ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, porque o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é antes de tudo fraco. O sentido, isto tampona, mas com a ajuda daquilo que se chama escrita poética vocês podem ter a dimensão do que poderá ser a interpretação analítica. Jaques Lacan Seminário 24 L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977) “A que tem de responder o desejo do psicanalista? A uma necessidade que só podemos teorizar como tendo que produzir o desejo do sujeito como desejo do Outro, ou seja, fazer-se causa desse desejo.”
ISSN 1676-157X
(Outros Escritos, p. 271)
O que responde o psicanalista? Ética e clínica II
A interpretação é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer
s t y l u s
epfcl brasil
27 outubro 2013
ISSN 1676-157X outubro 2013 nO 27
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil
stylus r e v is t a
d e psic a n á lise
O que responde o psicanalista? Ética e clínica II
escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil
Stylus revista de psicanรกlise
Stylus Rio de Janeiro
nยบ27 p.1-156
outubro 2013
© 2013, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br - revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da Afcl/Epfcl- Brasil Conselho Editorial Diretora: Delma F. Gonçalves Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL -São Paulo) Secretária: Andréa Milagres Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador) Tesoureira: Madalena Kfuri Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador) Equipe de Publicação de Stylus Bernard Nominé (EPFCL-França) Ida Freitas (coordenadora) Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Angela Costa Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Conrado Ramos Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo) Geísa Freitas Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília) Lia Carneiro Silveira Edson Saggese (IPUB/UFRJ-Rio de Janeiro) Luis Achilles R. Furtado Eliane Z. Schermann (EPFCL-Rio de Janeiro e Petrópolis) Silvana Pessoa Elisabete Thamer (Doutora U.Paris IV/EPFCL - Paris) Eugênia Correia (Psicanalista-Natal) Indexação Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) Index Psi periódicos (BVS-Psi) Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis) www.bvs.psi.org.br Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo) Henry Krutzen (Psicanalista/Natal) Editoração Eletrônica Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) 113dc Design+Comunicação Luiz Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba) Marie-Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse) Tiragem Nina Araújo Leite (UNICAMP/ 500 exemplares Escola de Psicanálise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro) FICHA CATALOGRÁFICA
STYLUS: revista de psicanálise, n. 27, outubro de 2013
Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195
sumário 07 editorial: Ida Freitas
ensaios
13 Ana Laura Prates Pacheco: O forçamento por onde o psicanalista pode fazer ressoar outra coisa 23 Maria Vitória Bittencourt: Destinos do amor ao saber 29 Vera Pollo: Como responder ao sintoma que é “evento corporal”? 43 Lucília Maria Sousa Romão e Gláucia Nagem de Souza: Deixar cair para poder dizer (e silenciar)
trabalho crítico com conceitos 61 73 79
Gabriel Lombardi: O juízo íntimo do analista Gláucia Nagem de Souza: O passe de Picasso – O passe em 1988 e hoje Samantha A. Steinberg: Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies
direção do tratamento
91 Lenita Pacheco Lemos Duarte: O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico? 105 Marcia de Assis: O termo da transferência e os afetos da conclusão 113 Zilda Machado: Diztrinchar a interpretação 121 Gilda Pitombo Mesquita: O que a psicanálise contemporânea pode nos falar sobre a histeria masculina
resenhas
129 Lia Silveira: Resenha do livro Da fantasia de infância ao infantil na fantasia 135 Marcia de Assis: Resenha do Livro Lacan, o inconsciente reinventado
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contents 07 editorial: Ida Freitas
essays 13
na Laura Prates Pacheco: The forcing where the psychoanalyst can A echo another thing 23 Maria Vitória Bittencourt: Destinies from love to knowledge 29 Vera Pollo: How to respond the symptom which is a “body event”? 43 Lucília Maria Sousa Romão e Gláucia Nagem de Souza: To let it fall to be able to speak (and silence)
critical paper with the concepts 61 73 79
Gabriel Lombardi: The intimate judgement of the analyst Gláucia Nagem de Souza: Picasso’s Pass – The pass in 1988 and today Samantha A. Steinberg: Reflections over the analyst’s function desire, from the topology of the surfaces
the direction of the treatment
91 Lenita Pacheco Lemos Duarte: The parapraxis cipher: what place for the analytic act? 105 Marcia de Assis: The term of transference and the affections of conclusion 113 Zilda Machado: Unravelling the interpretation 121 Gilda Pitombo Mesquita: What contemporary psychoanalysis can tell us about male hysteria
reviews 129 135
ia Silveira: Review of the book From childhood fantasy to the childish in L fantasy Marcia de Assis: Lacan, the unconscious reinvented
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Editorial
Editorial Em Stylus 26, anunciamos que o próximo número, este que agora publicamos, trataria do mesmo tema que foi debatido em julho de 2012 no IIV Encontro Internacional da IF – EPFCL, no Rio de Janeiro, isto é, “O que responde o psicanalista? Ética e clínica”. A necessidade de fazermos duas revistas com o mesmo tema demonstra, por si só, o quanto essa pergunta alcançou o efeito de produção de trabalhos não só para serem levados ao referido Encontro, mas que também se transformaram em escritos, registrando, assim, elaborações importantes acerca das respostas do psicanalista, que expressam o rigor, a atualidade, a vivacidade do discurso analítico, de uma clínica que prima por sua ética, que é a de dar voz ao sujeito, numa sociedade que caminha na contramão do bem-dizer. Abrindo a presente edição, encontramos o ensaio de Ana Laura Prates Pacheco, que para os leitores de Stylus, ou da referida autora, poderão notar que se trata da continuidade de sua investigação apresentada em Stylus 25, sobre A lógica da interpretação, quando teceu consideráveis articulações entre interpretação e poesia. No presente trabalho, Ana Laura Prates Pacheco procura articular as consequências da elaboração do último ensino de Lacan com a experiência analítica, defendendo a ideia de que, para que o psicanalista possa fazer ressoar outra coisa para além do sentido, é preciso que haja certo forçamento em sua resposta, sem o qual haverá o risco de um fechamento na relação analítica, entendimento situado na provocadora expressão de Lacan: “autismo a dois”. Em seguida, Maria Vitória Bittencourt privilegia a face do amor na relação transferencial, porém do amor que se dirige ao saber, com a intenção de interrogar acerca dos destinos do amor no final da análise, buscando suas respostas através dos testemunhos do passe. Ainda em ensaios, Vera Pollo parte da questão que está em seu título “Como responder ao sintoma que é evento corporal?”, para fazer um percurso em três direções, a saber: a interpretação, o sintoma e o corpo. Através desse caminho, a autora tem a oportunidade de explorar as possíveis distinções entre interpretação e construção, valorizar o aspecto da sonoridade na interpretação e no sintoma, assim como fazer uma reflexão clínica acerca dos “novos sintomas” que a leva a tratar da questão do corpo como objeto, ao corpo como evento. Encerrando essa seção, somos contemplados com uma elegante e atual relação da psicanálise com a arte através do ensaio escrito em parceria por Lucília Maria Sousa Romão e Gláucia Nagem de Souza, em que destacam dois termos, o vazio e o silêncio como fontes da fala e da linguagem e, portanto, fundadores do ser falante e do fazer artístico. É através da performance da artista plástica Tatiana
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FREITAS, Ida
Blass, “Metade da fala no chão – piano surdo”, que as autoras desenvolvem uma reflexão sobre as relações do sujeito com a linguagem e com a arte. A seguir, entramos na seção Trabalho crítico com conceitos, com um precioso artigo desenvolvido por Gabriel Lombardi, apresentado em parte tanto no IV Encontro Internacional quanto na Jornada do Fórum São Paulo em 2012, quando, apoiando-se na tripartição da ação do analista proposta por Lacan na Direção do tratamento, ou seja, tática de interpretação, estratégia da transferência e política de seu ato, irá interrogar a expressão “pagar com seu juízo íntimo”, que o conduz a tratar do ato analítico do ponto de vista ético e político. Duas perguntas se destacam e norteiam todo o artigo, são elas: De que modo o analista ascende ao conhecimento ético de suas práxis e suas consequências? E de quais modos incide, no processo analítico, a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento ante distintos tipos clínicos do sintoma? Em O passe de Picasso, título intrigante à primeira vista, Gláucia Nagem de Souza, dialogando com diversos autores, levanta questões fundamentais para o entendimento e o posicionamento crítico com relação ao dispositivo do passe e sua atualidade. Samantha A. Steinberg traz à cena o Seminário Os quatro conceitos da psicanálise, pelo viés da topologia de superfície. A autora faz uma contraposição entre os conceitos de transferência e o operador desejo do analista para traçar um comparativo entre a direção do tratamento de uma análise lacaniana e outras abordagens. Na seção Direção do tratamento, encontramos quatro artigos que apresentam finas pontuações clínicas, evidenciando o que responde o analista através do seu fazer. Iniciando essa seção, encontramos o trabalho de Lenita Pacheco Lemos Duarte, que procura demonstrar, por meio de um recorte clínico, que é pelo ato analítico em conjunção com o desejo do analista que se faz possível alcançar mudanças subjetivas nos analisandos. Na sequencia, Marcia de Assis propõe pensar o final da análise e os afetos aí implicados, pelo eixo da transferência, considerando a sequência analítica – entrada, momento de passe, saída –, voltando sua atenção especialmente para a conclusão do percurso transferencial, compreendido entre o passe clínico e o ponto final da análise. Diztrinchar a interpretação, é a intenção de Zilda Machado, que parte de uma pergunta fundamental: O que é a interpretação para a psicanálise? Para respondê-la, recorre ao conceito de alíngua, buscando demonstrar que, na alíngua particular a cada sujeito, se enodam os significantes que o afetam, determinando seu gozo. Apresenta alguns fragmentos clínicos para demonstrar a função da interpretação como corte no sentido e consequente forçamento de outra escrita.
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Editorial
Encerrando essa seção, Gilda Pitombo Mesquita através de um caso clínico de histeria masculina, investiga como a sexualidade colocada em ato trazida no discurso do analisando, pode expressar sua divisão subjetiva e também seu sintoma como modo de gozar do inconsciente, demonstrando enfim como sexualidade e perversão encontram-se enlaçadas nesse caso. Na ultima parte desta revista, contamos com a colaboração de Lia Silveira e Marcia de Assis que se dedicaram à leitura cuidadosa para trazer para Stylus 27 a resenha de dois livros que muito têm a contribuir com nossa prática, são eles: Da Fantasia de Infância ao Infantil na Fantasia, de Ana Laura Prates Pacheco, resenhado por Lia Silveira, que contempla a clínica com crianças e, através de uma pesquisa consistente e crítica, discute as possíveis especificidades dessa clínica, “tomando como ponto de partida a distinção princeps entre o lugar da criança – enquanto efeito de discurso no social; e o do sujeito do inconsciente, único a ser considerado em qualquer encontro que se diga psicanalítico”; e Lacan, o inconsciente reinventado, de Colette Soler, resenhado por Marcia de Assis, fruto de dez anos de transmissão da psicanalista na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, que interroga, segundo a própria autora, o que fundamentava a trajetória do ensino de Lacan. Concluindo o presente editorial, desejamos a todos uma excelente leitura, esperando que os instigantes artigos aqui publicados venham contribuir com os estudos e pesquisas daqueles que se interessam pela psicanálise e em especial pelo que responde o psicanalista a partir de sua ética e sua clínica. Ida Freitas
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ensaios
O forçamento por onde o psicanalista pode fazer ressoar outra coisa1 Ana Laura Prates Pacheco O título deste trabalho foi extraído de uma frase de Lacan (1976-77/inédito) na aula de 18 de abril de 1977, do Seminário 24 L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre: A interpretação é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, porque o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é antes de tudo fraco. O sentido, isto tampona, mas com a ajuda daquilo que se chama escrita poética vocês podem ter a dimensão do que poderá ser a interpretação analítica. Com essa mesma frase eu havia concluído minha apresentação no Encontro Nacional de Salvador (Brasil, 2011), denominado Por uma prática sem valor: a suficiência e a conveniência poética do psicanalista (PACHECO, 2012).2 Naquele texto, eu havia partido da questão colocada por Lacan no próprio Seminário L’insu: “seria o psicanalista, poeta o suficiente?”; e em meu desenvolvimento, destaquei que a articulação entre interpretação e poesia e, portanto, as leis da linguagem, estão presentes no ensino de Lacan pelo menos desde os anos cinquenta. A pergunta que então me colocava era se a interpretação seria homóloga à estrutura do inconsciente, e encaminhei minhas respostas a partir de três recortes: 1) Um significante irredutível; 2) Um dizer; 3) Um significante novo. Mas, o que haveria em comum entre o cálculo do poeta e o do psicanalista? Eis a questão a partir da qual pretendo avançar hoje com este trabalho. A frase de L’insu, na qual Lacan menciona o forçamento que faz ressoar outra coisa, precede uma observação sobre a relação entre a poesia e a escrita, que absolutamente não é óbvia, já que ele afirma não ser por meio da escrita que a ressonância do corpo se exprime. Lacan estava se referindo especificamente à poesia chinesa, afirmando 1 Uma versão bastante condensada deste trabalho foi apresentada no VII Encontro Internacional da IF-EPFCL “O que responde o analista?”, realizado em julho de 2012, no Rio de Janeiro. 2 Texto apresentado no XII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil (Salvador, 2011), A lógica da interpretação e foi publicado na Revista Stylus n. 25 (nov. 2012).
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que há aí uma particularidade da relação entre escrita e som que poderia ensinar algo ao psicanalista. Ora, essa particularidade também havia sido destacada por Jakobson (1960/1969) no texto Linguística e Poética, ao qual Lacan retorna longamente nessa aula. Essa retomada é bastante instigante, já que no Seminário 20 (LACAN, 1972-73/1992), entretanto, ele havia advertido que seu dizer: o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da Linguística, mas da Linguisteria. Isso porque, se o significante é causa do gozo, é no nível da substância gozante que ele deve ser situado. Em L’insu, contudo, Lacan (op. cit.) não hesita em citar Jakobson, e precisamos entender suas razões. Resgatemos brevemente as ideias defendidas por Jakobson nesse texto. Ele advoga ser a Poética um assunto da Linguística, e não apenas da Crítica literária. O pendor para a MENSAGEM como tal, o enfoque da mensagem por ela própria, eis a função poética da linguagem. Essa função não pode ser estudada de maneira proveitosa, desvinculada dos problemas gerais da linguagem e, por outro lado, o escrutínio da linguagem exige consideração minuciosa da sua função poética. Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora (JAKOBSON, op. cit., p. 128). E ele acrescenta: “A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. As sílabas se convertem em unidades de medida, e o mesmo acontece com as moras e acentos” (Ibid, p. 130). Retomo esse ponto porque um dos argumentos daqueles que opõem Poética à Linguística é o de que a primeira se ocuparia de julgamentos de valor. Eis um aspecto crucial abordado por Lacan (1959-60/1988) desde o Seminário 7 – A Ética, quando aponta para a relação paradoxal do desejo com o belo, assim como para a função do belo no “domínio cifrado do valor da obra de arte” (p. 289). Ora, em L’insu, Lacan (op. cit.) é bastante explícito: Nós não temos nada a dizer de belo. É uma outra ressonância que se trata de fundar sobre o chiste. Um chiste não é belo. Ele não consiste senão de um equívoco, de uma economia. A economia funda o valor. Uma prática sem valor, eis o que se trata para nós de instituir. Primeiro ponto a ser destacado, portanto: a função poética não é tomada nem por Jakobson nem por Lacan por seu valor estético. Poderíamos afirmar que o primeiro a eleva a uma dimensão estrutural da linguagem, enquanto o segundo
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desloca o plano estético para o ético. Mas, lembremos mais uma vez que Lacan também aproximara, no início de seu ensino, a estrutura do inconsciente e a da interpretação à poesia. Como não posso me alongar nos limites deste trabalho, mencionarei apenas duas referências paradigmáticas: A primeira em Função e Campo da fala e da linguagem (LACAN, 1953/1998), cujo subtítulo da parte 3 é exatamente: As ressonâncias da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica. Ali, Lacan já vincula a interpretação à resposta própria do analista, contanto que se faça um retorno ao uso de seus efeitos simbólicos, “evocando-os deliberadamente nas ressonâncias semânticas de suas colocações” (Ibid., p. 295). Para tanto, seria preciso por parte do analista “uma profunda assimilação dos recursos de uma língua e, especificamente, dos que se realizam concretamente em seus textos poéticos” (Ibid., p. 296). A segunda em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (LACAN, 1956/1998), quando apresenta a estrutura metafórica “que indica que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação” (Ibid., p. 510). Aqui, entretanto, Lacan parece estar apontando para a própria estrutura da linguagem, com sua dupla função: a referencial e a poética; demonstrando com Jakobson (op. cit.) que: Qualquer mensagem poética é, virtualmente, como que um discurso citado, com todos os problemas peculiares e intrincados que o ‘discurso dentro do discurso’ oferece ao linguista. A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua. A mensagem de duplo sentido encontra correspondência num remetente cindido, num destinatário cindido e, além disso, numa referência cindida. (p. 150) A função poética, portanto, por sua própria estrutura, permite apontar o intervalo e a divisão subjetiva pela via do duplo sentido. Mas em L’insu podemos constatar que há um giro do plano das ressonâncias semânticas e do efeito de significação para o plano do sentido: “a metáfora e a metonímia não têm peso para a interpretação, ele diz, senão enquanto capazes de exercer a função de outra coisa. E essa outra coisa da qual ela faz função é bem aquilo pelo que se unem estritamente o som e o sentido” (LACAN, 1976-77/inédito). O próprio Jakobson (op. cit.) adverte que seria uma simplificação abusiva tratar a rima meramente do ponto de vista do som, e cita Valéry que descreve a poesia como a hesitação entre o som e o sentido. Ora, não é exatamente o mesmo articular a poesia à significação – ou referência, como às vezes é traduzido (Bedeutung) ou ao sentido (Sinn). Aqui, é preciso tomar
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certos cuidados, já que em vários textos, sobretudo dos anos cinquenta, Lacan utiliza os termos sentido, significação e significado de modo pouco rigoroso. Em pelo menos duas ocasiões, entretanto, antes dos anos setenta, ele parece utilizar o termo Bedeutung de modo forte: a primeira é no texto A significação (Bedeutung) do falo (LACAN, 1958/1998), que dá nome ao texto. A segunda é quando define a fantasia, no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo (LACAN, 1960/1998) como o “índice de uma significação absoluta”. Aliás, a indicação de Frege de que a referência de uma proposição é seu valor de verdade é bastante coerente com a posição sustentada por Lacan quanto à lógica do fantasma. A partir de O Aturdito, entretanto, Lacan (1973/2003) está bastante advertido do fato de que a significação é a margem da linguagem que diz respeito à função referencial. Podemos afirmar que o que está em jogo na noção de referente – enquanto significação – é, nada mais nada menos, que o debate sobre a relação com a realidade, em Frege, e com o Real, em Lacan. Não estou, evidentemente, sugerindo que a interpretação deveria visar ao sentido, mas, ao contrário, apontando que a função poética, por privilegiar uma relação muito específica entre o som e o sentido, é o que possibilita fazer ressoar outra coisa. Digamos que o analista, quando força a dimensão da função poética pela via da interpretação, está usando o sentido antes como meio, do que como fim. Para esclarecer esse ponto, crucial em meu argumento, retomemos a já mencionada interpretação pelo equívoco, que privilegia a homofonia e os jogos com a língua, servindo-se deles quando convém, como adverte Lacan. E se acrescentarmos a essa lista a homonímia e o jogo interlínguas, o texto de Joyce torna-se paradigmático. Cito novamente meu texto Por uma prática sem valor, a respeito do cálculo poético: Frequentemente ouvimos que o texto de Joyce não tem sentido. Talvez pudéssemos corrigir essa afirmação, dizendo que, se nos ativermos apenas à semântica, talvez ele fracasse na significação (Bedeutung). Mas quanto ao sentido, o que encontramos é uma proliferação tão grande que ele perde o valor (lembrem-se do valor de verdade da fantasia), apontando então para o ab-sens. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de modo totalmente artificial e calculado. Não se trata de uma escrita automática. Considero esse ponto importante, porque me parece que Lacan faz disso uma espécie de paradigma metodológico, apresentado no próprio título do Seminário L´insu. (PACHECO, op. cit., p. 47) É preciso, portanto, passar pelo sentido, usá-lo até gastar, desgastá-lo, para que ele perca o valor e seu peso se desloque para o peso do real. Vimos que, desde A Instância da letra, Lacan (op. cit.), com Jakobson (op. cit.), havia definido a função
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poética como promotora da divisão subjetiva, ao apontar para o duplo sentido. Ocorre que em Joyce não há apenas duplo sentido, mas uma fuga de sentido. E é aqui que reencontramos a particularidade da escrita poética chinesa: uma multiplicidade de sentidos, nesse caso propiciado pela própria estrutura da escrita chinesa. Segundo Ryuko (2007), no texto A arte da escrita chinesa e suas implicações pictóricas e poéticas: [...] a escrita poética chinesa contém em si inúmeras leituras possíveis ao oferecerem um significado multiforme. Essa multiplicidade é inevitável na arte da escrita e na poesia chinesas. A maior parte dos caracteres chineses são construídos a partir de outros caracteres, o que produz uma gravidez de sentidos e evocações em cada um. Essa compressão de sentidos numa única palavra, porém, conduz a uma economia vantajosa na expressão poética. O leitor é implicado de modo intenso no poema ao ser-lhe permitida a escolha entre diversas interpretações. (demandadodragao.blogspot.com.br/2007_05_01_archive.html) Além disso, como lembra Lacan (1976-77/inédito), citando François Cheng, há um contraponto tônico, uma modulação que faz com que isso cantarole, criando ainda novos sentidos. Assim, parece-nos que Joyce faz artificialmente uma escrita que se aproxima da escrita chinesa na medida em que cria neologismos “grávidos de sentidos”, articulando de modo íntimo e indissociável a escrita e o som. Como afirma o especialista em Joyce, Declan Kiberd (1922/2012): “era o fato de as palavras terem sido escritas que incomodava Joyce, que se inquietava por tudo que se perdia na transição do éter ao papel (...) suas obras ganham muito ao serem lidas em voz alta” (p. 38). Em outra passagem, ele afirma que em Joyce “as palavras não são apenas moldadas por sentimentos, mas acabam, num estranho tipo de dialética, por moldá-los também”. Joyce está convencido do “caráter estrangeiro de toda língua e da universalidade da frase inacabada” (p. 45). Ora, Joyce, com sua obra, explicita que é da leitura que nasce a escrita. Lacan (1961-62/inédito) foi extremamente sensível a esse ponto, o qual destacara desde o Seminário 9: A Identificação: “é pela inversão dessa relação, e dessa relação de leitura do signo, que pode nascer em seguida a escrita, uma vez que ela pode servir para conotar a fonematização” (10/01/1962). Sim, é apenas quando se pode ler com o privilégio do som e fixá-lo de modo a inscrevê-lo, que um traço qualquer se torna letra. Com efeito, a passagem do signo mnemônico à letra, segundo os estudiosos da escrita, ocorre pelo chamado princípio rebus valendo-se justamente da homofo-
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PACHECO, Ana Laura Prates
nia. Como afirma Fischer (2009): “símbolos gráficos se tornam sinais de escrita só quando o valor fonético (o som) de um símbolo começou a superar seu valor semântico” (p.32) ou seja, quando é cortada a ligação com o referente externo. Ora, lembremos que a função poética caracteriza-se exatamente pela prevalência das ressonâncias em detrimento da função referencial. Podemos concluir, dessa forma, que é a função poética da linguagem que torna possível uma leitura que crie a escrita. Lacan afirma em O Aturdito: “começo pela homofonia, da qual depende a ortografia” (op. cit., p. 493). Passagem de lalíngua à letra, que infelizmente não poderei desenvolver neste texto. A leitura do som operada pelo psicanalista em sua interpretação poética, portanto, é um forçamento, um ato que Lacan nomeia com o neologismo nada inocente pouâte, que une, surpreendentemente, praxis e poiéis. Esse ponto exige um pequeno comentário, o qual retomo de meu texto Por uma prática sem valor: Lacan, que vinha havia um bom tempo definindo a psicanálise como práxis – ou seja, a modalidade de ato na qual, segundo Aristóteles, o agente, a finalidade e a produção são indissociáveis –, nos últimos seminários cria esse neoligismo (pouâte) que articula o ato com o poeta, remetendo então a poiesis (Arte) – cuja característica, para Aristóteles, é justamente a de uma produção (obra) que apresenta um caráter externo em relação ao agente. Esse é um terreno fértil para ser explorado, sobretudo no que diz respeito à relação entre o papel do saber, o tipo de formação e experiências implicadas em cada uma dessas ações, bem como o lugar da intenção e da deliberação em cada uma delas, e ainda como as modalidades lógicas (necessário, possível e contingente) aí comparecem. (PACHECO, op. cit., p. 48) Parece-me, entretanto, que mais uma vez Lacan está aqui operando uma subversão nessa separação aristotélica, a qual, inclusive, é questionada por alguns comentadores.3 É evidente, também, que a poiesis aristotélica não se restringe à poesia e que, por outro lado, Lacan está nesse momento, como já destacamos, lendo Aristóteles com Jakobson. Eis uma questão para ser desenvolvida em outro momento. Retomemos então, o ponto central: o analista, como já destacamos, se serve, portanto, da função poética estrutural como lhe convém, deslocando-a do plano estético para o ético para fazer ressoar outra coisa: a poesia tem efeito de sentido, mas também de furo. Com a práxis da tagarelice, algo da substância gozante pode
3 A esse respeito, consultar o texto de Bernard Besnier (1996).
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O forçamento por onde o psicanalista pode fazer ressoar outra coisa
ressoar. Para concluir, citarei Lacan, sem referência.4 Isso para que tomemos cuidado antes de dividi-lo em dois: A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que ela responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que é dito. É por isso mesmo que, separada de nós, nossa voz nos soa com um som estranho. É próprio da estrutura do Outro constituir um certo vazio, o vazio de sua falta de garantia. A verdade entra no mundo com o significante. Ela se experimenta, reflete-se unicamente por seus ecos no real.
referências bibliográficas BESNIER, B. A distinção entre práxis e poiésis em Aristóteles. Analytica. Vol. 1, n. 3, 1996. FISCHER, S. História da escrita. São Paulo: Unesp, 2009. JAKOBSON, R. (1960). Linguística e poética. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1969, 118p. KIBERD, D. Introdução (1922). In: Ulysses. São Paulo: Penguin Companhia, 2012. LACAN, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In: LACAN, J. Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 238-324. __________. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 496-536. __________. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. __________. (1961-62). O Seminário, livro 9: a identificação. Inédito. __________. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. __________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Trad. de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. 209p. __________. (1973). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 448-497. __________. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, 249p. __________. (1976-77). O Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Inédito. 4 Na apresentação oral do trabalho, a referência não foi mencionada. Trata-se de O Seminário 10 A Angústia (LACAN, 1962-63/2005).
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PACHECO, Ana Laura Prates
__________. (1977-78). O Seminário, livro 25: momento de concluir. Inédito. PACHECO, A. L. P. A lógica da interpretação. Stylus. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, n. 25, pp. 43-51, 2012. RYUKO, O A arte da escrita chinesa e suas implicações pictóricas e poéticas. In: Blog Dragon’s Quest, maio de 2007. Disponível em: <http://demandadodragao.blogspot.com.br/2007_05_01_archive.html>, acesso em 22 de julho de 2013.
resumo
A proposta deste trabalho é a de articular as consequências dos avanços elaborados por Lacan em seu último ensino, para a experiência psicanalítica. Se a correspondência entre a linguagem e o real é da ordem do impossível, se a transmissão integral é impossível, a pergunta que não se cala é qual a resposta ética do psicanalista quando o destino da mensagem passa a ser o ab-sens da relação sexual humana, relação essa que não é natural, mas “tomada pelas palavras”? Essa é a questão clínica e ética essencial: a psicanálise não visa tanto à verdade por trás do que isso quer dizer, mas antes, o fato de “que se diga”. Para além do sentido, o psicanalista faz ressoar outra coisa – afirma Lacan em 1977. Para tanto, é preciso o que ele chama de “forçamento”, que remete ao ato analítico como resposta, sem o qual a psicanálise pode vir a capengar irredutivelmente a um “autismo a dois” (LACAN, 1977). É preciso, assim borrar a diferença entre a verdade e a ficção já que “o que o analisante diz, esperando verificar-se, não é a verdade, é a vari(e) dade do sinthoma”. Mas atenção: essa despretensão da verdade não justifica em absoluto um relativismo da desconstrução, já que as “verdades mentirosas” apontam todas para o real de que o gozo é a castração. Eis a ousadia clínica e ética que a psicanálise oferece: a aposta no bem dizer como resposta do psicanalista diante do impossível de dizer tudo é o que se espera de uma clínica que inclua passe. Lá, onde não há Outro que responda, nem sujeito que corresponda. Lá, onde não há carteiro da verdade há, entretanto algo que a letra/carta carrega: o valor sonoro da função poética, que toca o real, para além do valor semântico da verdade – e que faz ressoar no corpo (encore). Eis as questões que pretendo abordar neste trabalho.
palavras-chave
Psicanálise, interpretação, escrita, poética.
abstract
The proposal of this paper is to articulate the consequences of the advances elaborated by Lacan in his later teaching, for the psychoanalytic experience. If the correspondence between language and the real is from the order of the impossi-
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ble, if the integral transmission seems impossible, the crucial question is: What is the psychoanalyst’s ethical response when the destiny of the message becomes the ab-sens of the human sexual intercourse, which is not natural, but “taken by the words”? This is the clinical question and essential ethics: psychoanalysis does not seek so much the truth behind what it means, but the fact should “reveal itself” beforehand. For beyond the sense, the psychoanalyst echoes something else – claims Lacan in 1977. For this, it is necessary what he calls “forcing”, which refers to the analytical act as response, without which psychoanalysis can limp irreducibly to an “autism of two” (Lacan, 1977). Thus, it is necessary to blur the difference between truth and fiction since “what the patient says, expecting confirmation, is not the truth, but the variety of the symptom”. But, attention: this lack of pretension of the truth does not at all justify a relativism of deconstruction, since the all the “lying truths” point to the real that jouissance is the castration. Here is the clinic and ethical boldness Psychoanalysis offers: the bet on the well saying as the psychoanalyst’s response facing the impossible of saying everything that is expected from a clinic that includes pass. There where there is not the Other to answer, neither a subject that corresponds. There where there is not a postman of the truth there is, however, something that the letter carries: the sound value of the poetic function, which touches the real far beyond the semantic value of the truth – and that it makes it echo in the body (encore). Those are the questions I intend to deal with in this paper.
keywords
Psychoanalysis; interpretation; writing; poetic narrative.
