escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil
Stylus revista de psicanรกlise
Stylus Rio de Janeiro
nยบ29 p.1-192
novembro 2014
© 2014, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2º andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da afcl/epfcl-Brasil Conselho Editorial Diretora: Delma F. Gonçalves Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-São Paulo) Secretária: Andréa Milagres Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador) Tesoureira: Madalena Kfuri Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador) Equipe de Publicação de Stylus Bernard Nominé (EPFCL-França) Ida Freitas (coordenadora) Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Angela Costa Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Conrado Ramos Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo) Geísa Freitas Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília) Lia Carneiro Silveira Edson Saggese (IPUB/UFRJ-Rio de Janeiro) Luis Achilles R. Furtado Eliane Schermann (EPFCL – Rio de Janeiro e Petrópolis) Silvana Pessoa Elisabete Thamer (Doutora em filosofia Universidade de Paris IV - Sorbonne) Indexação Eugênia Correia (Psicanalista-Natal) Index Psi periódicos (BVS-Psi) Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) www.bvs.psi.org.br Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis) Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo) Editoração Eletrônica Henry Krutzen (Psicanalista/Natal) 113dc Design+Comunicação Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) Luiz Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba) Tiragem Marie-Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse) 500 exemplares Nina Araújo Leite (UNICAMP/Escola de Psicanálise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro) FICHA CATALOGRÁFICA
STYLUS: revista de psicanálise, n. 29, novembro de 2014 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195
sumário 07 editorial: Ida Freitas
conferências 13 23
Colette Soler: O que resta da infância Colette Soler: Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise
ensaios 33
43 51 59 67
Ana Laura Prates Pacheco: Na mansão do dito imaginário: opsis e a seção diagonal Vanina Muraro: Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo Maria Lúcia Araújo: A letra e o desejo, em André Gide Glaucia Nagem: “Joyce, o Sinthoma” – uma leitura Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto: Conflito entre psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade
trabalho crítico com conceitos 87 99
113 125
Cibele Barbará: A verdade ou o testemunho Martín Alomo: Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica Leandro Alves Rodrigues dos Santos: O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre as vicissitudes de um ofício tão particular... Andréa Hortélio Fernandes: O desejo do analista e o autismo
direção do tratamento 137
143 151
Bela Malvina Szajdenfisz: Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo Maria Vitória Bittencourt: A letra do desejo – um relato de um sonho Lenita Pacheco Lemos Duarte: Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
resenha 167
Beatriz Oliveira: Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
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contents 07 editorial: Ida Freitas
conference 13 23
Colette Soler: What is left of childhood Colette Soler: Possibility of a non-individualistic ethics of psychoanalysis
essays 33
43 51 59 67
Ana Laura Prates Pacheco: In the mansion of the said imaginary: opsis and the diagonal section Vanina Muraro: Some positions of the Prince Hamlet in front of the desire Maria Lúcia Araújo: The letter and the desire, in André Gide Glaucia Nagem: “Joyce, the Sinthoma” – a reading Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto: The conflict between psychoanalysts and the phallic deadlocks of the brazilianness
critical paper with the concepts 87 99
113 125
Cibele Barbará: Truth or testimony Martín Alomo: Vicissitudes of the desire in the capitalist world: the lacanian notion of “letosa” and its clinical relevancy Leandro Alves Rodrigues dos Santos: The analyst and the deviation of his desire: a look over the vicissitudes of such a particular profession Andréa Hortélio Fernandes: The desire of analyst and autism
the direction of the treatment 137
143 151
Bela Malvina Szajdenfisz: If we knew what a stingy man kept in his safe, we would know a lot about his desires Maria Vitória Bittencourt: The letter of the desire – a narrative of a dream Lenita Pacheco Lemos Duarte: Conflict or self-recrimination? Issues of desire in neurosis
review 167
Beatriz Oliveira: His Majesty the autistic: fascination, intolerance and exclusion in the contemporary world
