Minha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante. (…) Dito de outro modo, reduzo a hipótese, segundo a fórmula mesma que a substantifica, a ela ser necessária para o funcionamento da alíngua. Dizer que há um sujeito, não é outra coisa senão dizer que há hipótese.
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Disso derivamos que: desde que haja significante, há sujeito. O que define o significante é a sua oposição a outro e a consequente representação do sujeito. O significante instaura-se como pura diferença. O que nos resta é deduzirmos que, se não há sujeito no autismo, não há significante, ou seja, oposição entre S1 e S2. Observação muito pertinente com a clínica, visto que os autistas têm dificuldades de se colocarem como sujeitos da enunciação, mesmo quando conseguem articular a fala. Se por um lado, em alguns casos, observamos a profusão de sons ou palavras “sem sentido” (elementos holográficos de lalíngua), por outro, supostamente, teríamos a derivação de que estes indivíduos escapariam à normatividade da castração e do pertencimento ao campo humano da linguagem. Temos aí uma suposta incoerência entre os fenômenos da clínica do autismo com a teoria do significante: existiriam indivíduos humanos que não seriam sujeitos e não pertenceriam ao campo da linguagem. Como é possível pensar um sujeito que não seja afetado pelo significante e pela castração? Eis uma pergunta que precisa ser melhor formulada, pois falar de sujeito barrado pela linguagem não é, exatamente, a mesma coisa que sujeito dividido pela castração. Lacan (1998, p. 854), em sua conferência conhecida como Posição do Inconsciente no congresso de Bonneval, lembra que a divisão do sujeito pelo significante se ilustra na surpresa produzida no chiste. E lança a seguinte advertência: “Mas o fato de se revelar não deve mascarar para nós que essa divisão não provém de outra coisa senão do mesmo jogo, o jogo dos significantes (...)”. Assim, Lacan lembra que sujeito, para a psicanálise, não é algo que se origina em algum lugar, tendo substância, mas é uma função, efeito de uma operação lógica própria à linguagem. Para ele (1998, p. 854), a estrutura de todas as formações do inconsciente é que representa um significante, um sujeito para outro significante; e é essa estrutura que explica a divisão originária do sujeito. Mesmo quando o Outro ainda não foi discernido, como nos casos dos infans e dos autistas, o registro do significante faz surgir o sujeito, mas ao preço de cristalizá-lo. A divisão ocorrida neste primeiro tempo lógico da alienação nos aparece como esta perda do ser do sujeito pela incorporação significante. Faladé (2003, p. 9) interroga se podemos falar de sujeito na psicose. Ela aponta que a divisão originária é relativa à inexistência de um significante no campo do Outro que possa representar o sujeito, que Lacan representou com o símbolo S(%). A falta de um significante no Outro, uma das condições para a operação da separação, é o que permite distinguir sujeito barrado de sujeito dividido, embora os termos estejam articulados. Essa distinção fica clara na psicose, onde o sujeito é barrado pelo significante e não é dividido pela castração. Trata-se de um sujeito que não tem condições de realizar a articulação simbólica entre S1 e S2 por não subjetivar a falta no Outro.
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Autista: Sujeito e Indivíduo
A inscrição de S2, divisor do sujeito e articulador da metáfora paterna, não ocorre porque não foi subjetivada pelo “indivíduo”. Isso mesmo! Aqui, falamos de indivíduo tal como Lacan se refere a Joyce. Quando falamos de psicose e autismo, não podemos afirmar que não há falta no registro do Outro. Ela existe, porque não há significante que represente o sujeito. O que faz toda a diferença estrutural é que a falta deste significante no Outro não é percebida, subjetivada. Assim, podemos falar de Sujeito em todas as estruturas, seja como hipótese ou como barrado pela impossibilidade de ser representado no campo do Outro. Concordamos com Lacan (1991) quando ele afirma que os autistas falam muito e que é importante sabermos onde eles escutaram o que articulam. Ele lembra que o fato de se estar em análise é a prova de que se escutou alguma coisa. Esta observação nos coloca ainda mais na clínica dos autistas, pois remete à importância do registro da voz, como o veículo do significante e como objeto pulsional primitivo. Freud (1909/1986) indica que a castração se institui pela via do olhar, na percepção da diferença sexual, tal como ilustra o caso de Hans. Contudo, a alienação ao significante é possível porque o sujeito recebe a linguagem pela via da voz. Para Faladé (2008), inicialmente, o sujeito que vai emergir se reduz ao sujeito de escuta. É porque ele escutou que os significantes se inscreveram. Se há um ser falante é porque ele escutou antes. Trata-se de um tempo em que “isso fala dele” e não de um “ele é falado”. É porque existem significantes prontos para serem incorporados, que ele os escuta e pode, posteriormente, ser falado pelo Outro. Só depois, com as manifestações de um ser falante, é que podemos deduzir, na origem, um sujeito de escuta (LACAN, 1998, p. 849). Se ele terá problemas no discurso é o que permite distinguir as estruturas. Ao distinguir sujeito barrado de sujeito dividido, Faladé (2008) não coloca os termos em posição de mútua exclusão. Podemos ter um sujeito que é barrado pela linguagem e não é dividido, mas todo sujeito dividido é barrado pela linguagem. A divisão operada pela linguagem implica, portanto, a oposição entre os significantes; e, para que isso ocorra, é preciso que a falta de um significante no campo do Outro S(%) seja percebida e subjetivada pelo sujeito. O que é, então, barrado ao sujeito? O gozo. É na impossibilidade da captação de um sentido absoluto que o signifique que o sujeito é barrado, encontra um limite ao gozo. É a barra da linguagem que produz a primeira fenda, marcando e diferenciando os seres humanos dos outros animais. As particularidades da relação dos autistas com a alteridade não nos permite usar expressões como função materna zero, foraclusão da função materna, inexistência do Outro e, portanto, do sujeito. Trata-se, antes, de uma posição parti-
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FURTADO, Luis Achilles Rodrigues
cular que nos coloca diante dos primeiros tempos da causação subjetiva em que o significante mostra seus efeitos, nos remetendo aos termos letra e escrito, distinguindo este último da linguagem. O próprio escrito, na medida em que se distingue da linguagem, está aí para nos mostrar que, se é do escrito que se interroga a linguagem, mas é justamente porque o escrito não é linguagem, mas só se constrói, só se fabrica por sua referência à linguagem (LACAN, 2009, p. 60). O trabalho com autistas nos remete a estes efeitos a posteriori que a linguagem produz na subjetividade. É justamente porque a linguagem produz efeitos, porque as palavras têm muito peso, que os autistas se recusam à dimensão da alteridade e se fecham em seu gozo autista, próprio do inconsciente real, holofrásico (SOLER, 2009). Lacan (1991) deixou elementos na conferência de Genebra quando se utilizou do termo de Winnicott “congelamento” e o relacionou com a escrita. Trata-se de uma espécie de fixação num tempo anterior à linguagem que só se produz pelo efeito invasivo e desnaturalizador que o Outro possui. As dificuldades em relação à dimensão da fala no autismo nos fazem lembrar uma frase que nos foi dita por um analisante ao justificar-se por que havia escrito uma carta de amor em vez de declará-lo pessoalmente. Ele nos disse: “Porque falar dói mais”! Assim, encontramos a barra na própria fala. E talvez nos dê pistas sobre o que nos dizem os sujeitos autistas.
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Autista: Sujeito e Indivíduo
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Observações sobre o autismo a partir do caso clínico de Leo Kanner1 Georgina Cerquise Pesquisador e autor de fundamental importância para a psiquiatria e para a psicanálise pós-freudiana, Leo Kanner escreveu três livros de psiquiatria e oito artigos sobre o autismo. Seu interesse por este último se deu a partir da observação de crianças que apresentavam sintomas que não se enquadravam nas descrições dos manuais de psiquiatria (KANNER, 1997). Deve-se observar que no período entre os anos 1930 e 1950, a clínica psiquiátrica tinha uma corrente de pensamento fenomenológica e descritiva, o que certamente influenciou o estudo de casos clínicos abordados por Kanner. Sua importante contribuição para o tratamento de crianças com essa afecção foi estabelecida no artigo Distúrbios autísticos do contato afetivo. Em suas palavras: Desde 1938 nossa atenção foi atraída por certo número de crianças cujo estado difere tão marcada e distintamente de tudo o que foi descrito anteriormente, que cada caso merece – e espero que acabe por receber – uma consideração detalhada de suas fascinantes particularidades (Ibid., p. 12). A partir desta observação, Kanner organiza uma pesquisa de método longitudinal com onze crianças, distribuídas da seguinte forma: oito meninos e três meninas, na faixa etária abaixo de onze anos. Na publicação da pesquisa, ele classifica seu relato como preliminar, e acrescenta que será completado à medida que as crianças crescerem e novas observações sobre seu desenvolvimento forem recolhidas. Foi então que, a partir dessas observações e para postular que se trata de uma incapacidade inata para constituir uma relação afetiva, descreve o autismo como uma síndrome complexa, específica e caracterizada como a mais precoce das doenças mentais observável em crianças com menos de um ano de idade, e ressalta: “Há um fracasso da criança em adotar uma atitude antecipatória antes de ser 1 Texto publicado na Revista Marraio, número 19/20, Autismo revisitado, 7letras, 2011, Rio de Janeiro. Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outras Especificações.
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carregada e em ajustar a posição de seu corpo ao da pessoa que a segura em seus braços” (Ibid., p. 167). Eugen Bleuler (1911, apud KAPLAN, 1995), algumas décadas antes, utiliza o termo esquizofrenia para descrever a doença mental que antes era definida como demência precoce. Ele considera o autismo como um dos sintomas específicos dessa categoria, isolando as seguintes características: retraimento da realidade com abulia, indiferença e absorção no mundo interior, aliado a um esvaziamento afetivo. Kanner, em seu estudo de caso, utiliza a manifestação dos sintomas autísticos para diferenciá-lo da definição clássica bleuleriana. Ele reconhece o distúrbio relacional entre o funcionamento mental (mundo interior) e o mundo exterior. Todavia, descreve uma característica importante que vai estabelecer o diagnóstico: explicita que na criança autista não ocorre um fechamento sobre si mesma, mas uma espécie de “contato particular e específico” com o mundo exterior. O autor aproxima de certa forma o autismo da esquizofrenia infantil, para ressaltar a especificidade clínica da síndrome autística, a qual mantém com a esquizofrenia apenas um elo processual, explicitando que é uma forma particular de síndrome que é encontrada somente em crianças. Cabe aqui a interrogação: como Leo Kanner (op. cit., p. 167) diferencia o autismo da esquizofrenia infantil? Encontramos resposta na postulação: Em primeiro lugar, mesmo nos casos mais precoces conhecidos de entrada na esquizofrenia, o que inclui demência precocíssima de De Sanctis e a demência infantil de Heller, as primeiras manifestações observáveis foram precedidas por dois anos, pelo menos, de desenvolvimento normal, e os estudos de casos insistem especificamente na mudança mais ou menos gradual do comportamento do paciente. As crianças observadas com manifestações patológicas de esquizofrenia tiveram um desenvolvimento normal, e a mudança de comportamento foi gradual. Essas crianças demonstravam um fechamento extremo. Na síndrome autística, são considerados traços marcantes, a não reação ao que vem do exterior e a falta de atitude antecipatória ao serem carregadas no colo, e fica claro que, para ele o autismo é desencadeado muito precocemente. É importante marcar que o autismo extremo pode apresentar traços obsessivos; a estereotipia e a ecolalia combinadas estabelecem o quadro global em relação a certos fenômenos tipicamente esquizofrênicos, o que pode dificultar o diagnóstico. A criança esquizofrênica, segundo definição de Kanner, tenta resolver seu pro-
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blema deixando o mundo de que faz parte e com o qual esteve em contato, enquanto “os autistas estabelecem gradualmente compromissos”, estendendo “tentáculos circunspectos em um mundo estrangeiro” (Ibid., p. 169). Os autistas são capazes de estabelecer e manter uma relação adaptada com objetos que não fazem ameaça ao fechamento defensivo. Ele comprova na clínica que os doentes são capazes de estabelecer algum contato. Leo Kanner estabelece que, caso seja inevitável o contato com alguma pessoa, em uma relação temporária, eles podem se relacionar não com a pessoa que esteja tentando o contato, mas com uma parte do corpo, como o pé ou a mão, tomada como objeto totalmente distinto. Todas as atividades dessas crianças, tais como falas (quando ocorrem), sons e comportamentos repetitivos, são explicitadas de forma rígida e demonstram uma necessidade de solidão e ausência de mudanças. Para Colette Soler (2007, p. 79) muitos autores descrevem resultados: [...] porém, na maioria das vezes, estes não vão além de progressos no plano da norma e no plano educativo. Essas crianças aprendem palavras, aprendem a usá-las de maneira mais ou menos apropriada; aprendem a controlar os esfíncteres, quando ainda não o tinham feito. Portanto, civilizam-se um pouco. O mundo do autista precisa ser constituído de elementos conhecidos, organizados com certa combinação ou sequência que não pode ser mudada. Eles não toleram a intromissão de diferenças, e os elementos são dispostos em sequências repetitivas, organizados na mesma ordem cronológica e espacial. O que resulta no comportamento “obsessivo” de repetição, e que dá ensejo à reprodução de frases sem transformação dos pronomes para se adaptar à situação. Kanner (op. cit., p. 168) destaca: Talvez provenha desse fato o desenvolvimento de capacidades mnêmicas realmente fenomenais que permitem à criança memorizar e reproduzir modelos complexos – desprovidos de significação – por mais desorganizados que sejam – se repetem da mesma maneira que foram originalmente. Por meio de uma memória prodigiosa, os autistas suprem a incapacidade de usar a linguagem como meio de comunicação, que para eles não tem nenhum valor convencional. Por outro lado, esse autor chama a atenção para uma variável importante no sentido simbólico: as mães dessas crianças entopem seus filhos com músicas, poemas, orações, lendas etc. Em uma leitura psicanalítica podemos estabelecer que há uma cola entre o significante e osignificado, ou seja, a palavra perde a dimensão significante e se transforma em signo. Observa-se que a questão da musicalidade é comum nos
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autistas. O som é tolerado sem nenhuma recusa ou sintoma de invasão. O que nos faz pensar, a partir da teorização de Lacan sobre o significante, que nesse caso é provável que a facilidade com a música esteja relacionada com o significante puro, pois a música não inclui a enunciação do sujeito que está presente e tampouco há ameaça de intrusão do Outro (A). O som é um significante puro. O sujeito neurótico se engana quando diz “eu”, pois trata-se da alienação significante, que o faz acreditar que é ele quem fala. Ocorre que na neurose a metáfora paterna introduz a falta do significante no campo do Outro. Diferentemente do autista, em que o discurso é do Outro (A), ele não se engana, tem uma clareza absoluta de que a fala é do Outro, sem barra, portanto não tem motivo algum para nomear o “eu”. Bernard Nominé (2001) ressalta uma contradição no fenômeno autista, cujos enunciados são contraditórios: “O Outro não esta lá e o Outro que é por demais presente” (p. 12). No autismo, a fala não retorna para o sujeito de forma invertida, como ocorre na neurose, e sim de forma direta. Não há dialetização significante. No grafo do desejo, Lacan (1960/1998, p. 829) observa que: A mensagem do sujeito é captada pelo Outro e volta para o sujeito de forma invertida. No autismo é como se fosse um espelho plano, bate e volta. Aprendemos que o inconsciente é o discurso do Outro, a nossa fala é o discurso do Outro. Só que nos apossamos dessa fala de forma subjetiva pela via do desejo. No que se refere à linguagem, podemos observar no estudo de Kanner com crianças autistas, que nenhuma das crianças que conseguiam falar, ou que podiam ser consideradas “falantes”, usava a palavra para transmitir mensagens. Os nomes dos objetos eram facilmente apreendidos e retidos, memorizados. A palavra não era usada para comunicar, era um exercício de memória sem nenhum valor semântico. Colette Soler (op. cit.) explicita que “essas crianças parecem realmente ficar aquém do limiar de qualquer simbolização” (p. 71). “[...] Sua postura em relação ao Outro consiste, portanto, em manter uma espécie de homeostasia, em frear a dialética da fala, em se manter na relação com uma ou duas demandas absolutamente estereotipadas, repetitivas e sem enunciação” (p. 72). Essas crianças apresentam fenômeno de código, com ecolalia diferida, ou seja, as palavras ouvidas são repetidas como faz um papagaio. É comum nesses casos a repetição, tanto do pronome pessoal, como da pergunta exatamente como é ouvida, ou seja, não é uma repetição comum, pois repetem a pergunta que lhes é feita com a mesma entonação. Mostram-se incapazes de utilizar a palavra “sim”, levando anos para adquirir esse conceito. Usam as preposições no sentido literal.
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Estudo de caso clínico Como ilustração, trazemos o décimo caso estudado por Kanner: John F., que foi examinado pela primeira vez em 13 de fevereiro de 1940, aos dois anos e quatro meses de idade. Tinha como característica e queixa inicial uma grande dificuldade de comer. Segundo relato do pai, a questão mais inquietante e essencial era a dificuldade de fazer John comer. Lentidão no desenvolvimento e várias internações da criança, devido à má alimentação decorrente da pouca ingestão de alimentos, também foram apontadas. John recusou o seio logo nos primeiros dias de nascimento, e a partir de duas semanas foi tentada a mamadeira; todavia ele não mamava de forma adequada para a nutrição de seu organismo. Sempre foi difícil fazê-lo comer; segundo seu pai, era uma “verdadeira epopeia”. O desenvolvimento motor foi prejudicado, e ele começou a marcha aos vinte meses (por volta dos dois anos e meio). Apresentava sinais de imaturidade, chupava o dedo, rangia os dentes com frequência e rolava de um lado para outro antes de dormir. Tinha o comportamento irritadiço; quando não era atendido em suas necessidades, berrava e gritava desesperadamente. Kanner (op. cit., p. 148) esclarece a organização familiar do paciente: o pai era psiquiatra e “uma pessoa emocionalmente estável, calma e tranquila; era o elemento assegurador da família”. Tanto a mãe quanto a avó paterna apresentavam alterações psiquiátricas. A primeira, uma obsessiva repleta de rituais, foi descrita como hipomaníaca; ao longo de sua gravidez, demonstrou comportamento ansioso com fantasias de morte no parto. A segunda era obcecada por religião e lavava as mãos a cada três minutos.