recebido 18/02/13
aprovado 15/03/13
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Destinos do amor ao saber Maria Vitória Bittencourt Este artigo visa abordar o amor de transferência, retomado em uma pergunta que coloquei antes da fundação de nossa Escola, época em que não tínhamos ainda o dispositivo do passe e que discutíamos sua instauração: aquela do destino do amor de transferência no fim da análise e suas consequências para a Escola. Uma resposta havia surgido, a de que esse destino estaria definido pela noção de transferência de trabalho, introduzida por Lacan (1964/2001, p. 236) na fundação da sua Escola: “O ensino da psicanálise só pode se transmitir de um sujeito para o outro pelas vias de uma transferência de trabalho”. Não creio que essa noção possa responder à questão, pois vimos como ela pôde ser usada na sua vertente militante de exaltação, desviando a ideia de Lacan que situa esta transferência precisamente no trabalho do cartel. Noção que pode conduzir à transferência de massa, fazendo consistir um Outro unário. Essa resposta, um tanto simplista a meu ver, me levou à questão do destino do amor ao saber no final de uma análise. Assim, se no começo de uma análise o amor é aquele que se dirige ao saber, no final poderíamos falar de um saber sobre o amor? Um analista teria algo a saber sobre o amor? Essas questões surgiram também na minha experiência com cartéis do passe, onde, apesar de me encontrar com diferentes colegas de trabalho (Cartel efêmero), sempre ficava a questão do amor para o passante. Talvez estivéssemos ainda sob a influência da ideia de Freud sobre o que se espera de um final de análise: poder trabalhar e amar. Proponho, então, desdobrar o conceito de amor em Lacan para retomar reflexões a partir de um testemunho do passe como demonstração a propósito desses destinos. Pergunta que poderia ser formulada com as palavras de uma canção de Prevert: o que resta de nossos amores? Lacan (1981/1982, p. 93) não hesitou em evocar o amor em seu convite de fundar a Causa freudiana: “Essa é a Escola de meus alunos, aqueles que ainda me amam”. Embora essa afirmação se situe em um contexto bem particular, não deixa de evocar o amor como laço social da Escola. Esse uso do amor de transferência, depois do passe, para constituir uma Escola, parece conforme com o que Lacan ensina nos seus seminários? Falar de transferência é falar de amor, sendo a análise uma história de amor inédita, pois constitui o analista como parceiro de uma aventura que opera pela via amorosa. Como diz Lacan (1972-73/1975, p. 77): “Falar de amor, só fazemos isso no discurso analítico”. Sem esquecer que Freud (1915[1914]/1969, p. 218) logo
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BITTENCOURT, Maria Vitória
percebeu que “o estado amoroso” que aparece na análise tem o caráter de um amor “verdadeiro”, cujas características ele considera como “anormais”, que são: não ser razoável, não se preocupar com as consequências, bastante cego na apreciação do ser amado. Lacan, por sua vez, durante todo seu ensino fala do amor introduzindo dimensões diferentes daquelas de Freud. Vou tentar resumir o que poderíamos chamar de “três dimensões do amor em Lacan”. Em seu primeiro seminário, Lacan (1953-54/1975, p. 298) aponta que a transferência existe implicitamente antes de todo início de análise, antes que “o concubinato, que é uma análise, a desencadeie”. Pela primeira vez, evoca então as três paixões fundamentais – amor, ódio e ignorância – situadas na dimensão do ser, sendo cada uma aresta na qual o amor se situa na junção do imaginário com o simbólico; o ódio, junção do imaginário com o real; e a ignorância, a junção do real com o simbólico. Notemos que a junção simbólico com o real real será designada mais tarde como aquela do sintoma. Essa primeira concepção estabelece o amor na sua essência narcísica, amor definido na dimensão imaginária. Mas desde 1954, Lacan, ao associar amor, ódio e ignorância dentro da dimensão transferencial, situa o sujeito analisante como aquele que ignora. Essa junção saber e amor inaugura o que Lacan estabeleceu mais tarde como sujeito suposto saber, pivô de uma análise, e introduz o registro simbólico no amor, “aquele que suponho saber, eu o amo” (LACAN, 197273/1975, p. 64). Nisso Lacan se distingue fundamentalmente de Freud, ao introduzir o amor no saber como efeito de transferência. Como resultado, temos então um paradoxo: o sujeito demanda o saber que supõe ao analista, instalando o amor justamente para não querer saber de nada. Porém, essa dimensão do amor, sempre narcísico, tem essência de tapeação. Daí a indicação de Lacan que comporta uma ética da transferência, em um capítulo do Seminário XI, onde evoca a garantia de que não estamos na impostura: “A operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável e esse ponto em que o sujeito se vê causado como falta por a, e onde vem arrolhar a hiância que constitui a divisão inaugural do sujeito” (LACAN, 1964/1979, p. 255). Ética do desejo do analista. Em um testemunho do passe que escutei, ficou claro como essa distância não foi mantida numa primeira experiência dita analítica. O analisante, como todo analisante, se faz objeto amável e tem como resposta ter sido “eleita” para ocupar um cargo junto ao analista. Exemplo de amor correspondido. Vemos assim como responde o dito-analista à demanda do amor transferencial, resposta que teve como resultado tamponar a falta e uma acentuação do sintoma (não poder falar
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nada). Daí a indicação de Lacan, em sua Proposição: “temos de ver o que habilita o psicanalista a responder a essa situação (da transferência) que percebemos não envolver a sua pessoa” (LACAN, 1967/2001, p. 249). Ética e clínica estão no fundamento dessa proposição – resposta do analista às emboscadas do amor transferencial. Numa segunda análise, vemos como a pertinência de uma interpretação do analista vem quebrar essa alienação, interpretação que faz surgir um saber sobre a que a demanda de amor visava, e animar um desejo lá onde a tapeação do amor, na sua dimensão de miragem narcísica, fazia existir o Outro. O que demonstra a dimensão ética da transferência. Mas Lacan não se satisfez com essa dimensão simbólica do amor e sua impotência para responder aos impasses clínicos encontrados no tratamento do real pelo simbólico, pois nem tudo é linguagem. Com o seminário Mais, ainda, Lacan (1972-73/1975) retoma a questão do amor para extrair sua dimensão ilusória e pensá-lo como tocando o real. Lacan funda assim uma teoria do gozo na sua relação complexa com o amor, que será concebido como suplência à ausência da relação sexual, fazendo dos dois parcerios o Um. “Narcísico em sua essência, ele é impotente, embora recíproco porque ignora seu desejo. Ele ignora que é um desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação entre os dois sexos (deux = d’eux)” (LACAN, 1972-73/1975, p. 12). Essa definição do amor em relação ao real vai ter suas consequências na transferência com a introdução do gozo no significante, um gozo na transferência, gozo do blablablá, gozo esse que se manifesta pelo amor ao significante que se eterniza no amor de transferência. Daí, como cessar de gozar na transferência? Podemos tomar nesse mesmo testemunho de passe, como o manejo da transferência incidiu nesse ponto. Esse momento pode ser situado na designação de passador, um ato do analista que teve como efeito uma virada da análise no sentido de ser “eleita” para se virar sozinha, ou seja, se descolar do que tinha de gozo do sentido (joui-sens). Convite a partilhar algo do bem dizer da causa analítica, ou seja, falar/testemunhar de como se descolou de um significante mestre fixado em seu sintoma: criada muda. 1 A angústia provocada pela designação não afetou sua decisão de aceitar essa aposta, o que denota uma certa coragem que abriu o caminho para o entusiasmo. Esse ato do analista de se recusar a corresponder ao amor permitiu ao sujeito se desfazer de suas condições de amor até então ligadas ao modo de gozo mais íntimo, o gozo do sintoma. Pois se o amor é suplência da relação sexual, o sintoma vem ocupar esse mesmo lugar. No registro do real, não somente o amor se dirige ao saber, mas trata-se de 1 Mudança da posição do gozo do sintoma: em vez de perder o sentido, se descolar da busca do sentido a qualquer preço. Não sem satisfação, que só se atinge no uso de um particular, aquele do seu sintoma.
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um saber investido no gozo, tal como o sintoma. Finalmente, amamos o sintoma do outro, ou somos o sintoma do outro. Existe uma relação entre o parceiro e o sintoma, a ponto de Lacan dizer que o homem encontra na mulher seu sintoma e a mulher encontra no homem sua devastação. Assim, a pergunta do cartel quanto à vida amorosa do passante teve toda sua pertinência no sentido em que interrogou o real do sintoma, pois indica um saber fazer uma conduta com seu parceiro sintoma ou devastação. Vários testemunhos nos indicaram essa mudança na posição do passante: o ser transformado do analista em sua prática e em sua vida amorosa, uma complicação na vida do falasser. Voltamos assim à formula freudiana – poder amar e trabalhar. Christian Desmoulin chamou a atenção para o termo que Freud utiliza quando se refere a trabalhar: trata-se de Leisten que evoca antes uma realização e implica uma dose de criatividade e invenção, e não um trabalho alienado do proletário. Fica a questão do destino do amor ao saber, destino da transferência. Para Lacan não há liquidação, mas resolução da transferência que deixa um resto. Um analista é o produto, o dejeto da operação analítica, encontro entre o amor do saber e o desejo do analista. Não pretendo esgotar essa questão, mas podemos dizer que a decisão do analisante de fazer o passe, de se arriscar a essa aposta de Lacan, é um dos destinos do amor ao saber, fora da transferência. Embora o passe seja uma das modalidades de transferência, o saber está situado do lado do passante, via passador, e o Cartel só tem que verificar se houve transmissão do saber novo inventado pelo passante, desvinculado do amor à verdade. Pois, como diz um poeta brasileiro – “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 2004, p. 67.) Outros destinos podem surgir, como aquele que Pierre Rey (1989) testemunhou no seu livro Une saison chez Lacan. Destino de escritor. Quanto à transferência de trabalho que não deixa de se referir a um amor à Escola, deixemos esse amor onde Lacan o situa – em sua função de remediar um defeito que é sempre de ordem estrutural. E cada um deve inventar sua solução enquanto agente desse destino particular que seu inconsciente determina.
referências bibliográficas BARROS, M. de. Livro sobre nada. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. FREUD, S. (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12, pp. 207-221).
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LACAN, J. (1953-54). Le Seminaire, livre I: Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975. __________. (1964). Acte de fondation. In: LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, pp. 229-241. __________. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. __________. (1967). Proposition du 9 octobre 1967 sur le psycanalyste de l’Ecole. In: LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, pp. 243-259. __________. (1972-73). Le Seminaire, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975. __________. (1981). Lettre du 26 Janvier 1981. Annuaire de l’Ecole de la Cause Freudienne. Paris: ECF, 1982. REY, P. Une saison chez Lacan. Paris: Robert Laffont, 1989.
resumo
A transferência, pivô de uma análise, constitui o analista como parceiro de uma aventura em que é pela via do amor que opera. Como diz Lacan (1972-73/1975, p. 77), “Falar de amor, só fazemos isso no discurso analítico”. Trata-se de questionar como responde o analista a essa demanda de amor transferencial. Embora Freud afirme que se trata de um verdadeiro amor, para Lacan é uma nova forma de amor, dirigido ao saber: “Aquele que suponho saber, eu o amo” (LACAN, 197273/1975, p. 64). Vamos interrogar o destino desse amor no final de uma análise, a partir dos testemunhos do passe que podem nos ensinar a propósito dos destinos do amor ao saber.
palavras-chave
Amor, transferência, final de análise, passe, resposta do analista.
abstract Transfer, pivot of an analysis, takes the analyst as a partner of an adventure which operates through love. As Lacan (1972-73/1975: 77) puts: “Talking about love, we just do this in the psychoanalytical discourse”. It is about questioning the way the psychoanalyst responds to this demand of transferential love. Although Freud affirms that it’s a matter of true love, to Lacan it is a new form of love, addressed to knowledge. “If I suppose I know someone, I love them” (Lacan, 1972-73/1975: 65). Let us interrogate the destiny of such a love at the end on an analysis, departing from the testimonies of the pass which can instruct us about the destiny from love to knowledge.
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BITTENCOURT, Maria Vitória
keywords Love, transfer, end of analysis, pass, analyst’s response.
recebido 06/02/13
aprovado 30/04/13
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Como responder ao sintoma que é “evento corporal”? Vera Pollo A pergunta que levantamos: Como responder ao sintoma que é “evento corporal”? supõe, a nosso ver, três vias de resposta. A primeira delas é o tema central do VII Encontro Internacional da IF-EPFCL: O que responde o psicanalista? – pergunta que procuraremos desenvolver tomando a interpretação como possibilidade de resposta; a segunda via diz respeito ao conceito psicanalítico de sintoma; e a terceira, logicamente implicada na primeira e indissociável da segunda, é o que entendemos por “evento corporal”. Isto significa que não privilegiaremos o corpo em seu estatuto imaginário, nem simbólico, mas, sobretudo, como evento, acontecimento. Abordaremos o corpo em sua função de objeto e sintoma que advém do real, como “o que as pessoas têm da mais real”, a tal ponto que se pode dizê-lo “a nota própria da realidade humana” (LACAN, 1975/1976, p. 41). Três vias por onde buscaremos caminhar, traçando breves percursos de teoria clínica. Tomemos a primeira via: o que responde o analista? Malgrado toda a ênfase que Freud e Lacan sempre deram à necessidade de que o analista saiba calar seu “eu”, de que não se situe como o sujeito da operação que conduz, para que não se apresse em tentar compreender ou curar, e deixe agir o desejo do analista, eles nunca o isentaram de sua tarefa mor: a interpretação. Lacan (1998) é bom lembrar, no artigo de 1958, A direção do tratamento e os princípios do seu poder, listou as três formas como um analista tem de pagar pelo direito, ou melhor, pelo dever que lhe foi atribuído, de conduzir uma experiência de análise, se possível até o fim. Ele paga com seu ser mais íntimo, isto é, com seu desejo, paga com suas palavras e, até mesmo, com sua pessoa, no que ela é tomada de empréstimo na vertente imaginária da transferência. Resumidamente, sua resposta é tripartite e, não por acaso, o vocábulo responsabilidade também deriva do latim respondere. Em Construções em análise, Freud (1937/1976) distinguira a interpretação da construção, definindo a primeira como o que se aplica a um elemento passível de ser isolado na fala analisante – irrupção do inconsciente, diremos, em forma de palavras ou de ato, mas sempre enigmática, pontual e restrita – e deixando à construção a tarefa de reconduzir ao passado um “fragmento de verdade histórica”. Este insiste em imiscuir-se no presente, e Freud o esclareceu nos termos de um evento da história de um sujeito, que só pôde permanecer ativo por ter sofri-
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POLLO, Vera
do uma Entstellung,1 um processo de deformação verbal. Nos termos de Lacan, tratar-se-ia de um meio-dito pelo qual ‘me dito’ uma meia verdade. Em Lacan, encontramos um número tão grande de definições da interpretação, que talvez possamos dizer que há, nele, lado a lado com uma teoria do sujeito, uma teoria da interpretação. Esta se estende desde a interpretação freudianamente entendida como o desvelar de significantes ocultos, latentes na demanda do analisante, até a interpretação que encontra seu modelo no ready made de Duchamp (LACAN, 1974/2002, p. 58). Ainda com Lacan, poderíamos fazê-la corresponder à fórmula mínima: é isso!2 Fórmula na qual também se escuta: “Foi você que o disse, não o fiz dizê-lo”, apontando simultaneamente para o inconsciente intérprete e a palavra que faz ato. Entendemos a interpretação ready-made como aquela que tem valor de criação, inclusive de nominação, embora não se trate de criação ex-nihilo, talvez pudéssemos chamá-la de “re-criação”. Ela resulta exclusivamente de um deslocamento ou, se preferirmos, da inscrição em um lugar Outro, em outro contexto. Trata-se do pinçar de uma palavra, ou menos: um fonema, um som que já estava lá no discurso analisante, porém, ao ser inserido em uma nova série de significantes, modifica retroativamente o significado, e consequentemente o sujeito que o enunciou. Aqui vale lembrar que, enquanto pura diferença de si e dos outros, o sentido de um significante qualquer depende dos que o antecedem e sucedem. Uma interpretação é sempre um efeito a posteriori; Freud não cessou de assinalá-lo em toda a sua obra, ao afirmar, por exemplo, que as lembranças inconscientes são leituras retroativas de traços de percepção. A interpretação depende de um “laço entre a palavra e o gozo”, como observou Lacan em O saber do psicanalista (1971-72/inédito). No trajeto de seu ensino sobre a interpretação, Lacan (1958/1998, p. 648) ressaltou sua “virtude alusiva”, comparando-a ao signo representado pelo dedo erguido do São João de Leonardo. Uma interpretação que leva em conta a transferência e recomenda metaforicamente o desvio do olhar, no sentido de romper com os estreitos limites da moldura fantasmática, é comparável também à resposta de Sócrates a Alcebíades,3 aproximadamente nos seguintes termos: “Não é a mim que você visa, mas a quem está ao meu lado”. No caso, Agáton, o jovem poeta trágico recém-premiado. Em 1964, na lição final de O Seminário, livro 11, encontramos a interpretação que “inverte o efeito da metáfora” (SOLER, 2012). Lacan a define nesse momento 1 “Entstellung” – segundo o Langenscheidts Taschen Worterbucher – “distorção”, “transfiguração”. Para Freud, uma designação genérica para o trabalho dos sonhos que recobre “condensação”, “deslocamento” e demais processos envolvidos nas formações oníricas. 2 Em francês: C’est ça. O ‘ça’, em francês, assim como o ‘isso’, em português, são traduções do vocábulo alemão Es, pronome demonstrativo. 3 Em Platão (2008), O Banquete.
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Como responder ao sintoma que é “evento corporal”?
como “uma significação que não é não importa qual [e que] tem por efeito fazer surgir um significante irredutível [pois] o que está lá [no inconsciente] é destinado a fazer surgir significantes irredutíveis, non sensical, feitos de não-senso” (LACAN 1964/1985, p. 236). Se o significado de um determinado significante só pode vir do lugar que esse mesmo significante ocupa em outro discurso, a centelha criadora só pode jorrar na hiância do “entre dois”, entre dois significantes, como entre dois discursos. “O analista” – observa Lacan (1971-72/inédito) na lição de 4 de maio de 1972 – “não é de modo algum nominalista. Ele não pensa nas representações do seu sujeito, mas tem de intervir no seu discurso, encontrando-lhe um suplemento de significante. É o que se chama interpretação.” E, posto que o gozo da palavra analisante não está ao alcance do analista, este último só pode considerá-lo pelo que de fato é, quer dizer, da ordem do real. Gostaríamos de recordar pelo menos mais uma definição elaborada por Lacan (1973/1993, p. 81), como a que aparece em Televisão, enlaçando a interpretação ao tempo nos seguintes termos: “A interpretação deve ser presta, para satisfazer o interempréstimo”. Mas como entender a proposta do termo neológico entreprêt, que foi traduzido por interempréstimo, perdendo desse modo seu equívoco, na língua francesa, com a palavra interprète, ou seja, intérprete? Diremos que a interpretação não visa certamente satisfazer ao analista, nem mesmo diretamente ao analisante, mas é bom que satisfaça ao inconsciente intérprete, ele próprio produtor de sentido sexual “aos borbotões” (Ibid.). Mencionamos acima a proposta de que o lugar da interpretação seja dito “entre”, vocábulo que em francês, como também em português, representa simultaneamente a preposição equivalente ao lugar “no meio”, e o presente do subjuntivo do verbo entrer, como do entrar. Talvez por isso, sua localização intermediária, o traço mais comum às diferentes definições lacanianas da interpretação esteja, como observou Soler (2012) em sua associação com o equívoco. Lembremos, por fim, que ela “é feita para produzir ondas” (LACAN, 1975/1976, p. 35). Por que ondas? Porque são sonoras e somente os efeitos sensórios conseguem despertar o sujeito do seu sono de sentido. Sono pleno de sentidos. Nos Estados Unidos, mais precisamente na Universidade de Colúmbia, Lacan (Ibid., pp. 42-46) lembrou que “é um engano, um desvio, os analistas falarem pouco”, acreditarem que “a pedra filosofal de sua tarefa consiste em se calar”; pois o analista não apenas deve ter o que dizer, como “é suposto dizer a verdade, não qualquer uma, mas a verdade que é preciso que o analisante escute”. Pois, se o analisante quer se ver livre de seu sintoma, a interpretação “tem sempre – no analista – de levar em conta que no que é dito há o sonoro, e que este sonoro deve ressoar com o que é do inconsciente” (Ibid., p. 50).
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Adentremos à via do sintoma. A noção de sintoma percorre a obra de Freud e a de Lacan de uma ponta a outra, respondendo, poderíamos dizer, à necessária elaboração de uma clínica em permanente renovação. Por se caracterizar privilegiadamente como uma elaboração acerca das neuroses, a teoria freudiana nos permite distinguir claramente entre a estrutura do sintoma e sua forma fenomênica. Em Uma neurose demoníaca do século XVII, Freud (1923[1922]/1976) observa que os sintomas haviam perdido as feições psicológicas que, em épocas pretéritas, os revestiam com histórias de pactos com deuses e diabos, assinaturas a sangue e outras coisas desse gênero. Em contrapartida, havia ganho feições hipocondríacas de dores, convulsões, espasmos e paralisias. Contudo, independentemente do aspecto formal, a estrutura do sintoma é um amálgama de forças opostas, libido e agressividade, bem como a resolução de um conflito entre o eu e a pulsão, senão entre o eu e o supereu. É por isso que o sintoma se esclarece, no texto freudiano, como “satisfação substitutiva” e “solução de compromisso”. Eis, então, a estrutura do sintoma neurótico: em se tratando de um sujeito da civilização, um assujeitado, portanto, ele tem de se defender contra uma exigência de satisfação que é composta por um elemento ideativo e um quantum energético. O afeto e a ideia não tomam necessariamente o mesmo destino. Conforme o destino que é dado a cada um: a ideia e o afeto, e conforme a maior ou menor eficácia da defesa, se construirá um sintoma corporal de dor física ou haverá o retorno do recalcado sob a forma de fobias, dor moral, pensamentos obsessivos e compulsões de toda ordem. Aqui, vale lembrar que em seu texto sobre Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926[1925]/1976) já havia reconhecido que “o mal” deixara de ser o nome da pulsão e se fizera nome do sintoma, porque este a substitui, oferecendo-lhe uma dose reduzida de satisfação, um “mais-de-gozar”. No texto de Lacan, como no de Freud, a noção de sintoma foi objeto de um work in progress, desde o momento em que ele o comparou à língua imaginária da neurose que aproxima e afasta o eu e o outro. Ao defini-lo como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito” (LACAN, 1953/1998, p. 282), lhe foi possível enunciá-lo como o enigma em busca de decifração ou o hieróglifo à procura de um sujeito suposto saber ouvi-lo e interpretá-lo. Com Marx, Lacan (1966/1998, p. 234) pôde lembrar que o sintoma representa “o retorno da verdade como tal na falha do saber”. Foi bem longo, portanto, o percurso que antecedeu o gesto lacaniano de recorrer à grafia antiga da palavra sintoma em francês: sinthomme, para com ela produzir uma definição nova. Diferentemente do symptôme, sintoma do qual cada um quer livrar-se, o sinthomme ou sinthoma é o que faz de cada ser o indivíduo, o um particular (LACAN, 1975/1976). Nos dias de hoje, na clínica psicanalítica em geral, mas privilegiadamente com
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os sujeitos ditos “adolescentes”, temos nos surpreendido quase diariamente com dois fenômenos aparentemente díspares. Há, de um lado, os sujeitos que demandam ser curados de sua captura pelo mundo virtual; de outro, jovens sujeitos que inicialmente nada demandam, mas que são trazidos pelos pais ou responsáveis, porque insistem em “se cortar” com gilete, faca ou tesoura, deixando ver em seus braços incisões mais ou menos recentes e mais ou menos profundas. Num caso como no outro, quando verdadeiramente se enceta uma demanda de análise, há por trás dela o desejo de livrar-se de um sintoma. Nos últimos anos, não são poucos os trabalhos de psicanálise que empregam o sintagma “novos sintomas”. Em artigo cujo autor se apresenta como fundador da “TyA – Rede Internacional de Toxicomania e Alcoolismo do Campo Freudiano”, os novos sintomas são definidos como aqueles dos quais se diz que colocam em evidência “os limites de nossa prática sob transferência, porque são paradigmáticos desta época de rechaço do saber, de decadência das referências ligadas ao ideal, de vacilação dos semblantes da cultura” (TARRAB, 2005, www.isepol. com/...). Seu autor também fala em “novas angústias” e afirma que a “novidade lacaniana” não consistiria em uma “clínica do consumo”, por não ser uma clínica de “substituição de substância”, como o são os tratamentos do tipo Alcoólicos Anônimos ou do tipo cognitivista-comportamental. A “novidade lacaniana” lhe parece estar em apostar na “reconstrução do Outro”, como meio de remover uma fixação sintomática. Ele declara ainda que os novos sintomas são “estigmas do real” que “não se liga a nada”, e se apresentam “de forma patética, nas patologias contemporâneas”. A referência é claramente ao Seminário, livro 23, em que Lacan (1975-76/2007) desenvolve, com Joyce, a noção de ‘sinthoma’ como o quarto aro que supre a ausência do Nome-do-Pai, porque consegue manter juntos os aros do Simbólico, do Imaginário e do Real. Em Joyce, sua escrita tão particular. O artigo também menciona a “síndrome de Otaku”, como exemplo de um novo sintoma. Ela teria sido descrita por sociólogos japoneses, para classificar os adolescentes que passam a vida, literalmente, em frente à tela do computador, incapazes de qualquer outra atividade a não ser a que os mantém conectados com a Internet. Em nossa experiência, alguns internautas alegam ter experimentado certa felicidade logo que entraram no mundo virtual, porém, com o passar do tempo, perceberam estar sofrendo uma “falta total de controle”. Tratar-se-ia, portanto, de um sintoma da ordem da compulsão em que se percebe claramente a satisfação sexual substituta, assim como o caráter bifásico de fazer e desfazer a mesma ação. Não estamos asseverando que se trata sempre de uma neurose obsessiva, mas, quase sempre, de um sintoma obsessivo. Um passeio rápido pela Internet nos leva ao encontro de um site cujos participantes se agregam sob o significante cutting. Em artigo sobre teenshealth, ou seja,
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saúde do adolescente, obviamente escrito em inglês, podem-se ler alguns casos de adolescentes que se cortam, mas escondem os cortes dos familiares e amigos, usando blusas de manga e calças compridas. Curiosamente, o primeiro nome de adolescente que aparece no artigo é Emma! Isso torna impossível não nos lembrarmos de imediato da jovem Emma, mencionada por Freud (1950[1895]/1976) em seu Projeto para uma psicologia científica, por apresentar uma fobia a lojas que resultava da sobreposição de lembranças de duas cenas com significação sexual. A mãe da segunda Emma, diz o artigo acima, só percebeu que a filha tinha feito cortes, quando olhou casualmente para os braços da menina enquanto ela lavava a louça. O artigo What’s cutting? menciona que tal conduta autoagressiva pode ser causada pela perda de alguém muito próximo ou para escapar de um sentimento de vazio. Pode também ser a única forma pela qual se consegue algum alívio para a dor de um sentimento de rejeição. Algumas vezes, mas não sempre, prossegue o artigo, o cutting se associa a graves problemas de saúde mental, como depressão, transtorno bipolar, desordens alimentares, pensamentos obsessivos, ou comportamentos compulsivos. Os jovens “entalhadores de si” que chegam ao NESA,4 mais frequentemente moças do que rapazes, alegam não saber o que os leva a praticar o corte, acrescentando que este raramente ou nunca lhes provoca dor. E não é raro encontrarmos uma situação de fato propícia ao desencadeamento de sintomas na menina, quando ela, ao mesmo tempo em que revive na adolescência seu drama edipiano, anseia por Um pai que já não existe ou que nunca existiu. Tampouco é raro que uma dessas “entalhadoras” se queixe de uma mãe que só tem olhos para o filho homem. São comuns os indícios da devastação mãe-filha, subitamente potencializada pela devastação da mãe-mulher, que resulta de sua relação com o homem, e não com o pai. Bidaud (2006/2007, p. 202) observa que “a adolescência acarreta, de fato, um encontro e uma invenção do Outro como alteridade verdadeira”, o que implica revisitar o estádio do espelho, “em particular do lado do olhar e de sua apropriação, permitindo estabelecer novas montagens entre o sujeito e o objeto, para construir uma relação genitalizada com o outro sexo”. Aí se origina a importância que o adolescente dá à estética do corpo, no sentido da criação de um novo rosto, uma “re-rostificação”, que passa não apenas pela roupa, penteado, maquiagem e adereços diversos, como tatuagens e piercings, mas também por uma nova forma de assinar o nome próprio, desvelando assim a função mostrativa da assinatura. O adolescente precisa significar-se na relação com o Outro e, se ele próprio decide 4 Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/ HUPE / Uerj.
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chamar de “cortes” o que antes se chamava de “escarificações”, é provavelmente para assinalar o retorno no real de uma separação não concluída no Simbólico. “Essas práticas de marcação do corpo” – escreve Lesoud (apud BIDAUD, op. cit., p. 203) – “que são cada vez mais frequentes, especialmente na parte mais jovem de nossas sociedades, são todas mais ou menos vinculadas à dificuldade que tem o sujeito de encontrar os significantes necessários à nominação...” Terceira via: o corpo de objeto a evento. Lacan esclareceu inicialmente que, na perspectiva do sujeito, nem tudo o que parece ser um objeto necessariamente o é: o objeto fobógeno, por exemplo, é um significante do cristal da língua. O fato é que o objeto domina a relação do sujeito com o real, pois, no campo do percebido, o olhar e a voz suprem a presença da libido que desapareceu. Mas ele não é, necessariamente, um ponto de fixação em que a pulsão se satisfaz, menos ainda um objeto de valor utilitário. Sabe-o o colecionador, mais do que ninguém, por recorrer a “uma das formas, a mais inocente, da sublimação” (LACAN, 195960/1988, p. 144), desvela a Coisa para além do objeto, promovendo “uma satisfação que não pede nada a ninguém”. Seu gesto curto-circuita o Outro da demanda e lança o sujeito na satisfação autista. Quer o denominemos com Lacan de objeto-causa, de mais-de-gozar ou simplesmente de objeto a, convém distinguir as duas faces do objeto na clínica psicanalítica: agalma, de um lado; dejeto, de outro. O que se aproxima bastante da proposta de Jean Baudrillard (1970) de reconhecermos a dupla valência do corpo, como fetiche e como capital. Não por acaso, a primeira delas é a que Lacan explora no seminário sobre a transferência, em que esclarece que os agalmata implicam a suposição de um bem escondido ou de uma verdade oculta. No mínimo, a suposição de uma beleza velada. Eis o verdadeiro engodo da transferência! Para a psicanálise, [...] o objeto [...] não é de modo algum apreendido, transmissível, cambiável. Ele está no horizonte em torno do qual gravitam nossas fantasias. E, no entanto, é com isso que devemos fazer objetos que, por seu lado, sejam cambiáveis (LACAN, 1960-61/1992, p. 240). A face dejeto do objeto, tal como ela comparece no desenrolar de uma análise, corresponde a um fragmento de gozo, ou real. É o objeto entrevisto na queda das identificações e na travessia do fantasma. Em sua Nota italiana, Lacan (1973/2003) cita a expressão com que São Tomás encerra sua obra: Sicut palea. Tudo esterco. Mas, se a expressão traz ambiguidade, é por implicar que o objeto que fede é ao mesmo tempo o estrume que fertiliza. Objeto funky, ele é feio e fede,
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todavia fertiliza, por ser, também, dançante e musical. Citemos as palavras de Quinet (2012) em seu Prelúdio para o VII Encontro Internacional da IF-EPFCL: “O inconsciente real é o inconsciente musical”, uma composição – algumas vezes, uma suíte, outras, um réquiem – dos significantes da língua materna acoplados à música com que foram ditos e à forma como foram escutados. A inexistência do objeto natural não impede que o corpo dos falantes seja o mais importante de seus objetos. Ele é a forma que impregna todas as demais, portanto é fundador do Imaginário, se assim pudermos nos expressar. É corpo simbólico, sem que isto seja metafórico, uma vez que o simbólico só existe quando incorporado, assim como a estrutura, somente incorporada, faz o afeto (LACAN, 1970/2003). É real, no sentido do sintoma e da topologia. Nesse caso, ele é um tubo cujo furo interno comunica com o exterior. Do ponto de vista do sujeito, o corpo é his/tórico. Ele se deixa historisterizar-se (LACAN, 1976/2003, p. 568). O corpo, como qualquer objeto do sujeito, “é função dos discursos em ação, é função dos discursos que definem a civilização” (SOLER, 1998, p. 167). Bem antes de produzir o matema do Discurso do Capitalismo, Lacan já havia depreendido a lógica que vigora na sociedade de consumo. Em O Seminário, livro 7, ele já propõe com bastante humor: Eis, então, Adão, e eis esses famosos pelos de uma Eva que ansiamos estarem à altura da beleza que esse primeiro gesto evoca – Adão lhe arranca um pelo [...] um pelo daquela que lhe é oferecida como cônjuge, esperada por toda a eternidade, e no dia seguinte, ela volta para ele – com um casaco de vison nos ombros (LACAN, 1959-60/1988, p. 277). Se o têxtil é primeiramente um texto, os objetos serão apreendidos em diferentes discursos. Como se fora um pedaço de pano, qualquer objeto pode estar ou não em uma relação de encobrimento com o corpo próprio, mas, uma vez fabricado, ele se torna um significante que entra na circulação de bens, comporta-se como um objeto relativamente autônomo em sua viagem pelo mundo. Dizemos então que o “desejável” se inscreve no tempo e nos modos de satisfação pulsional. Por isso Lacan (1962-63/2005, p. 209) declara que não apenas o objeto, porque também “o desejo é uma coisa mercantil, que há uma cotação do desejo que fazemos subir e baixar culturalmente; e que é do preço atribuído ao desejo no mercado que, a cada momento, o modo e o nível do amor estão na sua dependência”. Genial a imagem da caixa registradora que se agita freneticamente no filme Nunca aos domingos, de Jules Dassin, e em mais alguns. Lacan recorre a ela para nos dar a entender que o campo do desejo só se sustenta – se e somente se – tudo que ocorre de real estiver sendo contabilizado em algum lugar. O caçador anti-
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go contabilizava os entalhes da caverna, os novos caçadores os contabilizam em seus corpos, mais revestidos de tintas que de panos. Outros, que são às vezes os mesmos, preferem contabilizar excessos e perdas em engenhocas virtuais que lhes dão a ilusão de conseguir comprar o desejo. Em Radiofonia, Lacan (1970/2003, p. 412) define com clareza o fundamento da compra nos termos de um esgotamento do significante. Quando “não se sabe a que santo recorrer”, o que deve ser entendido assim: “quando não há mais significante para fritar”, compra-se qualquer coisa, mas o que quer que se compre só faz assinalar que o afeto é aí “desejo de Outra-coisa”. A contabilidade deve, então, ser passada ao inconsciente, espécie de “caixa-gozo de onde se faz o saque” (Ibid., p. 418). Poderíamos pensar acerca dos jovens que se cortam que lhes faltam, ao mesmo tempo, “significante para fritar” e “dinheiro para comprar”? Há certamente nesse acting out, nesta transferência selvagem ao Outro, uma produção de novos envoltórios corporais. Há um evento corporal. Até certo ponto, todo sintoma conversivo sempre foi um evento corporal. Contudo, nesse caso, “o sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua proliferação ou extinção; o sentido do sintoma é o real, no sentido em que ele se atravessa para impedir que as coisas andem” (LACAN, 1976/2002, pp. 48-49). E o que acontece? O mestre, sugere Lacan logo em seguida, por ser apenas significante que ordena, pode até ficar satisfeito, mas quem goza mesmo é o escravo, o sujeito escravizado ao gozo. Voltemos aos sujeitos que se queixam de seu aprisionamento no mundo virtual. Lembram-nos, de imediato, as palavras de Freud (1930[1929]/1976) sobre as principais fontes do mal-estar na sociedade, embora excluam os fenômenos da natureza. Queixam-se do corpo próprio e das relações com os semelhantes. Em suas palavras, é preciso criar um novo corpo para uma nova vida, o que aproxima dos “entalhadores de si”, no que ambos acreditam, por um breve tempo, que estão “perversamente” liberados do sexo e da morte. Eles encetam a escrita de um corpo Outro, mas resta decidir, em cada caso, se os “cortes” são de fato um “traço unário” comemorando uma irrupção de gozo, nesse caso, uma série de S1 que se estende em direção ao infinito, ou ataques histéricos nos quais são encenadas fantasias de ordem sexual, onde o sujeito se torna equivalente a: a/-φ Há um necessário confronto do discurso analítico com a junção atual do discurso da ciência e do capitalista. Lacan menciona, algumas vezes, a afinidade do discurso científico com o histérico, o qual sustenta o mais-de-gozar no lugar da verdade e busca no Outro o S1 que induza novas cadeias de significantes e engendre, em consequência, uma ordenação de saber até então inaudita. Mas a ciência é também “uma ideologia de supressão do sujeito” (LACAN, 1970/2003, p. 436), o que a coloca na mesma via do discurso do capitalista. E é desse encontro que
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proliferam as novas próteses corporais (FREUD, 1930[1929]/1976), estes objetos tipo gadgets, que são oferecidos como os mais novos parceiros sexuais de um gozo visivelmente autista. Como responder à ciência, seguindo a orientação de Lacan (1966a/1998, p. 889) de nela “reintroduzir o Nome-do-Pai”? Há que se considerar, como ponto de partida, que a ciência cartesiana, ou pós-cartesiana, não importa – de todo modo, aquela que começa com a separação entre o saber e a verdade – veta qualquer coincidência entre o sujeito (objeto) e seu suporte corporal, isto é, seu ser de carne e osso. O cientista trabalha com uma causa puramente formal, e embora saiba do que é capaz, ele não sabe o que quer – outra advertência de Lacan – por isso, não raramente, surpreende-se com os usos e abusos de suas invenções. Como despertar-lhes o desejo de saber para que conectem a verdade e a pulsão? Se até mesmo a reprodução, quando é dita “assistida”, dispensa o encontro dos corpos macho e fêmea, bastando-lhe apenas o espermatozoide e o óvulo, será ainda possível adverti-los para que o corpo permaneça sendo um referente no horizonte da sexualidade? A psicanálise, que não é uma two-bodies therapy, entretanto não dispensa o laço a dois, e este começa necessariamente no encontro de dois corpos. Todo aquele que trabalha com o desejo inconsciente, ela não pode dispensar a fala ao vivo, isto é, a que produz equívocos e visa à verdade oculta de um sintoma. Uma fala registrada em aparelho pode estar sujeita a erros mecânicos, mas estará inevitavelmente desprovida da enunciação, não produzirá equívocos, nem visará à verdade. E o verdadeiro ato não pode dispensar a enunciação, Um dizer subjacente aos ditos. Concluímos com a assertiva de Lacan, para a qual Colette Soler (2012) tem chamado insistentemente a atenção: a aposta de que, contrariando o efeito ilusório, tão comum nas relações de amor, o analista pode vir a ser, em consequência do amor transferencial, “um parceiro que tem a chance de responder” (LACAN, 1973/2003, p. 555). Chamado a responder pelos “casos de urgência” (LACAN, 1976/2003, p.569), ele deverá pesá-los, de modo a saber se chegará ou não a satisfazer a empreitada da condução de uma análise.
referências bibliográficas BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, LDA., 270p. BIDAUD, E. Reflexões sobre a passagem do oral ao escrito. In: COSTA, A. e RINALDI, D. (Orgs.) Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud/UERJ,
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resumo
O presente artigo parte da questão: “Como responder ao sintoma que é evento corporal?” e segue por três vias de reposta: a interpretação, o sintoma e o corpo, de objeto a evento. A primeira via menciona a distinção freudiana entre interpretação e construção e atravessa várias definições de Lacan, concluindo na impor-
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tância do sonoro, tanto para a interpretação, quanto para o sintoma. Na segunda via, após algumas definições do sintoma, é apresentado e discutido um trabalho que traz a expressão “novos sintomas” e se refere à assim chamada “síndrome de Okatu”. Essa parte do texto menciona também os sujeitos capturados pelo mundo virtual e os jovens que praticam “cortes”. A terceira parte desenvolve algumas concepções do corpo, de objeto a evento. Nos parágrafos finais, tecem-se breves considerações sobre os discursos da ciência e do capitalismo e a aposta psicanalítica.
palavras-chave
Sintoma, evento corporal, interpretação, corpo, objeto.
abstract
This paper begins with the question: “How to answer to the symptom that is a body’s happening?” and follows by three response’s ways: the interpretation, the symptom and the body, from object to event. The first way mentions Freud’s distinction between interpretation and construction and goes through many Lacan’s definitions, concluding on the importance of the sonority to the interpretation and to the symptom. In the second way, after some definitions of the symptom, it is presented and discussed a work that brings the expression “new symptoms” and reports to the so called “Okatu syndrome”. This part of the text also mentions the subjects that are captured by virtual world and the young people that do “cutting”. The third part develops some conceptions of the body, from the object to the event. In the final paragraphs there are some considerations about science and capitalism discourses and psychoanalytical bet.
keywords
Symptom, body’s happening, interpretation, body, object.
recebido 07/02/13
aprovado 20/04/13
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Deixar cair para poder dizer (e silenciar) Lucília Maria Sousa Romão e Glaucia Nagem de Souza Ensaio: um escrito entre o vazio e o silêncio Por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços. Guimarães Rosa O objetivo deste escrito é produzir a partir do vazio e do silêncio, contornando, tanto quanto possível, uma reflexão sobre ambos em suas instâncias fundadoras do humano, do ser falante e do trabalho artístico (FREUD; LACAN). Pensar a relação desse intervalo faltante – que a linguagem não toca – com o silêncio constitutivo de toda possibilidade de significação (ORLANDI) é o que me move. Da gravidez do vazio e do silêncio, nasce toda fala e todo ato de linguagem, os quais depois de materializados indiciam algo do início, um resto ou certo efeito de vazio e silêncio dados pela incompletude e imperfeição de todo dito. Do e com o espaço esburacado, o sujeito entretece seus (bem)ditos, faz trajetos de dizer com intensas manobras de retornos, assim, para encontrar, de novo e mais uma vez, aquilo que o fundou. O que não pode ser preenchido, tampouco tocado no seu núcleo, ou seja, ao escrever sinto-me dando voltas em redor, espiralando um em-torno, bordando às voltas-de e produzindo uma artesania-puro-bordejo de um nada. Um nada – absoluta ausência – que a instalação “Metade da fala no chão – Piano surdo”, de Tatiana Blass, tateou e fez falar, e que produziu efeitos em mim. Diante do piano sendo engessado pela parafina tive um assombramento atônito, como quando se vê um precipício e o olhar não alcança a profundeza. A fenda abismal na montanha, a altura da possível queda, o buraco na linguagem, a petrificação do piano, o dizer das teclas e o impedimento de o (outro) nocturno continuar: uma rede de deslocamentos que ficou a ressoar em mim desde o primeiro momento em que visitei o Instituto Ferraz Figueredo,1 onde a obra está em exposição. O piano parte de um estado de imobilidade e mudez, é apenas o nada de som e de composição em um dos espaços da 29ª Bienal de Artes de São Paulo. O músico então executa Chopin, e com a carne das notas e os poros abertos da partitura em mo1 Localizado em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
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vimento, com os dedos tocando os brancos e pretos do piano, o vazio se instala. A arte diz de um vazio e um silêncio (mais do que tudo, ambos) bordados pelo impossível dizer/tocar de outro modo, pela impossibilidade de outras composições estarem ali, de outros músicos tatearem as teclas, de outro movimento estar em curso; e no avesso, disso também diz de um possível ao sujeito em dada posição, sujeito entendido aqui como “um ponto. Um ponto de referência. Nunca um ser” (CABAS, 2009, p. 150). É na negativa (no que não pôde, no vazio instalado pela inscrição da linguagem) e na afirmativa (ser feito com certo dizer, estilo, marca de origem) do que se ouve que está em causa aquilo que cava a arte, a música e a linguagem (e este estudo), deixando-a materialidade do possível e prova inconteste do esburacado, espiral em torno de vazio e silêncio.
Primeira cena: Saussure, Freud e Lacan – de vazio em vazio Tudo está escrito nos espaços brancos que ficam entre uma palavra e a seguinte. Inês Pedrosa No Cours, atribuído a Saussure ([1916]/1970), está posto não apenas o algoritmo do signo linguístico, mas algumas leis que estruturam e regulam o sistema de qualquer língua. A segunda delas é a linearidade do significante que diz respeito à condição de que há um impossível na base acústica de toda palavra: dizer dois sons ao mesmo tempo. Cada unidade discreta precisa ser pronunciada de modo isolado, o que impede ao falante dizer dois sons simultaneamente e o que obriga o falante a tecer um fio no tempo, uma linha em que um som segue atrás (ou na frente) de outro. “O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo: a) representa uma extensão; e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha” (SAUSSURE, op. cit., p. 84). Esse batimento significante é, assim, intervalar e marcado por certa pausa necessária, um entre-sons que materializa um espaço de não preenchimento, ou seja, uma falta. Há um buraco entre um som e outro, um vazio que sustenta a fala.2 Se assim não fosse, estaríamos diante do insuportável de poder empilhar todos os sons a um só tempo, dizendo tudo de uma só vez. No entre-sons, essa hiância é estruturante; no salto de um som a outro, algo de um impossível se configura essencial em uma linha que constrói uma sequência ordenada por uma série de cuja cadência o falante não pode escapar. “(...) os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após outro; 2 Agradecemos à Profª. Drª. Bethania Mariani com quem conversamos sobre este tema do vazio na linearidade do significante saussureano.
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forma uma cadeia. Esse caráter aparece imediatamente quando os representamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos.” (Ibid., p. 84). Dito de outro modo, para o funcionamento da língua, há a necessidade de uma lacuna presentificada no entremeio dos sons, condição que também se dá a ver na linha espacial dos signos gráficos, posto que eles não podem ser escritos simultaneamente. O sistema conta, então, com algo de ausente que está no centro de toda a estrutura, um buraco que só pode ser condição pelo que não permite o todo. No Escritos de Linguística Geral, o próprio Saussure (2004, p. 33) escreve que: “Acontece a mesma coisa, por outro lado, com qualquer entidade acústica, porque ela é submetida ao tempo; 1o leva um tempo para se realizar e 2o cai no nada depois desse tempo”. Assim, o genebrino tateia o que designa como “a marcha da língua no tempo”, propondo o enlace de conceitos como continuidade e transformação para refletir sobre os fatos linguísticos e o funcionamento da linguagem. Não vou me alongar nisso, apenas registro aqui meu interesse em considerar, a partir dessa lei do sistema linguístico, o ausente como constitutivo do fonema materializado e das palavras manifestas. Isto é, os pontos de intervalo impossível de tamponar que espaçam um fonema de outro, o pontilhado do presente/ausente no significante e a materialidade da voz marcada por algo do vazio sempre a recorrer, reinstalar-se. É no significante, mais especificamente na linearidade dele, que está o furo necessário a toda possibilidade de falar e dizer; a fenda do nada ancora-se justamente na propriedade a latejar a palavra por vir. Tal compreensão do vazio fundante (do qual toda palavra se ergue e se cria...) não está presente apenas nos estudos saussureanos de/sobre língua; com ela também Freud ([1895]1950/1977) se ocupou. Percebeu, ainda no texto Projeto para uma Psicologia Científica, “a lógica da origem” e também certo “polo excluído do aparelho psíquico”, algo que ficava fora dele – o vazio – e que, estando fora, fazia todo o circuito funcionar. Afirma a existência de duas partes no aparelho psíquico: “a primeira, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a; e a segunda, habitualmente variável, é o neurônio b” (op. cit., p. 434); e sustenta que à primeira corresponde “o núcleo do ego e a parte constante do complexo perceptivo”, também definido como “neurônio a como a coisa”. Tal neurônio apresenta-se constante, irredutível, sempre em atividade, constitutivo do eu, ou seja, é estrutural do próprio aparelho. Será com o mote de Freud – das Ding, Coisa, Isso – que Lacan (1959-60/2008) passará todo o Seminário 7 implicado. Esse das Ding “encontra-se do lado do sujeito” (Ibid., p. 129); trata-se do buraco cavado na experiência primeva de desencontro que data da introdução do sujeito na linguagem, e que está sempre presen-
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te como fenda, hiância, irrealizado, inencontrável. Assim, “esse Ding, essa causa” (Ibid., p. 120) faz o sujeito retornar sempre ao mesmo lugar vazio, buscando um achado que jamais se concretiza, mas que sustenta toda possibilidade de desejar “esse apelo da segurança do retorno” (Ibid., p. 94). Pela “sua própria presença no âmago da tramoia humana”, presença da Coisa, o sujeito pode “ir vivendo no meio da floresta dos desejos, e dos compromissos que tais desejos estabelecem com uma certa realidade (...)” (Ibid.., p. 129). Desse modo, Lacan trabalha com a noção de um campo dado e constituído por uma causa, que sempre insiste em alicerçar e estruturar os movimentos subjetivos, os deslocamentos significantes, as bordas de dizer e desejar dos sujeitos. Esse é o “campo da Coisa, onde se projeta algo para além, na origem da cadeia significante, lugar onde tudo o que é lugar do ser é posto em causa (...)” (Ibid., p. 257). Com Ding, Lacan (Ibid.) também irá desenhar a alegoria do vaso que marca a função estruturante do furo, vazio e borda em presença constante. Eis o mote. [...] a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim (...) ex nihilo, a partir do furo. (Ibid., p. 148). O oleiro, ao dar forma ao barro, cria a partir de um bloco compacto que só pode ser modelado em torno de um furo ao redor do qual o barro desliza, corre, espirala-se e ganha beirada. Essa borda maleável é tecida com dedo e torno que cavam um buraco inicial, o qual jamais será fechado. Trata-se do ponto inicial de rasgo, umbigo de criação, marca de ausência do próprio barro e de qualquer outro elemento, que se constitui fundadora do nascimento do próprio vaso, rodela de nada que estrutura o vaso como tal, deixando-o (inclusive e principalmente) aberto à entrada e saída de corpos, líquidos e gases. Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. [...] se o vaso pode estar pleno é na medida em que, primeiro, em essência, ele é vazio (LACAN, op. cit., p. 147). Com o vazio, arquiteta-se uma possibilidade de passagem para que o vaso possa estar cheio e depois esvaziado, para encher-se novamente e se deixar desocupar de novo. Assim, o vaso prestar-se à tarefa que lhe cabe: o trânsito. Com o sujeito,
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o mesmo ocorre. Para o ser fal(h)ante, o furo de Ding abre as pétalas de dizer com a passagem de significantes que lhe conferem certa posição no mundo, certo lugar e modo de ser-linguagem. Na teimosia em buscar o reencontro com o que lhe é próprio, não por outra matéria se não pelo buraco cavado em seu próprio barro, a fenda do ser fal(h)ante insiste e consiste em continuar desabrochada. Essa Coisa [...] será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa. [...] Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio [...] De qualquer maneira, o vazio permanece no centro [...] (LACAN, op. cit., p. 158). Fazendo uma costura com o pensamento saussureano, o vazio do entre-sons permite a entrada de qualquer fonema na cadeia e impulsiona o falante a “escolher” um som e mais outro, e outro ainda. Em sequência. Nesse entre, a metáfora do torno furando o barro tem validade. O ponto de ausência está presente criando espaço para a margem dos significantes, emoldurando o som dito. A forma do barro e do som é possível ao sujeito apenas como movimento em torno do vazio; em ambos, o nada da Coisa é que orienta a presença da linguagem e da arte. O vazio no significante, na linguagem e no sujeito: o centro fundador. Está aqui um ponto que entremeia Saussure, Freud e Lacan, colocando os três autores a dizer de ciência a partir de um ponto de impossível, buraco, ausência, fenda, que se dá a ver na língua e no ser falante. Isso implica um espaço de nunca completar e, por isso mesmo, tão necessário para que o entorno se estruture, se construa, se mova, fazendo o sujeito girar.
Segunda cena: Orlandi – do (e ao) silêncio O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. João Guimarães Rosa Orlandi (1997), em um pioneiro trabalho sobre o tema, afirma que o silêncio tem “significância própria”, “é garantia do movimento dos sentidos” (Ibid., p. 23) e “dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (Ibid., p. 24). Mobilizando a metáfora do mar, cujos traços são “incalculável, disperso, profundo, imóvel em seu movimento monótono, do qual as ondas são as frestas, que o tornam visível. Imagem” (Ibid., p. 35), ela o compara ao silêncio que: “não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo, de modo fugaz” (Ibid., p. 34). A autora descarta a ideia de silêncio como vazio, falta, não presença sonora, ausência,
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tampouco o considera espaço intervalar entre as palavras, mas como condição irrepresentável da linguagem; entende-o como “própria condição da produção de sentido (...) ‘lugar’ que permite à linguagem significar” (Ibid., p. 70). Assim, há um traço fundante no silêncio que sustenta a possibilidade de a palavra vir a irromper, ganhar um sentido ou outro, inscrever-se no fluxo do discurso. Está traçada a política da cesura que, segundo Baldini (2012, p. 108) implica “Falar, falar ao outro, falar ao Outro, supõe a ilusão da comunicação, o recorte no continuum do silêncio, o surgimento do verbo e seus trejeitos, sua sedução e seu poder de nos fazer imaginar que há algo mais além da linguagem, viagem sempre buscada”. À reflexão desses dois autores me filio. É refinada e conserva a possibilidade de dobraduras, atrevo-me a uma a partir das seguintes questões: qual a relação do silêncio fundador com a Coisa? Se a linguagem é atravessada pelo silêncio, onde fica o buraco do torno que marca o início do vaso? Haveria um modo de pensar o silêncio em uma esfera de impossível tal que apontaria Ding? De saída e em consonância com Orlandi (1997), o silêncio inscreve a emergência da palavra; e, de certo modo, ele também sustenta a palavra depois de dita. Há silêncio nas duas pontas da significação no antes e depois do dito, no que não foi dito, no que ficou apagado, no que se manteve presente como sombra da palavra, ali onde ela é, sem ser ou estar falado, presente no ausente. Há uma borda de silêncio que, ao cavar a palavra, espirala-se em torno da Coisa, contornando esse nada, fazendo a palavra irromper como promessa e como silêncio. Há silêncio-Coisa no humano. Há silêncio no sujeito também. Vejamos. De dentro da imensidão oceânica do silêncio, o infans encorpa grito3 sem palavra, gemido de ser que não é silêncio, mas efeito dele, grunhido de rasgadura do seu nada ainda não inscrito em linguagem, sonoridade bruta sem-palavra. A resposta do interpretante disso inscreve movimento de transformação em explicação, em enunciado capaz de acomodar o desamparo, tecer um corpo de linguagem feito com os significantes que cairão como chuva sobre o bebê para acompanhar o ser solto no espaço sideral ainda sem as bordas do simbólico. Tal tentativa trabalha apenas com a suposição, pelo que é sempre incompleta e furada, sempre no prejuízo de não atingir no alvo, sempre um giro sem garantia. No grito sem língua, o silêncio berra como impossível para o infans (e depois jorrará como fecho para o sujeito ao final de uma análise). Escoa sem rima, nem rumo certo, apenas materializa-se qual um grunhido que poderia ser de outro modo, e mais outro, e outro ainda. O bebê navalha a beirada do silêncio-Coisa, a borda tão somente, pelo absoluto não estar na linguagem ainda. Berra efeitos que apontam um impossível, a Coisa. 3 Agradecemos ao Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini a sugestão de inserir algo sobre o grito aqui.
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É desse modo que o sujeito falante inscreve-se como dizer de um desejo outro, do Outro, e passa a marcar-se com os significantes que lhe foram emprestados por ele e pelos outros que também arriscaram explicar-lhe algo do nada. Passa a dizer, exercício também dolorido como o de sair do casulo de chumbo de um silêncio-Coisa; e, depois, tenta sair dos dizeres de outros, destecendo o aprisionamento às palavras que explicaram-no ser de um modo, desautorizando certos enunciados tidos como evidentes pela força da repetição e da captura ideológica (PÊCHEUX, 1975). Dizer por si mesmo, dizer em si: o sujeito inicia seu percurso de dizer e, em dado tempo, esbarra em significantes que lhe são atribuições, formas de acreditar ser, palavras que o sustentam, repete-as muitas vezes. Repete-as, até ficarem diferentes. Repetir e mais uma vez tornar àquelas mesmas e velhas palavras já ouvidas, tornadas corpo, tomadas como próprias e faladas na correnteza da obviedade que custa a ser fraturada. Aos poucos, uma análise abre pequenas fendas nessas vigas de sustentação para que o sujeito possa observá-las por outros ângulos. Algumas caem, deixadas pelo chão da análise; ao longo de retornos e deslocamentos, continuam ali a sustentar o edifício simbólico, mas sem a consistência de antes. Sem o mesmo peso, noutra medida. Palavras quedantes e menos preciosas, desviadas de lugar, revisitadas apenas com uma língua que se chama saudade. Algumas se tornam marcas de um risível que já não é; palavras – lembrança opaca de um tempo outro que se presentifica de outro modo. Há aquelas que caem como folhas secas, em algumas estações; caem e, ao mesmo tempo, ficam. Ficam justamente por terem sofrido queda. São palavras que, caindo, agigantam o silêncio do que poderia ser dito ali que não foi, do que é impossível dizer, do que nunca será passível de palavra. Elas imprimem uma marca de sombra, um círculo a mais, um fio de contorno de um silêncio-Coisa em construção, palavras de não dizer. Em um percurso de análise, o sujeito desconfia das palavras que o fundaram, fissura-as, afasta-se do que supunha ser quem eram tais palavras (ou quem fosse, ou quem teria sido) e movimenta-se a colocar outros significantes em fluxo. O sujeito rasga-se de dizer e de silêncio (ORLANDI, 1997) em quedas de significantes, e aos poucos, devagarinho e penosamente constrói o seu caminho em análise. Esse percurso – entre palavras alheias, estrangeiras e próximas, e silêncios – já dura quase uma vida, mas há outro nascimento, outra espécie de silêncio no qual é possível tropeçar ao longo de uma análise (ou de uma obra de arte, como a performance que será tateada na próxima parte desse escrito). O sujeito, de tanto dizer e repetir, passa a silenciar com as palavras, silenciar nelas, silenciar por elas o que nunca será possível dizer, Ding, a Coisa, Silêncio-Coisa. É preciso fazer cair para, no-depois, poder silenciar sabendo que o simbólico tem seus limites diante do vazio inscrito pelo furo inicial. Depois de muito falar, o sujeito percebe que
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algo não cabe no simbólico, há um impossível dizer que nunca será revestido de palavra e também não será silêncio-grávido de falas, silêncio-Coisa. É oco, ausência de um centro incontornável pela linguagem; a hiância aberta pela entrada do sujeito na linguagem não terá nunca instância de dizível. O silêncio de certos momentos de/em análise instala justamente esse impossível chegar ao centro do vazio, a não-coincidência entre o retorno e o encontro, a busca e outro giro em torno do que não pôde ser encontrado. Silêncio-Coisa: é o que se encontra nesse momento. Silêncio apontando para a cava onde não entra nem cabe linguagem. Com isso, sustento que, da mesma maneira que o silêncio é fundante (ORLANDI), é também silêncio restante ao final de um processo de análise. Partimos do silêncio e a ele retornamos, é o que nos aponta a nossa condição de fal(h)ante: bebê em grito e o sujeito em fenda, calado diante do espetáculo do vazio. A Coisa resta sempre no centro porque estava lá desde o início, funda-se como eixo que estrutura todo o entorno e que jamais poderá ser dito ou silenciado; silêncio-Coisa de sujeito. Em algumas obras de arte, algo dessa ordem se dá a movimentar, despejar, e sobretudo a silenciar. Vejamos.
Terceira cena: em mim, o piano de Tatiana Somos feitos de silêncio e som/ Tem certas coisas que eu não sei dizer... Lulu Santos e Nelson Motta A obra “Metade da fala no chão – piano surdo”4 está em exposição em Ribeirão Preto, no Instituto Figueiredo Ferraz, juntamente com o vídeo da performance que o gerou, em 2010. Tatiana Blass criou uma série de trabalhos-intervenções em instrumentos musicais que, tomados pela cera/vaselina derretida, perdem a propriedade de produzir som. Trompete, bateria, dentre outros, passam a ser emudecidos pela artista; no caso em questão, trata-se de um piano de cauda com o qual um pianista executa cinco peças de Frederic Chopin. “Enquanto ele toca, dois homens derramam uma mistura de cera e vaselina quente e líquida dentro do piano. Conforme mais cera é jogada, endurecendo aos poucos, o pianista tem mais dificuldade de executar as peças, até as teclas pararem de funcionar e não ser mais possível tocar”,5 é a proposta da artista. O que chamou minha atenção na performance foi o início e o fim enlaçaram-se em continuidade: do/ao silêncio; o piano aponta uma instância de dizer e de não mais ser possível fazê-lo. É com 4 A performance completa está disponível no endereço https://vimeo.com/53090078. 5 Esse recorte, bem como todas as fotografias deste artigo, estão no site da artista, que autorizou a reprodução aqui. Endereço eletrônico http://www.tatianablass.com.br/, acesso em 21 de dez de 2012.
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o som que o vazio comparece como se a música lascasse uma borda possível de dizer, um fio de arte em torno do quê não será jamais tocado. No piano, como já proposto por Lacan com a metáfora do vaso, o som marca um enquanto, um durante, um intervalo de ausência entre uma nota e outra. Nesse ínterim, a arte esteira a função do olhar, essencialmente bela e poética, sua razão de ser. É também neste espaço de evanescência que o sujeito emerge. O piano, no início da apresentação, resta mudo (e no fim também restará desse modo); falta-se o músico para inscrever-lhe corpo de movimento sonoro. É bloco de argila à espera da mão do oleiro: o dedo a cavar, a sulcar, a fendar o sólido para, como composição, dar-se em música (e em falta de outras músicas, e em falta de qualquer música no final). A imobilidade é compasso de espera e anuncia a gravidez de um dizer: é preciso um silêncio e um sujeito, o trilhamento de movências de um sujeito para que a Coisa seja e produza efeitos. Só há Ding em relação a um sujeito em torno de silêncios e palavras. Do silêncio inicial, um afinador prepara o piano para ser tocado. Ajuste necessário, sons sem contorno, grito do infans diante da dor da entrada do ar. Ding, que esburaca e permanece ressoando para que o som faça música em direção a esse próximo que escuta e ressignifica, Ding está. Entra o músico, cumprimenta o vazio. Pois não há plateia, puro vazio a quem ele se dirige como se ali houvesse alguém. Metáfora do que, na constituição, marca a relação do sujeito ao Outro. Se uma resposta vem desse próximo/outro, logo se constitui a ilusão de haja um Outro que deseja e que possibilita que haja o desejo. Mas no lugar desse Outro, plateia vazia. O silêncio. Há ali apenas a presença de um piano a apontar a falta do pianista, da partitura em execução e do que o próprio piano poderia fazer falar; piano que se talha, sobretudo, pelo que não pode ser. Estranho caminho este de ser justamente onde não se é! Fig. 1.: Performance “Metade da fala no chão – piano surdo”.
Fonte: site de Tatiana Blass. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 27 p.1-156 outubro 2013
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Em silêncio, há o vazio entre piano e sonata, o que sustenta a possibilidade de o pianista entrar em cena, de Chopin ser atualizado, de Tatiana produzir um trabalho com todos estes elementos, de o vazio se instalar. Cria-se um silêncio para além da falta de sons, é um Silêncio-Coisa que se estende ao longo de todo esse trabalho artístico, que se derrama pelo chão e que se sustenta no fim. São cinco sonatas executadas sem intervalos, emendadas; são dois funcionários que se revezam na tarefa de carregar baldes de cera e vaselina quente, derretida em tambores, e despejar dentro do piano de cauda. O som e a barreira que se instala com ele fazem o vazio girar em espiral. De modo delicado e contundente, a performance monta o que podemos dizer da divisão do sujeito, pois o pianista e o piano são um enquanto são dois. Não há um sujeito que não se vire a seu modo com essa verdade, ser um e dois, ser um e múltiplo. Ser palavra e silêncio, silêncio e som. Fig. 2.: Performance “Metade da fala no chão – piano surdo”.
Fonte: site de Tatiana Blass.
É interessante registrar a semelhança do material barro com a cera/vaselina, há plasticidade em ambos, algo de liquidificação do núcleo sólido, de escorregadio deslizar que permite ser incorporado à dureza do torno, no caso do vaso, da estrutura física de teclas e cordas também duras no caso do piano. Algo fluido, despejante que se esparrama por entre espaços, promovendo um suposto preenchimento dos vazados, dos desvãos. Esse derrame é rio quente a congelar aos poucos até tornar-se branco de ausências que virá-a-ser. Mas, se com o vaso as mãos contornam um vazio, a vaselina que é derramada no piano preenche o vazio, satura de presença os furos, entope de substância cada fresta e, aos poucos e com isso, emudesse o som.