Evolução do caso John foi levado para a sala de atendimento pelos pais. Deslocava-se sem parar e sem objetivo. Não fazia nenhuma relação entre os objetos, a não ser jogá-los no chão. Não reagia às ordens simples. Leo Kanner observou, após três meses de tratamento, uma pequena evolução: a criança adquiriu vocabulário e estabeleceu tendências obsessivas. No quarto ano de tratamento ele conseguia estabelecer um contato restrito, houve correção na inversão, pois no início repetia frases da mesma maneira que ouvia, sem fazer a transformação dos pronomes. As crises disruptivas podem ser interpretadas como a possibilidade de intrusão do Outro (A), indicando a invasão do Real devastador. Ele queria se assegurar que seu ambiente permaneceria sem mudanças, mantinha a porta e janelas fechadas.
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Curiosamente, John comunica uma frase que exemplifica a questão da criança autista. Ao olhar um quadro com a fotografia de sua família, perguntou ao pai: “quando eles vão sair da imagem e entrar aqui?” (Ibid., p. 150). Essa frase exemplifica a concretude de seu pensamento e a incapacidade de fazer comparações. Todas essas alterações cognitivas podem ser entendidas como uma falha do simbólico, o que permite toda variedade de sintomas que encontramos na clínica do autista. As frases não comunicam nada, e denota a prevalência no registro do imaginário. John ficava completamente perturbado ao se deparar com objetos quebrados e incompletos. Aos cinco anos e meio, tinha um bom domínio do emprego dos pronomes e conseguia se alimentar de maneira satisfatória. Esse caso exemplifica em vários aspectos a teorização de Kanner sobre o autismo. A questão da memória, a captura do som, a concretude das palavras, o desencadeamento precoce da doença. Curiosamente, ao ouvir o pai assoviar uma melodia, John imediatamente identificou a música sem erros: “O concerto para violino de Mendelssohn”. Ele podia falar de coisas grandes e belas, mas era completamente incapaz de fazer comparações entre objetos e pessoas do ambiente. Trazemos a conceituação comparativa do autismo para a psicanálise. O autismo e a esquizofrenia são manifestações da estrutura psicótica. Na teoria lacaniana é definida como uma quarta estrutura ou A-estrutura, pois a esquizofrenia infantil estaria englobada no quadro das psicoses; para Soler (op. cit.) é necessário marcar a diferença dessas crianças das que são claramente delirantes. Talvez pudéssemos pensar o autismo infantil como um transtorno do desenvolvimento que, em um prognóstico favorável, poderá se desencadear em uma esquizofrenia propriamente dita. Cabe aqui ressaltar a importância da definição de Leo Kanner (op. cit., p. 156) para a elucidação da síndrome do autismo na diferenciação do diagnóstico: “O distúrbio fundamental patognômico é a incapacidade destas crianças de estabelecer relações de maneira normal com as pessoas e situações desde o princípio de suas vidas”. Ressaltamos que as descobertas sobre a precocidade dos traços autistas esclarecem e indicam o tratamento em bebês e crianças pequenas em tempo hábil, o que vai possibilitar um prognóstico menos sombrio para essas crianças. Como exemplo, no Brasil a Caderneta de Saúde da Criança (2009), oferecida pelo Ministério da Saúde a todo recém-nascido – e que tem como conteúdo, além da folha de registro, mapa de desenvolvimento, orientação dos primeiros cuidados maternos para o bebê, saúde bucal e calendário de vacinação – tem um capítulo exclusivo contendo informações sobre o autismo infantil, que contempla toda a teorização de Kanner. Um recorte do texto exemplifica a importância das descobertas desse autor para a realização do diagnóstico diferencial: “Especial
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atenção deve ser dada aos sinais de autismo pela sua elevada incidência e também pelo frequente diagnóstico tardio, comprometendo o tratamento e prognóstico”. “[...] O autismo aparece antes dos três anos de idade e caracteriza-se por desvios qualitativos na comunicação e interação social.” “[...] Tendência ao isolamento, repetição imediata ou tardia de palavras ou frases (ecolalia), [...] interesses circunscritos, gosta de girar objetos” (BRASIL, 2009, p. 49) etc. No que concerne à afirmativa de Leo Kanner sobre a possibilidade de o autista desenvolver habilidades específicas, quando o diagnóstico e o tratamento são orientados em idade precoce – é acolhido pela Caderneta de Saúde da Criança onde encontramos a afirmativa que no caso de suspeita é importante orientar os pais a encaminhar a criança para locais que possam fazer o diagnóstico e o tratamento adequado.
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referências bibliográficas BRASIL. Ministério da Saúde. Comunicação e Educação em Saúde. Caderneta de Saúde da Criança, sexta edição, 2009. KANNER, L. (1943). Os distúrbios autísticos do contato afetivo In: Autismo. São Paulo: Escuta 1997. KAPLAN, M.D.C. Comprehensive Textbook of Psychiatry. Volume VI. USA: Baltimore, 1995. LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998, pp. 807-842. NOMINÉ, B. O Autista: um escravo da linguagem. Marraio: Autismo, o último véu, no 2. Rio de Janeiro: FCCL-Rio, 2001.
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O Caso Dick em questão: reflexões acerca do tratamento possível da psicose1 Beatriz Oliveira Preambulo A decisão de enviar este trabalho para um número especial sobre autismo deve-se a duas razões. A primeira, pelo fato de que, embora em nenhum momento tratemos da especificidade do autismo enquanto diagnóstico, desde aquela época entendíamos o autismo como um estado do sujeito dentro das psicoses em geral. Nesse sentido, nossa hipótese era de que Dick estaria num estado autístico do qual pudera sair a partir das intervenções de Melanie Klein. A questão é que entendemos que esta saída foi consequência justamente do que sustentamos no final do texto a respeito da importância da aposta do analista num tratamento das psicoses. Também pudemos fazer a aproximação, a partir deste caso, entre as esquizofrenias infantis e os casos de autismos. No entanto, esta é uma hipótese a ser avançada enquanto pesquisa. A segunda razão da escolha de publicar este texto é histórica. Este trabalho é resultado de várias discussões realizadas na rede de pesquisa de psicanálise e infância, particularmente entre os anos 2001 e 2004, quando foi apresentado na jornada de abertura de 2004 do FCL-SP. A proposta de releitura do caso Dick, de Melanie Klein, foi consequência da necessidade que tivemos em resgatar os casos com crianças apresentados em literatura. Ao realizar tal proposta, nos surpreendemos com a riqueza de material clínico que a psicanalista nos oferecia com os relatos das sessões. Diante disso, nos perguntamos o que poderíamos aprender sobre o tratamento da psicose a partir de suas intervenções e os efeitos ali detalhados, levando em conta os cuidados necessários com seu referencial teórico. São algumas respostas encontradas que apresentamos nesta mesa de abertura, por meio deste trabalho. 1 Este trabalho foi inicialmente apresentado na Jornada de Abertura de 2004, do FCL-SP, organizado pela Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância. Agradeço meus colegas participantes da rede na época e, em particular, Ana Laura Prates Pacheco, coordenadora comigo desta mesma rede, até hoje.
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Por último, gostaria de acrescentar que optamos por manter este texto tal como fora apresentado na época, ou seja, com os referenciais teóricos que pudemos dispor naquele momento de nossa pesquisa. No entanto, após sua releitura para publicação, verificamos o quanto ainda podemos aprender com essas elaborações, ainda que sustentadas em um percurso teórico inicial na obra de Lacan. ****** Psicoses, estados de confusão e depressão profundamente arraigados não se prestam portanto, à psicanálise, pelo menos não para o método como vem sendo praticado até o presente. Não considero de modo algum impossível que mediante modificações adequadas do método possamos ser bem-sucedidos em superar esta contraindicação e assim poderemos iniciar uma psicoterapia das psicoses (FREUD, 1904/1989, p. 253). Embora Freud não tenha estabelecido um tratamento para as psicoses e tenha deixado contraindicada a psicanálise para pacientes psicóticos, é surpreendente notar sua abertura para que fossem realizados trabalhos clínicos nesta direção a fim de que se esclarecessem cada vez mais a respeito do tratamento das psicoses. Em Construções em análise, Freud (1937/1989) chega a propor algumas hipóteses de trabalho neste sentido, afirmando, inclusive, haver método na loucura, embora fosse cético quanto aos resultados terapêuticos para tal empreitada. ****** Em 1930, Melanie Klein publica um texto importante dentro de seu percurso teórico intitulado A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego (KLEIN, 1930/1981), no qual apresenta uma parte da análise de Dick. De acordo com Nasio (2001), a teorização que Klein propôs a partir deste caso foi de importância considerável e constituiu uma descoberta na psicopatologia infantil. Retomaremos aqui alguns dados históricos do caso, tal como Klein nos apresenta, e depois faremos alguns recortes das sessões que nos pareceram importantes para a discussão. Dick tinha quatro anos na época, com pobreza de vocabulário. Parecia carente de afeto e era indiferente à ausência ou presença da mãe ou da ama-seca. Não brincava, articulava sons ininteligíveis e repetia constantemente certos ruídos, embora tivesse capacidade de articular bem as palavras. Chamava a atenção o fato de ele fazer exatamente o contrário do que dele se esperava, por exemplo, quando se lhe pedia que repetisse de modo correto as palavras. Na oposição ou na obe-
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diência não se percebia afeto ou compreensão alguma. A expressão de seus olhos e de seu rosto era fixa, ausente e de desinteresse. A partir de sua história, Klein destaca o ambiente paupérrimo de amor em que ele viveu até dois anos. Desde cedo não foi possível que ele fosse amamentado, mesmo com a introdução de uma ama de leite. Só o contato com uma babá carinhosa e com os cuidados de sua avó após os dois anos é que seu desenvolvimento global pôde avançar. De qualquer maneira, ela ressalta a impossibilidade de se pôr em marcha a relação objetal. De acordo com Klein, no caso de Dick, o ego parou de se desenvolver por uma prematura defesa contra o sadismo. Ela observou uma incapacidade completa, aparentemente constitucional para tolerar a angústia, daí, provavelmente, esta defesa que o impedia de estabelecer qualquer relação objetal. Assim, a formação de símbolos se detivera, apenas alguns objetos lhe interessavam: trens, maçanetas de portas, portas e seus movimentos de abrir e fechar. É importante lembrar que Klein acreditava na gênese do simbolismo e por isso afirma que este havia sido interrompido no caso de Dick. O simbolismo é o que permitirá a relação de objeto tal como ela propõe: “Dick rompera seus laços com a realidade e detivera sua vida de fantasia, refugiando-se nas fantasias do corpo escuro e vazio de sua mãe” (KLEIN, op. cit., p. 306). Diante disso, qual foi a direção tomada em seu tratamento? A análise começou com este obstáculo fundamental para estabelecer um contato com ele. O aumento de interesse de Dick pelos objetos e o estabelecimento de uma transferência cada vez mais intensa com Klein fizeram aparecer a relação de objeto que até então lhe fazia falta. Por meio dos rudimentos de fantasia e de formação simbólica que Dick apresentava, ela relata ter conseguido chegar até seu inconsciente possibilitando que a ansiedade se manifestasse. Uma vez manifesta, pela interpretação, tornou-a tolerável para o ego, abrindo o caminho para seu desenvolvimento. Este teria sido o objetivo da análise deste menino. Desde o início, Klein descartou a hipótese de uma psiconeurose, o que a obrigou a modificar sua técnica habitual: Em geral, não interpreto os dados obtidos até que estes não se hajam expressado através de várias representações, mas, neste caso, em que a capacidade de expressão por meio de representações quase não existia, fui obrigada a fazer minhas interpretações à base de meu conhecimento geral, pois na conduta de Dick as representações eram relativamente vagas (Ibid., p. 308).
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É interessante notar que Klein atentava para o fato de que a presença de traços esquizofrênicos era um fenômeno muito mais generalizado na infância do que geralmente se supunha. Ela conclui, baseada na análise de Dick, que se tratava de uma esquizofrenia e afirma que o conceito de esquizofrenia em particular e de psicose em geral, tal como ocorre na infância, deve ser ampliado e que uma das tarefas da análise infantil consiste em descobrir e curar as psicoses infantis (Ibid., p. 311). Vamos aos recortes das sessões: [...] Quando lhe mostrei os brinquedos que estavam prontos para ele bricar, olhou-os sem o menor interesse. Tomei então um trem grande, coloquei-o junto a um menor e os denominei de “trem do papai” e de “trem do Dick”. Tomou então o trenzinho que eu batizara de Dick, fê-lo rodar até a janela e disse: “Estação”. Expliquei: “A estação é a mamãe; Dick está entrando na mamãe”. Largou então o trem, foi correndo até o espaço formado pelas portas interna e externa do aposento e ali se fechou, dizendo: “Escuro”, logo a seguir, saiu correndo. Repetiu isso várias vezes [...]. [...] Na sessão seguinte comportou-se de idêntica maneira. Mas. Desta vez, Dick escapou correndo da sala, dirigindo-se ao escuro vestíbulo de entrada. Ali colocou o trem Dick, insistindo em deixá-lo nesse lugar. Perguntou repetidamente: “A ama vem vindo?” [...] Na terceira hora analítica comportou-se da mesma maneira, exceto que, além de correr ao vestíbulo e entre as portas, também se escondeu detrás da cômoda. Então foi tomado de angústia e me chamou pela primeira vez (Ibid., p. 303). Durante nossas discussões na rede de pesquisa de psicanálise e infância, o que nos pareceu interessante destacar a respeito do que se passou na posição de Dick, se revela por estes recortes. No primeiro recorte, que se refere ao que ocorrera na primeira sessão, nos chamou a atenção o seguinte: diante da suposição que Klein faz ao dirigir-lhe a palavra, primeiro Dick responde com a palavra “estação”, notando que alguém lhe falara ali. Não só isso, ao responder estação, parece aceitar o que este outro lhe ofereceu como nomeação: “trem Dick”. (Não foi uma nomeação qualquer, uma vez que a analista sabia que seu paciente se interessava por trens.) No entanto, diante da insistência dessa presença, Dick sai de cena, subtraindo-se do encontro com o outro. Parece não haver anteparo entre ele e o outro, por isso mesmo, se torna ausente diante desta presença. Porém, consegue utilizar um significante neste ato: “escuro”, e repetir a cena algumas vezes. Isso nos mostra que este encontro provocou algum efeito sobre Dick. No segundo recorte, referente à segunda e terceira sessões, podemos notar uma
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diferença que talvez não seja contingencial. No mesmo lugar em que se escondeu na primeira sessão, ele coloca o trem que ela nomeara com seu nome e apela para a presença da ama que está ausente. Esta dimensão do apelo implica não só o laço como outro, mas principalmente a dimensão da demanda. O que nos chama a atenção foi o fato de este apelo aparecer ao colocar o trem em seu lugar. O que podemos hipotetizar a partir disso? Que efeito teve este trem nomeado para Dick? No Seminário, livro 1, Lacan (1953-54/1993) trabalhará justamente a questão a respeito de qual é o efeito da interpretação kleiniana para Dick. Nesse momento de seu ensino, Lacan estava preocupado com o tratamento do imaginário pelo registro Simbólico, a partir das leis da linguagem. Em relação a este caso, Lacan irá dispor de sua teorização a respeito do estádio do espelho para sustentar não só qual a consequência da intervenção da analista, mas também a posição de Dick em relação à estrutura de linguagem. Em relação a isso, dirá que Dick, embora mestre da linguagem, não fala, “a palavra não chegou a ele, a linguagem não envolveu seu sistema imaginário” (Ibid., p. 102). Ou seja, para Lacan, o que não teria ocorrido seria a articulação entre imaginário e simbólico. De acordo com Lacan (1949/1998, p. 100), o estádio do espelho é o drama responsável pela articulação entre simbólico e imaginário: [...] drama [...] que fabrica para o sujeito apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Ainda neste Seminário (1953-54), Lacan retomará o texto freudiano Introdução ao Narcisismo para aprofundar melhor suas questões a respeito da articulação entre o simbólico e o imaginário. Acompanhando então a ideia do narcisismo como secundário, proporá que o eu ideal corresponderia ao plano imaginário (moi), enquanto o Ideal de eu seria fruto do enlaçamento simbólico. A respeito da posição do sujeito na estruturação imaginária, ela dirá: Essa posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda os seres humanos é o Ideal de Eu (LACAN, 1953-54/1993, p. 166). Lacan faz uma relação do que aí se passa com um experimento clássico de óptica, no qual demonstra-se que é possível que um espelho esférico produza uma