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Essa corredeira comparece como a cadeia significante do sujeito com seus escorridos movimentos de repetir, retornar, tornar a derramar(-se) e deixar-se aberto (e depois fechado) em certos pontos para que outros sons possam aparecer. O que corre e congela o piano vem de outros, sem nome, sem rosto, que preenchem o vazio que fazia música. O preenchimento aparenta amor, diz-se de um tipo de amar. Poros e peles de palavras derramam-se mesmo no encontro com o outro; eis o encontro. O piano de Tatiana Blass possibilita ser um campo fecundo desses movimentos de entrada e saída de muitos: o pianista, a música de Chopin, os homens da cera, o material derramado, o público, o piano-vela cristalizado em silêncio. O pianista e seu piano seguem sua empreitada sonora alienados do que ocorre, da cera que preenche e emudece. Mas não é um emudecimento rápido, dura um tempo, inicia apenas um desafino. Mas o desafinado segue tocando, pois o desafino ainda é música. Aos poucos, o piano perde certas notas, não apenas desafina. Ainda assim o pianista se esforça, já não se ouve mais Chopin, apenas os sons ocos, socos dos martelos do piano querendo se soltar da cera para seguirem sua música, força da respiração do pianista que só para quando a cera finalmente atinde o teclado e começa a queimar seus dedos. Aí para. Levanta-se solenemente, cumprimenta mais uma vez o nada de plateia e sai de cena com seus dedos queimados. Surdo. Mudo. Se podemos ler essa performance como uma metáfora, seria ela uma mostração daquilo que se passa na constituição do sujeito em relação ao próximo, em relação ao Outro. Se o sujeito em sua divisão se aliena da demanda de preenchimento e se assujeita a isto, as consequências são emudecedoras. Cada um chega à análise em diferentes tempos de cera, diferentes tempos de surdez-emudecimento. Poderíamos dizer que a análise é isso que, no dizer, esquenta a cera para que ela escorra e solte as teclas? Esse exercício de amolecer o enrijecido pela força da repetição ou do colamento, e deixar o piano livre para a sonata advir. O dizer movimenta o fluxo o que a cera embalsamou, imobilizou. Fig. 3.: Performance “Metade da fala no chão – piano surdo”.
Fonte: site de Tatiana Blass. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 27 p.1-156 outubro 2013
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A estrutura do piano vai sendo calada a cada novo espaço preenchido em uma articulação na qual a presença cera aponta o calamento das teclas, o impossível da mão do pianista, o derrame da fala no chão. Organiza-se um silêncio nascido do interior da performance; de muito ser dito pelo outro, fez-se o estado de impossível continuar. Nesse ponto, acredito que a performance aponta algo de Ding, ou seja, um ponto de linguagem em que se esbarra no silêncio, um ponto de arte que toca o núcleo duro de não-dizer. Silêncio-Coisa restante como pontuamos anteriormente. Silêncio de não caber mais palavra ou nota, sem texto ou partitura; piano que não comporta mais partitura ou dedo, pianista que cai como desnecessário.
Fig. 4.: Performance “Metade da fala no chão – piano surdo”.
Fonte: site de Tatiana Blass. Nesse ponto o que presenciamos é a mortificação, o embalsamamento do sujeito e seu desejo. O pianista sai, não há mais como tocar, pois os dedos queimaram, a cera quente impossibilitou, a cera fria cristalizou o impossível. Essa mortificação faz do sujeito um joguete sem palavra, sem lugar, sem som. A possibilidade que uma análise aponta é que o sujeito retome seu lugar, de piano e de pianista, e quiçá seja a sonata de si mesmo. O analista não pode mudar o que se lhe apresenta, mas pode ajudar a tirar algum som, algum feito. Seja retomando o piano, as sua formas e seu som, seja que ele queime como vela, e vele o desejo daquele que em algum momento resolve retomar o curso de sua vida, a direção de seu desejo.
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Deixar cair para poder dizer (e silenciar)
Fig. 5.: Performance “Metade da fala no chão – piano surdo”.
Fonte: site de Tatiana Blass. Retroagindo aos teóricos aqui mobilizados, é possível recuperar o embate com o qual travaram longas jornadas: Saussure a refletir sobre o significante atravessado pela escansão de um espaço lacunar entre-sons, um vazio tão necessário quanto insubstituível. Talvez o mesmo possa ser percebido à medida que o piano da performance vai falhando, entrecortado por notas de ausência e pelo vazio que se derrama até chegar à mudez. Freud e Lacan tatearam de perto o abismo ao perceber, no dizer do sujeito, a existência de um núcleo presente justamente por estar excluído, o sustento de toda condição falante pelo nada. E, de certa maneira, propuseram o sujeito e a criação artística como um giro a mais (e mais outro) em torno Disso. Os espaços da arte e da poesia fazem enfrentamento direto com o vazio, pois tropeçam na tecla faltante, na nota surda, na sonata dissolvida, na peça inencontrável... Enfim, no piano-escultura de cera e vaselina que materializa o impossível ser tocado, um impossível fundante e restante. No Silêncio-Coisa, guarda apenas isso, o impossível. Diante do impossível a contingência se coloca como a faísca necessária para fazer com que o intervalo se reaqueça, e o som do desejo se presentifique. O trabalho de Tatiana nos traz a delicadeza de apontar para os efeitos devastadores do emudecimento de um sujeito. Emudecer mais que silenciar. Afinal, o silêncio estava na música, nos intervalos, no entreteclas. Silêncio que se recupera ao abrir-se mão do emudecimento para fazer música, fazer poesia, vida, arte. Uma vez mais Tatiana nos mostra que a “há mais verdade no dizer da arte que não importa qual blablablá”6 (LACAN, 1976-77/inédito, p. 64). 6 Tradução nossa.
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ROMÃO, Lucília Maria Sousa SOUZA, Gláucia Nagem de
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resumo
O objetivo deste escrito é produzir a partir do vazio e do silêncio, contornando, tanto quanto possível, uma reflexão sobre ambos em suas instâncias fundadoras do humano, do ser falante e do trabalho artístico (FREUD; LACAN). Pensar a relação desse intervalo faltante – que a linguagem não toca – com o silêncio constitutivo de toda possibilidade de significação (ORLANDI) é o que me move. Da gravidez do vazio e do silêncio, nasce toda fala e todo ato de linguagem, os quais depois de materializados, indiciam algo do início, um resto ou certo efeito de vazio e silêncio dados pela incompletude e imperfeição de todo dito. Analisaremos a performance de Tatiana Blass, denominada “Metade da fala no chão – piano surdo”, refletindo sobre a relação do sujeito com a linguagem e com a arte.
palavras-chave
Sujeito, psicanálise, arte.
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Deixar cair para poder dizer (e silenciar)
abstract
The purpose of this writing is to produce from the emptiness and silence, bypassing as much as possible, to reflect on both their bodies in founding the human being’s speaker and artistic work (FREUD, LACAN). Thinking about missing that range – that language does not ring – with silence constitute any possibility of meaning (ORLANDI) is what moves me. Pregnancy emptiness and silence, all born every act of speech and language, which indicate something materialized after the start, a rest or some effect of emptiness and silence by data incompleteness and imperfection of all told. We will analyze the performance of Tatiana Blass, denominada “Half speech on the floor – deaf piano”, reflecting on the subject’s relation to language and art.
keywords
Subject, psychoanalysis, art.
recebido 29/01/13
aprovado 20/03/13
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trabalho crĂtico com conceitos
O juízo íntimo do analista Gabriel Lombardi Em seu texto, a Direção do tratamento e os princípios do seu poder, Jacques Lacan (1958/1966) discerne três níveis na ação do analista: sua tática da interpretação, sua estratégia no manejo da transferência e sua política do ser em uma ação sustentada no desejo. Parece-me oportuno voltar a essa clivagem no momento de considerar as diferentes arestas da resposta do analista a seu partenaire genuíno, que é a divisão subjetiva do analisante.1 A análise de Lacan apoia-se na diferença do que paga o analista em cada um desses níveis. Paga com palavras na interpretação, paga com sua pessoa na transferência e, mais radicalmente ainda, paga também no plano de ser. Aí, diz, “paga com seu juízo íntimo”. Em uma enquete pessoal entre colegas e bibliografia de influência lacaniana, constatei que muitos trabalhos sobre o “pagar com palavras” na interpretação e sobre o “pagar com sua pessoa” na manobra da transferência já foram apresentados, enquanto muito pouco foi dito sobre “pagar com seu juízo íntimo” do analista, que Lacan introduz nesse texto sob o título: “Comment agir avec son être” (Ibid., p. 612). Colocam-se para mim duas perguntas que podem desenvolver-se como duas linhas de investigação. A primeira é o que quer dizer “pagar com seu juízo íntimo”, que acepções admite essa expressão que encontramos diversas vezes na obra de Lacan, como se entende esse pagamento nas experiências concretas de análise. A segunda é de que modo incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento. É obstáculo? É motor da cura? E de que modo incide essa dificuldade no fim da cura, por acaso como desencadeante de seu término?
O que quer dizer pagar com seu juízo íntimo Quando li essa expressão de Lacan, pagar com seu juízo íntimo, imaginei inicialmente que se referia ao analista ter que silenciar seus preconceitos e preferências pessoais para responder analiticamente ao analisante. Isso equivaleria a dizer que o analista paga com seu juízo estético, fundado no gosto, a respeito do qual Kant (1790/2006) centra a primeira parte de sua Crítica do juízo. A ideia desse pagamento foi nitidamente introduzida já por Freud, e nenhum analista poderia 1 Esse texto baseia-se no que foi apresentado no VII Encontro Internacional da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, Que responde o analista? Ética e técnica, no Rio de Janeiro, em julho de 2012.
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desdenhá-la, ao menos em teoria. Logo adverti com surpresa que Lacan refere-se a outra coisa: o analista tem que pagar com seu juízo teleológico sobre o ato que sustenta, por desconhecer o fim do processo que seu ato promove, nas diferentes acepções do termo fim: o sentido, o para onde, o até quando, o bem a obter. O ato do analista é essencialmente o de autorizar o desdobramento de um saber inconsciente ao qual ele não tem acesso, a não ser em segundo lugar, seguindo o discurso do analisante; sua missão consiste, então, em causar o trabalho analítico, mas sem saber bem para onde isso leva. Uma parte do sentido de sua ação escapa-lhe pela estrutura mesma de seu ato. O sentido de uma direção da cura muda totalmente a partir daí. Para levar sua ação ao coração do ser, ao Kern unseres Wesens do qual falava Freud (1900/1993) em sua Traumdeutung, o analista deve suspender seu juízo íntimo, deve admitir desconhecer as consequências do processo que colocou em funcionamento e o que se segue a essas consequências, em que o juízo que realmente importa é o do analisado. Se corresponde ao analista promover e sustentar o processo, é o analisante quem escolhe os caminhos – regra fundamental da psicanálise – e quem tem a última palavra. A ideia de “alta” médica não tem sentido em psicanálise, o “acabou-se” do final, o satis final, o ponto final é do analisante, e não do analista. Mesmo que a ideia pareça simples, implica o mais alto custo sustentá-la na prática. Por isso, a clínica lacaniana implica não deixar o analista tranquilo com suas titulações, com seu saber já consolidado, com sua experiência prévia, com seu saber já construído sobre o caso; porque a verdadeira direção da cura apoia-se em que todo esse saber que o analista acumula está destinado a ser descartado, a cura só se dá se tudo isso caduca, se o saber do analista cai como objeto a, mero dejeto do saber. Opusemos a divisão subjetiva que caracteriza a posição do analisante à destituição subjetiva do analista. Contudo, essa divisão subjetiva na qual o analista sustenta seu ato e sua integridade ética não será jamais uma posição totalmente assegurada. A perspectiva a partir da qual Lacan funda sua Escola implica colocar o analista no banco, e colocar-se a si próprio no banco, o do acusado, o dos réus, para dar conta de seu trabalho específico que inclui sua ignorância a respeito das consequências de seu desejo de analista... realizado ou não realizado? Assinalemos que já em Freud (1909/1996) encontramos indicações sobre esse pagar com o juízo íntimo, quando, por exemplo, em Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, explica a diferença entre a direção de consciência e a direção da análise:
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O juízo íntimo do analista
O pai de Hans estava fazendo perguntas demais, e estava pressionando o inquérito através de suas próprias linhas, em vez de permitir ao garotinho que expressasse seus pensamentos. Por essa razão, a análise começou a ficar obscura e incerta. Hans tomou seu próprio caminho e não produziria nada se fossem feitas tentativas para tirá-lo deste (...) Só posso aconselhar àqueles dos meus leitores que até agora ainda não tenham conduzido uma análise, que não tentem compreender tudo de uma vez, mas que deem um tipo de atenção não tendenciosa para todo ponto que surgir e aguardem desenvolvimentos posteriores. (p. 63-4). Isso ocorreu na sessão de 10 de abril. Na do dia seguinte, Hans continua sua brincadeira de exploração do inconsciente mediante suas próprias associações, nas quais ironiza as respostas do pai para explicar o vínculo do menino com o pai por meio de metáforas de boneca e canivete, de cegonha, de galinhas, ovo e galinha outra vez, o pai galinha que botou um ovo. Ele mesmo diz ter botado um ovo, e Freud comenta: “Com um golpe audaz, Hans apropriou-se da direção da análise” (Ibid., p. 82).
Variantes da Verleugnung do ato A psicanálise, enquanto sustenta uma ética, implica um juízo sobre o ato do analista; esse ato, entretanto, em razão de sua própria estrutura, é uma resposta meramente inicial, de colocar em andamento e de incitação de um processo cujo destino se desconhece. Há, contudo, distintos modos de desconhecer. Em primeiro lugar, situemos esse não saber para onde nem até quando pelo qual o analista paga com seu juízo teleológico; esse não saber remedia-se, conforme indicação de A direção do tratamento (LACAN, op. cit.), “seguindo do desejo à letra”. É um não saber inerente ao ato de permitir que emirja um sujeito incalculável cujo ser apoia-se nesta margem de liberdade daquele que goza graças à estrutura, que é a estrutura de uma falha. Outra coisa diferente é esquecer a existência desse ato em que se funda a psicanálise, esquecê-lo intitulando-se analista, vale dizer, desconhecendo que seu ser e sua presença são possíveis justamente porque esse ser não está representado no significante e, menos ainda, no significante “psicanalista”, que seria o óbvio. Esse esquecimento, esse desconhecimento, essa Verleugnung é o que a Escola de Lacan busca remediar. O analista sustenta sua posição nessa destituição subjetiva que o devolve a uma forma peculiar de ser em ato, ser a coisa silenciosa que causa o dizer da análise. Se quando interpreta apela a seu saber inconsciente enquanto sujeito, bem- vindo ou nem tanto, depende do arbítrio do analisante; em qualquer
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caso, pagará com sua pessoa na transferência ou, mais radicalmente ainda, pagará com seu juízo íntimo nessa ultratransferência em que o desejo do analisante afirma-se como condição absoluta e como destino, como Wunsch indestrutível mantido em reserva.
O controle do ato pelo analisante, pelo supervisor, pela Escola O analisante, paradoxo em ato que interroga as respostas do analista, é em si mesmo um primeiro controle, um primeiro guardião de que o desejo do analista renove-se em uma destituição atualizada, que o analista não se mantenha na posição fixa, na satisfação boba do saber já sabido, inaplicável ao ser. O analista pode o que quiser na interpretação, com a condição de pagar com sua pessoa na reação transferencial que suscite. Pode permitir-se ainda certas manobras na transferência, vacilações calculadas ou não calculadas na neutralidade, sob condição de submeter-se estritamente às posições subjetivas com que responde o analisante, abandonando todo juízo corretivo, seja de aprovação ou de reprovação, todo juízo religioso, seja de absolvição ou de condenação, todo juízo terapêutico, seja de melhoria ou o contrário. Não é que o analista não possa opinar, não falo de uma regra tática, mas dessa política do ser em que se joga sua resposta fundamental. Por isso, o analista “está sempre à mercê do analisante, já que esse nada pode poupar-lhe se tropeça como psicanalista, e, se não tropeça, menos ainda”, conforme se expressa Lacan (1967/2001) em seu Discurso de 5 de dezembro 1967. Nesse mesmo discurso, sugere também que o dispositivo do controle ou supervisão indica-se naqueles casos em que o sujeito é superado por seu ato, e usualmente não tanto porque esse ato resulta ineficaz, mas porque não se adverte ou não se tolera sua eficácia. A força do dispositivo freudiano é tal, que praticamente quase qualquer intervenção do analista desperta reações associativas, sintomáticas e transferenciais cuja apreensão clínica escapa ao analista, talvez porque encontra ali algo que não consegue suportar enquanto sujeito. Essas associações, essas respostas transferenciais, essas reproduções do desgarramento subjetivo do analisante exigem dele esses pagamentos que custa efetuar e que tanto mais estritamente lhe serão exigidos quanto melhor analista for. Se a Escola focaliza seu interesse nesse ato que situa no passe do analisante dividido a analista destituído é porque a ética da análise vai contra a canalhice normal do terapeuta, do curador, do padre, canalhice que consiste em saber manipular o inconsciente do sujeito, saber para onde dirigi-lo. A partir desta perspectiva, a sugestão é um caso de canalhice, e a transferência positiva, induzida e mantida pelo analista, como sugeriu Freud, também fica sob suspeita.
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A política do neurótico em relação ao juízo do analista
Nossa segunda pergunta é de que modo incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento, que espécie de obstáculo representa para a análise e de que modo incide essa dificuldade no fim da cura, e acaso em seu término. Comecemos por assinalar que existem políticas típicas do analisante em relação ao juízo do analista. Também a esse respeito pode-se constatar a diferença entre os tipos clínicos lacanianos que são a neurose, a psicose e a perversão. Conrad Stein (1968) escreveu um artigo sobre o juízo do analista no qual adverte que o neurótico quer ser reconhecido como culpado, da masturbação por exemplo. Esse reconhecimento talvez o aliviaria, argumenta, mas não corresponde ao analista outorgar-lhe tal reconhecimento. Tampouco lhe corresponde absolvê-lo, não é concebível que o paciente se cure porque aquilo que ele tinha como um pecado resulta ser, na verdade, um gesto benigno e natural: o analista que quer desculpabilizar ao analisado expõe-se ao reproche de falhar em sua missão, diz Stein, e diz bem. Acrescentemos como comentário que a masturbação culpabiliza não por satisfazer mais ou menos, mas pelo que sua descarga tem de curto-circuito, de renúncia, de satisfação que evita o encontro com o desejo do Outro – e com o que esse encontro implica de realização do desejo próprio, esse Wunsch radical e indestrutível que se frustra na realizações de mera fantasia. A política neurótica de solicitude ou espera do juízo de aprovação ou de condenação do Outro define a posição e a armadilha fundamental da neurose, assim como sua duplicidade em matéria moral. No lugar do Outro do desejo, o neurótico atribui-se um Outro que o julga e resigna seu desejo e sua ética em posse desse juízo alheio. Inclusive, se permanece para ele profundamente reprimido, o juízo do analista é buscado, esperado, é solicitado. Como se materializa o supereu na neurose, senão por meio dessa cessão ao Outro do juízo sobre as próprias ações? O supereu, essa instância moral contrária à responsabilidade e à integridade ética, que alenta a culpabilidade e reforça a divisão subjetiva, na neurose toma a forma do juízo implícito, suposto ou esperado no Outro. A política neurótica consiste, resumidamente, em sustentar o ser enquanto sujeito marcado por essa barra $ que se manifesta como divisão no sintoma e como fading do sujeito quando se “cura” pelo reconhecimento do Outro, entendido como ab-solução. Mistura de obediência e rebeldia interior, a neurose aporta a mais alta porcentagem ao rebanho daqueles que renunciam ao desejo. O neurótico foi o primeiro, o bom paciente, o que mais docilmente responde com “associações” quando a interpretação do analista convida-o a fazê-lo, mas não por isso é necessariamente o que chega mais longe na análise nem mais decididamente
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acede ao desejo do analista. Os psicanalistas – por uma espécie de hipnose ao contrário – costumam considerá-lo ainda o melhor analisante, em vez de permitir outros tipos clínicos entre seus analisantes.
O analisante perverso A posição do perverso em análise é diferente e revela-se muito diferente da do neurótico nos momentos de auge do tratamento. É uma conjuntura cada vez mais frequente nos consultórios de analista, e faz-se importante saber reconhecê-la. Nesses momentos, o perverso escapa de sua divisão subjetiva, de seu sintoma, buscando, e muitas vezes logrando, produzir o efeito de divisão subjetiva $ no Outro, agora o psicanalista. Em suas realizações de fantasia e também em sua vida cotidiana costuma valer-se dessa manobra fundamental para se “curar” de seu sintoma. Em seu texto Kant com Sade, Lacan (1962/1998) dá esta indicação preliminar a todo tratamento possível de um analisante perverso: “É que uma fantasia, com efeito, é bastante perturbadora, pois não se sabe onde situá-la, por ela estar ali, inteira, em sua natureza de fantasia que só tem realidade de discurso e que nada espera de seus poderes, mas que lhes pede, isto sim, que se ponham em dia com seus desejos” (p. 791). Serge André (1993) assinalou muito bem que, já no relato de sua fantasia, o perverso inicia a passagem ao ato, transformando o consultório analítico em cenário de uma fantasia que divide o partenaire que não está em conformidade com seus desejos. Dividir-se, angustiar-se, isso pode acontecer ao analista, e o perverso compraz-se em produzi-los. Mas, o analista deve saber que a divisão subjetiva e a angústia devem ser restituídas ao analisante, que seu desejo e seu ato de analista realizam-se na destituição. Longe então de buscar a aprovação do Outro, o perverso no exercício de sua fantasia consegue, às vezes, perturbá-lo, o que não é de nenhuma utilidade aos fins analíticos... a não ser como oportunidade de uma manobra da transferência que permita relançar a análise. Em relação ao juízo de gosto, se esse relato excita ou angustia, satisfaz ou não satisfaz, não tem a menor importância, já que o decisivo é que a intervenção do analista apoie-se em um desejo exercido a partir da destituição que lhe é requerida para constituir-se em partenaire não da fantasia, mas do sintoma analisante. No que se refere ao juízo teleológico, se o analista propicia a regra fundamental, também nesse caso é porque tem certeza de que seu acionar vai no sentido de liberar também o analisante perverso das restrições da fantasia que limitam sua liberdade, que inibem suas possibilidades sociais e sublimatórias.
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Isso explica retroativamente porque o perverso cada vez com mais frequência consulta ao analista, e particularmente ao analista que sabe diagnosticar sua peculiar posição como algo bem diferente da neurose. A consulta do perverso produz-se quando o sujeito foi atraído por um desejo mais forte que aquele que se satisfaz em suas performances de fantasia, quando se dividiu ou se angustiou. A sublimação, por exemplo, supõe sair do cenário da fantasia, exige um a mais que não se satisfaz nessa moldura rígida e restrita. É claro que, para que isso seja possível, o analista não tem que condenar de antemão o perverso como um homem mau, tampouco deve tratá-lo como a um neurótico para evitar empregar esse diagnóstico como um juízo condenatório. O termo “perversão”, que na linguagem comum é injuriante ou condenatório, interessa profundamente ao perverso já que recusou a “normalização” neurótica do desejo. Noventa e sete porcento dos analisantes preferem ser considerados “neuróticos”, ditos bons pacientes. Mas boa parte do ensino de Lacan está destinada a liberar os analistas do pré-juízo de que o perverso é mau, de que o psicótico é louco e de que a psicanálise é só para os neuróticos bons pacientes. O uso do diagnóstico em psicanálise não é com finalidade de juízo moral nem de etiqueta que estigmatiza. Não se deve empregá-lo para segregar, mas para admitir, como instrumento para alojar melhor distintos tipos de analisantes, e não somente aos que respondem docilmente à interpretação.
O analisante psicótico
O psicótico, de sua parte, não pede para ser julgado, ele mesmo já o fez e julgou-se radicalmente inocente se é paranoico (a culpa é do Outro), radicalmente culpado se é melancólico e radicalmente ambas as coisas se é esquizofrênico. Neste último caso, não de modo dividido, duvidoso, mas dissociado, na certeza cada vez – uma certeza que não necessita de consistência lógica nem de constância para ser radicalmente certa, tão certa como a que induz o significante no real cada vez que prescinde de toda mediação imaginária.2 Inicialmente, o psicótico sustenta fora do laço social seu desejo de existir. Inclusive o esquizofrênico, que relata suas realidades contraditórias e inverossímeis, não é bobo, não é demente, não é cego em relação ao desejo e ao julgamento do Outro; é lógico, é irônico, sabe que o efeito que produz no Outro é de divisão. E, se em alguns casos insiste surpreendentemente em voltar à análise, é porque aposta que o Outro o escute, inclusive nas condições que propõe sua estranha posição no ser. 2 Cf. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud, de Jacques Lacan (1956/1998), e Inocência paranoica e indignidade melancólica, de Colette Soler (1988).
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Pensar que na psicose não há estabelecimento da transferência é inadimissível depois da questão preliminar proposta por Lacan e das consequências que ela implica em termos da Escola de psicanálise.3 É mais conveniente dizer que o psicótico é abordável como sujeito quando somente há transferência, quando todas as posições subjetivas lhe estão reservadas nesse momento da entrevista em que a função da palavra bascula em direção à presença do ouvinte, quando fica claro que se há transferência não há intersubjetividade. O analisante psicótico, com frequência o mais constante e decidido dos analisantes, é o que exige mais radicalmente a deposição da pessoa do analista. Mas também é o analisante que mais radicalmente exige ao analista pagar com seu juízo íntimo. Efetivamente, exige esse pagamento com absoluta veemência e somente aceita ao analista quando esse admite: • testemunhos inverossímeis, que o próprio psicótico sabe inconcebíveis a partir de uma realidade compartilhada; • usos neológicos da linguagem e outros procedimentos desestruturantes do laço social, nos quais um dizer afirma-se como passagem ao ato, como des-enlace por fora de todo o código social, semântico ou sintático compartilhado; • propósitos delirantes de redenção, de glória, de morte, desígnios cuja nota de impossibilidade é exagerada até a caricatura por eles mesmos. Convidar esse dizer fora de discurso à análise, sintomatizar o sujeito da psicose, exige previamente entrar numa cumplicidade no plano do ser que começa pelo pagamento de todo juízo de realidade, de gosto, de finalidade. Lacan assinalou que o melhor modo de entrar em um laço social é previamente sair pela tangente. Somente se o analista admite sair da realidade compartilhada do discurso comum poderá voltar ao discurso analítico acompanhado pelo louco, que é “o homem livre”. Receber o homem liberado das ataduras sociais é angustiante para quem não tem defesas muito fortes como o psiquiatra experiente, e também para o psicanalista que não está em conformidade com essas margens de liberdade que felizmente lhe abre a estrutura falha em que assenta seu ser.
3 Cf. não só a Proposição de 9 de outubro ao psicanalista da Escola (LACAN, 1967/2003), mas também o Pequeno discurso de Lacan dirigido aos psiquiatras (1967/inédito), pronunciado algumas semanas depois de dita Proposição.
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Para concluir... Assinalemos que a dificuldade do analista em pagar com seu juízo íntimo costuma ser o desencadeante do término das análises. Uma vez que o analisante esgotou todas as variantes daquilo que na intimidade do analista “incomoda a sua defesa”, conforme se expressa Lacan, a análise pode ser dada por terminada, se assim o decide o analisante. A fisis, o que se manifesta, ama ocultar-se, dizia Heráclito; o que se cala, ama manifestar-se de outro modo, acrescenta Freud. O juízo íntimo, essa instância ética próxima ao núcleo do ser, não poderia ser totalmente ignorado nem sequer pelo neurótico, o mais exitosamente reprimido, o menos perceptivo de todos os analisantes possíveis. Seus gostos, seus prejuízos inconscientes, suas vacilações sintomáticas, suas expectativas terapêuticas ou didáticas a respeito do fim e das finalidades da cura, mesmo que o analista as reserve para si, de todo modo, podem ser advertidas e exploradas metodicamente pelo inconsciente analisante ao longo da cura. Em psicanálise, o íntimo costuma ser êxtimo, aquilo que se dissimula comunica-se entre linhas, o que se cala repete-se, que mais não seja, por omissão, o que aparentemente oculta-se, assinala-se sigilosamente, o inconsciente entende o oxímoro e o silêncio. Buenos Aires, setembro de 2012. Tradução: Maria Cláudia Formigoni Revisão: Ida Freitas
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resumo
Diversos trabalhos sobre o “pagar com palavras” na interpretação do psicanalista e sobre o “pagar com sua pessoa” em sua manobra na transferência já foram apresentados. Propomo-nos, neste artigo, a interrogar o “pagar com seu juízo íntimo” do analista, no plano de sua ação em que se decidem a ética da psicanálise e sua política a respeito do ato próprio do parlêtre. Neste nível, “sua ação sobre o paciente escapa-lhe junto à ideia que se faz dela”, escreve Lacan. Desenvolveremos duas linhas de perguntas. A primeira é o que quer dizer “pagar com seu juízo íntimo”, que diversas leituras ou acepções admitem essa expressão na obra de Lacan. De que modo o analista acede ou não ao conhecimento ético – em termos de Kant ou Brentano – de sua práxis e de suas consequências? De que modo haverá de talhar a noção de destituição subjetiva, introduzida anos depois da “Direção do tratamento”, junto à sua noção de ato analítico? A segunda atende a colocação
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O juízo íntimo do analista
à prova, por parte do analisante, das dificuldades do analista para realizar esse pagamento. De quais modos incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento diante de distintos tipos clínicos do sintoma? Em parágrafos concisos, Lacan afirma que o psicanalista está sempre à mercê do analisante, que esse não pode poupar-lhe nada se ele tropeça como psicanalista, e, se não tropeça, menos ainda (Discurso pronunciado à EFP em 5 de dezembro de 1967).
palavras-chave
Juízo íntimo, ato, supereu, desejo, destituição subjetiva.
abstract
Several studies have been presented concerning the “pay in words” inherent to the interpretation of the analyst, many others about the “pay with his person” in his transfer manoeuvre. We propose in this work to question the “pay with his intimate judgment” required to the analyst, in the level where ethics of psychoanalysis and its policy towards the act of the speaking being are decided. In that level, “his action on the patient escapes him along with the idea he conceived about him”, writes Lacan. We develop two lines of questions. The first is what is meant by “to pay with the intimate judgment” in Lacan teaching? How the analyst can get his ethical knowledge – in terms of Kant and Brentano –, its praxis and its consequences? How will carve the notion of subjective destitution, introduced by Lacan at the same time that his notion of analytic act, years after “The direction of the cure”? The second line of questions focuses the testing by the analysant of the analyst’s difficulties to make that payment. In what diverse ways such difficulties affect the analytical process for different clinical types of symptoms? In concise paragraphs Lacan says that psychoanalyst is always at the mercy of the analysant, which can’t save him from nothing if he stumbles as a psychoanalyst, and if he does not stumble, even less (Discours prononcé le 5 décembre 1967 à l’EFP).
keywords
Intimate judgment, act, superego, desire, subjective destitution.
recebido 22/01/13
aprovado 25/03/13
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O Passe de Picasso – O passe em 1988 e hoje Glaucia Nagem de Souza Em 8 de agosto de 1988, Rosine e Robert Lefort apresentaram na então Biblioteca Freudiana este texto: Les Demoiselles d’Avignon ou o passe de Picasso. O que eles trouxeram foi uma análise do quadro que dava nome à conferência, localizando nele um possível passe de Picasso. Localizaram no quadro o fantasma fundamental de Picasso, a ligação do sexo e da morte e o encontro com o objeto perdido. Os Lefort analisaram e relacionaram esses conceitos da psicanálise analogamente a elementos apontados por eles no quadro. O ponto inicial que podemos questionar na análise dos Lefort não toca na seriedade teórica dos autores em suas articulações, mas mostra que uma analogia entre psicanálise e arte pode reduzir o que cada uma dessas áreas tem a dizer. Assim, os elementos recortados do quadro como elementos de um passe já se mostram de modo problemático. Os Lefort se utilizaram da analogia em sua leitura. Sustentamos, porém, neste trabalho que as duas áreas não são idênticas. A cada uma cabe um modo singular de atravessar a fantasia e ultrapassar o encontro com o real. Melhor seria pensarmos na relação da arte com a psicanálise como homóloga, ou seja, elas guardam semelhança em sua origem e estrutura, mas não podem ser reduzidas nas mesmas funções. Dois pontos suscitaram questões para orientar este trabalho: são os elementos recortados pelos Lefort o que se procura no Passe? Seriam ainda elementos localizáveis em um quadro? Josep Monseny (2008) afirma que “Lacan [...] espera ainda assim do Passe que possa alcançar um modo de garantia mais de acordo com a experiência analítica” (p. 15). Assim, logo de saída podemos perguntar se esses elementos que os Lefort “encontraram” nessa obra de Picasso são assim extensíveis fora da experiência da análise. É bem verdade que, em determinado momento, eles marcam uma fala de Picasso em que o artista diz: “Compreendi porque eu era pintor [...] as Demoiselles d’Avignon tiveram que acontecer aquele dia, mas não, em absoluto, por causa das formas, mas sim porque era minha primeira tela de exorcismo”; ao que os Lefort comentam: “Com esse termo que evoca o pretenso pensamento primitivo, não estaríamos aí no campo mesmo da análise, digam o que o que disserem disso? Dizemos, com efeito, em outros termos, o nosso: trata-se do encontro – que constitui justamente o passe – com o objeto perdido” (LEFORT e LEFORT, 1988, p. 14).
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SOUZA, Gláucia Nagem de
Compreender que era pintor poderia ser algo esperado em um Passe? Aparentemente, o que o desenvolvimento feito pelos Lefort poderia localizar é o Passe como pintor em Picasso, apesar de ele já ter, no tempo desse quadro, uma longa carreira percorrida. Mesmo assim, não é desde o início que um artista se considera artista; passa um tempo, um acúmulo de obras e de exposições para que um artista se considere como tal. Mas é preciso localizar que essa passagem de Picasso não pode ser correlata a um Passe de acordo com o que Lacan propõe. O Passe proposto por Lacan não é um dispositivo para averiguar passagens na vida de um sujeito. Muitas passagens, viradas e mesmo mudanças ocorrem na vida das pessoas sem que necessariamente isso seja equivalente a uma análise. A arte é um meio que muito se aproxima da psicanálise, principalmente no que toca à questão do ofício. Quando tratei da formação do analista e do artista no texto publicado na revista Zero 1, disse que “a arte tenta dar provas do humano, fracasso após fracasso. Mas a psicanálise não é apenas um fazer algo em torno, fazer um giro, mas proporcionar um corte. O corte, este instrumento que, como numa banda de Möebius, não destrói, mas faz surgir outra superfície para além do humano, um sujeito” (SOUZA, 2010, p. 188). Tem uma volta a mais que não se pode esperar do artista, posto a relação entre arte e psicanálise não ser homóloga. Ana Vicentini Azevedo diz: “Como podemos conjugar os campos da psicanálise e das artes visuais? [...] a aproximação entre a psicanálise e as artes não é um dado, ou uma relação de continuidade ou de afinidade tout court, mas é, antes de tudo, uma construção”(2006, p.14 ). O que os Lefort desenvolveram tem seu valor para apontar uma virada na posição de Picasso como artista, mas não como prova de que ali houvesse um Passe. O Passe diz respeito estritamente ao dispositivo instituído por Lacan para recolher esse passo do surgimento (ou talvez seja melhor o termo instauração) do discurso analítico como posição operatória. Um passo em que a posição do sujeito muda, como diz Soler (2011): Quanto às condições do ato, elas interessam precisamente à análise do analisante, e a questão é saber se, para além do terapêutico, ela produziu o sujeito transformado que ele esperava no final. Este analisado, Lacan o definiu justamente por uma mudança na relação com o Sujeito Suposto Saber, quer dizer, mudança também na relação com o real, o saber real do inconsciente, este “saber sem sujeito” que trabalha sozinho (p. 6). Assim, há a expectativa de averiguar essa mudança na relação do sujeito suposto saber, na relação com o real. E ainda averiguar que “a satisfação do fim vale como conclusão. Ao desligar o sujeito da verdade mentirosa, ela confirma a separação do fim, separação em relação ao Outro por meio do real do sintoma” (Ibid., p. 6).
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O Passe de Picasso – O passe em 1988 e hoje
Há, assim, uma espera no testemunho de escutar uma mudança de posição do sujeito no que diz respeito ao discurso do analista e sua relação com o real e a satisfação do final, como apontou Soler no último encontro de Escola. Nele, também disse que a satisfação é o que indica a intenção na medida de fazer a análise terminar, de um analista possível, aquele que pode acompanhar as turbulências do fim porque ele experimentou uma saída possível. Mas há ainda o entusiasmo em sua urgência de que a psicanálise continue sua marcha, indicando, assim, a extensão.1 O Passe está, dessa maneira, em um lugar privilegiado em nossa Escola na medida em que ele aponta não apenas para o testemunho de uma mudança de posição, mas também para os efeitos que isso exerce sobre a intenção e a extensão da Escola. Voltemos ainda um pouco ao texto dos Lefort. Na última parte do texto, eles nomeiam Picasso passante sem passador, e articulam como foi solitário esse tempo de passe para Picasso, que nem mesmo seus pares suportaram o lugar de passadores de suas Demoiselles. E que “seu desejo é resolvido, que sustentou em sua operação o psicanalisando que ele foi durante dez meses” (LEFORT e LEFORT, op. cit., p. 18). Mais uma vez, podemos entender que o principal nesse texto é a tentativa de fazer uma analogia da experiência de Picasso na elaboração dessa obra com uma elaboração analítica. Pode ser que, para um pintor, isso só se resolva a partir da exposição posterior e do reconhecimento de seu trabalho. Mas para nós, analistas, em uma Escola que tem o Passe como dispositivo, é possível pensar um passe sem passador? Não. Impossível. O passador, como discutimos amplamente nos últimos anos nos Espaços Escola de diversos fóruns, é uma das pedras angulares do Passe. Claro que com ele está o cartel do Passe, como o próprio Lacan afirmou: “É preciso um passador para escutar isso” (LACAN, 1974, apud ROJAS e FINGERMANN, 2011, p. 80). Sem ele não há como fazer o dispositivo operar. Mas como pensar esse personagem tão principal do dispositivo em relação à nossa Escola? Já se discutiu sobre a pertinência ou não do passador à Escola, e temos visto que se sustenta que isso não é uma prerrogativa. Mas é possível pensar passadores que não queiram saber nada da Escola? Qual a relação esperada dos passadores com a Escola? Tendo em vista que os passadores são analisandos indicados por um AME quando estes estão em momento de passe, não é sem consequências o tipo de relação dos passadores com a Escola. Bastaria estar em um momento de passe na análise para ser designado passador para o dispositivo? Penso que a responsabilidade de designar um passador é maior do que perceber o momento de passe de 1 Anotações da autora, feitas no Encontro de Escola realizado em Paris em dezembro de 2011.
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um analisando. É preciso que esse analisando esteja também orientado pela Escola, mesmo que não faça parte dela. Mas espera-se que os passadores não estejam contra a Escola. A posição desse personagem do dispositivo não é apenas de um recontador de história. Ele é, sim, um atravessado(r) de Hystoricização. No momento do passe, espera-se que os passadores não compareçam com suas histórias, mas que eles se deixem atravessar pelo que escutam e atravessem o cartel do passe com o seu dizer. E para serem atravessados e atravessarem é preciso disponibilidade d’Escola. Disponibilidade d’Escola não é ser um membro da Escola, mas estar d’escolado, tocado d’Escola. Assim, é inconcebível um Passe sem passador. Monseny (op. cit, p. 15.) diz ainda da dupla efetividade do passe, qual seja, a de restituir ao analista sua finalidade, mais além de uma reprodução identificatória com os sábios, a de esburacar a estrutura da Escola para dar mais oportunidades à efetuação da estrutura psicanalítica no psicanalista. No passe se pode recolher um nome para além das identificações, um nome que se construiu em análise e que ressoa a posição do passante em seu ato. Temos visto o quanto o passe movimenta a Escola; não fosse o passe, não estaríamos nos reunindo para discutir sobre o que funda nossa Escola nos Encontros de Escola – como em dezembro último, quando colocamos em discussão cada parte do dispositivo, ou seja, não só os passadores, como também os AMEs em suas designações e os cartéis do passe. Essa é uma das funções mais impressionantes do Passe em uma Escola de Psicanálise: a de não deixar cair na plenitude da Suficiência e Beatitudes, menos ainda evitar que nos prendamos aos sapatinhos apertados. A aposta de nossa Escola no Passe é, em si, um ato. E cada um de nós está desafiado, a partir desse ato, a viver a vida passando o passe, não só o nosso como sustentando o dispositivo, apesar de todas as questões que ele suscita. Afinal, “o testemunho do passe [...] é o testemunho do real. Não há Analista da Escola sem esse testemunho” (BOUSSEYROUX, 2011, pp. 29-30). E me arvoro a dizer que não há Escola sem o dispositivo do Passe. Concluo dizendo que o Passe não é uma construção intelectual, mas um dispositivo para abrir a possibilidade de fazer avançar a teoria, e não apenas verificá-la, e ainda, que se trata de um dispositivo d’Escola.
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O Passe de Picasso – O passe em 1988 e hoje
referências bibliográficas AZEVEDO, A. V. de. Ruídos da imagem: questões de linguagem, palavra e visualidade. In: Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo: Editora Escuta, 2006, p.14. BOUSSEYROUX, N. Satisfazer os casos de urgência. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 29-30, outubro de2011. Disponível em: <www.champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013. LEFORT, R. e LEFORT, R. Les Demoiselles d’Avignon ou o passe de Picasso. Capítulos de Psicanálise. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, n. 2, dezembro de 1988. MONSENY, J. “O Passe, ponto de referência do analisante”, Wunsch 7: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 14-18, janeiro de 2008. Disponível em: <www. champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013. ROJAS, R. e FINGERMANN, D. Thesaurus sobre o passador. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 72-81, outubro de 2011. Disponível em: <www. champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013. SOLER, C. O Tempo Longo. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 3-8, outubro de 2011. Disponível em: <www.champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013. SOUZA, G. N. de. O que a Formação do Analista pode nos ensinar. Livro Zero: revista de psicanálise. Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, n. 1, pp. 185-189, 2010.
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SOUZA, Gláucia Nagem de
resumo
O artigo trata, a partir das questões levantadas pelos Lefort no texto “Les Demoiseles d’Avignon ou o passe de Picasso”, da estrutura do Passe proposto por Lacan e praticado ainda hoje em nossa Escola. É possível um passe sem passador? O que se espera de um passe? Quais as implicações e os implicados nesse dispositivo? Estas foram as questões que nortearam a construção deste artigo em diálogo com alguns autores que também trataram do assunto.
palavras-chave
Passe, passador, Escola.
abstract
Based on the issues raised by the Leforts in “Les Demoiseles d’Avignon or Picasso’s pass”, the paper addresses the Pass’ structure as proposed by Lacan, and still active in our School. Is it possible to have a pass without a passer? What to expect from a pass? What situations and people involved in this device? Those are the issues that guided the writing of this paper, which communicates with other authors that have been addressing the subject as well.
keywords
Pass, passer, School.
recebido 29/01/13
aprovado 15/03/13
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Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies Samantha A. Steinberg A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo em que conduz o seu paciente, em torno do quê o movimento gira. Ele deve saber, a ele deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo de que ele retorna. Esse ponto pivô é o que eu designo pelo nome de desejo do psicanalista. (LACAN, 1964, p. 218)
Este trabalho, produto de um cartel, enfatiza e marca a relevância da contraposição do conceito de transferência, tal como Lacan (1964/1988) o concebe no Seminário 11, à função desejo do analista. Levantamos a hipótese de que esta contraposição é o que nos diferencia estruturalmente das outras terapias e análises. Para tal, nos propomos a trabalhar alguns recortes de um caso que Lacan (196465/inédito) nos apresenta no Seminário 12 para discutir especialmente esta importante diferença marcada neste momento do seu ensino. A topologia nos acompanhará nesta tentativa, pois partimos do princípio que ela pode nos orientar no fazer clínico. Se conseguimos vencer uma resistência inicial e nos aproximamos dela, parece-nos que ela ensina, nos ajuda a melhor acompanhar os reviramentos e torções que Lacan realiza na elaboração dos seus conceitos fundamentais. No Seminário 12, Lacan (op. cit.) justifica o seu mergulho na referência topológica utilizando o seu velho esquema óptico. Precisamente porque o objeto a não é homogêneo ao eu e ao corpo que ela se fará necessária. Ou seja, a topologia é o recurso que pode nos dizer um pouco mais da sua única invenção, deste objeto tão inusitado, caracterizado como não especularizável e de impossível apreensão para o pensamento intuitivo: o objeto a. Toda a questão, assim Lacan sustenta nesse seminário, é que no fim da análise podemos ficar suspensos entre dois termos, que não são da mesma ordem, o Ideal do eu ou o a. Como nós, analistas, contribuímos para que um destes dois caminhos se desenrole? Como a transferência e a função desejo do analista se relacionam com este problema? Vamos a um dos casos que Lacan retoma para elaborar estas diferenças.
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STEINBERG, Samantha A.
Caso de Pearl King Pearl King, inteligente analista inglesa da IPA, analisante de Rickman e supervisionanda de Balint, apresenta um trabalho intitulado “On a patient’s unconscious need to have bad parentes” em pré-congresso em Londres, realizado em 1963, encontro preparativo ao Congresso da IPA em Estocolmo, e oferece uma cópia deste trabalho a Lacan, que lá se encontrava na audiência. Este trabalho servirá de material para as suas elaborações na aula de 3 de fevereiro de 1965, no Seminário Problemas Cruciais para a Psicanálise (LACAN, 1964-65/inédito). Lacan se interroga nesta aula, especialmente sobre a posição em que esta analista se manteve no tratamento e sobre as interpretações e efeitos das suas intervenções. Elogia a audácia de Pearl, no entanto, faz críticas importantes no que concerne ao seu entendimento da transferência, contratransferência e à sua concepção de interpretação. Pearl King traz neste texto longo e minucioso o relato de um caso que atendeu por aproximadamente dez anos, com dois curtos momentos de interrupção. A questão central da analista, neste texto, é discutir a necessidade desse paciente em manter uma crença em um pai não satisfatório de forma tão intensa ao longo do tratamento, sustentando assim sua onipotência infantil. O paciente, diagnosticado pela analista como borderline, com momentos importantes de dissociações esquizofrênicas, inicia esta análise aos trinta anos. Neste texto, Pearl valoriza a contratransferência como um recurso importante que a auxiliou na descoberta das distorções inconscientes deste paciente, que projetavam nela e nos substitutos do seu pai um determinado padrão de comportamento que os aprisionava, com o consequente retardo e empobrecimento do desenvolvimento do seu ego emocional. Percebe o quanto ela respondeu deste lugar durante longos anos e nos relata detalhadamente neste artigo a sessão em que intervém interpretando a sua descoberta ao paciente e os efeitos que daí decorrem. O que Lacan destaca deste texto? Ele nos adverte sobre o modo desta analista tomar a transferência, que a leva a priorizar durante muito tempo os efeitos do ambiente e do comportamento dos pais no desenvolvimento do seu paciente. Ou seja, o mau pai se presentificou não só para o paciente, mas também para a analista. Destaca a fala de Pearl em que se diz fixada pelo paciente em vários momentos. Incide aí sua crítica, nos diz que ela ficou aprisionada, presa neste lugar durante quase dez anos. Podemos dizer que a transferência é sempre da ordem de um engano, mas a analista, neste caso, o favoreceu. Lacan destaca uma intervenção da analista que se dá após a seguinte fala do paciente:
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Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies
Sinto que há uma irritável versão de mim que está se tornando mais e mais ativa. Este self não está mais satisfeito com o status quo que tem estado presente há anos. Este status quo é baseado na crença que eu não posso fazer coisas e isso me faz desafiar esta crença. E isso não é a única coisa que tem acontecido comigo ultimamente. Eu tenho tido algumas estranhas experiências com relação ao espaço e tempo. Eu me vejo no café da manhã tentando fazer duas coisas ao mesmo tempo, tentando pegar a torrada e a manteiga ao mesmo tempo, e eu sinto minha mão indo em direção aos dois objetos e incapaz de se mover em direção a um ou ao outro. (KING, 2005, p. 134, tradução da autora) A interpretação da analista, que se segue, será abordada na aula de Lacan: A parte sua que sente necessidade de se sentir melhor e fez aliança comigo não aguenta mais o modo como você continua incapaz de dar um passo na direção do que lhe falta. Aí está o status quo de que você falava e parece-me que a razão pela qual você não pode avançar até pegar um dos objetos que deseja é que você pôs sua própria boca de bebê faminto em cada um dos dois. Então, como inconscientemente você acredita que só há comida suficiente para uma boca, isto é, que você só pode fazer uma coisa de cada vez, o outro vai sucumbir à fome e provavelmente morrer disso. Essa é uma razão pela qual você se colocou na situação de preservar o status quo, o que quer dizer, de não se permitir sentir que você podia fazer ou tinha feito algo porque isso teria significado dizer que uma parte de você, ou um de seus “self”, de seu “eu próprio”, teria sido abandonado para sempre e morrido de fome! (LACAN, 1964-65/inédito, p. 153) Ela ainda interpreta, ao final desta mesma sessão: Eu acredito que você inconscientemente precisou me manter um “fracasso”, assim você podia sentir que eu estava sob o seu controle. [...] Se eu e seus pais somos maus, então quem poderá culpar a criança chorona, você, pelos estragos que pode ter feito com seus ataques a nós? [...] Talvez você possa ter trazido este material para a análise hoje por estar começando a acreditar que as boas experiências associadas aos seus bons e satisfatórios pais, do seu passado, também são acessíveis a você agora, no presente, e que eles sobreviveram aos seus sentimentos de raiva e desilusão. (KING, 2005, p. 139, tradução da autora) Com base nestes recortes, pretendemos discutir a subversão da posição de Lacan, partindo dos seus conceitos fundamentais. Vamos a eles.
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STEINBERG, Samantha A.
Transferência Primeiro a transferência, conceito nada simples, um dos quatro conceitos fundamentais do Seminário 11. Lacan (op. cit.) a define aqui pela primeira vez de uma maneira nova e enigmática. Depois de discorrer sobre o que não se confunde com a transferência, por exemplo, a repetição, ou sobre os pontos que não lhe parecem tão fundamentais na estrutura, como os afetos que dela decorrem, nos diz que ela é a atualização da realidade sexual do inconsciente. O que seria isso? A transferência é um fenômeno próprio das relações humanas; basta sermos seres falantes para estarmos de alguma maneira envolvidos nos fenômenos de transferência. Transferimos saber, transferimos sentido ao Outro (como tesouro dos significantes, como Inconsciente) de saída. Mas não é só isso, Lacan ressalta neste seminário a íntima relação da transferência aos conceitos de inconsciente e pulsão. Aponta nesse momento uma contradição de base na função da transferência, que faz com que a defina como um nó. Diz: “A contradição de sua função, que faz apreendê-la como o ponto de impacto do porte interpretativo, nisso mesmo que, em relação ao inconsciente, ela é o momento de fechamento – isto faz com que a tratemos como o que ela é, um nó” (LACAN, 1964/1988, p. 126). Ao mesmo tempo em que só podemos intervir a partir dela, da sua instauração na cena analítica, da instalação da estrutura do sujeito suposto saber, não podemos esquecer que a tendência da transferência é fechar o inconsciente. Fechar o inconsciente na medida em que algo do objeto a se coloca na função de obturador. Não um obturador qualquer, mas um obturador ativo, que se assemelha muito à estrutura do olho, diz Lacan. Desta maneira é preciso distinguir duas vertentes da transferência: uma pulsional, relacionada ao objeto a, que se relaciona ao fechamento do inconsciente; e outra, significante, articulada à suposição de um saber e ao inconsciente, que faz avançar o trabalho da análise, o torna possível. Estas duas vertentes caminham juntas no dispositivo analítico; no entanto, é preciso que o analista saiba deste funcionamento, deste nó, para poder sair dele. A crítica de Lacan a Pearl é que ela não soube sair deste nó, manteve-se nele e favoreceu a inércia própria ao fenômeno transferencial durante muitos anos. Havia uma atualização do inconsciente do paciente e de sua realidade sexual na cena analítica, mas o que a analista pode fazer com isso? Para pensar este manejo, Lacan formaliza a função desejo do analista. Para trazer recursos e possibilidades de manobrarmos a transferência e sairmos do lugar que somos chamados pelo paciente a ocupar.
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Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies
Transferência e função desejo do analista nas figuras topológicas Vamos às figuras topológicas que Lacan nos apresenta neste seminário, ao cross-cap e ao toro para melhor distinguir esses lugares. Haverá duas lições dedicadas a estas formalizações. Na lição de 29 de abril de 1964, nos deparamos com a figura do oito interior e com a banda autoatravessada de Moebius ou cross-cap, este último só na versão sem cortes, staferla (LACAN, 1964/staferla.free-fr).
Fig. 1.: Esfera provida de um cross-cap Curiosamente, Lacan localiza no cross-cap dois campos, um ocultando ou recobrindo o outro, e nos diz que se trata de uma superfície de uma só face, ou seja, uma superfície não orientável. Localiza nesta figura o campo do desenvolvimento do inconsciente ocultando e recobrindo o campo da realidade sexual. Assim, apresenta dois lobos ou campos (b e c, na figura acima) que se articulam intimamente. E ainda posiciona um outro elemento como lugar de junção/disjunção destes dois campos, o desejo, um desejo vinculado à libido. Este se localiza num ponto de interseção, que é essencialmente um vazio, nos diz Lacan (1964/1988). Diz: “Sustento que é no nível da análise – se algum passo à frente pode ser dado – que se deve revelar o que é desse ponto nodal pela qual a pulsação do inconsciente está ligada à realidade sexual” (p. 146). Esse ponto nodal é o desejo. Continua: Essa imagem nos permite figurar o desejo como lugar de junção do campo da demanda, onde se presentificam as síncopes do inconsciente com a realidade sexual. Tudo isto depende de uma linha que chamaremos desejo, ligada à demanda, e pela qual se presentifica na experiência a incidência sexual (Ibid., p. 149).
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Entendemos neste trecho que a transferência, formalizada como atualização da realidade sexual do inconsciente, pertence à estrutura da esfera provida de um cross-cap, imersa em três dimensões. Podemos sobrepor estes dois campos, da realidade sexual e do inconsciente, aos “dois lados” do cross-cap propriamente dito, separados pela linha de autointerseção. O desenvolvimento do inconsciente e a realidade sexual funcionariam nesta figura como dois campos que se recobrem, e o desejo se localizaria nesta linha de autointerseção. Parece-nos relevante que Lacan faz questão de posicionar o desejo e a libido nesta linha anômala, que existe só submersa em três dimensões. Enfim, o que pretendemos evidenciar aqui são essencialmente os lugares, lugares que não coincidem para a transferência e para o desejo. Na última lição do Seminário 11, de 24 de junho de 1964, Lacan volta à topologia e nos apresenta o oito interior, agora associada ao toro. Faz uma linha imaginária na interseção do oito interior da demanda que nomeia de identificação. Nesta mesma imagem também situa o desejo e o ponto de transferência. Marcamos aqui o pontilhado do desejo que se opõe à linha da identificação e à transferência. Este vazio do desejo é o que pode manter uma certa abertura nestes movimentos que tendem ao fechamento.
I T
d
D
D:
ligne de la demande
I :
ligne d'intersection, identification
T:
point du transfert
d:
le désir
Fig. 2.: Linha da Demanda x desejo
No final deste capítulo, didaticamente Lacan nos mostra como estes elementos se articulam: Para lhes dar a fórmula-referência, direi – se a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por
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Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies
essa via, ele isola o a, o põe à maior distância possível do I que ele, o analista, é chamado pelo sujeito a encarnar. (Ibid., p. 258) E continua: O esquema que lhes deixo como guia da experiência, como também da leitura, lhes indica que a transferência se exerce no sentido de reconduzir a demanda à identificação. É na medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende para um sentido exatamente contrário à identificação, que a travessia do plano da identificação é possível, pelo intermédio da separação do sujeito na experiência. (Ibid., p. 258) Assim, entendemos que a espiral do oito interior se desenvolvendo em direção ao centro fecha o inconsciente, relaciona-se à vertente pulsional da transferência. A função desejo de analista deve tomar o rumo contrário, deixar aberto o vazio central do toro, trazer a demanda de volta ao seu lugar. Assim, esta função isola o objeto a, o põe a maior distância possível deste lugar que é chamado a se instalar.
T
d
Fig. 3.: Toro, retirado do Seminário IX, versão staferla
Portanto, o lugar que o analisante coloca o analista na relação transferencial não pode coincidir com o lugar almejado / visado pelo analista. Deve haver um desencontro aí, um corte, que Lacan nesse momento de seu ensino relaciona ao desejo do analista.
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A função desejo do analista e o corte No Seminário 12, Lacan (op. cit.) dá uma volta a mais na função desejo do analista e a articula ao corte, à interpretação. Diz: Se o inconsciente é o que é, essa abertura que fala, o desejo está para ser formulado por nós em algum lugar no corte característico da escansão dessa linguagem, e é isso que nossa referência topológica tenta exprimir. Adianto a fórmula seguinte, antes de comentá-la: poderíamos dizer que o desejo é o corte pelo qual uma superfície se revela como acósmica. (Ibid., p. 144) Mas antes disso, pensemos no desejo para Lacan. O desejo é o desejo do Outro. O que a transferência faz com o desejo? Lacan nos diz que “na transferência trata-se sempre de suprir, por meio de alguma identificação, este problema fundamental, a ligação do desejo com o desejo do Outro” (Ibid., p. 152). No entanto, o desejo sempre irá escapar, não se deixará agarrar, por ser a própria falta. Enquanto nós habitamos a linguagem, a falta, o desejo, habita o interior do objeto a. O que nós, analistas, faremos com isso? Lacan propõe que saibamos dar a tesourada certa na dimensão do desejo. Haverá um corte correto que revelará a superfície em sua verdadeira natureza, ou seja, na sua natureza não-orientável, acósmica; e haverá o corte incorreto, que banalizará a superfície, transformando-a em uma superfície banal, cilíndrica. Neste capítulo utilizará a garrafa de Klein para dizer destes diferentes cortes. A função desejo do analista, a partir destas elaborações, é saber talhar estas figuras e assim revelar a estrutura do inconsciente. O seu movimento é o inverso da transferência, que tenta suprir a relação do desejo ao desejo do Outro a partir das identificações e reconduzir a demanda a este fenômeno, da identificação. As intervenções de Pearl para Lacan são exemplos dos cortes incorretos, dos cortes que banalizam o inconsciente. São interpretações que não revelam a dialética do desejo, não demarcam a sua função, mas sim, inversamente, acreditam na existência de um objeto para o desejo e de um Ideal para a análise. Pearl interpreta almejando uma unificação, um fortalecimento do ego do paciente e o paciente assim responde, uma outra crença é construída. Talvez uma outra crença tenha sido construída na cena analítica: do mau pai ao ego unificado e equilibrado. Portanto, neste caso, a analista claramente conduz a demanda para o plano da identificação, em vez de levá-la para o sentido oposto, em que a travessia deste plano poderia ocorrer. E só podemos conduzir uma análise para a travessia das identificações se operarmos com a função desejo do analista, retomando nossa questão inicial.
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Reflexões sobre a função desejo do analista, a partir da topologia das superfícies
A função desejo do analista almejará a pura diferença, nada além disso. Não há um Ideal a seguir e a propiciar ao analisando. O inconsciente se mostra como abertura, como fenda que pulsa, que abre e fecha continuamente. E a função do analista é fazer cortes que revelem esta estrutura. Só o analisante estará apto a dar o passo seguinte, que poderá costurar ou não algo a partir do corte do analista. E assim ir desconstruindo e desmontando o seu novelo neurótico, o seu emaranhado de identificações. O desejo estará no centro deste trabalho, é ele que norteará o nosso fazer clínico. Talvez por isso o nome função desejo do analista, que não nos deixa esquecer a direção a seguir nos tratamentos que conduzimos.
referências bibliográficas EIDELSZTEIN, A. La topologia en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Letra Viva, 2006. KING, P. Time present and Time past: selected papers of Pearl King. Londres: Karnac Books, 2005. LACAN, J. (1961-62). O Seminário, livro 9: a identificação. Inédito. __________. (1961-62). Le Séminaire, livre IX. Disponível em: <http://staferla. free-fr>. Acesso em: 10 de janeiro de 2013. __________. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. __________. (1964). Le Séminaire, livre XI. Disponível em: <http://staferla.free-fr>. Acesso em: 10 de janeiro de 2013. __________. (1964-1965). O Seminário, livro 12: problemas cruciais para a Psicanálise. Inédito. __________. (1966-67). O Seminário, livro 14: a lógica do fantasma. Inédito. NASIO, J.-D. Introdução à topologia de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.
resumo
Pretendemos, com este artigo, trazer algumas reflexões sobre a função desejo do analista a partir do que podem nos ensinar as figuras topológicas apresentadas por Lacan no seu Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Procuraremos também marcar a contraposição entre os conceitos de transferência e desejo do analista utilizando um artigo de Pearl King, audaciosa analista inglesa da IPA, abordado por Lacan no seu seminário seguinte, Problemas Cruciais para a Psicanálise. A partir destes elementos, procuraremos também discutir a direção de tratamento proposta pela clínica lacaniana e a sua diferença com as
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demais terapias e análises. Os conceitos de demanda, identificação, transferência, objeto a e desejo do analista serão abordados para tal propósito.
palavras-chave
Topologia das superfícies, transferência, identificação, demanda, função desejo do analista.
abstract
In this article we intend to elicit some reflections on the desire of the analyst function, based on what the topological figures presented by Lacan in his Seminar 11 – The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis – can teach us. We will also try to show the opposition between the concepts of transference and desire of the analyst using an article by Pearl King, IPA’s audacious English analyst, tackled by Lacan in his following seminar – Crucial Problems for Psychoanalysis. From these elements we will also discuss the treatment plan proposed by the Lacanian clinic and its difference from the other therapies and analyses. The concepts of demand, identification, transference, object a and desire of the analyst will be tackled in order to achieve our aim.
keywords
Topology of surfaces, transference, identification, demand, desire of the analyst function.
recebido 08/02/13
aprovado 30/05/13
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direção do tratamento
O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico? Lenita Pacheco Lemos Duarte Para iniciar este trabalho, esclareço que tomei como ponto de partida o ato falho cifrado “a chupada”, enunciado por uma analisante, Lila, que levou-o à análise para tentar decifrar seu dito enigmático que expressava a condensação de um gozo que lhe suscitava questões, manifestações de angústia e desejo de decifrá-lo. Embora sua demanda inicial tenha sido para sua filha de quatro anos, em suas associações percebi que a menina apresentava sintomas que visivelmente estavam associados à dinâmica conturbada do par parental, como poderá ser visto durante a apresentação de recortes do caso clínico. Diante da riqueza de chistes, atos falhos e questionamentos apresentados durante a análise de Lila, interessei-me, inicialmente, por fazer uma breve pesquisa com a proposta de ilustrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita retificações subjetivas sobre o sujeito do inconsciente, do desejo e suas manifestações. Este caso me levou a estudar e refletir sobre o retorno a Freud de Lacan, quando ele [Lacan] acrescenta outras abordagens sobre o ato analítico, como o corte, a pontuação e a interpretação, apresentadas ao longo de seu ensino. Busco mais subsídios teóricos sobre os efeitos do ato analítico articulando-os com a clínica. O dispositivo analítico possibilita a emergência do sujeito do inconsciente, do desejo. Mas de que sujeito se trata?