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imagem real, dependendo do lugar em que se posicione um observador. Neste experimento colocam-se um vaso e umas flores separados, e a imagem real faz com que as flores apareçam dentro do vaso. Ora, a questão é que, quando o olho estiver mal posicionado “este verá as coisas no seu estado real, inteiramente nu, quer dizer, [...] um pobre vaso vazio ou flores isoladas”. Isso é o que teria acontecido com Dick, ou seja, o imaginário estaria esboçado, mas não teria se desenvolvido, o que seria condição de constituição da realidade. Por isso, esta lhe era indiferente: “[...] unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A figura no seu conjunto está perturbada. Não há meio de dar a este conjunto o menor desenvolvimento [...] Por uma simples razão – por causa da má posição do olho, o ego não aparece, pura e simplesmente” (Ibid., pp. 105-106). Com a intervenção de Klein, quem ousa lhe falar, Lacan propõe que se determinou “uma posição inicial a partir da qual o sujeito pode fazer agir o imaginário” (Ibid., pp.103-104). A resposta de Dick à nomeação da analista é o momento em que se esboça a junção da linguagem com o imaginário do sujeito. Melanie Klein simbolizou uma relação efetiva de um ser, nomeado, com um outro. Assim, Dick pôde verbalizar um primeiro apelo, falado. A analista produziu a possibilidade do apelo, o qual, no campo da palavra, produz a possibilidade de recusa e a partir daí se estabelecem relações de dependência com o outro. “Todo esse processo parte desse primeiro afresco que constitui uma palavra significativa, formulando uma estrutura fundamental que, na lei da palavra, humaniza o homem” (Ibid., p. 105). Qual terá sido a função dessa nomeação para Dick? Queremos destacar o que Lacan comenta a respeito de uma palavra significativa formulando uma estrutura fundamental que humaniza. Ainda em 1953-54, Lacan dirá que Dick “[...] já tem uma certa apreensão dos vocábulos, mas destes vocábulos não fez a Bejahung – não os assume” (Ibid., p. 86). Poderíamos pensar que a não Bejahung implica este olho mal posicionado na medida em que o significante do Outro não o captura como objeto de desejo. Dessa forma parece não ter efeito de sentido o que vem do campo do Outro. Esse ponto nos parece fundamental para acompanhar o que se passou com Dick. Estando este olho mal posicionado não há como o corpo despedaçado tomar uma forma unificada a partir do Outro. Ora, temos aqui a indicação de Lacan que nos remete ao problema próprio da esquizofrenia tal como Freud propõe: sua fixação no autoerotismo, diferentemente da paranoia que teria se fixado no narcisismo. Como esclarece Quinet (2003, p. 114): [...] Por não ter o socorro de nenhum discurso estabelecido, o esquizofrênico não habita a linguagem propriamente falando, é habitado por ela [...] o esquizo-
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frênico não chega a fazer com que seus órgãos entrem na dança dos significantes, daí seu corpo ser levado ao despedaçamento. A partir daí, é possível entender o que Lacan diz a respeito do fato de Dick não ter feito a Bejahung. Se não há possibilidade de formação do eu a partir da imagem do outro, como é possível que um significante responda ao enigma do desejo do Outro? Distinguindo a paranoia da esquizofrenia, Quinet (2002, p. 16) afirma: [...] diferentemente da esquizofrenia, na paranoia há o significante do desejo da mãe, ou seja, há um significante que corresponde a uma primeira simbolização. Trata-se do significante ao qual o paranoico está fixado, um significante-mestre “retido” que chamarei de S1 [...] A retenção de S1 aproxima a paranoia da neurose e a afasta da esquizofrenia, na qual não há um significante-mestre que represente o sujeito, mas antes uma dispersão de significantes que o impede de se deter em uma identificação estável. Vários significantes advêm para representá-lo, mas nenhum se detém [...]. Em seu Seminário, livro 11, Lacan (1964/1988) esclarece que a operação de alienação é o que permitirá que um significante se detenha. Na paranoia este petrifica o sujeito, e na esquizofrenia? Acompanhando o que Quinet propõe (2002), seria importante que um significante se detivesse para conter a dispersão... Como pensar esta direção do tratamento em um caso de psicose, em particular, de uma esquizofrenia? Poderíamos pensar esta direção para o caso Dick? Retomando então o caso Dick, é importante notar que, antes da nomeação, há uma presença – não podemos afirmar que houve um olhar, mas sem dúvida, uma voz e a resposta de Dick a isto que veio do outro. Será que Dick teria sido fisgado em uma relação imaginária com sua analista? Neste sentido, que função teria aí o “trem Dick”? Dick apresenta outro significante: “estação”, coloca o trem em seu lugar e sai de cena. Poderíamos pensar que, ou ele é o trem, ou não é nada? Entendemos com isso que não é possível uma substituição entre significantes, um efeito metafórico que permitisse que o trem tivesse um estatuto simbólico em relação ao laço com o outro. Comentando o caso Roberto, atendido pelos Lefort, Soler dirá: “ao não haver falta do Outro e, ao não haver significação fálica, são objetos reais os que vêm especificar e saturar o furo real” (Ibid., p. 27). Poderíamos pensar que o trem para Dick, enquanto objeto, poderia ter tido um efeito de sentido, próprio da alienação, trazendo como consequência a possibilidade de enlaçamento com o outro, na transferência? De acordo com Tendlarz
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(1997, p. 54), “o ‘enxerto simbólico’ da intervenção de Melanie Klein, indica que ela consegue criar-lhe uma suplência eficaz a partir da qual constrói um imaginário com o qual começa a construir seu mundo”. Parece-nos que as repetições de Dick buscaram não só encontrar alguma forma de anteparo a um outro que poderia ser invasivo; mais especificamente, por meio do objeto trem nomeado pela analista, estabeleceram uma troca mediada com o outro, a qual parece ter sido fundamental para que Dick ampliasse suas construções imaginárias. Nesse sentido, a direção de seu tratamento permitiu tecer uma borda entre ele e o outro a partir dessa experiência transferencial. Assim, podemos acompanhar que seja possível sim um tratamento para as psicoses infantis, o caso Dick o demonstra. No entanto, deixamos aqui uma questão. Não teria sido justamente a aposta que Melanie Klein fez neste trabalho, a condição para isso? Parece que, sem essa aposta, não haveria possibilidade de sustentar uma transferência tal que permitisse a Dick fazer suas construções. Assim, podemos pensar que um tratamento só é possível a partir desse encontro contingencial entre um analista que aposte num sujeito o qual, a partir disso que o outro transmite, responda.
referências bibliográficas FREUD, S. (1904). Sobre as psicoterapias. Tradução de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu editores S.A., 1989. (Sigmund Freud – Obras Completas. V. VII, pp. 243-257.) __________. (1937). Construções em análise. Tradução de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu editores S.A., 1989. (Sigmund Freud – Obras Completas, v. XXIII, pp. 255-270.) KLEIN, M. (1930). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: Contribuições à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1981, pp. 295313. LACAN, J. (1949). O estádio do espelho. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. __________. (1953-54). O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1993. __________. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. NASIO, J. D. Os Grandes Casos de Psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. QUINET, A. Na mira do outro. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002.
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A psicanálise pode atender os sujeitos com Asperger? – Pensando a direção de tratamento no autismo a partir dos conceitos de gozo e linguagem Samantha A. Steinberg Considerações iniciais A concepção deste artigo teve início com a leitura do artigo de Jean-Claude Maleval Qual o tratamento para o sujeito autista?, que me capturou, desde o primeiro instante. Interessou-me o seu posicionamento ao pensar o tratamento para os sujeitos com Asperger, assim como a escuta do saber que portam. Preocupa-me o que ouvimos repetidamente no discurso social com relação a esses casos, tais como: “Estes casos não são para a psicanálise, só são eficazes os tratamentos educacionais e comportamentais no autismo”. O que nós, psicanalistas, temos a dizer sobre esse posicionamento, que se apresenta no discurso de vários neurologistas e psiquiatras? A psicanálise possui um arsenal teórico para pensar esses casos? E uma direção de tratamento? Acredito que sim. Neste artigo, tentarei abordar esses aspectos a partir dos relatos de alguns sujeitos com Asperger. A vertente que seguirei diz respeito à relação desses sujeitos com a libido, pois acredito ser esse o campo por excelência de seus problemas. Como pensar essa relação? Por que incomoda tanto ao sujeito autista o desejo e o gozo percebidos no Outro? Lacan (1975/1985, p. 210), referindo-se a esses sujeitos, diz: “Se eles não chegam a escutar o que vocês têm a lhes dizer é por conta de vocês estarem preocupados com isso”. Ou seja, é por desejarmos que falem que não podem nos escutar. Essa é a tese que discutirei neste artigo. Em De uma questão preliminar, Lacan (1959/1998, p. 555) nos traz “que o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A”. O que se desenrola no Outro no autismo? Lacan, ao longo de seu ensino, trouxe inúmeras vezes o conceito de Outro em sua vertente simbólica: como “lugar da fala”, “lugar do tesouro do significante”,
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“lugar do inconsciente” ou como lugar de onde pode ser formulada pelo sujeito a questão de sua existência. No entanto, o Outro, articulado nessa vertente, nos ajuda pouco na tentativa de formalização do autismo. Como ir além, como é possível avançar na teorização do autismo? Proponho que pensemos em Outro real. Como referência, recorto alguns trechos da lição de 4 de abril de 1962, do Seminário 9, de Lacan (1961-61/inédito, p. 241-2), em que ele necessita desses conceitos para falar do nascimento da angústia. Ao falar do erro em elidirmos a relação do Outro com a Coisa, afirma: O Outro está para ser, ele ainda não é. Ele tem, ainda assim, alguma realidade, sem isso eu não poderia sequer defini-lo como o lugar onde se desdobra a cadeia significante. O único Outro real, já que não há nenhum Outro do Outro, nada que garanta a verdade da lei, sendo o único Outro real aquilo de que se poderia gozar, sem a lei. Essa virtualidade define o Outro como lugar. A Coisa, em suma, elidida, reduzida a seu lugar, eis aí o Outro com O maiúsculo. E, mais adiante afirma que: O desejo existe, está constituído, passeia através do mundo e exerce suas devastações, antes de qualquer tentativa de imaginações de vocês, eróticas ou não, para realizá-lo, e mesmo sequer está excluído que vocês encontrem, como tal, o desejo do Outro, do Outro real, tal com defini há pouco. É nesse ponto que nasce a angústia (Ibid., p. 243). Proponho que o que angustia o autista é exatamente esse encontro com o desejo do Outro real, como nos define Lacan. Nesse encontro, haveria uma clivagem: o Outro real, relacionado à Coisa, é repelido, rejeitado, mas não os significantes em si. Parece-me necessário fazer essa diferenciação para podermos pensar o autismo e a Síndrome de Asperger. A cadeia significante como tal, “desencarnada”, não parece ser um problema para esses sujeitos. Seguirei essa escrita, tendo como ponto norteador essa proposição. Nominé (2001, p. 18) trabalha bastante a relação desses sujeitos com o corpo e com a linguagem. O objeto a mantém o sujeito a distância de seu corpo como lugar do gozo do Outro. Ele orienta o gozo para o exterior do corpo, é o que se chama de pulsão, ou ainda, libido. Como Freud observou, a libido deve ser dirigida a um objeto exterior. Quando a libido se retira sobre o próprio corpo, é a catástrofe: esse pode ir do fenômeno psicossomático à psicose.
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Portanto, a pulsão parte de uma borda do corpo para procurar sua satisfação do lado do Outro. Segundo Nominé, é exatamente aí que aparecem os problemas para o autista: a borda pulsional não funciona. Nominé (Ibid., p. 19) coloca que na falta da borda pulsional, o sujeito autista reduz todo o seu ser à encarnação do corpo metáfora do gozo do Outro. Dessa maneira, “o sujeito gozaria do Outro na própria posição em que ele é objeto do gozo desse Outro”. E conclui: “Ora, eles não têm corpo, já que ter um corpo pressupõe que se aceite essa inscrição do ser na metáfora proposta pelo Outro. O autista não tem corpo porque não está enlaçado ao Outro, mesmo que ele seja totalmente refém do significante”. Ele, portanto, não se enlaça ao Outro e seu corpo sofrerá as consequências dessa recusa. O analista, se sabendo no lugar de Outro no tratamento, já está, a priori, numa posição extremamente delicada: no cerne da questão que atormenta o autista. Ele não quer saber de falar, de simplesmente estar com o Outro, ele o recusa. Como, então, dirigir o tratamento? Como tornar o Outro menos invasivo e ameaçador para esses sujeitos? O analista precisará manejar essa relação, sabendo o que angustia esses sujeitos. Só a partir desse ponto de saber, que as intervenções poderão ser criadas, caso a caso.
Autismo e linguagem Trarei agora alguns relatos de sujeitos com Asperger. Estes circulam e usam a linguagem de uma maneira bastante peculiar. Maleval sustenta que os autistas de Kanner, mais graves, podem evoluir tanto para uma esquizofrenia como para o autismo de Asperger. Oliver Sacks, neurologista, em entrevista concedida a Michelle Appleby, nos esclarece sobre essa diferença no campo médico: Nos pacientes que Kanner descreveu, a linguagem nunca foi adequadamente desenvolvida e as pessoas tendiam a permanecer bastante deficientes. Na forma que Asperger descreveu, a linguagem e inteligência foram certamente possíveis, mas poderia ser um tipo diferente de vida. Entretanto, se as formas de Kanner e Asperger são partes separadas ou partes de um contínuo, não se sabe. (http:// www.autismconnect.org) Nessa mesma entrevista, traz uma biografia que muito o impressionou, que diz exatamente da relação de um sujeito com Asperger com a linguagem. O biógrafo escreve sobre Cavendish, um cientista muito importante que viveu no século XVIII:
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Ele não amava, não odiava, não tinha medo, não adorava como outros o fazem. Era quase sem paixão. Tudo que precisava de aplicação maior que o intelecto puro e que poderia requisitar o exercício de imaginação, afeição ou fé, desagradava a Cavendish. Uma cabeça intelectual, pensante. Um par de olhos maravilhosamente agudos, observadores e um par de mãos muito habilidosas em experimentar ou registrar, são tudo que eu percebo ao ler suas memórias. Seu cérebro parece ter sido apenas um motor para cálculos, seus olhos, ilhotas de visão, não fontes de lágrimas. Suas mãos, instrumentos de manipulação que nunca tremiam de emoção. Seu coração, apenas um órgão anatômico necessário para a circulação do sangue. Pode-se tentar entendê-lo mais que culpar. Cavendish não se mantinha distante de outros por orgulho ou espírito de superioridade, recusando-se a contar com seus companheiros. Ele se sentia separado por um grande golfo que nem ele podia atravessar, e através do qual era vão estender as mãos ou trocar cumprimentos. Era como um surdo-mudo, sentado, separado do círculo, cuja aparência e gestos mostram claramente que ouvem música e eloquência […]. (http://www.autismconnect.org) O que é esse viver sem paixão, sem emoção dos sujeitos com Asperger? Alguns desses sujeitos podem circular muito bem pelo mundo, pela cultura, mas é preciso que encontrem uma maneira própria de lidar com o Outro e com o significante. Que maneira é essa? Como podemos teorizar sobre esse mecanismo de tratar o significante encontrado por esses sujeitos? Pensando especificamente nos casos de Asperger, Maleval (op. cit, p. 8) recolhe uma série de testemunhos e procura articular teoricamente esses casos ao escrever: “A clivagem a-S1, que caracteriza a estrutura autística, ancora-se num trabalho subjetivo de proteção contra a angústia. [...] Para azar do autista, o Outro real é incansável: o sujeito pode se afastar do gozo do vivo, mas, a não ser que se suicide, ele persiste”. Dentre os testemunhos que Maleval recolhe, encontra-se o de Sellin (1995/1998, p. 41), que diz: “É absurdo pretender que não sintamos nada”; e o de Nazeer (2006, p. 26): [...] Não é a complexidade de uma língua que cria problemas para os autistas. De fato, é provável que ela antes mesmo os ajude, na medida em que quanto mais complexa for, menos uma palavra corre o risco de ser polissêmica. Quanto mais regras e estruturas, menos um autista deve se debruçar sobre a sua intuição e sobre o contexto. Maleval coloca que para os sujeitos com Asperger, é muito mais fácil lidar com a lei objetiva impessoal. No momento em que a realidade está estruturada tudo lhe
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parece menos perigoso. Ou seja, o significante “desencarnado”, a palavra como tal, se assim podemos dizer, não os angustia, e é exatamente essa brecha que nos dá a possibilidade de tratar um autista. Uma só palavra não é a mesma na boca de um analista ou escrita em um livro. Uma palavra dita com uma entonação carinhosa, que fala sobre um certo desejo, também não é o mesmo que a mesma palavra dita friamente. No capítulo XVII, do Seminário 11, Lacan retoma a Vorstellungsreprasentanz de Freud e o relaciona ao S2, que sofrerá ou não o processo de recalque.1 Apresentará duas vertentes para esse significante: o Reprasentanz e o Vorstellung, a primeira relacionada à função de puro representante e a outra relacionada à significação propriamente dita. Sobre essa função de representante diz: Eles não representam, um frente ao outro, mais do que essa função de serem puros representantes, e, sobretudo, não é preciso que intervenha sua significação própria. [...] No diálogo mesmo, cada um deve registrar apenas o que o outro transmite em sua pura função de significante, não deve levar em conta o que o outro é, como presença, como homem, mais ou menos simpático. [...] O termo Reprasentanz deve ser tomado neste sentido. O significante tem que ser registrado como tal, está no polo oposto da significação. A significação, esta, entra em jogo na Vorstellung (Lacan, 1964/1998, p. 209). Lanço aqui uma hipótese de que a angústia do autista decorreria da vertente de significação do significante, não da sua função de representante. O significante, como pura representação, é possível para esses sujeitos, é o que nos mostram seus relatos. Já a vertente do significante relacionado à significação os ameaça, remete ao desejo do Outro real como tal e à ameaça de ser engolido por esse Outro. O desejo na linguagem é o índice dessa ameaça e deve ser evitado a todo custo. Proponho, antes de tudo, que a comunidade analítica possa se debruçar e teorizar sobre o estatuto de significante para esses sujeitos. A hipótese que decorre da primeira, apresentada neste artigo, é que será a esse significante “desencarnado” que esses sujeitos poderão se alienar no campo do Outro, se pensarmos nas operações de alienação e separação que Lacan propõe no Seminário 11.
1 “A saber, que é na medida em que o sujeito vem a representar sua parte e jogar sua partida na separação que o significante binário, o Vorstellungsreprasentanz é unterdruckt, cai por baixo” (LACAN, 1964/1998, p. 208).
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Autismo e corpo Para pensar a relação desses sujeitos com o corpo, selecionei alguns relatos de Donna Williams, nos descrevendo os momentos de desencadeamento de seu delírio. Esses relatos podem nos dizer muito da libido desses sujeitos. O que esta promove em termos perceptivos? Como a posição libidinal desses sujeitos se relacionará com a possibilidade de captação da imagem corporal e com a sensação de corpo próprio? E com a direção de tratamento? Nesses relatos, recortei os fragmentos que dizem da sua relação com o corpo e com a imagem corporal. Vamos a eles... Para Donna, a presença do vivo em sua imagem é uma constante. A consistência do seu mundo do espelho, que comanda sua percepção da realidade, às vezes se impõe. Num momento de intensa angústia sua visão se desestrutura e ela não consegue mais se orientar espacialmente. Pouco depois de obter o diploma universitário, num período particularmente difícil, se depara então com uma lógica muito particular, a do espelho invertido, relata: O universo inteiro parecia revirado: a cabeça embaixo, o interior do lado de fora, o atrás na frente. Tudo parecia ser sua própria imagem invertida, como se, no momento em que estava entrando num imóvel, eu tivesse entrado num espelho. Não botava mais a mão no carro, horrorizada. Conhecia o nome das ruas e jamais tinha tido problema algum em encontrar o caminho. Mas eis que era preciso guiar seguindo o nome das ruas que eu conhecia, como numa cidade desconhecida. Ou, antes mesmo, tudo acontecia como se eu rodasse no espelho: encontrava-me, rua após rua, no oposto de onde eu queria ir. Acabava, então, do outro lado da cidade! Ao invés de retornar para casa, tinha guiado no outro sentido. As coisas e os lugares estavam transformados cada qual no seu contrário. Isso durou dois dias. Achei que estava ficando louca (WILLIAMS, 1994/1996, p. 232). Maleval (op. cit., p. 19), a partir do relato de Donna, afirma que ela se confronta com a lógica de sua posição subjetiva: Quando a mestria intelectual não basta para dirigir sua percepção, ela pode perceber o mundo a partir de seu reflexo, porque o gozo é fundamentalmente descarregado neste último. Esse mecanismo de defesa para governar as emoções, para tomar distância do vivo, está no princípio do autismo. Parece-me muito interessante pensarmos na percepção dessa maneira. A percepção está aqui, fundamentalmente, ligada ao pulsional, ao gozo, e não à cons-
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ciência e ao intelecto. E é exatamente a posição desses sujeitos, diante do gozo, que pode se movimentar no tratamento, por meio do trabalho significante de uma análise. É importante notarmos, também, que no momento em que a psicose se desencadeia, em que é invadida pelo Outro real, o que a orienta é o nome das ruas, o significante “puro”. Recorto a seguir outra experiência de Donna, que se deu numa disciplina de educação física, na sua formação superior, na qual ela não reconhece os outros estudantes quando os vê despidos. Eles eram irreconhecíveis, a imagem de meus colegas de classe se fundia numa massa de corpos negros, brancos e sardentos, numa imagem de desconhecido. O que eu via era tudo o que havia, eu via uma mancha. Não via braços. Não associava sistematicamente a presença de um braço na mancha com o contato do braço através da mancha (WILLIAMS, op. cit., p. 189). Segundo Maleval, a percepção dos que a rodeiam é estruturada pelo ser escópico que capta seu gozo, ela só os apreende como imagens. O seu mundo singular de gozo escópico se impõe ao intelecto rompendo as cadeias associativas. O laço não ocorre entre a mancha e o braço. “A apreensão do corpo próprio nesta posição é necessariamente fragmentada, ainda que o reflexo permita que se juntem seus elementos” (MALEVAL, op. cit, p. 19). Esses relatos nos ensinam muito sobre o estatuto da imagem e do corpo nesses sujeitos. A imagem parece ter característica própria, ela é unificada para esses sujeitos, porém pode se desintegrar totalmente num momento de crise. Se algum elemento, no caso a roupa, se modifica, a imagem se perde. Os seus amigos vestidos, quando se despem, somem, se tornam manchas. O que dá a consistência e a persistência da imagem? Será que podemos pensar que é a relação com o Outro que faz a imagem ganhar corpo? Voltando às vivências de Donna, recorto um último fragmento, no qual ela relata, no seu segundo livro, sensações que lhe parecem “medonhas” e “incompreensíveis” num primeiro momento: – Estou sentindo minha perna – gritava eu em pânico. Estou sentindo minha mão e minha perna. Estava com medo e tremendo. [...] Colocava minha mão sobre meu braço e murmurava com receio. – Tenho um braço. Não o sentia sob a minha mão do exterior, como antes, mas do interior. Meu
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braço o havia percebido do interior. “Braço” não era mais que uma simples textura; ele estava tomando sentido do interior. Era estranho e, portanto, pavoroso. Eu era uma estrangeira num veículo que me transportava, mas que vinha justamente me assinalar que estava lá, que era real, que pertencia a mim e que fazia parte de mim. [...] Eu nunca havia me sentido tão totalmente viva [...] Essa possessão de mim era a segurança mais tangível que eu havia, porventura, conhecido (WILLIAMS, op. cit., pp. 313-315). Maleval analisa esse fragmento dizendo que o “estranho” foi aqui introduzido no espelho. A economia de gozo foi modificada, uma parte dela se desloca do reflexo para o livro que escreveu. “A integração do duplo lhe permite começar a sentir certas sensações, porque seu gozo não é totalmente rejeitado: ele se reparte entre o sujeito e seu objeto” (MALEVAL, op. cit., p. 22). Para Maleval, deve ocorrer uma modificação na economia de gozo do sujeito, para que ocorra essa modificação no real do corpo.
Conclusão O que mais esses relatos nos ensinam? Como poderíamos justificar essa transformação corporal de Donna, de um corpo-imagem a um corpo com substância, sentido e percebido como tal? Será que esse primeiro corpo-imagem não seria o não corpo, proposto por Nominé, um corpo que não aceita a inscrição do Outro? Pensando na direção que esse autor nos indica, será que podemos supor, neste momento, o nascimento do Outro para Donna, com os seus efeitos no real do corpo? Essas duas concepções se articulam se pensarmos que o nascimento do Outro pressupõe um remanejamento da economia de gozo do sujeito em questão. Como nos diz Marie-Hélène Brousse (1997, p. 123): Não existe pulsão sem a demanda do Outro. E quando se introduz a demanda do Outro, introduz-se o Outro como combinatória de significantes. Introduz-se também o princípio de sacrifício do gozo, introduz-se, desse modo, o desejo: porque o desejo se origina não do que se tem, mas daquilo que falta. Essa é a impossibilidade do autismo – lidar com o Outro na sua vertente simbólica. A direção de tratamento está, portanto, dirigida para o nascimento de um Outro possível para esses sujeitos, menos ameaçador. E o significante será nosso maior aliado nesse caminho. A aposta do psicanalista será que o significante
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poderá funcionar, mortificando e aparelhando o gozo que tanto atormenta e angustia esses sujeitos.
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A propósito do autismo: há, certamente, algo a dizer Bernard Nominé No momento em que a psicanálise na França é apontada, segundo alguns, porque seria responsável pela inadequação dos cuidados propostos aos autistas, nós, psicanalistas, certamente temos algo a dizer. Retomo a fórmula que Lacan utilizava quando lhe perguntávamos sobre os autistas: “há, certamente, algo a lhes dizer”. Qual pode ser a resposta do psicanalista diante dos pacientes autistas, de suas famílias, das associações que os abrigam? Faz-se urgente que nós nos pronunciemos sobre a ética que guia nossa resposta e que leva em conta a posição precária de um sujeito confrontado ao real da língua. O que distingue a psicanálise, no arsenal das terapias propostas aos autistas, é que ela não teme se afrontar com a estrutura da língua que a clínica do autista desvela. Nós, que somos seres falantes, nada queremos saber daquilo que constitui a mola propulsora deste aparelho do qual nos servimos todos os dias para nos comunicar. Há real nessa língua, cujo uso não é exclusivamente reservado à comunicação. É com esse real da língua que o autismo nos confronta. Essa clínica complexa só pode ser decifrada ao se levar em conta o gozo arcaico que a alíngua proporciona. Uma vida sã, como dizia Freud em um de seus primeiros textos, supõe que não sejamos parasitados por esse nível basal da articulação significante, que associa automaticamente um significante ao seu contrário, antes de qualquer processo dialético. Esse nível basal da articulação significante desaparece à medida que um sujeito entra no discurso, fazendo-se representar por um significante junto a outro significante. Trata-se, então, de uma verdadeira dialética, que suplanta a articulação arcaica de um significante ao seu contrário. Mas voltemos ao processo que a psicanálise vem sofrendo. Pode-se ver aí, do lado das instituições – que são, em sua maioria, associações de pais –, uma resposta especular aos ataques de que eles se dizem vítimas da parte de certos psicanalistas, que lhes teriam tornado responsáveis pelo autismo de seus filhos. Há aí muitos mal-entendidos, pois se relermos com cuidado a obra incriminada, principalmente a de Bettelheim, perceberemos que ele não faz da mãe geladeira um conceito universal. Se algumas crianças autistas tiveram que sofrer por uma relação particularmente complexa com suas mães, nem sempre é este o caso. Algumas
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mães de crianças autistas são absolutamente admiráveis. Deixemos de lado, portanto, esse debate sobre a culpabilização dos pais, pois ele não tem muitos fundamentos. Se há algo a dizer aos pais de uma criança autista, certamente não é que eles são responsáveis, mesmo que inconscientemente, por esse estado. Ainda que um psicanalista fosse levado a fazer tal constatação, não se vê o interesse que ele teria em revelar essa verdade aos pais. O que é bastante impactante é que se oponha à psicanálise a origem supostamente genética dessa patologia. Seria preciso que nos explicassem, então, por que aqueles pais a quem se anunciaria que transmitiram os genes do autismo a seus filhos teriam menos razões de se sentir culpados. Entretanto, é necessário precisar que os psicanalistas não têm que temer os avanços da ciência genética. O cognitivismo e a neuropsicologia inspiram-se nas neurociências apenas por oposição à psicanálise, isto é, para não saber nada da estrutura da linguagem. Pois não é a psicanálise em si mesma que assusta, mas sua opção em se apoiar na estrutura da linguagem. Optar pela ciência contra a psicanálise é, portanto, uma aberração; a psicanálise não se opõe em nada às descobertas da ciência. É bem provável que haja, no espectro autista, patologias de aspectos hereditários. No entanto, mesmo nessas patologias aparentemente hereditárias, não se conseguiu isolar um gene responsável. Suspeita-se ao menos de quatro sequências possíveis. Não há meios, com isso, de propor um rastreamento sério. Os falsos positivos seriam bem mais numerosos, e o teste desencadearia mais mal do que bem. Bertrand Jordan (2012), biólogo molecular, pesquisador do CNRS, de quem não se pode absolutamente suspeitar de ter algum pressuposto favorável pela psicanálise, escreve o seguinte: Sendo o autismo também um transtorno da relação, a profecia decorrente de um teste bastante impreciso corre o risco de ser autorrealizadora: designada como sendo de alto risco, a criança será alvo da solicitação inquieta de seus pais; se ela já não fosse autista, poderia vir a tornar-se (p. 44). Vindo de um geneticista experiente, esta observação tem um grande peso. Esse pesquisador em genética toma o cuidado de nos lembrar que não se deve confundir genótipo e fenótipo. O genótipo se manifesta em fenótipo sob a influência de contingências diversas, que são incalculáveis. A transmissão do genótipo por si só não é suficiente para escrever um destino. Seria preciso refletir sobre o que representa para nós, hoje, recorrer à genética. Para alguns, a tentação de recorrer à genética para tamponar a questão da causa, é grande. Não se esperou, aliás, o advento da perspectiva científica para falar de causa. Procuramos uma causa porque queremos palavras, cujo alcance superestima-
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A propósito do autismo: há, certamente, algo a dizer
mos, para tentar dominar o real. Por diversas razões, é isso que está em vigor no obscurantismo, na magia, na religião e no cientificismo, bem mais do que na conduta científica. Não se encontrando uma causa, procura-se um culpado. Qualquer coisa é melhor do que considerar que a posição autística seja a de um sujeito que, por uma razão ou outra, decidiu excluir a si mesmo de qualquer discurso. Os psicanalistas não têm que prejulgar uma causa. O autismo, mais do que qualquer outra clínica, nos confronta com a ética da psicanálise. O que o autista nos mostra escapa a qualquer explicação fundada sobre o sentido. Todo saber pressuposto, aqui, é inútil. Quanto ao sujeito suposto saber, trata-se de uma função que o autista teria muita dificuldade em atribuir ao psicanalista. Em contrapartida, nenhum encontro seria possível sem essa suposição mínima que o analista faz de que há por trás deste quadro clínico enigmático, um sujeito que sabe o que quer e, sobretudo, o que não quer. O encontro de um autista com um analista só pode ser benéfico se o analista se colocar na posição de aprender com ele. Foi junto a um jovem autista, totalmente mudo, que acompanhei durante doze anos, que aprendi a lógica da estrutura da linguagem com a qual ele lutava diariamente e que lhe ditava suas estranhas condutas. Todos os testemunhos clínicos que puderam ser recolhidos demonstram que, por uma razão que não conhecemos, o sujeito autista não tem acesso à representação significante. Nenhum significante o representa junto a outros significantes. A articulação nele se reduz, portanto, à oposição fundamental que define um significante com relação a seu oposto. Esta falta de representação significante mergulha o autista em um universo em que a ausência não pode ser registrada. Ele vive em um mundo feito de coisas presentes, que podem desaparecer como se nunca tivessem existido. Pode-se imaginar a aflição que isso pode gerar. Alguns deles conseguem paliar essa falta de representação com esforços de memória consideráveis. Um rapaz de quem cuidei era capaz de memorizar uma lista de mais ou menos vinte palavras, significantes encontrados no caminho que ele percorria para ir à consulta, que ele precisava enumerar a toda velocidade. Ele recitava essa lista em um sentido e, em seguida, no outro, em um estado que misturava angústia e excitação. A angústia é compreensível, porque se pode supor que ele precisava se lembrar de todo aquele percurso significante para se assegurar de que estava ali, bem diante de mim. Na mesma ordem de ideias, eu havia reparado que quando ele entrava por uma porta, acontecia de ele se bater ostensivamente e de se assegurar que estávamos vendo justamente que ele havia batido em si mesmo. Acabei compreendendo que, por não saber se ele continuava a ser ele mesmo quando passava de dentro para fora, era-lhe preciso esta sensação sobre o corpo para se assegurar de sua identidade, uma vez que tivesse passado pela porta.
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A excitação provocada por suas performances de memória é mais difícil de apreender, mas penso que se trata aí de um fenômeno essencial. Aquele que dispõe da representação significante pode esquecer, já que o acontecimento ou objeto encontrado é registrado sob um significante que pode ser articulado em uma vivência que tem sentido. É a memória de longo prazo. O autista tem à sua disposição apenas a memória de curto prazo. Tenho para mim que essa memória segue caminhos que são os da pura repetição, isto é, do gozo. O gozo tem sua própria memória, ele não esquece. Não vou me estender mais sobre esta clínica do autismo. Gostaria somente de encorajar os psicanalistas a não cederem nesse processo que está sendo feito, e a dar testemunho dessas pequenas coisas que eles conseguem obter nessa clínica tão difícil. É muito importante que eles saibam se contentar com isso. Sua posição ética será decisiva com relação às promessas enganadoras feitas por aqueles que denunciam a impotência da psicanálise. Sabe-se hoje, graças a alguns testemunhos, que esses reeducadores hiperativos são levados, às vezes, a cometer atos de maus-tratos. Mas poderia ser diferente disso? Por querer, a qualquer custo, fazer o autista entrar em um discurso que ele evita cuidadosamente, corre-se o risco de se encontrar, cedo ou tarde, em uma posição de carrasco. Enfim, para concluir, gostaria de dizer que não devemos nos deixar intimidar por aqueles que nos opõem os avanços das neurociências. Quaisquer que sejam as descobertas que a verdadeira ciência nos trará sobre o funcionamento do cérebro, a psicanálise permanecerá sempre uma forma de sustentar o sujeito em sua posição diante daquilo que lhe acontece. Tradução: Cícero Oliveira Revisão: Sonia Campos Magalhães
referências bibliográficas JORDAN, B. Autisme, le gène introuvable. Paris: Seuil, 2012.
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O autista, um sujeito a supor Martine Menès O psicanalista e o autista Tem a psicanálise algo a aprender com o autismo? A psicanálise tem algo a inventar com o autista? O analista, no tratamento com o autista, não é nem sujeito suposto saber (o autista não lhe supõe nada) nem mesmo sujeito que suspeita saber, como na psicose. O analista é somente coisa – a Coisa? – anterior ao grande Outro. Ou ele não é nada ali, face aos movimentos de um pequeno sujeito que o ignora, ou o trata como uma protuberância, nem mesmo como um objeto. Sem dúvida, a douta ignorância é mais do que nunca requisitada, posição que supõe renúncia aos ideais terapêuticos e educativos, e abertura à surpresa. O agente dessa ignorância douta que, no entanto, se escora sobre um não saber, só pode ser um qualquer que se sustenta por um desejo particular, o desejo do analista (LACAN 1973/2003).1 É assim que compreendo a indicação de Lacan (1975/1998, p. 12): “os autistas não conseguem escutar o que o Sr. tem para lhes dizer enquanto trata deles”. Eu me explico: pode-se fazer de tudo com o autista, exceto fazer dele um deficiente, do qual só é possível, então, tratar; e, acrescenta Lacan: “... Mas, afinal de contas, há certamente algo a lhes dizer”. O que temos a lhes dizer? É a questão que tomo para mim. Por que deixar essa patologia, que se tornou oficialmente uma deficiência na França, aos cuidados da neuropsiquiatria, que a considera como um estado deficitário incurável, e que lhe afirma uma etiologia genética, sem ter condições de demonstrá-la? (ainda que isso não mudasse muita coisa). A abordagem psicanalítica se interessa pelo sujeito, quaisquer que sejam as modalidades reais de sua aparição. Pensar o autismo em termos de recusa, mais do que de incapacidade, procede de uma aporia, que sustentarei: supor um sujeito do inconsciente ali onde estruturalmente não há. Com efeito, falar de recusa supõe um ato do sujeito. Procede isso de um otimismo beato ou de uma orientação por um corpus teórico e pela ética que o acompanha, não excluindo o autismo? Aposto na segunda hipótese, que não vai sem uma parte da primeira: o otimismo. 1 Na Nota italiana, Lacan (1973/2003) presume que o analista deve carregar a marca de um desejo inédito (do analista), que supõe, do lado do analista, um outro saber (o do inconsciente), que não vai sem a “douta ignorância”, título de uma obra (1440) do cardeal Nicolas de Cues.