O sujeito do inconsciente A partir do conceito freudiano de inconsciente aparece uma nova concepção de sujeito, de um sujeito dividido, portador de um desejo do qual ele não sabe. A psicanálise subverte o cogito de Descartes, “penso, logo sou”, apontando para “sou onde não penso, e penso onde não sou”. E é desse lugar descentrado que o inconsciente vai se manifestar, onde o “eu da consciência”, cartesiano, não se confunde com o sujeito do desejo. O processo de divisão (spaltung) do sujeito apreendido por Freud vai ser generalizado por Lacan (QUINET, 1998, pp. 17-18), que afirma que essa é a característica fundamental do sujeito do inconsciente, onde qualquer
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ideal de harmonia e a noção de inteiro é incompatível com o conceito de sujeito. Lacan também se baseia no conceito freudiano da repetição, que não é pelo prazer, mas que vai acontecer também no nível do inconsciente, ou seja, tem sempre as mesmas cenas ou palavras voltando ao sujeito, determinando a sua vida. Retornam tanto nos pensamentos, nos atos, como nas falas, sinalizando que o inconsciente está amarrado na repetição, articulado numa pulsão de morte1 (QUINET, 2000, p. 74). Para a psicanálise, segundo Lacan, o uso da palavra sujeito é algo pontual, quer dizer apenas o efeito de sentido da linguagem. O sujeito não corresponde ao indivíduo, à pessoa, mas ao que encontramos a partir de um enunciado, o que necessariamente o insere no campo do mal-entendido, que é uma decorrência necessária do desacoplamento entre significante e significado, sempre exigível, do ponto de vista lógico, para que exista o sujeito. No texto A Instância da letra no inconsciente (1955/1998, pp. 500-502), pode-se observar Lacan recorrendo ao signo linguístico de Ferdinand de Saussure. Para este autor, o signo linguístico decompõe-se em significado (s) – o conceito – e significante (S) – imagem acústica, o som da palavra: s/S, que são solidários. Lacan inverte essa relação, passando o significante a anteceder o significado, S/s, apontando que o significante corresponde à palavra esvaziada de seu significado, é o som da palavra. Ele diz que o inconsciente se instaura muito mais pelo significante do que pelo significado, tratando-se de duas ordens distintas separadas por uma barra resistente à significação que pode ser identificada ao próprio recalque,2 ou seja, o sujeito repele ou mantém no inconsciente certos pensamentos, imagens e recordações. Onde Freud desvela as leis do inconsciente, sublinhando a proeminência do jogo das palavras, das falas e das associações livres, como pode ser visto nos seus artigos A Interpretação dos Sonhos, Psicopatologia da Vida Cotidiana e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, Lacan (1998) formula, em 1953, no texto Função e Campo da Fala e da Linguagem, o aforisma do “inconsciente estruturado como uma linguagem”. O inconsciente é o discurso do Outro, onde encontramos a con-
1 “A noção de pulsão de morte foi introduzida por Freud em Além do princípio do prazer (1920) e constantemente reafirmada até o fim da sua obra. No quadro da última teoria das pulsões, Freud designa uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado inorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de destruição” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 407). 2 “Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente, representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de proporcionar prazer por si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 430).
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O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico?
junção do simbólico com o inconsciente: inconsciente é linguagem. Linguagem que tem uma lógica e uma articulação própria que desconhece a contradição e é atemporal, como Freud caracterizou o inconsciente. Este é a soma dos efeitos da fala sobre o sujeito, no nível em que o sujeito se constitui dos efeitos do significante. O inconsciente estrutura-se na superfície que aflora em discursos. O que Freud chama cadeia associativa, Lacan vai nomear de cadeia de significantes, um significante articulado a outro e a outro, e que só no final de uma frase teremos o sentido do primeiro significante, no a posteriori (Nachträglichkeit), que é o tempo da psicanálise. Segundo Lacan, o inconsciente tem leis, as leis de linguagem, metáfora e metonímia, que Freud já havia apreendido como condensação e deslocamento, respectivamente. A metáfora é a substituição de uma palavra por outra. O sintoma é uma metáfora (LACAN, 1955/1968, p. 532), uma substituição de significantes, que permite confundir o lugar do sujeito; e a metonímia é a articulação de um significante ao outro, por deslizamento. A metonímia é característica do desejo (Ibid., p. 532), já que o desejo é sempre desejo de outra coisa. O sintoma é tecido de linguagem, portanto sensível à palavra. O ato analítico vem possibilitar a redução do gozo do analisante ao lhe ser oferecido o convite: “Fale... prossiga! Diga mais!”. Para dispor de mais fundamentos teóricos sobre o ponto que quero desenvolver neste trabalho – os efeitos do ato analítico sobre as manifestações do inconsciente na clínica –, recorro aos textos que abordam o referido tema, principalmente ao de Lacan, A direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958/1998), entre outros.
A interpretação A primeira interpretação que Freud realizou ao fundar a psicanálise é que quem interpreta o sonho não é o analista, quem interpreta o sonho é o sonhador. O sonho é um fenômeno, e só é uma formação do inconsciente na medida em que ele passa para o relato. É no relato do sonho que se encontra o sonho como formação do inconsciente. Freud diz que todo sonho tem uma realização do desejo. A partir do relato do sonho capta-se o desejo. Se formos associando o sonho, observa-se que ele pode ter múltiplas direções, como vemos na clínica. Pode-se chegar a determinadas cenas vivenciadas na infância, e se deixarmos, a associação livre vai continuar a associar outras coisas. A interpretação em momentos diversos das obras de Lacan visa a coisas diferentes: visa ao desejo, depois à causa do desejo, e em seguida ao sintoma, quando ele vai definir a interpretação como equívoco, pela propriedade de equivocidade
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do significante. Nos anos 1974/75, no final do seu ensino, Lacan indica que a interpretação como equívoco é a única arma que o analista tem contra o sintoma. A interpretação vai ser equivalente ao desejo, como Lacan nos apresenta no texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958/1998): “O desejo é sua interpretação”, e a interpretação vai ser o modo que se apreende o que é o desejo, o efeito do desejo numa análise, como se capta o desejo como efeito. Não se trata da nomeação do desejo, já que este vai corresponder a uma das leis da linguagem, ou seja, à metonímia. No campo da linguagem a interpretação está vinculada diretamente ao desejo. Lacan destaca a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento (1958/1998, p. 640). O analista tem o poder de decidir o local, quando e como fazer a interpretação, e seu poder também vai diminuindo à medida que ele vai ficando menos livre até para conduzir a análise. O conceito de interpretação analítica se afasta do conceito de interpretação hermenêutica da significação fixa, da delirante e das interpretações dos sonhos descritos na Grécia Antiga e também na Bíblia. O que é propriamente a intervenção do analista enquanto interpretação é outra coisa, como diz Lacan (1958/1998, p. 640). Ele propõe que a interpretação é uma fala que vem suspender a marca que o sujeito recebeu do Outro, do seu dito; na medida em que fala, é o Outro que aparece, e o que vai aparecer são as marcas que recebeu do Outro que o alienam na série do tu és. Esse tu és que recebe dos pais, que vão alienando o sujeito, e vai se sentindo obrigado a obedecer à palavra do Outro, são as marcas de significantes. Ele propõe a interpretação como algo que venha suspender essa marca que o sujeito tem e que o mortifica. Há aqui a mortificação do Outro pelo significante e que podem ser os mais banais, como: bem educado, inteligente, bonzinho, mas podem ser significantes mortificadores. A interpretação seria algo que suspenderia isso para que haja uma possibilidade de o sujeito deslizar na cadeia significante e não ficar preso a um que ele sempre resiste, pois que ao mesmo tempo é significante ideal que ele nunca consegue ser, mas se sente obrigado a ser. Aparece o supereu medindo-o o tempo todo com aquele significante ideal que veio do Outro e que o sujeito não suporta. Ele se sente completamente submetido à demanda do Outro. No artigo citado (1958/1998), Lacan descreve a interpretação como uma tática do analista na direção da análise, principalmente na primeira, segunda e quinta partes do texto. Existe uma direção do tratamento na clínica dos discursos que colocamos na própria circulação dos discursos. Há uma direção no tratamento que o analista deve fazer, que vai do discurso do mestre, como equivalente ao discurso do inconsciente, ao discurso do analista, como o avesso do primeiro. Ele deve ir contra o próprio inconsciente.
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A interpretação é a tática na direção do tratamento. Lacan diz que as armas do analista são a interpretação, a manobra da transferência (estratégia) baseada na política da falta-a-ser, onde não há imposição de um poder ou de uma sugestão. A manobra da transferência é para ir contra a transferência, a interpretação é para pescar o desejo e a falta-a-ser é para manter a falta no seu devido lugar (1958/1998, pp. 585-649). Lacan vai equivaler a interpretação a um encontro, e aí já é a tática. Em uma sessão cabe uma só interpretação. Na medida em que há um corte na sessão, este momento, algo que ele chama de interpretação. Lacan mostra que a função da pressa precipita não só as formações do inconsciente, mas o momento de concluir, indo contra a hesitação natural do neurótico. Pode-se dizer, que indo contra a interpretação do inconsciente é que se desvelam as identificações do sujeito, as alienações do sujeito aos ditos do outro. Segundo os ensinamentos de Lacan, na medida em que o inconsciente mostra essa alienação do sujeito ao significante, a sessão como interpretação vai contra o sentido da alienação (1958/1998, pp. 591-598). Como fazer isso se o tratamento é com o sujeito, é no sujeito? Lacan mostra que o analista deve abdicar do seu poder transferencial. Em relação ao manejo da transferência, Lacan (1958/1998, p. 595) ressalta que “a psicanálise deva ser estudada como uma situação a dois”, dizendo a si mesmo que tem que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsável. Nesse sentido, lembra da insistência de Freud em enfatizar sua espontaneidade com o paciente. Lacan acrescenta que é impossível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário, alertando para a existência de uma estratégia. E nos sugere que na análise, num jogo a dois, os sentimentos do analista só têm um lugar possível: o de morto. É a partir daí que Lacan afirma: “O analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática”. Continuando, diz que “O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser” (Ibid., p. 596). Sobre a interpretação, Lacan (Ibid., p. 594) observa: Intérprete do que me é apresentado em colocações ou atos, decidido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gosto, único mestre/senhor em meu barco, depois de Deus, e, claro, longe de poder avaliar todo efeito de minhas palavras, mas advertido e procurando prevenir-me contra isso, ou dito de outra maneira, sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra (associação livre) parece ter sido inteiramente
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ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante. Nesse sentido, entendemos que é preciso haver analista para fazer existir o inconsciente, o qual dirige o tratamento. Assim, o efeito da interpretação é sempre incalculável, uma vez que é sempre correlata aos ditos do analisante e deve corresponder a isso. Quem interpreta é o sujeito da associação livre, que é o próprio inconsciente que o analista vai fazer existir, e mostrar qual é a interpretação que o analisante está dando àquele sonho, àquele sintoma.
O ato falho, o lapso como interpretação A troca de uma palavra por outra é um lapso, é uma interpretação, como indica Lacan. Pode-se dizer que o próprio fundamento da interpretação diz que simplesmente há desejo. Não houve apenas lapso, e o sujeito vai associar a partir desse lapso para tentar dizer: eu troquei uma palavra por outra, e aí ele mesmo vai dar o sentido do que foi aquilo, relacionando com um determinado fato, e continua associando e dando novos sentidos. Pode-se afirmar que esse fato de estrutura mostra que um evento psíquico possa ter várias interpretações. Lacan avança em relação à interpretação analítica no início do seu ensino, em dois pontos: a pontuação e a interrupção, o corte da sessão como algo interpretativo.
A pontuação como interpretação Temos a indicação da pontuação como um corte. Corte na medida em que o sujeito enuncia aquilo, suspende-se a sessão naquele momento, aquilo pode esvaziar de sentido, pode fazê-lo interrogar-se sobre por que parar ali, e aí pode-se abrir uma hiância, ao se ouvir o corte como um significante. Podemos pensar em vários tipos de pontuação. O que é uma pontuação? Pode ser equivalente a um ponto numa frase, uma vírgula, aspas, um ponto-e-vírgula, uma exclamação etc. A primeira proposta de Lacan na interpretação é uma pontuação sem texto. O hum, hum, pode ser um ponto. Um Ah! Pode ser outro. É ? um ponto de interrogação. Essa é a primeira entrada de Lacan para falar de uma teoria da interpretação que saia da sugestão, porque o problema é que a palavra em si é sugestiva, hipnótica, as pessoas dormem, ou ficam fixadas nelas. A própria palavra tem um
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O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico?
poder sugestivo, de hipnose, do que é próprio do significante, ainda mais vindo do analista que está no lugar do Outro, isso lhe confere um poder muito grande. Um tipo de interpretação é a pontuação como forma de enunciação sem enunciado. Pode-se observar o corte da sessão como uma função interpretativa no sentido de uma pontuação. Devolver o sujeito ao seu desejo: é possível dizer que o desejo é justamente o que emerge no desenrolar da cadeia associativa, da cadeia significante. (S – S’ – S’’, S’’’, ...). Temos a demanda (D): D/d = enunciado/enunciação. Demanda, D, que é a própria fala que equivale a essa fração onde colocamos o enunciado sobre a enunciação. Pode-se entender que a pontuação do texto é uma indicação ao leitor de como ele deve ler o texto. Tem uma vírgula, faz uma pausa um pouco suspensiva, um ponto, para etc. O leitor deve seguir a pontuação. É aquilo que tenta colocar na escrita a enunciação do escritor. Isso aparece no estilo. A pontuação é aquilo que no texto faz aparecer a enunciação que está na fala. Um texto qualquer, dado a vários atores, vai suscitar diversas enunciações do mesmo enunciado de formas diferentes. Por isso que tem efeito o analista recortar uma frase, uma palavra do texto do analisante e repetir com a sua enunciação, o que já vai trazer um algo que vai ser elevado ao dito interpretativo, a uma interpretação, sem o analista ter colocado nenhuma palavra dele. Isso é uma forma de aspar o texto, uma forma de interpretação. Lacan (1969-70/1996) fala disso em O Seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise, onde fala do enigma e da citação. A citação entraria como um tipo de pontuação. Numa análise, é o analista quem pontua, como ensina Lacan.
Sobre a demanda O que é a demanda? É o que ele faz equivaler à própria fala do sujeito. Essa personificação do Outro da demanda é constitutivo da própria fala, e é isso que confere o poder nos dois sentidos: poder no sentido de abuso de poder, mas também poder com a possibilidade de que um tratamento se desenrole a partir da fala. É a análise como o tratamento pela palavra. Lacan mostra que a interpretação não visa à demanda, porque responder à demanda está na ordem da sugestão, e qualquer resposta à demanda significa que não se está atuando mais no âmbito da psicanálise, mas no da psicoterapia. Lacan diz que o que aparece na fala são os significantes da demanda que sustentaram as frustrações em que o desejo se fixou. É isso que voltará à análise, é esse retorno, e isso não aparece só na análise, mas em outras situações. Por exemplo, em uma briga entre duas pessoas que tenham um relacionamento, começa com queixas e acusações pontuais que cada uma das partes faz. A partir daí, observa-
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-se que há situações frustrantes em que algo do desejo se fixou, e isso voltará e será desfolhado na análise. Realizada esta pesquisa, procuro mostrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita mudanças subjetivas. Um ato falho enigmático de uma paciente que lhe desencadeou intensa angústia, levou-a a demandar análise para tentar decifrá-lo e responder aos seus questionamentos acerca das constantes manifestações inconscientes que evidenciava. A seguir, apresento fragmentos do referido caso clínico para ilustrar o percurso teórico estudado.
A “chupada” de Lila: um ato falho enigmático A demanda inicial de Lila visava à avaliação da filha, quatro anos de idade, a pedido da direção da escola, onde ela se mostrava regredida, angustiada, dependente, chorando por qualquer motivo, inquieta e agressiva, pedindo sempre colo e chupeta. A mãe compareceu sozinha à sessão alegando que me escolhera porque ouvira falar sobre minhas experiências com crianças. Mostrando-se preocupada, indagava-se sobre os sintomas da filha, os motivos pelos quais ela regredira, não conseguindo dispensar a chupeta quando, durante a entrevista, acabou relatando fatos de sua vida conjugal conturbada, em constantes conflitos com o marido. E antes de marcarmos a sessão para sua filha, Lila pediu orientações sobre seu casamento, como mudar de atitudes, mas ao não receber respostas da analista na posição de Outro, de sujeito suposto saber sobre sua verdade, suas queixas se transformaram em demanda de análise para ela. Lila informou que ao voltar sozinha à residência, após longa jornada de trabalho como médica, no setor de emergência, seu carro enguiçou sem que ela pudesse solucionar o problema. Era noite, e ela que dava plantão de 24 horas, relatou que precisara trabalhar mais 12 horas por falta de profissional, sem poder descansar. Disse que acenou na rodovia pedindo ajuda, quando um carro parou e um jovem indagou o que ocorrera. Como Lila identificou a causa do defeito como “bateria fraca”, pediu ansiosamente a ajuda dele, exclamando: “Meu carro precisa de uma “chupada!”. Ao perceber o rapaz arredio, quieto, ela nervosa, repetia, de forma categórica: “É preciso uma ou mais chupadas!”. Faça! Ela disse que o motorista ficava aturdido, vacilante e tenso a cada vez que ela insistia na “chupada”. Quanto mais ela pedia, mais ele mostrava-se sem jeito, criando-se um clima de mal-estar. Ao notar a falta de iniciativa dele diante de sua fala, Lila conseguiu perceber que estava se expressando de forma incorreta, pois o que queria dizer era: “Meu carro precisa de “chupeta!”. Essa fala, incompreensível para Lila, a levou a se questionar
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sobre seu ato falho: por que dissera “chupada” em vez de “chupeta”, termo tão comumente utilizado no cotidiano da linguagem mecânica? Pontua a analista: “Você queria então a chupada do motorista... Era esse o remédio que precisava”. Lila retrucou: “Não era isso, não”. Estranhando, ela procurava negar, quando corto a sessão. Eu me espanto com o que havia pontuado e depois que ela sai, indago-me: “Quais seriam os efeitos do meu dizer? Será que ela voltaria?”. O ato analítico vem direto do inconsciente, revelando a dimensão do não saber do próprio analista. A expressão do ato falho “chupada” mostrava, ao mesmo tempo, a realidade e o desejo inconsciente. A clínica do ato é a clínica do real, que só tem consistência lógica, escapa do imaginário e do real, e está para além das palavras, como sinaliza Lacan. Em Freud é a clínica do simbólico, da palavra. O ato analítico marca um antes e um depois, marca uma virada no sujeito, na realidade dele com a sua própria realidade psíquica que não volta atrás, o que se percebe na cadeia significante. Lacan (1967-68/2003, p. 371) afirma que “o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera”. Segundo Lacan, a interpretação em psicanálise busca o caminho da decifração, não somente como técnica, mas também como tática específica do discurso do analista. No artigo A Direção do Tratamento (1958/1998, pp. 585-649), Lacan ressalta que as armas do analista são interpretação (tática) e a manobra da transferência (estratégia) baseadas na política da falta-a-ser, onde não há imposição de um poder ou de uma sugestão. A manobra da transferência é para ir contra a transferência, a interpretação é para pescar o desejo e a falta-a-ser é para manter a falta no seu devido lugar. Lila retornou à sessão e falou da troca de palavras, acrescentando que ao notar a inércia do jovem motorista diante da situação, disse que, só depois, conseguira perceber seu dito, pois o que queria dizer era que seu carro precisava de uma “chupeta”, pois a bateria estava fraca. Esse fato levou Lila a se lembrar e indagar sobre seus esquecimentos e atos falhos constantes, motivo de alguns equívocos em sua vida cotidiana, nas situações mais impróprias, causando risos, gargalhadas e, às vezes, mal-estar. Por exemplo, certa vez, quando ia à praia, pediu à empregada para apanhar na gaveta “remédio”, quando queria falar “biquíni”. Freud percebe em suas pesquisas que tanto no ato falho como no chiste, a palavra falha. O que provoca o riso no chiste é quando a crença na palavra é abalada. Ela pode mudar de sentido quando menos se espera. Não crer na palavra nos faz pensar em meia-verdade e, como afirma Lacan (1969-70/1996, p. 49): “[...] nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semidizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer”.
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No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (196263/1996), Lacan observa o sujeito além da via da falta (do desejo), mas principalmente pela via do excesso (do gozo), o que traz consequências para a interpretação. Uma delas é que “não visa tanto ao sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso” (1962-63/1996, p. 236-237), mas buscar os significantes que marcaram e determinaram a vida do sujeito, nos quais este se encontra alienado. Outro efeito é que a “A interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível (Ibid., pp. 236-237). Na transferência com a analista dá-se o inconsciente, e é por meio da associação livre que Lila procura decifrar o seu enigma, ao fazer deslizar e desdobrar os significantes recalcados que a ele estão atrelados. Lacan ensina que a interpretação do analista deve jogar com o equívoco, porque o equívoco é a maneira de liberar o sintoma. Lacan formaliza o matema da transferência (QUINET, 1993, pp. 30-36), onde um significante do analisante (S) se dirige a um significante qualquer (Sq), que vem representar o analista. É a partir dessa articulação significante, do que é simbólico da transferência, que a associação livre começa a se desenrolar na própria transferência, sinalizando a entrada em análise. ____ S________ → S (S1, S2,...Sn)
Sq
Nesse caso, Lila, “a menina carente” (S), com a bateria descarregada, que precisa de “remédio e chupeta”, dirige-se à analista experiente para atender às demandas de “crianças dependentes e impacientes” (Sq). Instalada no discurso histérico, Lila repetia: “Por que dissera ‘chupada’ em vez de ‘chupeta’?” Esta questão passou a ser um dos enigmas a ser decifrados durante o tratamento analítico. Para a angústia sentida no episódio do carro enguiçado, Lila tentava dar variados sentidos. O significante “chupada”, como ato falho cifrado, equivale a um nó de significações, tendo efeito equivocado e enigmático sobre ela, que procurava decifrá-lo: “Chupada, chupar, chupeta...”. Chupada remete à preocupada, amada quando desmembramos nos significantes “chupa” mais “ada”. Chupada também remete à questão da sexualidade, vindo no lugar do que está recalcado, tema geralmente proibido. Como justificar seu desejo, no pedido equivocado dirigido ao motorista desconhecido? Associando livremente, Lila dizia que havia três noites não dormia em casa, que estava com saudades da filha e do marido, mas vê-lo não seria possível, pois além de brigados, ele estava viajando e ela ainda suspeitava e temia que ele estivesse com outra mulher. Enfim, identificada com a filha dependente e carente, ela teria que se contentar com a
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“chupeta”, no lugar do “biquíni”, permanecendo insatisfeita em seu desejo. Os sintomas da filha sugerem o que diz Lacan na Carta à Jenny Aubry: “O sintoma da criança responde ao que há de sintomático no casal familiar” (2003[1969], p. 369). No caso de Lila, observa-se que o significante enigmático “chupada”, associado à “chupeta”, vinculava-se ao desejo de ser amada pelo motorista/marido, indicando o “remédio” que precisava para o desejo inconsciente recalcado, que emergiu no ato falho decifrado a partir do ato analítico. Os lapsos e chistes expressos por Lila ilustram o que nos ensina Quinet (1993/1998, p. 30): “Toda análise é uma experiência de significação, correlata ao inconsciente, que dá prevalência do significante sobre o significado”, ao ressaltar que: [...] para Freud, as formações do inconsciente, ou seja, os sonhos, os sintomas, os lapsos, os esquecimentos são todos da ordem de um chiste, de trocadilhos, porque eles funcionam muito mais na base do jogo de significantes do que na base dos significados, o que coloca em cena a tese lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem. Quando se define um significante por outro, ou seja, dando um significado temos, então, outro significante, e depois outro, e assim sucessivamente. Dessa forma é constituído o inconsciente.
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O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico?
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resumo
O objetivo deste trabalho é mostrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita mudanças subjetivas em seus analisantes. A título de exemplo, apresento recortes de um caso clínico, destacando o ato falho cifrado, a “chupada”, enunciado por Lila, que a levou à análise para tentar decifrar seu dito enigmático que expressava a condensação de um gozo que lhe suscitava questões. O dispositivo analítico possibilitou-lhe a emergência do sujeito do desejo.
palavras-chave
Ato falho, ato analítico, transferência, interpretação, desejo.
abstract
The purpose of this work is to show how the analytic act, through cuts, punctuations and interpretations, beginning from the psychoanalyst’s desire, makes possible subjective changes in his/her patients. As an example, I present fragments of a clinical case, emphasizing the codified flawed act, “the sucking”, expressed by Lila, which has taken her to psychoanalysis in order to try to decipher her enigmatic saying that expressed the condensation of a jouissance that provoked many questions for her. The analytical experience made possible the emergence of the subject of the desire.
keywords
Flawed act, analytic act, transference, interpretation, desire.
enviado 17/02/13
aprovado 30/04/13
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O termo da transferência e os afetos da conclusão Marcia de Assis “Quem, melhor do que esse psicanalisante no passe, poderia autenticar o que ele tem da posição depressiva” (LACAN, 1967/2003, p. 260). Inicio a partir desta referência, quando Lacan falou acerca de um luto no momento do passe, na Proposição de 9 de outubro de 1967. É a luta para sair da transferência. No entanto, aprendemos com Lacan (1973) a ver o afeto triste no âmbito da ética. Ou seja, a posição depressiva comporta um não querer saber nada disso, correlato à paixão mais fundamental, a ignorância, assim como à paixão amorosa, que também tem um tantinho de ignorância, de nada querer saber sobre o impossível de dizer e a falta estrutural, que funda a potência desejante, potência da pura perda, que impulsiona o sujeito rumo à iniciativa. De acordo com Colette Soler (2005, p. 76), o estado depressivo é mais que a tristeza, pois participa das figuras da inibição, invocando Freud, que ao falar da depressão esclarece haver uma inibição global, paralisando o conjunto das funções libidinais (1925/1986, p. 86). Como pensar, então, numa posição depressiva quando se está à porta de saída? Eis o questionamento que moveu esta produção de cartel, num primeiro momento. Se a tristeza é o afeto correlato à dor de existir que se manifesta no luto, tal afeto é tomado pela psicanálise como extravio do desejo, ou seja, o sujeito que se encontra na posição depressiva é aquele cujo desejo se extraviou. Ele maldiz o desejo. No âmbito da ética, tal qual propõe Lacan em Televisão (1973/2003, p. 524), entristecer-se é uma covardia. O afeto triste é aquele que engana quanto à causa, correspondendo à paixão da ignorância; no entanto, é parente do afeto da angústia, que não engana, pois tal parentesco se deve ao fato de ser a tristeza um sinal do real, sinal de gozo.
A sequência analítica Apresento aqui a sequência analítica tal como proposta por Soler em seu livro A psicanálise na civilização (1998, p. 423): Entrada >------------ momento de passe ------------> saída
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ASSIS, Marcia de
O momento de passe é a entrada na fase de saída, e equivale ao momento de turbulência, onde estão em jogo os afetos da conclusão em suspenso: luto ou inquietude. Não estaria aí o aspecto maníaco-depressivo que assume o sujeito analisante ao se aproximar do final de análise? Momento que pressupõe um atravessamento da fantasia, desnorteamento, destituição, angústia, no qual se encontra o analisante em direção ao fim. Momento antes de acabar, anterior à separação em que resta, ainda, uma resolução. A duração dessa fase depende de quanto perdure o luto.
O amor de transferência conduz ao fim A experiência psicanalítica opera por meio do amor transferencial, porém não trabalha pelo amor. Freud aceitou o amor de transferência para servir-se dele, fazendo o dispositivo operar. Se o dispositivo analítico programa o amor, o analista programa o luto. No artigo A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/1998, p. 594) afirmou que a situação analítica não é uma situação a dois. E no Seminário, livro 8: a transferência, foi bem explícito ao abordar esta questão: “A intersubjetividade é o que há de mais estranho na experiência freudiana” (LACAN, 196061/1992, p. 19). Se ela surge, a transferência estanca. E floresce em sua ausência. A transferência é uma situação singular, melhor dizendo, uma pretensa situação, pois esta experiência freudiana não envolve um par. Longe de termos que considerar dois sujeitos numa posição dual, precisamos fazer surgir o domínio da tapeação possível. É no amor que encontramos seu modelo, nos propõe Lacan, no Seminário 11, em consonância com o que Freud (1914/1986, p. 156) já havia afirmado sobre a neurose de transferência que surge no lugar da neurose ordinária: “Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer o que nos falta. Não está aí a estrutura fundamental da dimensão do amor que a transferência nos dá ocasião de imajar” (LACAN, 1964/1985, p. 128). Em Televisão (op. cit., p. 529), nos disse: “articulo a transferência a partir do SsS”. Isto é, o sujeito por meio da transferência é suposto no saber em que ele consiste como sujeito do inconsciente, sendo isso o que é transferido para o analista. Dito de outro modo: SsS é uma manifestação sintomática do inconsciente, uma formação de inspiração do analisante, o único sujeito em questão na análise. E se a transferência está lá, no começo da psicanálise, é graças a ele, o analisante. “Aquele a quem suponho o saber, eu o amo” (LACAN, 1972-73/1985, p. 91).
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Ou seja, o analisante reveste o suposto parceiro nesta empreitada, com o manto brilhante, agalmático, que causa seu desejo. Lá onde falta um significante no Outro, o analisante situará o objeto precioso, o saber. Eis a emboscada do amor transferencial. Em seu livro O que Lacan dizia das mulheres, Soler (op. cit., pp. 206-207) afirma haver duas estratégias transferenciais em jogo na análise. A do analisante é a de obter aquilo que o analista supostamente detém: agalma, mais-de-gozar, como se queira denominar. Enquanto que a do analista tem por finalidade a programação do luto. Pois ao se recusar à reciprocidade do amor, introduz entre o silêncio e a interpretação o vazio em que o sujeito localizará a própria repetição. Transferência não é repetição, mas conduz a ela: re-petição assim grafada para assinalar aí a reiteração da petição, tal qual Lacan nos transmite em O aturdito (1972/2003, p. 495). A análise revela que o próprio amor é repetitivo, sempre repetindo a mesma decepção. O que o sujeito irá encontrar na análise em lugar daquilo que procura? Se ele parte em busca do que tem e não sabe (o saber não sabido), o que vai encontrar é o que lhe falta, a saber, seu desejo, pois o que está em questão na análise é a emergência do desejo. Porém, o amor é paixão que pode ser a ignorância do desejo (Seminário 20: mais, ainda, op. cit., p. 12). O amor transferencial faz obstáculo ao tratamento, revelando a sua face de resistência. O discurso analítico é o único que dá ao outro o lugar de sujeito. Neste laço social, o sujeito se vislumbra do lado do analisante convidado a falar. A função desdobrada do analista aponta seu lugar no discurso analítico, semblante de objeto que causa, ao se calar como sujeito. É desse lugar, agente do discurso analítico, que o psicanalista dirige o tratamento. Aí está o manejo da transferência.