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Evidentemente, há um problema: é que o saber, em sua dupla dimensão – de constituído e de insabido – manifesta-se, no encontro com o autista, apenas do lado do analista. O autista, no Discurso do analista, estaria no lugar histórico da histérica, não como sujeito barrado de um saber inconsciente a ser decifrado, mas como objeto a, que causa o desejo do analista e seu trabalho de elaboração. Com efeito, resta ao analista apenas atos, não sem ligação com o ato analítico, já que são orientados pelo desejo do analista, entre um saber que é apenas o de seu próprio inconsciente S2, que ele vai pôr em jogo no tratamento – sem o qual nada acontecerá –, e das invenções para acompanhar de forma construtiva o pequeno sujeito que sofre com a ausência do grande Outro. Sobre isso, Nora, com quem me encontrei de seus quatro aos seus treze anos, ensinou-me muito.
Nora é autista? Começarei por uma descrição dessa jovem, referindo-me aos critérios adotados, para um diagnóstico diferencial com a psicose, pelos trabalhos de Kanner (1943), de Asperger (1944) e de France Tustin (1972).
Os transtornos da relação com o outro – Retraimento: aos quatro anos e meio, quando chegou, Nora fugia de qualquer relação. Ela parece indiferente a todos, exceto, talvez, a seu pai, a quem ela fica grudada, ou evita cuidadosamente. Ela se faz de surda, faz barulho para não ouvir, cobre os olhos, se isola. – Agressividade: Kanner explica isso por um não consentimento de imediato à presença do outro, o que se poderia chamar de recusa primordial do outro. Nora manifesta sua violência sem a menor inibição: – nas palavras: ela berra (“você é nojenta”, “pare de brigar comigo, esses barbantes me atrapalham”), exprime sua recusa em me ouvir, sua raiva diante de meu estar ali (“me deixa”, “põe o dedo na boca, Martinemenès, fecha os olhos”), me insulta (“baleia gorda”, “você, cara, você pegada de pato)”. Pensa-se no “Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato” do homem dos ratos nessa idade tenra em que as palavras fora de estofo estável da cadeia significante reduzem-se à sua materialidade sonora e ao peso de gozo do insulto. – nos atos: ela devasta, em um piscar de olhos, o escritório, esmaga os jogos com os pés, joga objetos e água em minha direção, antes de se precipitar para fora.
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Essa violência, longe de ser a do eixo imaginário, em que se trata do outro (invidia) ou de ter aquilo que ele tem (ciúme), é manifestação agida, sem recalque, do ódio primordial. No primeiro tempo distinguido por Freud, o do pré-narcisismo, o mundo é indiferenciado; concretamente, o polegar ou o seio fazem, sem distinção, parte da criança. Depois, o Eu se constitui por uma operação lógica, a Bejahung (NOTHOMB, 2000/2003, p. 16), julgamento de atribuição, que fabrica fora-de-eu, sem, no entanto, julgar antecipadamente sua existência. Esta Bejahung, esse recalque originário que permite a criação do objeto, inclusive do Eu como objeto (o Eu narcísico) coloca um problema junto ao autista. Ele daí permanece nesse primeiro tempo que Amélie Nothomb (Ibid.) descreve bem em seu livro Metafísica dos tubos, que cito: “Viver significa recusar... Para viver, é preciso ser capaz não mais situar no mesmo plano, acima de si, a mamãe e o teto”. O autista não pode reconhecer, muito menos investir, o que ele expulsa, inclusive sua mãe, que ele continua confundindo com o teto. Ele permaneceria fixado neste tempo lógico de constituição do Eu, somente com o afeto que o acompanha – o ódio –, e sem poder estatuir sobre a diferença entre realidade e alucinação. No entanto, ele não está totalmente fora dessa primeira operação de separação. Que o menor traço de alteridade desencadeie seu furor supõe uma forma de reconhecimento do outro.
Não reconhecimento de sua própria imagem Quando encontro Nora, não há diferença entre o pequeno outro e ela mesma: primeiro, ela não vê o espelho ao qual está grudada, que ela recobre de água. Ela e o reflexo i(a) estão na mesma superfície plana, sem profundidade. Depois de muitos anos, ela me interpela com uma espécie de estupefação alegre: “Martinemenès, tem duas dessa”. Primeiro tempo tardio do estádio do espelho. Mas sua imagem não é, no entanto, especularizada; é um outro duplo real que ela lambe – apóstrofe – e com o qual ela brinca. O uso do transitivismo, que muitos clínicos fazem ao tratar de autistas, é um esforço para introduzir em si mesmo força como parceiro no especular. Posso dar um exemplo: ela tem mais de sete anos. Um primeiro “diálogo” acontece: ela desenha círculos coloridos, gorjeando. Eu a imito. Ela me olha, fato excepcional, e sorri, algo ainda mais raro, porque se às vezes ela me olha de soslaio é só antes de desaparecer pelo consultório, sem esperar a confirmação da recepção de seu olhar. Ela grita: “Socorro!”, ao mergulhar um personagem na água. Faço o mesmo, e acrescento: “Socorro, me ajude!”. Ela diz, com uma voz que ouço pela primeira vez, muito diferente de sua voz ecolálica, ajustada a cada outro que ela
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imita: “Talvez eu possa ajudar você?”. A partir desse momento, ela mesma continua a terminar suas sessões, mas me avisa: “Bem, acho que vou parar”, “Vou embora, porque não tenho mais nada a fazer aqui”. Ela ainda me agride, mas mais delicadamente e mais socialmente: “Não sou mais sua amiga”, por exemplo, mas também, mais enigmática: “Você não tem nada que fazer no deserto”. Apareço em seu campo como o pequeno outro. Na mesma época, tento, como muitas vezes, canalizar sua atividade inundadora. Ela me diz: “Sou eu quem diz: você diz: Nora, não”. Ela passa pela relação transitiva do eixo imaginário, e me dá a ordem de lhe dar uma ordem, para ouvir a proibição sobre o eixo simbólico, em troca da qual ela aceita fazer.
Não há Outro? O Outro, no autismo, permanece a Coisa que ele cola na continuidade, como uma protuberância de seu próprio corpo, ou ainda uma realidade exterior, tão obscura quanto perigosa. É patente na relação de Nora com seu pai, de quem ela pode utilizar a mão para pegar, fazer um gesto. – O corpo ausente Nora não parece não se dar conta de que ela tem um corpo: ela anda sobre o corrimão da escada, se joga de lá de cima. Nunca se machucou. Todos os circuitos pulsionais são perturbados. No autismo, não há Outro onde tomar o objeto. Os objetos – seio, voz, fezes – são sem relação com um Outro, que lhes daria sentido, donde a impossibilidade das montagens pulsionais e os transtornos que daí decorrem. O corpo de Nora é uma superfície contínua, sem interior nem exterior. É por isso, sem dúvida, que ela se despe inteiramente quando vai ao banheiro. No registro oral, ela se recusa, durante muito tempo, a experimentar uma comida desconhecida, ou preparada de forma desconhecida. Ela pode comer por semanas o mesmo alimento, que deve ser apresentado da mesma forma, mas devora sem pestanejar as folhas das plantas que arranca da sala de espera, a massa de modelar, a margarida que ela colheu no pátio do Centro Médico Psico-Pedagógico (CMPP) etc. Estar apenas na necessidade a deixa fora dos limites pulsionais a todos os perigos, como demonstra sua propensão a se jogar no vazio.
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– Objeto autístico Para Nora, é a tela que delimita seu universo. Da tevê, do computador, do espelho, diante da qual ela passa todo o tempo que pode. Não é um objeto transicional, pois ele não representa a ligação com o Outro. Em contrapartida, ele vem no lugar: o discurso sem enunciador da televisão, coisa impessoal, inanimada, permitiu a Nora adquirir a linguagem sem passar pelo grande Outro. O ritornelo televisual fez, para ela, função de léxico, não de significantes. As palavras são apenas signos. A leitura de Lacan esclarece esse estatuto de objeto puro real, apêndice não separado, inverso do objeto a.2 – Transtornos da linguagem Kanner fala de ecolalia com efeito retardado, que se torna possível por uma memória mecânica. A distinção que Lacan traz entre fala e discurso permite precisar que se o autista tem a fala, ele não está, contudo, em um discurso que se endereça. Nora nunca balbuciou, não há rastro de alíngua. Ela começou a falar brutalmente, como uma máquina, sem vontade de se comunicar, observa sua mãe. Ela é, antes, “um personagem verboso”,3 como Lacan (1975/1998, p. 13) diz a respeito dos autistas. Ela constrói narrativas de sons amontoados uns atrás dos outros: a previsão do tempo, as instruções dos jogos televisivos, dos programas de computador. Canta imitando a voz da cantora, ou mesmo do cantor... É, como se diz, uma autista sábia; guarda tudo o que ouve e recita palavra por palavra. Ela utiliza uma voz monocórdia, como se fosse um disco riscado, repetindo dezenas de vezes o mesmo fragmento de frase. Ela fala, mas não nomeia nada; palavra e coisa permanecem disjuntas, como seus insultos demonstram. Ela parece ter a melodia, mas não as palavras.4(NT) Sua fala não a compromete com nada, não pede nada, não recusa. Ela utiliza o “eu” desde mais ou menos seus quatro anos, mas não é certo que isso seja, de imediato, para designar a si mesma: “Ela, a Nora... eu, caí nos leões”; 2 O corpo se esburaca, se inscreve em três dimensões, com a perda do objeto. Por exemplo, o objeto oral, seio, pertence inicialmente à criança. Ele encontra um Outro esvaziado (o que ele verifica ao colocar os dedos na boca da mãe), em seguida, no tempo lógico secundário de separação, o objeto oral perdido inscreve o traço de sua ausência como objeto a, causa do desejo. 3 “Que o senhor tenha dificuldade para escutá-lo, para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de personagens de preferência verbosos (...). Eles articulam muitas coisas, e trata-se precisamente de ver onde escutaram o que articulam” (p. 13). 4(NT) Em francês, Elle a l’air, mais pas les paroles, referência à expressão “avoir l’air, mais pas la chanson”, utilizada para indicar alguém que demonstra mais do que aparentemente sabe e que tem dificuldade em explicar o que acredita compreender. Avoir l’air pode ter um duplo sentido de parecer e ter a melodia.
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“é o aniversário da Nora, meu aniversário” (na verdade, é o de sua prima); “Martinemenès, será que eu quero água?”. Diante de uma folha, ela dá a si mesma a ordem: “desenhe Nora”; diante de um espelho, “eu me chamo Nora, eu me chamo Benoît, tenho quatro anos e meio”. Quando ela consente em se dirigir a mim, depois de mais de dois anos, faz isso com questões ditas mecanicamente, que não esperam resposta alguma: “Qual sua idade? Você mora onde? Como seu marido se chama? Seu carro está onde? Você vai se deitar hoje à noite?”. O suspenso em que o autista permanece no julgamento de atribuição torna instável a operação de alienação significante. Será possível, então, chegar até a se dizer que o autista recusa ser representado por um S1, e que é por isso que ele não pode adquirir a linguagem a não ser fora dos significantes? Nenhum S1 se liga a um S2, os significados quaisquer deslizam sem se plugar, salvo às vezes, e é, então, uma surpresa.5 A recusa do parasita linguajeiro é paradoxal: o sujeito diz “não” sem ter dito “sim”. Esse estatuto singular poderia explicar as “saídas” de autismo, em que se constata uma integração em pontilhado na e da cadeia significante. Seria o autista um batimento, como Nora demonstra depois de seis anos de tratamento, entre a alienação significante consentida e a recusa primordial que deixa todo lugar ao gozo, à passagem ao ato permanente? – Imutabilidade Seu grafismo é totalmente estereotipado, seus jogos são repetitivos, utilizando sempre a água, sobre sequências de muitos meses, e até mesmo anos. Segundo Kanner, trata-se de tornar o ambiente plano, monótono, excluindo qualquer possibilidade de surpresa. Lacan explica esse fenômeno defensivo pela impossibilidade de compreender a mínima mudança. Qualquer novidade é insituável no caos de um mundo real não ordenado pelo Simbólico. O autista se esforça para tornar estável um ambiente estilhaçado, não em objetos, mas em pedaços de real, em multiplicidades de formas que é o mundo, inclusive o próprio corpo (despedaçado), antes de sua unificação pela imagem no espelho. Entendo a confirmação dessa tese nesta sequência recente: Nora começa um desenho, comentando claramente: “Você vai fazer um desenho bonito, Jennifer”. Em seguida, ela risca e amassa um começo de um sol que estava iniciando, primeiro desenho figurativo espontâneo que eu a via fazer. Sua atividade gráfi-
5 A diferença com relação à linguagem na psicose pode ser escrita: Psicose: um significado é fixo sob um significante: S1; a metáfora S1/S2/s2 é impossível. Há congelamento da alienação significante. Autismo: um significante qualquer pode seguir outro significante qualquer. Não há S1 que representaria S1 qualquer, ..., S2 qualquer, ..., Sn qualquer. sq1,..., sq2..., sqn... (deslizamento permanente).
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ca habitual consiste em esmagar canetinhas molhadas sobre folhas, até furá-las. Perguntei-lhe, então: “Por que você não faz um desenho bonito como Jennifer, já que você sabe fazer?”. Ela me responde: “Porque não estou com vontade”.
A invenção do ato analítico Ali onde não há Outro do significante – Nora ignora qualquer demanda do Outro da linguagem –, o analista vai encarnar o falasser, com sua própria relação com a falta, o que dá ao tratamento uma atitude resolutamente familiar. Dirijo-me a Nora como se ela se interessasse por aquilo que eu lhe digo. Falo-lhe de qualquer coisa, comento eventualmente o que ela está fazendo, mas não teço nenhuma hipótese interpretativa; no máximo, sou eu quem associa e conto para ela. Leio livros sobre o autismo, testemunhos dos quais, às vezes, leio algumas passagens para ela em voz alta. Escrevo, me mexo, falo com ela, mas não a olho, nunca. Suponho-lhe um saber inconsciente que ela não tem. Deixo-lhe palavras que ela lê ou amassa, de acordo com o dia, sem nunca acusar recebimento. Intervenho muito, também, para dizer não ao gozo, inter ditar na realidade. Até o último ano de tratamento, em que dizer é mais ou menos suficiente, ajo muito ativamente usando coação, se preciso. Ela tem quase oito anos quando me faz uma pergunta anódina, com uma voz autêntica. Ela se debate há algum tempo com a torneira d’água que resiste, e ouço: “como se faz para parar?”. Seria preciso semanas para que isso voltasse a ser feito. É uma observação frequente que se o autista pode fazer apelo ao outro, parece que isso só ocorre sem que ele saiba. Desde então, ela às vezes responde, para minha grande surpresa, a questões que lanço, sempre como se ela estivesse completamente alheia. Um exemplo: ela repete “Pare, ou eu vou te dar uma”. Eu digo: “Quem diz isso: as mamães ou as avós?” –, pois tenho minha desconfiança, mas não achava que ela tivesse a mesma: “as avós”, afirma ela, sem hesitação (ela tem uma avó um pouco animada...). Em seguida, ela entoa uma música, da qual guardei algumas frases: “a gente sempre tem razão de se colocar uma questão... ousemos dizer não... fazer a escolha”. Espantoso, não? O mesmo acontece quando, algumas sessões mais tarde, eu percebo um nome em seus enunciados, e pergunto, de maneira negligente: “Quem é?” Ela responde: “É uma cantora (Hélène Ségara?), e ela fala também” –, como se ela acabasse de descobrir, para além da melodia, as palavras.6(NT2) Concluo sobre o término: Nora se dirige diretamente a mim para interrogar 6(NT2) Em francês, au delà de l’air, les paroles. Novamente, referência à expressão “avoir l’air, mais pas la chanson”.
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meu desejo. Ela intui, portanto, que, diferente do gozo, a dimensão fálica – que lhe é, no entanto, totalmente estranha – orienta o outro. Isso começa em uma sessão na qual leio – um livro sobre o autismo, claro. Preciso lhe dizer algo sobre isso. Como de hábito, ela está na pia, virada, cantarola, e parece não escutar nada. Repentinamente, ela fica na minha frente e questiona: “Martinemenès, você está me olhando...???”, e segue uma impressionante lista de programas de tevê. Aparentemente, meus “nãos” reiterados a perturbam: “Você só sabe ficar lendo? Você só sabe ver (como ela vê tevê) livros?” Ela se pergunta como faço para manter desconectada das imagens. Vendo apenas livros, objetos que, aparentemente, até pouco tempo, não lhe diziam nada. Ela sabe ler perfeitamente (ela fez uma demonstração disso para mim), mas de maneira holofraseada. A letra permanece puro real que não quer dizer nada. Um último passo, ainda: ela me pergunta “Martinemenès”, ainda como se fosse uma só palavra, “qual seu sobrenome?” Eu lhe explico, e, desde então, ela corta a holófrase que me representava, e me chama ou de Martine, ou de Senhora Menès. É ao mesmo tempo que ela percebe, na porta da vizinha de meu consultório, que o nome mudou. Ela comenta: “Não é mais a mesma, C. B. (nome da antiga ocupante, que foi embora antes do verão) não está mais aí?”. Portanto, ela havia lido antes e guardado seu nome sem fazer a ligação que ela faz, desde então, com a existência dessa pessoa. Nora se apresenta não como sujeito dividido do inconsciente, mas como um sujeito duplo. A divisão é entre ela e ela. Ela pode ser pontualmente sujeito de sua enunciação; seu olhar se faz presente, sua voz, autêntica. Ela é também o outro, duplo da linguagem na ecolalia, duplo da imagem na relação com o espelho. O autista “comportado” permanece autista. Temple Gradin (1994), em seu testemunho, dá várias vezes o exemplo daquilo que pode ser o acompanhamento rumo à invenção de uma forma de cura, uma espécie de envelope portátil que permite o laço social. Cito: “pode-se dirigir as fixações para algo construtivo”, ou “os melhores êxitos se veem naqueles que tiveram um amigo devotado, que os ajudou a dirigir suas fixações”. É, ainda assim, mais confortável para se orientar na existência do que “o tumulto sem fim do gozo”, de que fala Kierkegaard a propósito daquele “onde a linguagem não tem asilo”. Um amigo devotado? Por que não um psicanalista? Tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira Revisão: Elizabeth da Rocha Miranda
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referências bibliográficas L’AUTISME. Bulletin 10 do grupo petite enfance, janeiro de 1997. BALBO, G e BERGÈS, J. Pyschose, autisme et défaillance cognitive chez l’enfant. Paris: Ères, 2001. GRADIN, T.. Ma vie d’autiste. Paris: Poches, Odile Jacob, 1994. LACAN, J. (1973). Nota italiana. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 311-315. __________. (1975). Conferência de Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana. n. 23, p. 6-16, dezembro de 1998. MALEVAL, J. C. La construction autistique d’un Autre de suppléance, 1999. NOTHOMB, A. (2000). Metafísica dos tubos. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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Autismo e Linguagem Patrícia Oliveira Este artigo irá abordar um tema que tem estado em voga nos últimos tempos: o Autismo. Tem aparecido muito em diversos meios de comunicação, como revistas, redes sociais e novelas; além de outros contextos, como fóruns e simpósios de profissionais da saúde que têm contribuição na terapêutica desta síndrome. Na primeira parte deste trabalho será feito um breve apanhado sobre a história da psiquiatria infantil e do surgimento do termo “Autismo”, bem como as últimas modificações que sofreu em relação à sua nomenclatura e forma de ser diagnosticada. O próximo tópico irá descrever um caso clínico, abordando suas particularidades e explorando cientificamente suas principais características, e conciliará assim teoria e prática. Por último, será feita uma síntese a respeito do apanhado teórico realizado, somado ao caso em questão.
Breve história da psiquiatria infantil e do autismo Pode-se afirmar que a psiquiatria infantil, com métodos e conceitos próprios, surgiu muito tardiamente. Autores como Kanner, Ajuriaguerra e Bercherie afirmam que ela surgiu de fato na década de 30. Segundo Oscar Cirino (2001), a clínica psiquiátrica da criança constituiu-se após o advento da psicanálise, enquanto a do adulto é estritamente pré-psicanalítica. Neste campo podemos citar influências de diversos autores psicanalíticos, como Melanie Klein, Anna Freud, René Spitz, Margareth Mahler, Donnald Winnicott, entre outros. Para Ajuriaguerra (apud CIRINO, 2001), a clínica psiquiátrica infantil, mais que a do adulto, formou-se empiricamente a partir da prática e não de uma elaboração teórica. A reflexão acerca desta psiquiatria surgiu secundariamente, levando os psiquiatras infantis a utilizarem fontes teóricas diversas, que vão desde as teorias genéticas, etológicas, sistêmicas e da comunicação, perpassando a psicologia da aprendizagem e a psicanálise até os novos conhecimentos neurofisiológicos, formando um “mosaico conceitual”. Assim, este ramo da psiquiatria, além de ter que considerar os aspectos genéticos, somáticos e neurológicos de um ser biologicamente imaturo, também não pode desconhecer os fenômenos psíquicos, assim como os aspectos culturais e sociais que permeiam a criança (CIRINO, 2001). Segundo o sociólogo francês Jacques Donzelot, o nascimento da psiquiatria infantil não está inicialmente ligado à descoberta de uma patologia mental es-
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pecificamente infantil, mas à necessidade da psiquiatria de desenvolver uma intervenção para uma prática que não se limita a tratar dos reclusos, mas presidir à inclusão social; sendo o resultado de uma convergência entre os “apetites profiláticos” dos psiquiatras e as exigências disciplinares dos aparelhos sociais (CIRINO, 2001). Bercherie, após estudos de textos de Pinel, Esquirol, Kanner, Gesell, entre outros, delimitou três grandes períodos na história da clínica psiquiátrica infantil. No primeiro período, referente aos setenta e cinco anos iniciais do século XIX, consagra-se à discussão do termo “retardamento mental”, a partir da observação de adultos, estabelecido por Esquirol, sob o termo “idiotia”. Abre-se caminho para a criação de instituições especializadas para estas crianças, que foram defendidas por educadores que viam um prognóstico positivo (CIRINO, 2001). O segundo período, de 1880 ao primeiro terço do século XX, caracteriza-se pelas tentativas dos psiquiatras de encontrar na criança as síndromes mentais encontradas nos adultos. Neste caso as crianças são apenas um objeto de curiosidade desses médicos, sem constituir ainda um campo autônomo de prática e investigação. Assim, concebia-se que o adulto é o fim e o sentido último do desenvolvimento da criança (CIRINO, 2001). Na última fase, que data de 1930 até os dias de hoje, a infância é concebida como tendo ordem própria de existência e racionalidade. Desta vez a concepção muda, pois a criança é que passa a esclarecer o devir do adulto. Além disso, surge grande influência das ideias psicanalíticas sobre a clínica psicopatológica infantil, ampliando-a e estruturando-a. Neste período houve também o destaque, além das doenças psicossomáticas, dos distúrbios de comportamento e perturbação do desenvolvimento das funções elementares, como motricidade, fala, sono etc. (CIRINO, 2001). Justamente nesta fase (1943) Leo Kanner descreveu o quadro que o destacaria mundialmente: o autismo infantil precoce. Tal quadro se difere da esquizofrenia infantil por existir um isolamento extremo do indivíduo, um desapego do ambiente já no primeiro ano de vida. O autor então passa a considerar o autismo não apenas como um sintoma da esquizofrenia, mas como uma síndrome autônoma. E para Kanner (apud CIRINO, 2001) o que principalmente diferenciava o conceito de autismo da esquizofrenia é que, no segundo caso, antes de surgirem os primeiros sintomas, houve pelo menos dois anos de desenvolvimento normal, fato que não era observado nas crianças autistas, que desde os primeiros meses expressavam estar alheias à realidade, não reagindo a nada proveniente do mundo exterior. O conceito de Autismo Infantil (AI) modificou-se muito desde sua descrição inicial, deixando de ser uma doença claramente definida e com causas parentais,
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para ser incluso em um grupo com uma série de condições que possuem várias similaridades, e que passaram a ser denominadas como Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD). O conceito do AI mudou não somente em suas possíveis causas – pois posteriormente também se admitiu a influência do biológico –, mas também no que se refere à sua própria conceituação (SCHWARTZMAN e CERES, 2011). Segundo a décima edição da Classificação Internacional de Doenças – CID 10, fazem parte dos TGDs, além do Autismo Infantil, o Autismo Atípico, a Síndrome de Rett, Outros Transtornos Desintegrativos da Infância, Transtorno de Hiperatividade associado a Retardo Mental e Movimentos Estereotipados, a Síndorme de Asperger, Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento e o Transtorno Global do Desenvolvimento Não Especificado. No Brasil, o diagnóstico do autismo oficial é organizado pela CID 10, que o conceitua como: “Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por: a) um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos; e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo, fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade (autoagressividade). Inclui: autismo infantil, psicose infantil, Síndrome de Kanner e transtorno autístico. Já segundo a quarta edição revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV, os TGDs englobam o Transtorno Autista, o Transtorno de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infância, o Transtorno de Asperger e o Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação. O DSM-IV postula que para realizar o diagnóstico o indivíduo deve apresentar atrasos ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade: interação social; linguagem para fins de comunicação social ou jogos imaginativos ou simbólicos. De acordo com essa classificação, deve-se preencher um número mínimo de itens para cada grupo de comportamentos descritos. Entretanto, em maio deste ano foi lançada sua nova edição, surgindo assim o chamado DSM-V, o qual inclui algumas mudanças significativas para os critérios diagnósticos para o autismo. Desta forma agruparam-se os TGDs do DSM-IV, menos o Transtorno de Rett, em uma única nomenclatura: Transtorno do Espectro do Autismo, existindo assim uma única denominação. O Transtorno de Rett tornou-se uma entidade própria, desvinculando-se dos espectros do autismo. No novo DSM haverá apenas duas áreas principais para avaliação do diagnósti-
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co: 1) déficits sociais e de comunicação; e 2) comportamentos repetitivos e restritivos. Para ser diagnosticado com TEA, o indivíduo deve ter exibido sintomas que comecem na infância precoce, e esses sintomas devem comprometer as capacidades funcionais do indivíduo em seu cotidiano. Apesar de a definição de autismo ter mudado, as características principais da doença permaneceram as mesmas. Os novos critérios DSM-V podem refletir melhor que o autismo é um espectro em vez de um grupo de doenças distintas, uma vez que pessoas com vários níveis de autismo apresentam muitas características em comum, mas variam no grau que exibem seus comportamentos característicos.
Estudo Clínico: Caso G O referido caso trata-se de um garoto de sete anos de idade (à época do atendimento), ao qual irei me referir como G. Atendi G por quase um semestre em 2010, período em que atuei como psicóloga clínica na instituição que ele frequentava. Sua hipótese diagnóstica era Síndrome de Asperger. É fruto do segundo casamento de sua mãe e de seu pai, e cada um deles tem dois filhos bem mais velhos que G. Em seus primeiros meses de desenvolvimento seus pais puderam observar algumas diferenças no filho em relação aos demais bebês. Aos seis meses não fazia contato visual e quase não chorava. Quando começou a falar, sempre era repetitivo. Com cerca de onze meses perceberam que G não tinha interesse em brincar com outras crianças, não se misturava com seus semelhantes e não fazia amizades. Este tipo de comportamento ainda persiste, já que ainda não tem companheiros da sua idade, não faz amigos facilmente e prefere estar entre adultos. Aos dois anos e dois meses começou a decorar as capitais do Brasil e do mundo, e o fez em três dias, incentivado pelo pai. Este fato levou seus pais a acreditarem que seu filho era superdotado, e por causa disso G frequentou durante três meses o Núcleo de Apoio ao Superdotado (NAS). Apesar de o menino apresentar excelente memória, não consegue ler nem escrever, apenas reconhece as letras. Também não consegue desenhar, faz apenas rabiscos. Quando lhe apresentam uma atividade para pintar, não é capaz de preencher dentro da figura, pois pinta descoordenadamente, ultrapassando os limites do desenho. Não tem noção do que é “dentro” e “fora”. São características da Síndrome de Asperger a capacidade de memorizar grande quantidade de informações e interesses específicos e restritos. Apresentam comprometimentos de interação que envolvem a reciprocidade social, cujas con-
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sequências são inadequações na forma de organização do discurso, verborreia e inabilidades funcionais em lidar com as variações de interesse do interlocutor (PERISSINOTO in SCHWARTZMAN e CERES, 2011). Observou-se que ele não se interessa por brinquedos próprios de sua faixa etária, e assim prefere brincar com mangueiras, cintos, barbantes; e atualmente a mãe disse que ele gosta de brincar com canudos, os quais não podem faltar em casa. Frances Tustin (apud BARROS in SCHWARTZMAN e CERES, 2011) enfatizou a função desempenhada pelos ditos “objetos autísticos”. Segundo ele, são objetos duros presos à mão ou produtos corporais endurecidos, mantidos dentro de um orifício do corpo, com a função de “tampar” a sensação de que parte do corpo foi perdida, especialmente a boca, “foi embora” com o “botão” do seio materno. Acredito que essa necessidade de “tampar” explique seu prazer oral de beber muita água e inserir objetos em sua boca. É o gozo do órgão, como bem Freud (1914/1996) explicou em seu texto Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. A mãe também relatou que o filho não gosta de assistir à televisão, porque não se interessa pelas imagens da TV, o que é decorrente de seu desinteresse pela sua autoimagem. O que lhe prende a atenção são os sons que ela emite, e nesse contexto podemos dizer que principalmente as palavras, e por isso permanece sentado ao lado da televisão. Creio que isto explique sua dificuldade em nomear e reconhecer objetos simples, o que para sua idade seria fácil, por exemplo animais domésticos de brinquedo. Em síntese, pode-se dizer que a linguagem não opera porque o simbólico não opera. Percebo que da mesma forma que o paciente não gosta de ver as imagens da TV, também não gosta de fazer contato visual direto com as pessoas. Quando olha é com a cabeça baixa e muito rapidamente. Tem sido demonstrado que indivíduos com TEA apresentam prejuízos na capacidade de reconhecer afeto e expressões emocionais faciais. Como não consegue uniformizar seu corpo, vê-lo como uma unidade, o que bem Lacan (1955-56/1985) definiu como o “Estádio do Espelho”, o olhar do outro pode furá-lo. Observei que o paciente não trocava as letras e falava corretamente; entretanto, apresentava ecolalia tardia e imediata, fala rimada e costumava falar sozinho. Pessoas com TEA que apresentam habilidades verbais podem expressar comportamentos anormais, como ecolalia tardia ou imediata, inversão pronominal, neologismos, resposta pobre à linguagem etc. Além disso, podem se utilizar de padrões incomuns de entonação (fala cantada ou declamação), de ritmo (falar muito rápido, por exemplo) ou de fluência atípica (SAULNIER L L in SCHWARTZMAN e CERES, 2011). Sua fala era pura cópia do que os outros falavam. Também gostava de falar
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os substantivos e adjetivos ou no diminutivo ou no aumentativo, de modo que rimem um com o outro. Ex.: “bebezinho lindinho”, ou “anjão bonitão”. Algumas profissionais da instituição e a mãe me disseram que a fala do paciente, no diminutivo, é reforçada pelo pai, que gosta de chamá-lo de “bebezinho lindinho”, “marronzinho”. Pode-se dizer que é a palavra, não em sua vertente de significação, e sim de sonoridade. É o gozo que ele tem com o som das palavras, independentemente do sentido. A mãe disse que o fato de o paciente gostar das palavras não se relacionava somente às falas dos pais, porque ele ouvia uma palavra e logo em seguida a repetia no diminutivo. Talvez eles gostassem de falar assim com o filho, e ele fixou-se nesta posição de “inho”. O pai tem mais paciência que ela em relação a esta repetição de palavras desconexas. Percebia que ele tinha prazer em rimar as palavras, ficando extasiado, sempre dando risadas quando as falava. Quando estávamos montando peças de encaixe, ele disse que ia fazer uma borboleta/violeta/roseta, e assim continuou nesse jogo de rimar palavras, brincando com suas sonoridades. Notei que o importante para ele não era estabelecer o sentido, mas fazer rimas, brincar com os “significantes”. Para ele, o significante tem pura função de som, desprovido de seu sentido. Sua ótima memória colaborava para que relembrasse algumas palavras e fizesse novas rimas. Em uma sessão usei a palavra “trenzinho”, que ele usou como elemento mediador de nossa brincadeira de faz de conta, a qual deu continuidade por pouco tempo. Estimulei-o fazendo algumas perguntas, como: “para onde iam o papai e a mamãe naquele trenzinho?”, “para onde já viajou?”, e com poucas palavras as respondia. Até o ponto em que disse sua última resposta e falou um substantivo sem contexto com sua fala, finalizando naquele momento a brincadeira. Em outro momento repetiu-se o “desencontro” em nossa comunicação. Quando falava algo para ele, o paciente dizia: “vou dar isto para o gatinho”. Na tentativa de prolongar a brincadeira eu disse que iríamos procurar o gatinho, mas ele não deu continuidade a essa ideia e ficou quieto, como se aquele prazer da fala acabasse por ali mesmo. O fato de querer dar uma estrutura e sentido à sua fala foi justamente o seu desprazer, como se eu acabasse com a sua brincadeira no ato. Novamente G deixa muito evidente que raramente está disposto a atender à demanda do outro, pois quando respondia de maneira “adequada” às minhas perguntas não ficava excitado ou dava gargalhadas da mesma forma como quando soltava suas palavras e frases fragmentadas. Seu jogo preferido era brincar com as palavras, com o som resultante delas, independentemente da compreensão de quem as ouvia. Além disso, pesquisas e resultados clínicos evidenciam que crianças e adoles-
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centes com TEA apresentariam inabilidades de exploração do ambiente, de objetos, sons e pessoas, o que geraria prejuízos em seu desempenho em jogos funcionais e simbólicos, fato que também pode explicar seu desinteresse no uso da imaginação para as brincadeiras de “faz de conta”. Indivíduos com TEA podem abordar temas inusitados à conversação sem informação prévia ou contexto adequado; iniciar monólogos inesperados ou questionar sobre temas extremamente específicos, sem se importarem com um diálogo de fato, ainda que seu interlocutor tente mudar o tema da conversa. Em seu texto O Inconsciente, Freud (1915/1996) aborda as características da fala do esquizofrênico, as quais, segundo ele, passam por inúmeras modificações. Suas frases são construídas de maneira desorganizada, tornando-as incompreensíveis para nós, a ponto de suas observações parecerem disparatadas. Ainda segundo Freud, estes tipos de paciente devotam especial cuidado à sua maneira de se expressar, que se torna “afetada” e “preciosa”. Também no texto supracitado, Freud explicou que na esquizofrenia as palavras estão sujeitas a um processo igual ao que interpreta as imagens oníricas dos pensamentos oníricos latentes (processo psíquico primário). Ou seja, estas passam por uma condensação, e por meio de deslocamento transferem integralmente suas catexias de umas para as outras. Assim, uma única palavra, se for especialmente adequada devido a suas numerosas conexões, assume a representação de todo um encadeamento de pensamento. No caso de G, poderia explicar suas alterações na linguagem? Uma fala que é marcada por fixações em determinadas palavras e por não adotar novos significantes adequados à sua comunicação, além do seu desinteresse evidente em não responder à demanda do outro. Qual seria, então, a relação entre a linguagem do esquizofrênico e a do autista? A partir disso, dessa relação com a linguagem, poderíamos fazer um diagnóstico diferencial diferente que aqueles da CID e DSMs?