O luto no momento de passe Passar pela experiência analítica implica vivenciar dois lutos. O primeiro tem a ver com a destituição subjetiva, quando se perde a segurança extraída da fantasia, ao atravessá-la, quando o sujeito se sabe um objeto. Colette Soler (2008, p. 22) propõe um matema da destituição subjetiva, inscrevendo uma equivalência lógica entre o sujeito dividido e o objeto a, sem esquecer que este é o objeto inominável. O sujeito é o objeto de seu fantasma. Quando ele se identifica ao objeto que deixou de ser para o Outro, complemento deste Outro, na fantasia, ele sabe ser um rebotalho. Esta marca de rebotalho se encontrava encoberta pela fantasia. Resta, ainda, uma resolução. A resolução da neurose se prolonga pela resolução da neurose de transferência para que se possa falar de fim de análise. Eis o segun-
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do momento de luto. “Aquele que transpõe o passe, em quem está presente nesse momento o des-ser em que seu psicanalista conserva a essência daquilo que lhe é passado como luto.” É o que diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (op. cit., p. 260). Ou seja, há uma mudança na relação transferencial, quando o analista perde seu estatuto de objeto precioso. Conforme assegura Lacan no Seminário, livro 8 (op. cit., p. 381): “Não há objeto que tenha maior preço que um outro – aqui está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista”. O luto é uma luta, um trabalho, como nos disse Freud (1917/1984). O luto no passe, um trabalho que requer um desinvestimento libidinal para separar-se do analista, que fora investido pelo analisante como objeto causa de desejo. É o luto do analista reduzido ao objeto a, mas que ainda continua a causar seu desejo, até o momento em que deixará de funcionar como causa ao analisante. Tempo necessário, portanto, para se confrontar com a separação. Tempo antes do término. Ainda há um passo até a satisfação do fim. Isso deprime, ao menos transitoriamente, pois se tiro as consequências disso, libera. Não basta o momento de passe para ser analista. Necessita-se de algo mais. Busco os versos de Fernando Pessoa em seu poema Mar Português (1935/1980, pp. 53-59) para falar desse instante: Quem quer passar além do Bojador1 tem que passar além da dor. (Fernando Pessoa)
O entusiasmo e a satisfação que não espera nada de ninguém “[…] ele sabe ser um rebotalho. Isso é o que o analista deve ao menos tê-lo feito sentir. Se o analisante não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance” (LACAN, 1974/2003, p. 313). Tal afirmação foi o segundo motor acionado, mantendo esta produção de cartel. Em Televisão (op. cit.), apreende-se o dever de bem dizer, ao se referenciar no inconsciente: virtude ética, gay sçavoir, que implica um saber sobre a falta estrutural e constitutiva do desejo, enquanto a tristeza é uma recusa em saber que vai na contramão do desejo decidido que nos colore com nuances de vitalidade e vigor. Tem que passar além da dor. Para poder passar, é preciso ter-se livrado da procura da verdade, raspando o sentido o máximo possível, levado ao sem sentido, cifra de gozo, sem endereçamento, quando não se espera mais nenhuma promes1 Referência ao cabo Bojador, também conhecido como cabo do Medo pelos antigos navegantes, devido à região de difícil passagem.
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sa de satisfação advinda do Outro. Os efeitos são afetos que surgem na sequência: o entusiasmo e o satis-fazer, após cessar a outra satisfação, aquela implicada na tagarelice e na re-petição queixosa. A experiência freudiana promete a separação, e esta virá a partir da transferência, condição do tratamento, pois apenas o amor de transferência, amor ao saber, poderá conduzir ao fim. Um fim que separe o sujeito da manada, quando o analista dirige o tratamento. Será que no fim a psicanálise não faz mais do que reduzir a infelicidade neurótica em uma infelicidade banal? Será que podemos falar em visão pessimista de Freud? Em Análise terminável e interminável (1937/1986, p. 229) afirmara que a análise produz um estado inédito no interior do eu. Lacan apostou que da infelicidade neurótica se possa conseguir algo inédito. Tal aposta tem alcance para além dos efeitos terapêuticos, pois está em jogo uma mudança da posição subjetiva, que desfaz o impasse neurótico, apelo ao passe. Tal mudança produz efeitos no nível da tristeza, atingindo a covardia neurótica. Portanto, a experiência psicanalítica oferece a chance de uma nova escolha, aposta de Freud, corroborada por Lacan. Há um tempo de suspense, tempo de compreender e hystorizar, que implica uma travessia, pressupondo que aquele que entrou poderá sair. Aquele que atravessa vislumbra a porta de saída; no entanto, ainda não é o fim da travessia. Cada fase final é única, despertando afetos singulares e não se universaliza. O ponto de finitude da trajetória analítica não é sinônimo de produção de analistas. Ao termo, en-fim, uma conclusão é colocada em ato. Utilizo a palavra conclusão2 em sua conotação decisória, pois o momento de concluir equivale ao salto do tempo de hystorizar ao tempo de passar ao ato, tal qual escreveu o poeta francês: “Ante o ranger feroz das marés, me lancei.”( Arthur Rimbaud)3 Se no momento de passe uma porta foi aberta, descortinando a saída, esta saída se efetiva através do ato de fechá-la e seguir, sozinho, sem garantias, porém tomado pelo entusiasmo e um desejo inédito.
referências bibliográficas 2 Ressalto aqui a distinção do uso desta mesma palavra no título, quando me referi ao processo de conclusão, na fase final da trajetória analítica. 3 Versos retirados do poema Le bateau ivre, associando-os aos versos de Pessoa, mencionados anteriormente.
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O termo da transferência e os afetos da conclusão
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resumo
O presente trabalho, produto de cartel sobre a transferência, aborda o seu termo, a saída da análise e os afetos implicados no processo da conclusão. Aponta, no entanto, o início do percurso que se dá a partir do amor de transferência, condição do tratamento, que conduz ao fim. Considerando a sequência analítica – entrada, momento de passe, saída –, enfatiza, especialmente, a fase final do percurso: o tempo compreendido entre o momento de passe, o começo do fim, até a saída, o ponto final da trajetória analítica.
palavras-chave
Transferência, momento de passe, luto, entusiasmo e final de análise.
abstract
This work, product of a cartel on transference, discusses its term, the end of the analysis and the emotions involved in the conclusion of the process. It points out, however, the beginning of the journey that starts with the transference love, a treatment condition, which leads to the end. Although the whole analytic process of treatment is considered – the beginning, the moment of Pass and the end of analysis – special emphasis is given to the final part: the period between the moment of Pass, the beginning of the end, to the exit, the end point of the analytic trajectory.
keywords
Transference, moment of pass, mourning, excitement, end of analysis.
recebido 17/02/13
aprovado 20/04/13
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Diztrinchar a interpretação Zilda Machado “É da lalíngua que opera a interpretação”, nos diz Lacan (1974/2002, p.52) em A Terceira. E a seguir acrescenta: “a interpretação deve tomar sempre o essencial que há no jogo de palavras, é a isso que nossa interpretação deve visar para que ela não alimente o sintoma de sentido”. Então, partamos de lalíngua, o simbólico que concerne ao inconsciente, o tempo inaugural do ser falante em sua aventura na linguagem, onde a voz do Outro se destaca dos barulhos do mundo, se constitui como presença pulsional e oferece ao infante o banho de língua que humaniza seu corpo e o convoca a entrar em um jogo cujas cartas já estão, a priori, distribuídas. Estamos aí em um momento primário em que as palavras não têm ainda nenhuma significação, aliás, constituem-se inicialmente como somente sons, barulhos de voz. Sons que se confundem com outros barulhos do mundo. Ou seja, estamos falando do tempo inaugural do bebê humano, captando as palavras que ouve. Esses barulhos de voz são apenas percebidos sem, no entanto, deixar qualquer registro. São rastros que se apagam sem constituir memória. Aos poucos esses barulhos vão se dissipando e se tornam murmúrios da língua, ainda sonorizações sem sentido, a melodia das palavras que inscreve uma modulação, uma entonação. E assim, um registro começa a ser feito por forçar um tracejamento de memória, ou seja, assim inscreve-se um traço.1 As palavras são apreendidas, portanto, não em sua significação, mas em sua materialidade, ou seja, em sua potência material. Potência de quê? De causar o gozo, de provocar o gozo do corpo, embalado pela sonata materna. A forçagem da palavra solfejada termina por sulcar, decalcar na carne uma inscrição que a transmuta em corpo – o leito do Outro – o pergaminho onde se inscreverá o texto inconsciente. O corpo será afetado então pelo que nele, como um pergaminho, foi inscrito: um saber que comanda e que se estrutura em duas lógicas. Tanto como o que força a decodificação – o inconsciente linguagem – a elucubração pela via fálica, ou seja, um saber ao qual se pode ter acesso, quanto resta para sempre aí, no nascedouro, como um saber insabido: o inconsciente real. Ali onde só há sinal do ser, do vivo, o indivíduo, a parte não dividida do falasser: a parte que traz à luz sua singularidade ancorada no “broto da tendência ferida”, tendência ferida pelo assujeitamento do sujeito à linguagem. Assujeitamento aos significantes de lalíngua. 1 Anotações pessoais da conferência A metapsicologia da voz e a interpretação, de Arlete Diniz Campolina, no Fórum do Campo Lacaniano de Belo Horizonte, em abril de 2011.
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MACHADO, Zilda
Eis aí, nos diz Lacan, o mistério do corpo falante: o real da matriz onde restarão decalcados os S1s – denominados memorial de gozo – o selo que inaugura e força a constituição do sujeito. São os Um(s) encarnados de lalíngua, conotados como letras – letras de gozo. A matéria litoral entre o simbólico e o real, o litoral entre o gozo e a linguagem que inscreveu aquele ser falante em particular. Trata-se aí então de um saber, o saber que comanda sem que possa ser subjetivado e que por nenhum artifício poderá vir a ser sabido, mesmo na análise. Tempo inaugural do ser falante, portanto, quando as palavras são apreendidas em sua materialidade sonora, em sua pluritonalidade, como marca da presença pulsional do grande Outro. Um tempo ainda sem o apoio do sentido que virá a seguir a nos lançar a todos à debilidade mental, nos dirá Lacan, ao sempre sermos compelidos a dar sentido a tudo. A esta linguagem primeira, de antes do sentido, portanto, Lacan denominou Lalangue (lalíngua) e nos diz que é a ela que concerne o inconsciente e, portanto, a psicanálise. A questão é que lalíngua, sem o aprisionamento do sentido, se sustenta da homofonia das palavras e, portanto, da equivocidade, por estrutura. Daí provém o mal-entendido da linguagem, berço do falasser. Entrar na linguagem é cair nessa cilada. Aí se desenrola o drama do falasser, causado por um saber insabido, portador de um escrito que ele não é capaz de ler, e sempre compelido a encontrar um sentido para tudo. Tudo isso concerne ao analista e à sua prática, pois a psicanálise é uma prática pela palavra. A ambiguidade e a homofonia da cadeia de lalíngua constituem também a matriz formadora das apresentações do inconsciente, e, portanto, a matéria de que são formados todos os sonhos, os sintomas, os chistes, as fantasias, ou seja, todo o aparelho psíquico. E é nesse “motérialisme” – ou seja, na materialidade da palavra, que reside a tomada do inconsciente, nos aponta Lacan (1975/1998) na Conferência de Genebra sobre o sintoma, demonstrando o enodamento do sujeito com o gozo, pois, na lalíngua própria de cada um se enodam os significantes que marcaram aquele sujeito em particular, com o gozo por ele experimentado: a palavra encarnada. Como é então que a palavra do analista poderá ter efeito de cernir o real do gozo? O que se pode esperar do analista para que ele seja capaz de levar uma análise, depois de muito subjetivar, ao ponto da destituição subjetiva, da travessia da fantasia e ainda mais à arte de saber fazer com os restos de saber sem sujeito que continuarão no comando? Sabemos que não se fica fora do domínio do inconsciente. Caberá ao analista, parceiro do inconsciente, com sua escuta e com o ato psicanalítico, colher no discurso da associação livre, nos significantes que compõem a elucubração própria daquele sujeito, os significantes que se associam ao material das palavras encarnadas. Caberá ao analista, com suas intervenções,
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levar o sujeito ao ponto onde já não há mais parceiro algum, somente o sujeito e seu ser de gozo, pura solidão do falasser, ali de onde provém o ato pelo qual uma análise se conclui. Lacan nos diz que o analista deve pagar com sua pessoa e pagar com palavras, ou seja, ele não pode se furtar. Dele é exigida uma “intrusão significante” (LACAN, 1970/2003) ou mesmo, uma “ingerência significante” (LACAN, 1967-68/ inédito, lição de 17/01/68). Ou seja, concerne ao analista a interpretação. No entanto, vemos muitas vezes que o analista confunde falar nada com nada falar. Falar nada é abster-se de seus próprios significantes, é abster-se de estar ali como sujeito e consentir com o lugar do analista, o de semblante de objeto a. Nada falar é deixar a análise sem direção. Mas deixemos claro. Não estou dizendo que o analista tem de falar. Não é isso, muitas vezes, o silêncio é sua interpretação. O que quero ressaltar aqui é a operação do analista. Ele opera quando interpreta, ou melhor, ele opera quando corta, quando “trincha”. “Trinchar”: cortar com certa arte. Ele interpreta quando sua operação é corte, com a perícia que Lacan, citando Aristóteles diz ser “comparável ao bom cozinheiro que sabe fazer passar a faca no ponto que é justo, de corte das articulações, sabe penetrar sem feri-las” (LACAN, 1958-59/inédito, lição de 27/05/59). O analista corta a articulação de sentido, o automaton da debilidade mental, o que engorda o sintoma. Ele corta a interpretação que o inconsciente já fez. Ele corta para atingir o que está fora do sentido, para cernir o real, e por questão lógica, isso força outra escrita. Ele corta para que outra escrita (ou outra costura) se faça. Ou podemos dizer com Lacan (1977-78/inédito) no seminário O momento de concluir: [...] O analista, ele trincha. O que ele diz é corte, quer dizer, participa da escrita, só que para ele, ele equivoca na ortografia. Ele escreve diferentemente, de forma que por graça da ortografia, de uma forma diferente de escrever, ele toca outra coisa que não aquilo que é dito. (p. 23) Então, tomemos uma pergunta de Lacan (1978/1995): Como é que se sussurra ao sujeito que se tem em análise alguma coisa que tem como efeito curá-lo? Essa é uma questão de experiência. [...] Como isso é possível? Apesar de tudo o que eu disse na ocasião, não sei nada sobre isso. É uma questão de trucagem. (p. 66) Ou seja, qual é o truque do analista para levar uma análise ao seu final? Até mesmo Lacan disse não saber nada sobre isso. No entanto, é esse assunto que nos interessa aqui. Sobre ele estamos debruçados para minimamente cernir o de que
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se trata na operação analítica. Trago alguns recortes clínicos numa tentativa de apresentar elementos para esta discussão. A analisante diz: minha vida agora está difícil, fico só por conta de casa, marido e filhos, muito diferente do que eu era. Quando era criança eu era de parar o carrinho de rolimã com o tênis! A analista diz: “com o tênis? (mas ao pronunciar esta palavra o faz com certa flexão que esconde o p. Algo mais ou menos assim: “com o ‘ênis’, puxa, mas que potência, heim?” Ela ri e fala, “pois é, mas agora o buraco é mais embaixo”. A analista diz: “é isso! Agora o buraco é mais embaixo”, e interrompe a sessão. Ela ri muito e sai dizendo: “puxa vida, eu achava mais fácil ser homem, né?”. Nada se falou ali às claras, tudo por alusão. Ana é médica, tem trinta e quatro anos. Procura análise porque não pode mais suportar seu trabalho. Não gosta de atender os pacientes e pensa que se enganou de profissão, embora jamais tenha querido fazer outra coisa. Relata sua história. Nasceu fora do Brasil, devido ao doutorado dos pais. Quando ela tinha um ano, eles a entregam para uma tia, irmã do pai que vinha para o Brasil e ficam lá por mais alguns meses para fazer uma viagem. Quando retornam para o Brasil, Ana não os reconhece e se recusa a ir com eles. A tia também não quer entregá-la. Surge um problema entre as duas mulheres e a tia diz: Você a deu para mim, agora ela é minha. A mãe: Não, eu não dei, eu só a emprestei. Certo dia, falando sobre suas dificuldades no trabalho, a paciente diz: “Não consigo continuar mais, vou parar, e nem sei o que eu vou fazer, talvez eu não queira fazer nada, acho que talvez minha mãe tenha razão, sou mesmo uma ‘imprestável’”. A analista diz em alto e bom tom, interrompendo a sessão: “emprestável” não, “dável”, quando quer! A consequência dessa intervenção foi determinante na vida do sujeito. Bia tem o seguinte sonho: estava dirigindo um carro e a seu lado a analista. Para em um sinal, vem um homem e com uma arma, atira na analista. Chegam algumas pessoas e perguntam: o que aconteceu? “Queima de arquivo”, ela diz. Relata o sonho rindo muito e diz que as pessoas para quem contou o sonho ajudaram a interpretá-lo: o analista ocupa mesmo o lugar do arquivo morto. A analista intervém: Quem ama [de] arque ivo? Destaca-se assim o amor, o nome de um homem, e uma pergunta pelo desejo. Surge na associação a divisão entre a mãe e a mulher, ou seja, a questão da feminilidade. Outro sujeito, em uma análise conduzida até bem longe, começa a ter um cansaço na voz para o qual não consegue melhora mesmo com sessões de fono, aulas de canto etc. Já não consegue falar. Resta-lhe um fiapo de voz: “uma vozinha”, como ele diz. Certo dia, por uma contingência, percebe que talvez aquilo tivesse a ver com seu processo analítico. Uma análise que teria ido muito longe, ao limite da interpretação. Já não havia mais nada a dizer, cansara de falar e não viera a operação que poderia ter permitido a continuação da análise em direção à sua
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conclusão. Nesse ponto só sobrou o sujeito ancorado no significante que marcou o corpo: “vozinha – avozinha”, o significante que calou fundo nesse sujeito que foi criado até os sete anos pela avó doente. Portanto, indo ao limite da interpretação, o que se desvelou foi tanto o ponto de identificação do sujeito (como no sonho da injeção de Irma, sua casca de cebola), quanto a presença do objeto voz – presença pulsional. Mas desvela-se aí também o ponto acéfalo da pulsão, o pronome é o “vós”, não o “eu”, pois este, o lugar do sujeito, só é o da falta-a-ser, só se presentifica como objeto, ou enquanto gozo. O que visa a psicanálise é que o sujeito se separe do objeto que sustenta a verdade mentirosa com a qual ele tampona sua falta, o que desvela em sua singularidade sua posição de gozo. A partir daí ele poderá vir a saber fazer com isso e desfrutar do milagre da existência. A questão então, que compete a nós, analistas, é: como operar, como trinchar, para que esse trabalho se faça e logicamente se conclua? Lacan nos ajuda a responder. Nossa intervenção poderá tocar o real quando levar em conta, naquilo que é dito pelo analisante, a sonoridade, a melodia, aquilo que ressoa como equivocidade. Pois só a sonoridade das palavras pode ser consoante com o inconsciente (LACAN, 1975/1976, p. 50). Esgarçando o sentido, usando-o até gastar, até chegar ao sem sentido, ou melhor, ao fora de sentido, ao ponto em que, como em um caso clínico: do sintoma de um cansaço como o de “subir o Everest”, só sobre um “é ver Este” e uma mudança no gozo. “É ver o Este”: poderíamos dizer que trata-se de um novo ponto de vista, o consentimento com a castração marcando a virada na posição do sujeito? Seria esse um significante novo, uma invenção com lalíngua? Assim, em não sendo possível destrinchar a interpretação, o trinchar se diz, diz-trincha, uma operação com a palavra. E se enquanto psicanalistas não fazemos poesias por não sermos poatas o suficiente – muito menos poetas – que sejamos então poemas: o que pudermos, na nossa própria análise, escrever.
referências bibliográficas LACAN, J. (1958-59). O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito. (Versão brasileira sem fins comerciais). __________. (1967-68). O Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. Inédito. (Versão brasileira sem fins comerciais). __________. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 400-447. __________. (1974). A Terceira. In: Cadernos Lacan. Volume 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre,
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2002. __________. (1974). Entrevista do Dr. Lacan à imprensa. In: Cadernos Lacan. Volume 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002. __________. (1975). Conférences et entretiens dans des Universités Nord-Américaines. In: Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976. __________. (1975). Conferência em Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São Paulo, no 23, pp. 6-16, dezembro de 1998. __________. (1977-78). O Seminário, livro 25: o momento de concluir. Trad. Heresia. Inédito. Publicação fora do comércio. __________. (1978). Conclusões – Congresso sobre a transmissão. Letra Freudiana – Escola, Psicanálise e Transmissão. Documentos para uma Escola II – Lacan e o Passe. Ano XIV, no 0, pp. 65-67, 1995.
resumo
O que é a interpretação psicanalítica? Tentar responder esta questão é a tarefa a que me dediquei neste texto. Seria possível destrinchar esse conceito? Mas já no título mesmo, algo da interpretação analítica se revela: uma operação significante, a “intrusão significante” de que deve ser capaz o analista, nos aponta Lacan, para atingir o que está fora do sentido. Partindo de lalíngua e, portanto, da constituição do sujeito com a escrita do texto inconsciente, tentarei demonstrar que na lalíngua própria de cada um se enodam os significantes que marcaram aquele sujeito em particular com o gozo por ele experimentado: a palavra encarnada. São estes significantes que a escuta da associação livre deve colher. Por meio de alguns fragmentos clínicos tentarei demonstrar a operação do analista que aconteceu ali, provocando um corte no sentido e forçando, consequentemente, outra escrita.
palavras-chave
Interpretação, inconsciente real, lalíngua, clínica psicanalítica.
abstract
What is the psychoanalytic interpretation? An attempt to answer this question is the task I have set myself in this text. Would it be possible to unravel this concept? But in the very title, something about the analytical interpretation is revealed: this is a significant operation, the “intrusion of a signifier” the analyst should be capable of, Lacan points out, in order to reach what is out of the sense. Departing from lalangue, and therefore from the constitution of the subject with the writing of the unconscious text, I will try to demonstrate that in each subject’s lalangue there are signifiers entwined, which mark that particular subject in re-
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lation to the jouissance experienced by him: the incarnate word. Those are the signifiers that the free association hearing shall pick up. Through some clinical fragments I will try to demonstrate how the analyst operates, causing a cut in the sense and consequently forcing another writing.
keywords
Interpretation, real unconscious, lalangue, psychoanalytical clinic.
recebido 10/02/13
aprovado 30/03/13
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O que a psicanálise contemporânea pode nos falar sobre a histeria masculina Gilda Pitombo Mesquita Para esse encontro,1 cujo tema central é a clínica, apresento alguns fragmentos de um caso no qual trabalho com a hipótese diagnóstica de histeria masculina. Paulo esteve três anos e meio em análise, interrompeu uma vez e agora retornou novamente. Na primeira sessão, afirma que seu desejo era o de ser penetrado por um homem, ideia que agradava sua mulher. Então, eles resolvem praticar o ménage à trois, o que lhe proporciona muita satisfação. Conta que a fantasia de imaginá-lo transando com outro homem também provoca muita excitação em sua mulher. Porém, algo parece tolhê-lo e reprimi-lo na medida em que torna-se tímido na cena sexual. É retraído com os homens, apesar do desejo. Em relação às mulheres, diz experimentar muita excitação ao ser visto transando pela sua própria esposa. Mais tarde, confessa que toda sua narrativa buscava impressionar a analista, pois queria ser considerado um paciente incrível e muito especial por não ter nenhum preconceito, já que imaginava que a maioria dos homens negava tal desejo. Ele, no entanto, acredita ser diferente por enfrentar sem negação, despojado de defesas seu forte desejo de ser penetrado por um homem. Queixa-se muito de estar sempre atento aos outros, o que o leva a dizer exatamente o que pensa que o outro quer ouvir, sentindo-se sem espontaneidade no laço social. Se esconde quando se mostra. Gostaria de trabalhar essa “arma-dura” que afirma possuir e que muito lhe atrapalha profissionalmente. Aqui, escuto um pedido de análise: histericamente, ele é refém do Outro. Paulo retoma a questão amorosa-sexual inicial, reafirmando seu desejo de ser penetrado por um homem. Interrompe o tratamento alegando que a analista era preconceituosa por não aceitar o ménage à trois. Após seis meses, retorna e deixa claro como coloca o Outro no lugar da resistência. Diz que sua esposa não organiza mais os encontros de swing por sentir-se gorda. Além disso, revela que eles não transavam havia alguns meses. Interrompe as sessões com frequência para 1 Este artigo baseia-se na apresentação realizada na ocasião do VII Encontro Internacional – “O que responde o psicanalista? Ética e clínica”, que ocorreu entre os dias 6, 7 e 8 de julho de 2012, no Rio de Janeiro.
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urinar, fato que relaciona ao tesão contido. Além disso, associa seu urinar compulsivo a cenas da infância, quando acordava urinado e dirigia-se à mãe para que ela o levasse ao banheiro, o que ela fazia amorosamente, inclusive beijando-lhe na boca. Um dia, ele a manda interromper os beijos por causa de seu mau hálito. Passa a falar de sua atração pela analista e a urinar bem menos no horário das sessões, demonstrando que, para ele, há uma relação entre a afirmação fálica e a contenção sexual, o que o leva a valorizar a verbalização de sua excitação ali na análise. A armadura da qual se queixava tanto estava relacionada à compulsão ao urinar, pois, quando inseguro, histriônico, urinava sem parar. Lembro-me aqui dos dois modos do ato de urinar que aparecem no filme Pai Patrão, dos irmãos Taviani (1977). Nesse filme, o filho, ao ser retirado pelo pai da sala de aula de maneira autoritária e estúpida para trabalhar no campo, urina-se todo. Mais tarde, em busca de seu desejo, ele usa o ato de urinar como vingança. De um trem em movimento, urina sobre o campo onde vivia. Eis duas posições subjetivas opostas referidas ao mesmo ato. Na primeira, a depreciação total; na segunda, exalta-se o júbilo fálico de forma radiante e eufórica. Trabalhamos em análise a compulsão de urinar como afirmação fálica, o que nos remete ao texto freudiano “A aquisição e o controle do fogo” (FREUD, 1932 [1931]). Na lenda de Prometeu – aquela em que o herói traz o fogo aos homens, tendo-o roubado dos deuses e escondido num pau oco – o elemento fogo é considerado análogo à paixão, um símbolo da libido. O calor que irradia do fogo evoca a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual. A forma e os movimentos de uma chama sugerem o falo em atividade. O homem primitivo tentou apagar o fogo com sua própria água. Tal ato teve o significado de uma luta prazerosa com um outro falo. A antítese entre as duas funções pode levar-nos a dizer que o homem apaga o seu próprio fogo com sua própria água. Parece que Paulo ensaiava essa antítese ali na análise: urinando, ele conseguiria apagar seu fogo. Freud (1932[1931], p. 233) cita o poema de Heine: O que o homem usa para mijar, também usa para criar o seu semelhante. A cena fantasmática aponta também para esta antítese: ele penetrando em si mesmo sob o olhar do outro, o que relança à questão do phallus como afirmação erótica. O atrelamento do phallus com o órgão em seu sintoma fica bem marcado. De vez que uma neurose, segundo Freud (1923 [1922]), em Uma neurose demoníaca do século XVII, só pode originar-se de um conflito entre duas tendências, é tão justificável enxergar a causa de “toda” neurose no protesto masculino quanto vê-la na atitude feminina contra a qual o protesto é feito. Neste sentido, o texto freudiano remete à imagem do demônio com traços femininos. Esses dois textos freudianos ilustram a reversão da libido no seu oposto como um dos destinos da pulsão.
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É na medida em que a questão imaginária passa a ser elaborada, como na cena infantil em que ele acorda todo urinado e dirige-se ao quarto dos pais, que o sentido desatrelou do sintoma, permitindo um deslocamento do gozo. Surge então fortemente uma questão relativa aos cachorros. Morar com o pai foi muito traumático, o medo, o terror eram constantes, acordava à noite para urinar e seu pai o obriga a enfrentar um cachorro, o que o fazia morrer de medo. Era completamente passivo e submisso na infância ao pai-castrador (e adestrador), que tanto o aterrorizava. Há um fato importante por volta de seus doze anos, que envolve o cachorro preferido do pai, um rottweiler, o qual termina mordendo o braço do pai que, neste transe, mata-o com um tiro na cabeça, sem o que perderia o braço. Ainda quando morava com o pai, havia um homem que trabalhava no canil, esfregava-se nele, sem penetração, tendo despertado seu interesse em ser penetrado desde então. Esta é uma promessa de prazer que aponta para uma questão histérica. Queixa-se de estar “estacionado”. Destaco a palavra “estacionar” e peço que desenvolva esta queixa. Diz então que a única coisa que o incomoda verdadeiramente é a compulsão em urinar. Percebe-se como um menino e que precisa ser um homem para enfrentar sua profissão. Avalia a possibilidade de seguir uma carreira solo como produtor musical. Prefere gastar dinheiro em coisas que lhe proporcionem mais prazer que a análise. Implico-o nesta fala mostrando como é difícil um menino pagar a sua análise. Posteriormente, conta-me que havia encontrado uma fita cassete em que sua mãe imitava os sons de uma cachorrinha e dizia-lhe que estava ali para obedecer aos seus comandos. O significante cachorro/cachorra é alvo de diversas associações. Começa a se dar conta de que, em sua casa atual, tudo também gira em torno de seus dois cachorros, cujos cuidados exigem muita dedicação do casal. Nas suas memórias infantis, há sempre referência a um cachorro. Quando conheceu sua mulher, ela apresentou-se como uma “cachorra”. Ela era promíscua, o atraiu e quase mantiveram relações sexuais no mesmo dia em uma boate. Diz o seguinte: “a cadela da minha mulher pode transar com outro homem. Isto é o que mais me excita no swing”. Entre o casal, o sexo é posto fora da relação, sempre adiado, devendo ser experimentado com terceiros. Amam-se muito, mas não transam. Questiono essa harmonia e procuro causar equívocos em suas verdades. Então, ele me diz que “comer strogonoff todos os dias não dá”. Tenta convencer-se de que a relação é maravilhosa sem o sexo. Após algum tempo, ele resolve conversar com a esposa, indicando-lhe que ambos inibidos na relação conjugal precisavam fazer algo para salvar o casamento. Nesse momento, descreve detalhadamente a cena sexual entre eles: ele não a penetrava, só a masturbava e, então, ela penetrava um vibrador nele. Quando o machucava, ele
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preferia fazê-lo sozinho na presença dela. Em seu fantasma, ele é penetrado sob o olhar da sua mulher. Seu gozo fálico inclui a depreciação do outro (ele mesmo), o que remete ao lugar passivo/ativo na cena sexual e na transferência. É importante ressaltar que, antes de revelar esta cena sexual, ele teve um sonho comigo, onde me dá uma carona e acabamos nos beijando. Depois de algumas sessões, ele decide interromper a análise para saber se sentirá falta. Torna-se arrogante, colocando uma secretária entre nós, sempre ocupado, cheio de viagens e sem horário. Relata que, em São Paulo, contratou uma garota de programa que era estudante de psicologia. Eles conversaram e ele perguntou-lhe como ela enganava os homens. Questiono essa enganação, o que não gera muitos efeitos. Ele me paga o que devia e diz estar fazendo uma experiência. Não faço objeção à saída dele, apenas digo-lhe que houve um trabalho e que ainda haveria questões a serem trabalhadas. O que sustenta o sujeito em análise é o querer saber. Parece que Paulo endereça este pedido à prostituta, aquela que sabe enganar os homens. Introduzindo um terceiro entre nós, me substitui por uma “cachorra-psicóloga”: investe libido, paga e quer saber. Não precisa mais de mim. Seu sintoma se deslocou, houve uma redução do ato urinário. A questão fantasmática está atrelada ao imaginário, na medida em que Paulo narra a cena infantil quando acordava urinado e sua mãe incestuosamente o limpava. Ele, então, manda-lhe se afastar. Algo se moveu em relação ao seu sintoma de urinar compulsivamente. É curioso que, transferencialmente, a analista foi afastada a ponto de ser substituída por uma prostituta (= phallus). Retomando a questão da histeria masculina na contemporaneidade, o que gostaria de indicar é que, diante das ofertas de tudo gozar num sistema capitalista perverso, o histérico denuncia a sexualidade perversa, retirando o véu do recalque. Viver uma sexualidade sem recalque é essencialmente denunciador. A psicanálise aí responde com o Ato que barra a desmedida do gozo.
referências bibliográficas FREUD, S. (1923 [1922]). Uma neurose demoníaca do século XVII. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 19). __________. (1932[1931]). A aquisição e o controle do fogo. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das
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O que a psicanálise contemporânea pode nos falar sobre a histeria masculina
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 22). PAI PATRÃO. Direção de Paolo Taviani e Vittorio Taviani. Produção de Giuliani G. de Negri. Itália, 1977. 1 DVD (114 min), son., color.