Conclusão Meu interesse em escrever este artigo derivou-se das lacunas que os profissionais enfrentam diariamente para se relacionarem com estes tipos de paciente. Este “furo” em sua linguagem me causou muita curiosidade e inquietude, me impulsionando a descobrir formas de compreender seu modo tão particular de sentir e viver a sua realidade. E, nesse sentido, posso afirmar que é principalmente o contato com o paciente que nos ensina a tratá-lo, com suas especificidades, mostrando também os limites nesta relação terapêutica. Descobrimos que nosso “desejo de curar” nem sempre estará em sintonia com a demanda de quem está do
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outro lado, fazendo-nos lidar com nossas idealizações e frustrações. Acredito que a “clínica dos autistas”, apesar das várias descobertas, ainda está em desenvolvimento, com vários enigmas a se desvendar. E este trabalho, creio, é uma singela tentativa de contribuir com esses desvelamentos e com novos questionamentos.
referências bibliográficas CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com Crianças – Desenvolvimento ou Estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. CRITÉRIOS PARA O AUTISMO, NO DSM-V. Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/grupo-asperger-brasil/crit%C3%A9rios-para-o-autismo-no-dsm-v/443192465774816>. Acesso em: 03 de agosto de 2013. FREUD, S. (1914). Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. Obras Psicológicas Completas. Vol. XIV. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996. __________. (1915). O Inconsciente. Obras Psicológicas Completas. Vol. XIV. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996. LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985. NOVOS CRITÉRIOS PARA O DIAGNÓSTICO DE TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO. Disponível em: <http://aspergeronline.com.br/ novos-criterios-para-diagnostico-de-transtorno-do-espectro-do-autismo/>. Acesso em: 03 de agosto de 2013. SCHWARTZMAN, J. S. e CERES, A. A. Transtornos do Espectro do Autismo – TEA. São Paulo: Memnon, 2011.
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Os autistas escrevem Pascale Macary-Garipuy Marie-Jean Sauret É bem conhecido em nosso campo que o autismo se revolta diante da alienação à linguagem, em que, no entanto, e como qualquer ser humano, ele está tomado. Recusar-se à linguagem, por um lado – e veremos como –, implica que a simbolização da perda causada pela cessão de vivente, inerente à marcação desta mesma linguagem, torna-se problemática. Vemos emergir aí, em seguida, um paradoxo próprio ao autismo: tendo já entrado no que é comum daqueles que falam, ele não se engaja sobre aquilo que liga essa humanidade, e permanece nas bordas do simbólico, o que é fonte daquilo que podemos clinicamente localizar como sendo a angústia, que constrange massiva e frequentemente esses sujeitos. A organização do mundo e do gozo é a mínima e só represa um pouco o caos no qual os sujeitos autistas estão tomados quando a intrusão do real vem à tona. As defesas contra este último são, com efeito, precárias (rituais, objetos autísticos diversos, estereotipias), e, na falta de o real ser apreendido pelo significante, a angústia está pronta para surgir. Ela advém de um gozo do corpo real, lugar de uma vida pura e assustadora (que tem a ver com a Coisa), e da injunção de um Outro suposto gozador, que está sempre a ponto de demandar ou de proibir a criança: toda manifestação do desejo do Outro é vivida como injuntiva e mortífera. O vel da alienação [articulado por Lacan (1964/1988, p. 233) em um conciso “a bolsa ou a vida!”, no Seminário 11], no autismo, isto não acontece ou não comparece, o que faz com que o sujeito permaneça na borda do sentido – ele não é representado no Outro. É, portanto, o tempo da reunião sujeito-Outro – no qual o primeiro perde uma parte de seu ser (de gozo) para desposar o sentido, o discurso que sustenta os corpos dispersos em um laço social – que faz falta no autismo ou, antes, que é apenas tocado: o sujeito permanece na sua fronteira. Quando os autistas fazem uso da linguagem – já que muitos deles falam e alguns escrevem, na via aberta por Temple Grandin (1997) nos Estados Unidos –, eles têm dificuldade em ligar imaginário e simbólico, deixando por isso o real desatado, o que explica seu caos, pronto a propagar-se sobre o sujeito. O que implica que a frase “a palavra é o assassinato da coisa” não seja um adágio do autismo, pois os sujeitos não se servem da linguagem para distanciar o real organizando-o (donde a ritualização extrema desses sujeitos que recorrem à imutabilidade de seu mundo, como ressaltou Kanner). São as especificidades dessa parada “sobre o limiar da linguagem” que põem
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hoje em dia os psicanalistas para trabalhar. Nosso texto situa-se nesse movimento, e ele sustenta que os autistas escrevem sem cessar, mas que essa escrita é como que “entravada”, à imagem de um disco que gira sempre sobre a mesma frase musical.
1. Errâncias Fernand Deligny (2008) registrou o fato de que as crianças que pensávamos estar divagando sem regra nos espaços das instituições efetuavam, na verdade, “linhas de errância”: “Essa linha, da qual se trata de procurar a escrita, é de errância. Ela nos conduz na pesquisa dessa ‘outra coisa’, objeto elementar dessa solicitação [quémande] manifesta que emana do menor gesto de uma criança, qualquer que seja ele, e que exaspera vindo de uma criança inadaptada”. Fernand Deligny percebeu que se tratava igualmente de linhas de existência, a existência do autista reduzindo-se a seus percursos, que não incluem somente o deslocamento geográfico, mas também o arco desenhado pelos braços, os movimentos do corpo (dentre os quais as estereotipias motoras), as modulações do grito, os restos de palavras ou de frases, inclusive ecolálicas, espontâneas ou repetitivas; em suma, tudo o que pode precisamente constituir a existência. Essa existência está se escrevendo, mas essa escrita só é visível (na falta de ser legível) para quem a procura. A citação de Deligny (Ibid.) deixa crer que, segundo ele, o educador teria que adivinhar o objeto que o autista “solicita” [quémande] e ao qual ele nunca chega, já que ele reitera sem parar suas modalidades de existência. Mas, na verdade, Fernand Deligny insurge-se contra qualquer tentativa de elucidação, de interpretação – psicanalítica, inclusive – que coloque palavras (conceitos, sentidos) ali onde o autista se cala. Como compreender, contudo, e apesar de Deligny, essas “linhas de errâncias”? O autista se cala como os astros – “silet”, e não “tacet”1(NT) – percorrendo um orbe que, por não ser tão geométrico quanto o dos planetas ou das estrelas, ainda assim não o faz voltar sempre ao mesmo lugar: essa revolução confirma o caráter real da “existência-escrita” do autista. Se a geografia é imaginária, a revolução traça, “escreve” um orbe real.
1(NT) Termo latino utilizado na música ocidental para indicar a um instrumentista que ele deve permanecer em silêncio durante toda a duração do movimento musical, ou durante um fragmento longo.
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O comentário de Lacan (1953-54/1986) a respeito do pequeno Dick, de Melanie Klein, é mais radical do que o de Fernand Deligny no que diz respeito à pretensa “solicitação manifesta”: O apelo assume seu valor no interior do sistema já adquirido da linguagem. Ora, trata-se aí do fato de que essa criança não emite nenhum apelo. O sistema por meio do qual o sujeito vem se situar na linguagem é interrompido, no nível da palavra. A linguagem e a palavra não são a mesma coisa. Essa criança é, até um certo nível, mestre da linguagem, mas ela não fala. É um sujeito que está ali e que, literalmente, não responde. A palavra não chegou até ele. A linguagem não envolveu o seu sistema imaginário, cujo registro é excessivamente curto – valorização dos trens, dos botões das portas, do lugar escuro no armário. Suas faculdades, não de comunicação, mas de expressão, estão limitadas a isso. Para ele, o real e o imaginário são equivalentes (p. 102). Guardemos essa equivalência do real e do imaginário, que é um ponto crucial, em nossa opinião, no autismo. Sua aparente recusa (de todas as palavras) do Outro nos leva a postular, na esteira de Henri Rey-Flaud (2008), que há uma espécie de desmentido do Outro no autismo, que, no entanto, neste caso, começou por fazer levantamentos de percursos autísticos, desenhando mapas, antes que Deligny (op. cit.) renunciasse a isso. (As errâncias de uma criança eram reportadas sobre o plano do domínio em que estava situada a instituição dirigida por Deligny.) Sem dúvida, a razão deste abandono, se mantem, pelo fato, de que os mapas mudavam a natureza das errâncias: eles supunham uma intervenção muito pesada do Outro sobre a existência dos autistas. O traçado das errâncias faz finalmente aparecer a forma pela qual um sujeito cifra sua existência, mesmo se essa cifra permanece enigmática. Essas errâncias, portanto, são para serem decifradas – por nós – e não para serem lidas.
2. Cifração Não seria deste ponto de vista, o processo de cifração análogo ao que Freud (1900/2005) designa como processo primário, segundo o qual funcionaria o aparelho psíquico (o cifrador)? De um ponto de vista econômico (a energética freudiana criticada por Lacan), este modo de funcionamento se caracterizaria por um livre escoamento da energia e do sentido, de representação em representação (deslocamento), ou por “concentração” de representações (condensação). No caso
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de nosso sujeito autista, constataríamos esse fluxo de energia no movimento do corpo no espaço, do qual se poderia registrar o traçado (deslocamentos) marcando as paradas (os “pontos-notáveis”, escreve Deligny [op. cit.]: condensação) – mas, neste caso, com a exclusão do sentido (a palavra não “envolveu” o imaginário, enunciava Lacan [1953-54/1986, p. 102]). Ficaríamos aí no litoral do simbólico. Se esta leitura estiver correta, as linhas de errância confirmam seu estatuto de escrita. Convém, então, tomar a escritura no sentido a que Lacan nos conduziu: não somente como suporte da linguagem (que faz da letra, ausente aqui, a instância localizada do significante), não somente borda, mas, “literalmente”, real do simbólico. A dificuldade a que nos obriga o autista é imaginar um simbólico idêntico ao seu real: traço ilegível. Lembremo-nos que quando Lacan representará as diz-mensões R, S e I com uma volta idêntica, ele precisará que cada uma é R, S e I. As errâncias são a escrita de uma existência única, que não toma os significantes do Outro para incorporá-los; neste sentido, elas não são uma “alíngua”, que, por sua vez, é a prova de que o sujeito faz com o Outro. Concretamente, é inevitável que a errância cruze o caminho do Outro, daquele que habita e constitui o simbólico. Esses encontros acontecem eventualmente nas instituições, como o que Vincent teve com uma educadora, que se posicionou em um dos pontos de parada da errância desse sujeito, uma sala na qual havia sido colocada massa de modelar, que era proibida ao adolescente. A proibição testemunha a angústia dos funcionários da instituição, com receio das consequências para a saúde de Vincent caso ele viesse a engolir a massa... Quando a educadora conseguiu estabelecer um contato, ela propôs a ele que viesse parar em um momento em que a sala estivesse livre, e então lhe ofereceu a plasticina, objeto até então proibido. A partir da relação entre as errâncias e a escrita, podemos interpretar a intervenção da educadora. Ao fornecer a massa proibida, ela constitui sua parada habitual nesta sala como um sonho de desejo homólogo ao de Anna Freud, relatado por Freud (1900/2005) numa passagem da Traumdeutung: Minha última criança, que tinha dezenove meses na época, havia vomitado uma manhã, e haviam-na colocado de dieta o dia inteiro. Na noite seguinte a este dia de jejum, a ouvimos gritar toda excitada durante seu sono: ‘Anna F-eud morangos, morango silvestre, omelete, pudim’. À época, ela usava seu nome para exprimir a tomada de posse; o cardápio enumerado englobava praticamente tudo aquilo que só podia aparecer-lhe como uma refeição fortemente desejável; que os morangos aí sejam representados em duas variedades era uma manifestação de hostilidade à polícia sanitária da casa, e tinha seu fundamento na circunstância acessória, sem dúvida notada por ela, de que a governanta colocava sua indispo-
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sição na conta de um consumo excessivo de morangos; ela, portanto, no sonho, tinha a sua revanche contra aquela perícia desagradável. Convém aí lembrar o que Freud revelou deste sonho: ele é a realização fantasiada de um desejo recalcado. Entendamos que o desejo é satisfeito por ser enunciado pelo sonho. É necessário precisar que o sonho de que fala Freud é o sonho que foi contado: aqui é o sonho falado ao dormir. Anna enuncia o desejo de comer morangos e outras sobremesas contra a opinião da governanta; enunciando-o ela está satisfeita, tem sua revanche, como escreve Freud. Para o adolescente convidado na sala da instituição em que havia sido colocada a massa de modelar, não há mais interpretação, no sentido estrito, do que no sonho de Anna. E, no entanto, o desejo se revela precisamente como tendo sido satisfeito. Com efeito, Vincent achata a bola de massinha, mas não a engole – ou melhor: ele não a come. Não há aí, literalmente, uma cessão de gozo, que, sem dúvida, permitiria distinguir, de um lado, o buraco pelo qual ele engolia até então, e a boca que ele adquire depois da cessão. Essa boca imediatamente se divide entre a que é para comer e a que é para falar. Até aí, com efeito, tudo se passa como se a boca fosse apenas um buraco para engolir – sem a erotização oral que exige essa cessão de gozo. Literalmente, a educadora permitiu a ele ter tido um sonho e um desejo inconsciente. A Outra cena, a cena da verdade do sonho, é criada. Mas a porta dessa Outra cena, logo de entrada, está fechada: não me parece que possamos falar de interpretação no sentido psicanalítico. A verdade é o fato do Outro que sabia e ao saber do qual o sujeito consente. A criança joga, então, um pouco de saliva sobre a massa e espalha-a com o dedo: certamente, ele deixa um rastro, efêmero, de sua passagem. Literalmente, mais uma vez, ele aceita ser representado por aquilo que é elevado ao estatuto de S1, pela graça do Outro. Ele “troca” sua existência, que, no entanto, permanece a seu encargo, por um fragmento de ser de linguagem (S1), a preço de uma renúncia ao gozo (não comer aquele pedaço). Ele consente que o significante – as palavras do Outro, o rastro de saliva – lhe confira um pouco de ser ao qual ele ek-siste dali por diante, como escreve Lacan, por não estar ali representado. Imediatamente, ele é, logo em seguida, alienado ao Outro para o qual o S1 o representa: em um sentido, sua vida de sujeito se inaugura sob o regime do acting out. A existência até então idêntica às errâncias, ao lado do Outro, real de uma escrita ilegível, passa a depender do significante: ao agir para o Outro, o desejo (de massa) que o diz Outro, o dissimula, criando-o. O processo é o mesmo que o que se observa com o paciente de Kriss: ele vai ler o cardápio que comporta a menção de um prato de miolo fresco quando não pode mais interrogar a si mesmo sobre
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seu sintoma, com receio de que ele roube a “matéria cinzenta”... Ao afirmar para ele “você não plagia”, seu analista o impede que ele se pergunte qual é a verdade de seu receio de roubar as ideias – quando as ideias, em um sentido que sabemos todos, não pertencem a ninguém, e estão já no Outro, até que as apreendamos por uma fala que as faz “outras”. Esse processo não nos esclareceria sobre aquilo que se passa para todo sujeito? A primeira infância poderia consistir nesse processo primário que Freud (op. cit.) nos indica, que constitui o trabalho do sonho prévio à constituição do inconsciente, a partir do momento em que ele será interpretado. Talvez devêssemos, mesmo, homologar a infância a um longo sono, necessário ao sonho inaugural do qual o sujeito sairá graças a intervenção do Outro ao qual ele consentirá: resposta do real ao significante. Mas aí, não somente o gozo lhe é proibido, porque ele fala, mas ele está preso à dependência da alienação. Se a linguagem permite se questionar sobre aquilo que ele é, a resposta da linguagem não lhe fornece um ser de palavras a não ser lhe dissimulando a substância do real daquilo que ele é – substância gozosa daí por diante. Em um sentido, sua vida aí também se inauguraria sob o regime do acting out.
3. Escrita Notemos que as escritas feitas por sujeitos autistas são efetuadas com o corpo. O próprio corpo ou suas partes se fazem escritas: excrementos retidos, circuitos no espaço, estereotipias; quanto aos objetos autísticos, e até a máquina de Joey – o célebre caso descrito por Bettelheim (1967/1969) –, são quase prolongamentos do corpo. É esse uso do corpo que nos diz que o autista de Kanner tenta sempre colmatar a perda por meio de um corpo feito de sensações (sinestésicas nos balançares, ritmos de batidas, dor do excremento retido, às vezes durante dias etc.). Vemos que essa escrita de sensações – via aquilo que Henri Rey-Flaud (op. cit.), leitor de Freud, chamou, tomando emprestado o termo que designa os primeiros traços psíquicos do inventor da psicanálise, as “marcas” [empreintes] –, se ela simboliza a minima (insuficientemente) a perda, é problemática com relação à linguagem, na medida em que a linguagem é um sistema – ou uma estrutura –, na qual um significante só vale para um outro significante, o significante sendo apenas portador de um valor puramente diferencial. Como pensar essa primeira simbolização da perda que é a do traço de sensação – a marca [empreinte] – primeiro modo de escrita do aparelho psíquico (ou modo de escrita do processo primário)? Em A identificação (Seminário IX, de 1961-1962), Lacan propunha a importân-
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cia do traço unário e a distinção signo/significante, e postulava a existência da letra antes da existência da escrita. Isso está, evidentemente, no âmago da questão que o autismo coloca, porque nele há escrita com recusa extrema, às vezes, da linguagem, ou seja, de se inscrever no campo do Outro, mesmo se isso for impossível: o Outro sempre existe, daí o desmentido já enunciado que sustenta a estratégia do autista. Digamos que a inscrição do sujeito autista no campo do Outro é mínima (apenas o suficiente para que apareça a angústia, marca de um real cavado pelo simbólico), mas não muito viva a inscrição no campo do Outro, para permitir a essa mesma linguagem tratar o gozo. Em A identificação, Lacan (1961-62/inédito) parte do nascimento da escrita. Há, historicamente, uma passagem do signo ao significante no nível do escrito, que é a passagem da semelhança com o objeto (desenho) ao apagamento dessa letra. A escrita começa quando, na própria grafia, o objeto se apaga, quando, portanto, a inscrição se diferencia de sua imagem. Um signo tem por função representar algo para alguém, é preciso que alguém leia o signo: o animal que passa não deixou rastro para alguém, mas o caçador lê o rastro como uma pegada, [...] o alguém está lá – diz Lacan – como suporte do signo. A primeira definição que podemos dar de um alguém, é alguém que está acessível a um signo. É a forma mais elementar, se podemos nos exprimir assim, da subjetividade. Não há objeto algum aqui ainda, há outra coisa, o signo, que representa esta alguma coisa para alguém (LACAN, Ibid., aula de 6 de dezembro de 1961). Não podemos, então, postular que os movimentos do corpo, ou a manipulação dos objetos, valem como signos para o autista, signos não legíveis para ele próprio, que não se integram a nenhum discurso – pois eles são marcas do inconsciente desnudado (do processo primário, como vimos), eles não se articulam? É por isso que o saber deve vir do Outro – contrariamente àquilo que Deligny (op. cit.) pensava a esse respeito – e como vemos em Vincent, o desejo do Outro, se ele não for muito intrusivo, pode dar origem a um S2, transformando ao mesmo tempo o signo em S1, mesmo se o signo não for emitido nesse tempo como endereçado a alguém: ele não se orienta por nenhuma demanda para o Outro ou não responde a nenhuma demanda que emana do Outro. Diferentemente do animal, o autista cria signos que tentam manter o mundo e protegê-lo da perda (talvez sua submersão no mundo, vivida como gozo caótico do vivente), assim como é o caso da linha de errância, do excremento retido, do objeto triturado entre os dedos. É da mesma forma a escrita do inconsciente, a cifração que ele faz do mundo, que se realiza diante de nossos olhos: traços, marcas,
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sulcos das sensações deste corpo que vêm ser retidas sobre um traço que já está ali organizando a mínima o mundo autístico, dando-lhe uma sombra de coerência apoiada na “mesmice”, a imutabilidade de Kanner. Se pudermos pensar, com Rey-Flaud (op. cit.), que a marca é a primeira escrita do inconsciente em qualquer criança, a criança não autista utilizará o que faz inicialmente signos do Outro. São esses fragmentos de corpo tomados junto ao outro que se imprimirão, que farão rastros [traces] de entrada no aparelho psíquico. Para a criança neurótica, a perda do objeto deixa um furo real, que é instantaneamente bordado, por uma apreensão no Outro: o olhar da mãe, sua voz ou seus acalentos. No autismo, Rey-Flaud (op. cit.) ressalta que essa compensação pelo Outro faz falta, deixando a criança sozinha diante do furo da perda, e é um pedaço de corpo-próprio e unicamente isso, e não algo extraído do Outro, que vem colmatar esse furo, a título de substituto do pedaço de corpo perdido (o objeto a): por exemplo, a língua endurecida contra o palato, que é um objeto autístico primário. A língua, aí, perdeu seu estatuto orgânico e também não é mais uma tampa que a criança colocaria contra o palato para dissimular o furo deixado pelo desaparecimento da sensação, mas é um avatar do objeto autístico, prova de que a linguagem já fez seu efeito: a língua imprime no palato, suporte de escrita, uma marca real encarregada de registrar a perda do objeto. O corpo desempenha o papel de carimbo, de sinete (a língua imprime) e de coleta de inscrição (a superfície do palato é impressa pela língua): o corpo, então, preenche a função (o papel) normalmente atribuída ao Outro. Há, portanto, uma escolha do sujeito, a de evitar o Outro e de se retrair sobre seu corpo para enfrentar a perda. Vemos como, na criança neurótica, esse apoio no Outro abre para o Fort/da. Se é do Outro que vem o apaziguamento da aflição fundamental em face da queda do objeto satisfatório (a canção de ninar cantada pela mãe), então as escansões da ausência/presença se cristalizam sobre ela, apta apenas, em um primeiro tempo, a tamponar a perda. Vemos também como se desenha aí a necessidade do objeto transicional, que por um lado vem a ser, por sua vez, uma metáfora do Outro, como ressaltava Winnicott. Mesmo quando o autista faz uso da linguagem, ele faz isso como um sistema de signos, sem enunciação: uma palavra abraçada a uma coisa, uma palavra que tem apenas uma significação, adquirida de uma vez por todas na situação do primeiro encontro: em um certo lugar, com uma certa cor etc., como destaca Kanner. Como também diz Temple Grandin (op. cit.), autista dito Asperger, que, se seguirmos nossa lógica, substitui uma inscrição psíquica pela marca, uma inscrição pela imagem, e que dispõe de um sistema holofraseado: para dar uma significação a uma palavra, ela precisa fazer desfilar todas as suas imagens para chegar à “cadeira”, por exemplo, que representa uma cadeira bem particular: uma
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representação de coisa abraçada a um significante. Não é a oposição significante, própria ao sistema da linguagem, que fará a significação de uma palavra, mas sua conexão direta com a imagem do objeto. Há uma adequação entre a palavra e a coisa, ou ainda, a palavra não matou a coisa. Quando não há coisas dando suporte às palavras, encontrar uma palavra abstrata em um dicionário (“laicidade”, por exemplo) revela-se algo impossível, já que as palavras se remetem umas às outras. A holófrase do sistema significante, o seu congelamento, faz com que não haja enfraquecimento do sujeito, o que implica que, efetivamente, as linhas de errância, as ecolalias etc. sejam inscrições, cifrações diretamente do processo primário. Ao contrário do signo, o significante representa somente a diferença, e não faz apelo ao objeto. Se o significante nasce do signo, então é preciso que a “relação do signo com a coisa seja apagada” (LACAN, 1961-62/inédito, aula de 6 de dezembro de 1961). A letra aparece culturalmente, ressalta Lacan, ainda em A identificação, antes do nascimento do sistema formal da escrita. Lacan vê a letra já presente no entalhe marcado na costela do antílope pré-histórico, nesse traço que tem por função ser apenas símbolo, por resultar apenas de pura diferenciação. Um traço só vale por sua posição em relação aos outros traços, estamos num sistema puramente diferencial: todo entalhe só valendo a partir do primeiro entalhe, este último fazendo função de traço unário. Lacan passa do entalhe ao ideograma. O ideograma está muito próximo da imagem, mas perdeu o caráter de imagem, ao passo que, em sua origem, ele é imagem do objeto. Por exemplo, o hieróglifo do grande bufo na escrita egípcia (Ibid.) – particularmente explícita – perde sua significância, e se torna um simples “m”, e encontramos esse pássaro marcando esse fonema, cada vez que a língua necessita dele, para além daquilo que ele representa: esse hieróglifo se tornou significação, ele não significa nada além de uma letra. Ou ainda é possível ter rastros desse apagamento da referência, e, portanto, da significação, na letra aleph, que é, em sua origem, a cabeça de um boi posicionada de maneira diversa de acordo com as línguas, e significa “touro” ou “boi”. Na letra fenícia ( ), vemos os traços dos chifres do boi à direita; com relação ao nosso (A) latino, ele possui esses mesmos chifres, para baixo. O processo em jogo não é a abstração, como na pintura moderna, destaca Lacan, mas alguns traços são excluídos da figuração. O figurativo é apagado, recalcado, e até mesmo rejeitado. O que resta desse apagamento é o traço unário, que funciona como uma pura distinção, e o traço unário é aquilo que cria diferença, e, nesse sentido, ele realiza um corte. Traços, gravados sobre ossos magdalenianos encontrados na gruta do Mas
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d’Azil, no sul da França, têm a mesma função de pura diferenciação que o entalhe na costela de antílope: diferença pura entre esses traços, que viram significantes em razão do valor oposicional de que são portadores uns com relação aos outros (a partir da primeira caça, as outras se deduzem). A exemplo dos dados, que, por sua vez, também só jogam sobre puras diferenças, os pontos marcados sobre as faces desse osso magdaleniano são apenas puras desduções... de traços (ou de pontos para o dado), sem referência a um objeto qualquer. Os significantes do escrito foram inicialmente produzidos como signos distintivos (função da letra). O escrito, para Lacan (Ibid.), esperava ser fonetizado, como os outros objetos do mundo: é assim, com sua fonação, que ele começou a funcionar como escrita. É quando o desenho da cabeça de boi se tornou aleph, articulada nas palavras em “a”, que a escrita como sistema formal se constituiu. O que, no princípio, estava disjunto – escrita e linguagem – se rejuntou: as palavras encontraram aquilo que vinha figurar um boi para fazer dele um fonema, fonema que, no mesmo movimento, se destacou de qualquer significação. É assim que a escrita como sistema formal nasceu. Ao relatar essa lógica de um escrito original, e, portanto, anterior à constituição do sujeito e participando dela, vemos que os significantes do Outro só existem em um primeiro tempo em sua presença, suportados pela concretude do real: os objetos da pulsão (a voz, o olhar, o seio). É apenas por substituições sucessivas que os signos serão destacados deste Outro tão necessário, e se tornarão, então, significantes que representarão este Outro na ausência. O objeto transicional é a testemunha visível dessa metaforização. Essa transmutação do signo em significante não se faz sem o consentimento ao desejo do Outro. O sujeito deve aceitar se alojar nesse desejo, o que a psicanálise articulou como: ser o falo imaginário do Outro. Sem essa colocação em ato da aceitação do desejo do Outro, o sujeito permanece nas bordas da alienação, ele não dá o passo necessário para entrar no mundo dele e consentir em deixar o seu – tão precário quanto ele for. Dizer que o signo vira significante implica que as trocas de objetos com o Outro sejam feitas sob a égide desse desejo: o que eram, até então, signos da presença do Outro e dissimulavam a perda, viram significância: eles se tornam significantes de seu amor. É aí onde a perda é possível: o amor vale mais que o objeto, é isso que a anoréxica não cessa de dizer, que ela consentiu com esse desejo. O traço unário é chamado aqui de necessidade, pois, como dizia Kanner, o mundo do autista é um mundo indiferenciado, pois – e apenas a contribuição lacaniana permite dizer isso – a marca do significante não efetuou aí seu recorte. O sistema significante não sendo um sistema oposicional, de puras diferenças entre seus elementos, ele só se mantém por um significante primeiro, que vem
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impor uma primeira pura diferença: o traço unário, o primeiro entalhe vindo representar o sujeito como pura singularidade à diferença de qualquer outro. O significante unário não emparelhado, que vem marcar com sua marca [empreinte] de sujeito representando-o na linguagem: representado somente nesta última e aí, pulando de significante em significante, perdido, aliás, entre os dois. É esse processo que não engata o autista; ele não sai de seu mundo de signos compactos, ele não quer ser representado na linguagem. Ele está apenso à massividade de uma existência balizada pela concretude das sensações de um mundo em que balançar o corpo, linhas de errância, objetos triturados tentam manter a angústia distante, mas de forma bem frágil. O autista vive em um mundo de signos que não se transmutam em significantes, deslocamento que faria o sujeito entrar no mundo do Outro, inclusive se ele compreende perfeitamente a linguagem do Outro, como inúmeros dizem casos – sob o impacto do medo ou da surpresa, alguns puderam soltar uma frase inteira, algo que jamais reiteram. O que é notável é a precocidade do processo de entrada no autismo: de imediato, a primeira escrita não se efetua pelo ato de desviar do Outro, via inversão da demanda, mas o corpo-próprio vai ser o leito das cifrações do real. Para além da perspectiva de Bleuler, podemos apreciar o bem fundado desse termo auto(ero)tismo vindo designar esse tipo de relação com a linguagem. Tanto é verdade, que o erotismo – tão importante na cultura grega, na qual ele tomou sua fonte, termo que designa esse laço de desejo de um ao outro – é problemático para esses sujeitos que conhecem um desfraldamento de gozo, mas que se preservam do outro de forma patética, seu mundo sendo habitado pela Coisa, que sua ligação tão particular com a linguagem não consegue apaziguar. Tradução: Cícero Oliveira Revisão: Daniela Sheinckman Chatelard
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Sobre os autores Ana Laura Prates Pacheco Psicologa. Doutora em Psicologia Clinica pela USP. Pos-Doutorado em Psicanalise na UERJ. Psicanalista. Membro da EPFCL – Brasil e do FCL – SP. AME da EPFCL Coordenadora da rede de pesquisa de psicanalise e Infancia. Autora de “Feminilidade e experiencia psicanalitica” ( 2001) e de “ Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (2012). E-mail: analauraprates@terra.com.br
Bernard Nominé Psicanalista. Psiquiatra à Pau. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Ensinante no Colégio Clínico do Sudoeste da França. E-mail: ber.nomine@free.fr
Beatriz Oliveira Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP. E-mail: bioliv@uol.com.br
Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com
Georgina Cerquise Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Teoria e Clinica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro do Colegiado de Formações Clinicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, Professora do curso de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Veiga de Almeida. E-mail: georginacerquise@terra.com.br
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Luis Achilles Rodrigues Furtado Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor de psicopatologia e psicanálise do curso de Psicologia da UFC – Campus de Sobral. Professor do curso de mestrado em Saúde da Família da UFC – Campus de Sobral. Bolsista de produtividade da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL – Brasil. E-mail: luis_achilles@yahoo.com.br / luis_achilles@ufc.br
Maria Vitória Bitencourt AME da Escola de Psicanalise dos Fóruns do Campo Lacaniano; Mestre em Psicanálise da Universidade de Paris VIII; Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano - Rio de Janeiro. E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com
Marie-Jean Sauret Marie-Jean Sauret, psicanalista (APJL), Professor de psicopatologia clínica, Diretor de Pesquisa da LCPI (EA4591), UFR de Psicologia da Universidade de Toulouse 2 o Mirail. E-mail: sauret@univ-tlse2.fr
Martine Menès Psicanalista, diplomada em Psicologia Clínica, DESS de Psicopatologia. Professora do Colégio Clínico de Paris. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. E-mail: m.menes@wanadoo.fr
Pascale Macary-Garipuy Psicanalista (APJL), Professor de Psicopatologia Clínica, diretor de pesquisa no Laboratório de psicopatologia clínica e Intercultural (EA4591), UFR de Psicologia da Universidade de Toulouse o Mirail. E-mail: pascale.macary@wanadoo.fr
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Patricia Oliveira Psicóloga e Especialista em Clínica Infantil e Adolescente. Já atuou como psicóloga clínica em instituições de educação especial. Atualmente atende em seu consultório particular e na saúde pública. E-mail: psi.oliveira@yahoo.com.br
Samantha Abuleac Steinberg Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano - SP. Co-coordenação da Rede de Pesquisa Teoria e Clínica, no Fórum SP. E-mail: sasteinberg09@gmail.com
Sandra Berta Psicanalista, AME da EPFCL, FCL-São Paulo. Especialista em Saúde Mental, Buenos Aires, Argentina. Mestre Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: bertas@uol.com.br
Sheila Abramovitch Psiquiatra, Psicanalista, Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ; Doutora em Medicina pela UERJ; Coordenadora do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, do HUPE/UERJ; Membro do Colegiado de FCCL-Rio; Membro da EPFCL-Brasil. E-mail: sheila_abramo@hotmail.com
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“Como o nome o indica, os autistas escutam a si mesmos. Eles ouvem muitas coisas. Isto desemboca inclusive normalmente na alucinação, que sempre tem um caráter mais ou menos vocal. Nem todos autistas escutam vozes, mas articulam muitas coisas e se trata de ver precisamente onde escutaram o que articulam. Lacan - O Sr. trata autistas? Dr. Cramer - Sim. - Então, o que o Sr. acha dos autistas? - Que precisamente não conseguem ouvir-nos, que permanecem acuados. - Mas isso é algo muito diferente. Eles não conseguem escutar o que o Sr. tem para dizer-lhes enquanto o Sr. se ocupa deles. - Mas também nos custa trabalho escutá-los. Sua linguagem continua sendo algo fechada. - É muito precisamente o que faz com que não os escutemos. O fato de que eles não nos escutam. Mas finalmente há sem dúvida algo para dizer-lhes. - Minha pergunta apontava um pouco mais longe. Por acaso o simbólico – e aqui utilizarei um curto circuito – isso se aprende? Existe algo em nós desde o nascimento que faz com que estejamos preparados para o simbólico, para receber precisamente a mensagem simbólica, para integrá-la? - Tudo o que disse implicava isso. Trata-se de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico, que se congela, poderíamos dizer. Mas o senhor não pode dizer que não fala. Que o senhor tenha dificuldade para escutá-lo, para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de personagens de preferência verbosos”.
O que tem a dizer o psicanalista sobre o autismo?
Jacques Lacan A locução sobre as psicoses da criança (1968)
Caderno de Stylus
“Mas o que me pergunto a quem tiver ouvido a comunicação que questiono é se, sim ou não, uma criança tapa os ouvidos – dizem-nos: para que? para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pós verbal, visto que é do verbo que se protege?”
ISSN 1676-157X
Jacques Lacan Conferencia em Genabra sobre o sintoma (1975)
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Caderno de
stylus O que tem a dizer o psicanalista Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano sobre Escola de Psicanáliseodosautismo? Fóruns do Campo Lacaniano
2 epfcl brasil
2 outubro 2013
ISSN 1676-157X outubro 2013 nO 2