resumo
Trata-se de um caso sobre histeria masculina que ilustra com muita clareza a divisão subjetiva do analisante na cena sexual. Necessita sempre da presença de um terceiro: swing ou objeto sexual. Também demonstra com seu sintoma histérico – urinar compulsivamente – seu estado de excitação sexual “arma-dura”. Sendo assim, denuncia a sexualidade perversa que remove o véu do recalque.
palavras-chave
Histeria masculina, homossexualidade, afirmação fálica, swing.
abstract
This is a case of male hysteria which illustrates very clearly the subjective division of the patient in the sexual scene. He always requires the presence of a third person: swing or sexual object. He also demonstrates with his hysterical symptom - urinating compulsively – his state of sexual excitement – “hard weapon”. This way, he denounces the perverse sexuality that removes the veil of repression.
keywords
Male hysteria, homosexuality, phallic assertion, swing.
recebido 17/02/13
aprovado 30/04/13
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resenhas
Resenha do livro Da Fantasia de Infância ao Infantil na Fantasia Lia Silveira Desde o início do século XX, quando Hebert Graaf, então com cinco anos de idade, endereçou ao “professor Freud” seu medo de cavalos, que a prática psicanalítica com crianças tem colocado questões aos analistas. De lá para cá, elas proliferaram e compuseram campos distintos marcados em suas especificidades pela forma de perceber e situar a criança, o lugar dos pais no tratamento e as intervenções do analista. O livro de Ana Laura se propõe a traçar um fio condutor dessas questões, tomando como ponto de partida a distinção princeps entre o lugar da criança – enquanto efeito de discurso no social; e o do sujeito do inconsciente, único a ser considerado em qualquer encontro que se diga psicanalítico. A partir dessa demarcação inicial a autora coloca perguntas, extremamente pertinentes, que irá desenvolver ao longo da obra: se, o de que se trata numa análise, é do sujeito do inconsciente, haveria então uma especificidade do que se chama “psicanálise com crianças”? Se, desde Freud, o inconsciente é caracterizado por sua dimensão infantil – essa “outra cena” que não conhece temporalidade e, portanto, não se torna adulto, não se desenvolve, não envelhece – estaríamos lidando com algo diferente quando se trata da análise de alguém com cinco ou quarenta e cinco anos? Por outro lado, como pensar o lugar de alguém que, geralmente, chega ao consultório trazido pelas mãos de adultos e deles dependendo para poder sustentar fisicamente sua presença? Do lado do analista, a questão que se coloca passa pela delimitação de seu campo de atuação. Afinada com a hipótese freudiana de que este é composto pelo terreno da realidade psíquica e, portanto, elaborada a partir da fantasia fundamental, a autora nos leva a indagar as filigranas da construção desse conceito: haveria uma distinção entre a fantasia enquanto resposta lógica do sujeito diante do encontro sexual traumático (saída contingencial, mas aberta para todo aquele que faz a escolha neurótica) e a fantasia enquanto construção em análise (tarefa para a qual se faz necessária a presença do analista)? Qual a relação entre o tempo cronológico com que se define o período considerado “infância” e o tempo lógico que está em jogo quando se trata da constituição das respostas do sujeito diante do encontro com o real, a saber, fantasia e sintoma? Para responder a essas questões, Ana Laura escolhe percorrer um caminho louvável. Poderíamos até dizer, com Lacan (1975/2003, p. 555), o único que situa o
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analista em seu lugar, como “parceiro com alguma chance de responder”, que é a via clínica. Assim, ela inicia trazendo um caso de sua prática. Na verdade, não um caso de sucesso da clínica, mas um em que, em determinado momento, alguma coisa fracassou. Nessa escolha, a autora mais uma vez mostra sua afinidade com o estilo freudiano: o caso não se presta a ilustrar conceitos ou comprovar a veracidade da teoria. Pelo contrário, é ali onde algo do saber vacila, é em torno do furo que se presentifica na experiência, que o analista vai ter a chance de desenvolver um trabalho que faça a teoria avançar. É assim que ficamos sabendo da “partida” que se estabelece entre o pequeno goleiro Zeti e a analista, e do seu desfecho, abreviado por uma “bola fora”. É esse excerto de caso clínico que vai permitir à autora retomar das questões citadas acima, e tentar respondê-las por meio de um rigoroso exercício teórico. Inicia-se aqui o primeiro capítulo, Construção de uma Fantasia de Infância, onde obtemos uma minuciosa cartografia da construção histórica que leva ao conceito contemporâneo de “infância”, como efeito de discurso. Trata-se de uma compilação que interessa a todos que se propõem a abordar o tema, psicanalistas ou não. No segundo capítulo, O tratamento Psicanalítico com Crianças: direções, inicia-se uma discussão mais específica da psicanálise, que distingue e correlaciona as principais ideias surgidas nesse campo acerca da direção do tratamento psicanalítico com crianças. A autora traça um panorama que permite interrogar cada um dos autores que se detiveram no tema, a partir das questões que norteiam a hipótese do livro: a distinção criança x sujeito, o lugar dos pais na direção do tratamento e o estatuto da fantasia. Ana Laura atravessa nesse capítulo, desde a famosa querela entre Anna Freud e Melanie Klein – apontando que a questão da fantasia é o ponto fundamental da divergência entre ambas: enquanto a primeira se ateve a uma postura pedagogizante, a segunda percebeu que era no terreno da fantasia que a análise se dava – até uma exploração da contribuição de autores como Winnicott, Maud Manoni, Françoise Dolto e o casal Rosine e Robert Lefort. Nos capítulos seguintes – 3. A Bolsa ou a Vida? a escolha forçada e o sujeito e, 4. A Insondável decisão do ser e o Tempo –, a autora percorre a trajetória dos conceitos lacanianos que permitem cingir o advento do sujeito a partir da lógica temporal da construção da fantasia, como resposta deste diante do encontro com a falta no Outro. Este percurso culmina no capítulo seguinte – 5. A construção da fantasia: o lugar do infantil –, com uma distinção entre a infância, enquanto recorte cronológico; e o infantil, enquanto lugar em que o sujeito deve construir uma ficção sobre a causa de seu desejo. Nesse ponto, a autora traz sua contribuição original, ao propor a hipótese de que pode-se fazer uma distinção entre a
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“montagem da fantasia”, como resposta que o sujeito elabora no lugar do infantil, estabelecendo a topologia própria ao neurótico e permitindo a montagem da realidade (independentemente da intervenção ou não de uma analista), e a “construção da fantasia”, como operação própria da análise, permitida pela transferência. No sexto capítulo – Momento de Concluir, Direção do Tratamento Psicanalítico: da fantasia de infância ao infantil da fantasia –, a autora retoma o caso clínico apresentado na introdução para fazer uma leitura dos problemas encontrados no manejo do caso Zeti a partir dos operadores conceituais descritos nos capítulos anteriores e da hipótese apresentada no capítulo 5, qual seja, a distinção entre a fantasia como montagem e a fantasia como construção em análise. Propõe-se ainda a responder como essas articulações permitem pensar a questão acerca de se haveria ou não uma especificidade na clínica com crianças. Para responder, a autora começa explicitando uma formulação que já atravessa todo o texto: Operar sobre a fantasia; esta é, no meu entender, a política da direção do tratamento sustentada pelo desejo do psicanalista, qualquer que seja a idade cronológica do sujeito, não obstante as possíveis especificidades estratégias e táticas que se imponham na direção do tratamento com crianças, no mundo contemporâneo (PACHECO, 2012, p. 259). Retoma-se aqui a proposta lacaniana de A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (LACAN, 1958/1998), que aborda a liberdade do analista, distinguindo-a, a partir de uma metáfora bélica, em três níveis: o da política, o da estratégia e o da tática. Lacan afirma que onde o analista é menos livre é no nível da política, cernido que está pela sua localização na falta-a-ser. Aponta, ainda, que no nível da estratégia, há uma liberdade relativa, já que o analista está preso ao que se passa no plano da transferência. Sendo assim, onde o analista está mais livre é no nível da tática: “sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante”. (Ibid., p. 594) Na distinção desses três níveis, Ana Laura vai examinar os impasses no manejo transferência no caso Zeti, destacando aí três aspectos fundamentais: a) a fantasia de infância: sobrepor criança e sujeito; b) a posição da analista sustentada no Pai: sublinhar a castração; e c) construção da fantasia: a bola como versão de objeto a. Quanto ao primeiro ponto, a analista supõe que, devido ao momento específico em que esta se encontrava em relação às suas próprias questões, manifesta-se uma resistência do analista com a sobreposição entre criança e sujeito, promovendo também uma oscilação entre as posições de Mestre e de Psicanalista. Essa instabi-
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lidade da posição de analista se sustentaria num Ideal de criança “bem cuidada”. No entanto, como a própria analista ressalta, apesar desse núcleo de resistência, foi possível sustentar uma escuta que provocou a emergência do sujeito do inconsciente. As elaborações de Zeti, desde as entrevistas, preliminares, apontam para uma localização do analista como sujeito suposto saber, ao demandar-lhe ajuda diante da sua dificuldade. Dificuldade esta que vai se metaforizar ao longo do tratamento, desde o sintoma “prender/soltar o cocô”, até o “jogo” de bola que lhe permitiu “jogar” com a castração no nível do simbólico. A partir do que identifica como momento de entrada em análise de Zeti (a construção do significante que aponta para sua questão perante o desejo da mãe/ mulher) abre-se uma via que permite um endereçamento ao Pai. A analista, que se utilizou da tática de propor ao analisante escreverem juntos uma “carta ao pai”, percebe que aí se passou algo relevante para a compreensão das dificuldades que se seguiram. Destaca que o fato de chamar o pai, em si, não foi exatamente a questão, mas sim o que motivou essa decisão por parte da analista (a esperança de que o pai pudesse dar conta do que estava “faltando” na estrutura: o pai seria o que faltava para que o menino pudesse ser “bem cuidado). Trata-se, portanto, de um problema relativo à política do analista, que deveria estar orientada pela falta-a-ser constitutiva do sujeito, e não devido à tática utilizada (escrever uma carta ao pai). Apesar de apontar esse problema, a analista reconhece que a passagem pelo pai permitiu a transmutação do objeto pulsional envolvido no sintoma (cocô) em objeto constitutivo da fantasia (olhar). Zeti situa-se no jogo de bola como goleiro, na esperança de poder defender “todas as bolas”. Nesse jogo se produz um ato falho que, segundo a analista, “é revelador da articulação entre sintoma e fantasia, via castração” (PACHECO, op. cit., p. 266). Ao perder uma bola, o analisante troca o significante e diz: “essa bosta não sai mais daqui”. A analista pontua o lapso, e a interpretação é produzida do lado do analisante como ferida narcísica. Trata-se, como ela afirma, de um erro tático que provocou uma passagem ao ato com a saída da análise: “Sem fantasia para defendê-lo, só restou a Zeti, enquanto neurótico, agarrar-se ao Eu. E a bola teve que esperar alguns anos para ser relançada” (Ibid., p. 267). Ficamos sabendo, pela autora, que Zeti retomou a análise algum tempo depois, momento em que foi possível para a analista conduzir a análise de outro lugar. Para finalizar, a autora se detém, mais ainda, acerca da questão da especificidade na clínica com crianças, perguntando-se se haveria distinção entre as relações que adulto e criança estabelecem com sua fantasia fundamental. Segundo ela, trata-se de questionarmos a possibilidade de a criança ter acesso à questão do gozo feminino. A resposta da autora vai se situar na retomada da distinção apresentada
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no capítulo 5 entre montagem (como momento lógico constitutivo do sujeito) e construção da fantasia (como trabalho de análise). Além disso, ela pontua como operador clínico importante o acompanhamento, sob transferência, do momento que o sujeito se encontra na organização do catálogo das pulsões, ou seja, como ele está respondendo, com sua fantasia, ao que ele supõe ser a demanda do outro (Ibid., p. 273). A partir dessas elaborações, a resposta que a autora propõe para a pergunta sobre a existência de uma especificidade na clínica com crianças passa por uma formulação no nível da lógica, aquela específica da psicanálise. Em vez de uma universal negativa (para toda criança não há especificidade) que contrariasse uma universal afirmativa (para toda criança há especificidade), seria preciso pensar uma resposta que incluísse a lógica do não-todo (não existe criança para a qual não haja especificidade). Em vez de tomar a criança como “Um” do universal, seria preciso pensar cada sujeito na lógica da singularidade do “um a um”. Finalizo com as palavras da autora, quando ela afirma que “no nível da política, a psicanálise é sempre a mesma, e é por isso que Lacan insiste no fato de que, em relação à política não há liberdade para o psicanalista” (Ibid., p. 282). Fiquemos, portanto, com a expectativa de que outros analistas possam fazer uso da experiência gentilmente compartilhada conosco por Ana Laura, para inventar possibilidades táticas em sua clínica.
referências bibliográficas LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 591-652. __________. (1975). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 550-556. PACHECO, A. L. P. Da fantasia de infância ao infantil na fantasia. São Paulo, Anna Blume, 2012.
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Resenha do Livro Lacan, o inconsciente reinventado Marcia de Assis Colette Soler propõe, neste livro, interrogar a trajetória de Lacan sobre o que fundamentava os constantes remanejamentos de suas elaborações, sobre a lógica de suas contribuições e as consequências destas na práxis analítica. Privilegia, nessa trajetória, os passos que conduziram Lacan a colocar uma fórmula inaudita: “o inconsciente, sempre até então simbólico, é real” (SOLER, 2012, p. 13). A partir daí, do inconsciente Real, aponta-nos a análise orientada para o real que convoca uma clínica renovada. Ao formalizar o nó borromeano, onde se enlaçam os três registros, Real, Simbólico e Imaginário, Lacan estava na via de um esquematismo mais englobante que permitisse pensar a um só tempo os fatos da neurose e aqueles da psicose, considera a autora, ressaltando o que está em questão, ou seja, os pedaços novos de Real que esta via permite abordar. A partir da quarta rodela de barbante, nomeada sinthoma e acrescentada às outras três que representam as dimensões do Imaginário, do Simbólico e do Real, torna-se necessário repensar estas últimas. O Simbólico que está escrito no nó borromeano não é mais cadeia linguageira. O inconsciente é condicionado pela linguagem, certamente, mas ele não é linguagem; é, antes língua (alíngua), multiplicidade inconsistente de elementos diferenciais que não fixam o sentido. No entanto, tais formulações não abolem o simbólico-linguagem, embora nos leve a pensá-lo como um efeito de discurso. “Quanto ao Real, resta a ele a ex-sistência” (Ibid., p. 25). Um Real fora do Simbólico, que está do lado do vivente, vivente este que não é imaginável e do qual o simbólico nada sabe. Portanto, o Real se desdobra entre o Real próprio ao Simbólico e o Real fora do Simbólico, que só o nó borromeano permite inscrever. O Real próprio ao Simbólico se refere aos impossíveis, aos quais o Simbólico preside, tal qual a cicatriz real do sujeito, ineliminável de toda ordem linguageira. Pela via do nó borromeano, Lacan busca abordar a clínica do sujeito real. Colette Soler insiste que este sujeito não faz somente furo na cadeia, que não é apenas mentalidade, pois tem substância de corpo, seja qual for a sua estrutura clínica. O ser falante, aquele que fala, está sempre dividido entre o que ele é como su-
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jeito suposto, sujeito feito de ausência, cujo ser está em outro lugar, e o que ele é como presença de indivíduo falante, presença libidinal ou gozosa, situado fora da cadeia significante. Presença, no entanto, que não está disjunta da fala, pois essa coisa fala, ela fala verdade, ainda que minta, sem poder dizer, todavia, o que ela é de real. Porém, há junção da fala com o Real. Por meio da tagarelice, da associação livre, algo do real é atingido: fiapos do real. Por meio do dizer analítico, algo se escreve. Mas o que quer dizer “escrever-se” numa prática cujo instrumento é a fala? Soler coloca a questão, dando a resposta em seguida. A análise não explora apenas o “já-ali”, mas opera aí, produzindo o inédito, que enfim se escreve. O dizer da análise deixa rastro de escrito. O que cessa de não se escrever são os rastros de impotência da verdade diante do impossível de escrever o dois do sexo, pois entre o gozo Um e o Outro gozo não há par. Não há relação sexual, eis o impossível, o que não cessa de não se escrever que faz as vezes de real, em psicanálise. O inconsciente Real (ICSR), apenas verificável na análise, tem efeitos no nível do gozo, mas permanece insabido, saber inconquistável. Esses efeitos são afetos. A satisfação não é gozo, ela responde ao gozo, ao saber gozado de alíngua, saber que supera tudo o que disso se sabe. O afeto enquanto enigmático adquire uma força de testemunha epistêmica, pois faz signo de que um saber insabido o causa. O ICSR é experimentado na análise e em nenhum outro lugar. Porém, sem que seja possível comunicá-lo e sem que disso resulte a menor amizade. Estar no inconsciente não promete ao sujeito nenhum saber do inconsciente. Quando ali estamos, “sabe-se si” (on le sait on), mas isso não faz saber universal e transmissível. Colette Soler busca em Lacan, no Prefácio ao Seminário XI, as balizas para o que chamou de modelo reduzido do passe pelo ICSR. Citando a primeira frase: “quando o esp de um laps, o espaço de um lapso, não tem mais nenhum impacto de sentido, só então temos certeza de estar no inconsciente”, propõe ser este um modelo reduzido daquilo que chamamos destituição do sujeito suposto saber, ou seja, uma passagem ao inconsciente real (passe au réel). O espaço de um lapso é o espaço do trabalho transferencial que supõe um sujeito ao lapso e tenta alcançar sua verdade. Quando esse espaço de hystorização não tem mais nenhum impacto de sentido, saímos dessa transferência e entramos no ICSR. O que resta de um laps? Significante sozinho, que não busca um S2, significante desconectado, fora da cadeia, real, portanto. Fora de sentido, mas não fora de gozo. Letra do sintoma, o que restou desse, disjunto da verdade subjetiva, reduzido a seu núcleo neológico. Fim da questão trazida na entrada – o que sou? –, porém não é a conclusão. O
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que decide o termo não é nem o ICSR, nem a verdade, mas o terceiro comparsa, que não é da ordem linguageira e se situa do lado do afeto. A queda do sujeito suposto saber assegura o inconsciente real, mas não basta para assegurar o fim da análise. Este se dá pela via do afeto gerado na sequência. A autora enfatiza que Lacan propôs uma passagem ao Real pela queda de sentido, em 1973; e em 1976, ele acrescenta uma mudança na resposta de satisfação do sujeito. A satisfação de fim, que põe termo à miragem da verdade, posto que esta nunca atingirá o oásis de completude, cessando, assim, os amores com a verdade, pondo um fim à outra satisfação, aquela da tagarelice que retarda o momento de concluir. Para além do ponto onde não há suposto saber, o quantum de satisfação, incalculável e não programável. Embora isto não queira dizer que o analista possa lavar as mãos, e sim que a responsabilidade está em suas mãos, mesmo que não possa antecipar o que o próprio sujeito vai aí responder. Mas uma resposta do ser ao efeito didático da análise nos deixa longe da ideia de que toda análise levada a seu ponto de finitude produza um analista. Tal variável não-lógica torna o analista apenas possível, para além daquilo que prudentemente chamamos o clínico, pondera Soler. Porém, qual é a responsabilidade do analista no movimento rumo à destituição da verdade? A autora aponta-nos a sessão curta lacaniana que tem por alvo o Real. O corte da sessão é “dedo apontado na direção do gozo que lastreia a hystorização do sujeito na análise” (Ibid., p. 96). E conclui que o que conta numa sessão, seja ela de duração variável ou curta, é seu fim, como para a análise, ressaltando os fins de sessão denominados suspensivos, já que não concluem nem questionam, mas cortam a cadeia da fala e atormentam o sentido. Elas têm afinidades com a interpretação lacaniana apofântica que nem revela nem esconde, mas faz signo daquilo que ex-siste à hystorização do sujeito. O sintoma é a maneira como cada um goza de seu inconsciente, disse Lacan em 1975. E há diversas versões de sintoma conforme o gozo esteja ou não enodado às outras duas dimensões, conforme inclua ou não a verdade da fantasia. Soler apresenta de um lado, os sintomas autistas, efeito direto de alíngua sobre o gozo, que excluem o laço social. E de outro, os sintomas socializantes, onde o gozo se aloja num laço, “por muito pouco que ligue”, enodando-se ao Imaginário e ao Simbólico do parceiro. Estes são chamados de sintomas borromeanos. Não há relação sexual, mas há para cada um o sintoma fundamental que supre, afirma a autora, voltando a citar o Seminário RSI, na página 148: “Para um homem, o que é uma mulher? É um sintoma”. Um corpo de gozo, mas não qualquer um.
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O ICSR que faz o núcleo do sintoma adiciona um elemento de linguagem e gozo, entre Simbólico e Real, portanto, mas ele não se enoda de modo necessariamente borromeano ao Imaginário para fazer laço social. A consequência na clínica é a divisão entre os sujeitos, cujos sintomas são tudo no inconsciente real (os esquizofrênicos puros, caso exista puro, ressalta Soler, onde o Imaginário está desatado); e os sujeitos, cujos sintomas não são tudo no inconsciente real, pois há para eles o que Lacan nomeou sinthoma, condição de enodamento desse Real ao inconsciente-fantasia, entre Imaginário e Simbólico. Mas há o caso Joyce. Vemos neste caso que o ICSR está preso num laço social, uma vez que seu ego de artista supriu a carência paterna. Porém, esse sintoma fundamental constituinte de laço não diz respeito a seu laço com a mulher, isto é, ele não supre a não relação sexual, apenas o fora-de-discurso produzido pela carência paterna. No entanto, é aí que Joyce irá ilustrar a verdadeira função do pai como condição e “modelo” do sintoma fundamental sexuado, pela via de sua negativa. Lacan propôs um quarto elemento, representado pela quarta rodela de barbante, denominado sinthoma, cuja função é condição de enodamento. E Soler reitera: o pai, não seu significante, mas seu dizer de nomeação, faz sinthoma, condição de enodamento borromeano. Continuando, a autora se dedica às considerações sobre o objeto a causa de desejo, aquele que não tem nome nem imagem, sendo justamente por isso causa de angústia, por ser anônimo e desconhecido, tal como se encontra no seminário A angústia, em que Lacan discorre sobre a angústia do sujeito confrontado com o desejo enigmático do Outro e com a iminência de sua redução ao objeto não eletivo. Porém, Soler chama a atenção para a última aula desse seminário, quando Lacan recorre ao pai como princípio de superação da angústia por seu objeto, não só finito, como também nomeado. Com esta função de nomeação, o a anônimo passa para a história, transferindo a causa desconhecida do desejo para o objeto nomeável. Dizer que o pai nomeia já é dizer que sua função não é função de metáfora. Ela não é propriamente falando uma função significante, embora seja privilégio do falasser. A função de nomeação é função de dizer, e o dizer é acontecimento, igual ao ato. Isso implica a contingência, o que cessa de não se dizer. O dizer de um pai nomeia seus objetos, sua mulher sintoma e os filhos advindos, enodando o gozo que o constitui ao Simbólico e ao Imaginário, o Real aos semblantes. Os nomes que respondem ao impredicável são Nomes-do-Pai e podem não ter nada a ver com qualquer pai que seja. Nada a ver com a família, que mesmo em
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suas configurações mais conformes, está bem longe de obstar à foraclusão. Quando se fala de desejo do pai, ou do dizer do pai, não se trata apenas de um significante como Lacan primeiramente colocou, mas de uma presença libidinal. A única presença exigível do pai, a única que obsta à psicose é a do dizer que nomeia. A nomeação pode passar sem os pais e se acomodar com nomes sinthomas quaisquer outros. Prova extrema por Joyce. Sobre o amor, sempre existiu a interrogação se a psicanálise pode prometer um novo amor para além dos sintomas da vida amorosa. A esta, Soler acrescenta a seguinte questão: a análise orientada para o real traz nova luz à questão antiga? Considera que a análise talvez possa prometer uma mudança a partir do que se inscreve da fala analisante, porém o bom encontro, sempre contingente, não pode prometer, embora possa criar as condições de possibilidade. Sendo possível perceber que o amor é reconhecimento de inconsciente a inconsciente, que ele tem um porquê, os afetos de inconsciente, eis um passo suplementar dado por Lacan, porém não passa ao saber, não reduzindo, portanto, a contingência do encontro. Mas Soler afirma que uma análise não é sem efeito sobre o amor, relembrando o termo empregado por Lacan para qualificar essa mudança, em “Nota aos italianos”: um amor mais digno. Aquele que nem acredita no parceiro, nem dá crédito a ele, que percebeu seu núcleo real, fora de sentido, que se tornou sintoma, no qual não se acredita mais. Um amor ateu, não transferencial e menos tagarela, acrescenta a autora. No entanto, a psicanálise tampouco o prescreve, posto ser este apenas mais uma das formas de sintomas socializantes. Na última parte do livro, intitulada Perspectivas Políticas, Colette Soler aborda o tema capitalismo e psicanálise, afirmando que cada discurso constrói um tipo de laço social, mas faz uma ressalva: não há nada igual no discurso capitalista cientificizado. Este constrói apenas um único laço, bem pouco social, entre os indivíduos e os produtos, deixando os primeiros mais expostos à precariedade e à solidão. Considera a psicanálise como um discurso de urgência na civilização, discurso que valoriza um outro Real que o da ciência, trabalhando para enodá-lo ao Eros de um possível laço vivível. No entanto, enfatiza: “eu disse a psicanálise, definida pelo ato constituinte de seu discurso, não os psicanalistas” (Ibid., p. 205). Ao abordar o mal-estar na psicanálise, afirma tratar-se de eufemismo quando diz mal-estar, pois é toda lógica institucional que objeta à subversão analítica. Daí Lacan ter formulado a necessidade de uma Escola de psicanálise. O termo Escola parece indicar que se trata essencialmente do saber, porém aquilo que cada um aprendeu de sua análise pessoal será submetido à prova de
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uma transmissão, por se tratar de uma experiência sempre singular. A Escola não é um abrigo, mas lugar de questionamento da experiência do inconsciente e do que os analistas fazem com isso. O dispositivo do passe é consubstancial à Escola, pondo o analista a dar seu testemunho, caso queira. E a autora ressalta: “É uma prova, a dela não duvidar” (Ibid., p. 222). Por certo há uma visada de transmissão epistêmica na Escola, no entanto, secundária, visto que, por trás do que se elabora de doutrina, um dizer se afirma e um desejo se transmite.
referências bibliográficas SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012, 234p.
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micas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. • No caso de resenhas, deve-se incluir, ao final, a referência completa da obra resenhada. As ilustrações devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas também em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um título sugestivo do seu conteúdo.
Sobre citações e referências bibliográficas: Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) Referências bibliográficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/ normalizacaodereferenciasabnt.pdf)
Citações no texto: As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.” Já as citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em conseqüência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma auto-análise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise desse tipo deve desistir, imediatamente,
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de qualquer idéia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. As citações indiretas devem contar as idéias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideais originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (Alberti e Elia, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Alberti, et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. Quando houver repetição da obra citada na seqüência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). Quando houver citação da obra já citada porém fora da seqüência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parentêses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).
Notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.
Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir
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em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955) A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 402-437 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, p. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61) O seminário – livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (p.440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, p.29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de
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Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq., 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Graça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisséia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disosrder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room: Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: FINGERMANN, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud. org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nr m=iso>. Acesso em 08 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br
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Sobre os autores Ana Laura Prates Pacheco Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela USP. Pós-Doutorado em Psicanálise na UERJ. Psicanalista. Membro da EPFCL – Brasil e do FCL – SP. AME da EPFCL Coordenadora da rede de pesquisa de psicanálise e Infância. Autora de “Feminilidade e experiência psicanalítica” ( 2001) e de “ Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (2012). Email: analauraprates@terra.com.br
Gabriel Lombardi Médico. Doutor em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Professor titular de Clínica de Adultos na Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e integrante da Comissão de Doutorado. Diretor do Serviço de Clínica psicanalítica da Universidade de Buenos Aires em Avellaneda. Pesquisador categoria I do Ministério da Educação da República Argentina. Autor de Clínica e lógica da auto-referência. E-mail: gabriellombardi@fibertel.com.ar
Gláucia Nagem Glaucia Nagem de Souza, psicanalista, membro da IF-EPFCL Fórum SP; artista plástica, responsável pelo ateliê 702 e monitora no ateliê de gravura do Museu Lasar Segall. E-mail: glaucia.nagen@uol.com.br
Gilda Pitombo Mesquita Psicanalista, Psicóloga, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Membro da Internacional do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro da Escola de Psicanálise dos Fóruns. E-mail: gildamesquita@yahoo.com.br
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Lenita Pacheco Lemos Duarte Psicóloga. Psicanalista. Membro da AFCL RJ e da IF-EPFCL-Brasil. Participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Pós-graduada em Psicanálise pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) E-mail: duartelenita@gmail.com
Lia Silveira Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Fortaleza. E-mail: silveiralia@gmail.com
Lucília Maria Sousa Romão Formada em Letras (UniMauá- 1989), doutora em Psicologia (USP- 2002) e Livre-Docência pela mesma instituição (2010). Coordena o grupo de pesquisa “Discurso e memória: nos movimentos do sujeito” (CNPq) e o “Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimento (E-L@DIS)”. Participante das atividades da Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano – Fórum São Paulo. E-mail: luciliamsr@uol.com.br.
Marcia de Assis Psicanalista, membro da IF-EPFCL/Brasil. Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói. Atual coordenadora do FICL-Niterói E-mail: marcia.assis@gmail.com
Maria Claudia Formigoni Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br
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Maria Vitória Bittencourt AME da Escola de Psicanalise dos Fóruns do Campo lacaniano; Mestre em Psicanálise da Universidade de Paris VIII; Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano - Rio de Janeiro. E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com
Samantha Abuleac Steinberg Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano - SP. Co-coordenação da Rede de Pesquisa Teoria e Clínica, no Fórum SP. E-mail: sasteinberg09@gmail.com
Vera Pollo Psicanalista (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e da IF-EPFCL-Brasil. Psicanalista do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, HUPE/UERJ. Professora da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ e do Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Co-organizadora de Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan ( Marca d’Água Livraria e Editora, 1999); autora de Mulheres Histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e O medo que temos do corpo ( Editora 7Letras, 2012) E-mail: verapollo8@gmail.com
Zilda Machado Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Belo Horizonte. E-mail: zildamachado11@gmail.com
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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chãopara nela se estetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.
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Pareceristas do número 26 Angela Diniz Costa (EPFCL – Belo Horizonte) Angela Mucida (Newton / Paiva) Angélia Teixeira (UFBA / EPFCL – Salvador) Conrado Ramos ( PUC - SP / EPFCL – São Paulo) Daniela Sheinkman Chatelard (UNB / EPFCL – Brasília) Eliane Shermann (UFRJ / EPFCL – Rio de Janeiro) Elizabeth Tamer (EPFCL – Zona Francófona)) Geisa Freitas (EPFCL – Rio de Janeiro) Luis Achilles Rodrigues Furtado (UFC – Sobral l EPFCL) Luis Andrade( UFPB / EPFCL ) Marcus do Rio Teixeira (Editor Àgalma / Campo Psicanalítico – Salvador) Silvana Pessoa (EPFCL – São Paulo) Sonia Borges (EPFCL – Rio de Janeiro) Zilda Machado (EPFCL – Belo Horizonte)
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ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, porque o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é antes de tudo fraco. O sentido, isto tampona, mas com a ajuda daquilo que se chama escrita poética vocês podem ter a dimensão do que poderá ser a interpretação analítica. Jaques Lacan Seminário 24 L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977) “A que tem de responder o desejo do psicanalista? A uma necessidade que só podemos teorizar como tendo que produzir o desejo do sujeito como desejo do Outro, ou seja, fazer-se causa desse desejo.”
ISSN 1676-157X
(Outros Escritos, p. 271)
O que responde o psicanalista? Ética e clínica II
A interpretação é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer
s t y l u s
epfcl brasil
27 outubro 2013
ISSN 1676-157X outubro 2013 nO 27
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil
stylus r e v is t a
d e psic a n á lise
O que responde o psicanalista? Ética e clínica II