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Editorial Esta publicação, Stylus 29, compreende um segundo volume de textos, que continua abordando a temática “A causa do desejo e suas errâncias”, trabalhada ao longo de 2013 na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil. A escolha desse tema provou ter incentivado uma grande produção de bons trabalhos, muitos deles endereçados à Stylus, o que nos levou a distribuí-los em dois números, com rigor e consistência equivalentes. Segundo anunciamos em Stylus 28, na qual publicamos a primeira das três conferências de Colette Soler realizadas durante o XIV Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, realizado no ano passado em Belo Horizonte, encontram-se, na presente edição, a segunda e a terceira dessas conferências, respectivamente intituladas de “O que resta da Infância” e “Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise”. Em “O que resta da infância”, Soler tece uma aproximação entre marcas e estrutura, trazendo a questão de como, a partir das marcas do trauma, um sujeito pode chegar ao real da estrutura, propondo que existem dois tipos de real: um demonstrável enquanto impossível e um que se encontra, mas não se demonstra, e que concerne ao real da repetição e da letra do sintoma. Introduz a ideia, que desenvolverá na terceira conferência, de que a ética do sujeito é como cada um responde ao real que se encontra, questionando se uma psicanálise pode mudar a opção ética de um sujeito. Na terceira conferência – “Possibilidade de uma ética ‘não individualista’ da psicanálise” –, Soler dá sequência às reflexões a respeito da ética, contrapondo uma ética individualista à ética psicanalítica, que é fundamentada na unaridade do falasser. Por meio das asserções “Não há relação sexual” e “Não há relação social”, a autora contrasta psicanálise e capitalismo, ressaltando, no entanto, que o capitalismo é condição de existência da psicanálise. Na seção Ensaios, encontramos dispostos cinco textos, e quatro deles confirmam o quanto psicanálise e psicanalistas referenciam-se, dialogam e aprendem, deixando-se afetar pelo fazer e mostração artística, enriquecendo assim seus argumentos teóricos e clínicos. No primeiro texto dessa seção – “Na mansão do dito imaginário: opsis e a seção diagonal” –, Ana Laura Prates revisita o imaginário, inspirada pela obra do artista plástico Marcius Galan e apoia-se na afirmação lacaniana que diz: “o imaginário é uma dit-mansion tão importante quanto as outras”. Aproximando a obra artística da teoria psicanalítica, a autora faz um percurso desde o Estádio do Espelho, até a Teoria dos Nós, discutindo as noções de tempo e especialmente de espaço, chegando à conclusão de que “na experiência topológica de Seção diagonal, o que o artista põe em cena é o ‘espaço lacaniano’ não kantiano e suas propriedades”.
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FREITAS, Ida
Em “Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo”, a autora tem por motivação pensar a que está submetida a “loucura” de Hamlet. Recorrendo à literatura clássica, Vanina Muraro escolhe este personagem de Shakespeare, para abordar a questão do desejo, evidenciando a relação do Príncipe com a morte e a procrastinação de seu ato, contrapondo-o à posição decidida de Antígona. A seguir, Maria Lucia Araújo elege como objeto de sua pesquisa, a vida e a obra de André Gide, a partir do que irá se perguntar se e como a escrita do artista contribui para o entendimento dele próprio e para a psicanálise. A autora faz seu itinerário articulando “A letra e o desejo em André Gide”, título escolhido para seu ensaio. Em “Joyce, o Sinthoma – uma leitura”, é a vez da obra do artista James Joyce que, a partir da leitura que Lacan faz de sua escrita, tanto tem ensinado aos analistas a respeito de como se articulam os significantes na linguagem do inconsciente. Assim é que Gláucia Nagen faz sua leitura do artigo em questão, destacando algumas passagens do texto joyciano para ressaltar a singularidade criativa de sua escrita, articulando-a com o conceito de alíngua, encontrado por Lacan no desenvolvimento de sua teoria. Encerrando a seção Ensaios, encontramos um texto que foge à série que relaciona arte e psicanálise, o qual discute de maneira crítica os aspectos históricos, culturais e sociais da psicanálise lacaniana no Brasil. É dessa maneira que, no ensaio “Conflito entre psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade”, os autores Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto apresentam, como o título mostra, uma leitura própria das rupturas e divergências comuns ao movimento psicanalítico, propondo como hipótese que “os conflitos e divisões entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas presentes na brasilidade, particularmente, depois dos anos 1970”. É dentro dessa perspectiva que os autores vão examinar uma situação particular ocorrida na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, análise esta que não corresponde nem à interpretação de toda a comunidade da EPFCL – Brasil, nem em particular à leitura que fazem da mesma situação, alguns membros da equipe desta publicação. No entanto, respeitando o princípio de fazer valer a crítica assídua ao movimento psicanalítico e o de que opiniões discordantes possam coabitar numa mesma instituição de psicanálise enriquecendo seu debate sem necessariamente promover rupturas, é que acolhemos o referido texto em Stylus. Abre a seção Trabalho crítico com conceitos, o texto de Cibele Barbará, “A verdade ou Testemunho”, em que acompanhamos, mais uma vez, a parceria entre psicanálise e literatura, para a autora estabelecer algumas relações entre os testemunhos literários e os testemunhos referentes à análise propriamente dita e ao passe, a partir do livro A Escrita ou a Vida, de Jorge Semprum. No segundo artigo dessa seção – “Avatares do desejo no mundo capitalista: a
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Editorial
noção lacaniana de ‘latusa’ e sua relevância clínica” –, para pensar a situação do analista no mundo capitalista, Martin Alomo privilegia o conceito de latusa, especialmente trabalhado por Lacan no Seminário O avesso da psicanálise. Para isso, trilha um percurso que vai da demonstração do sujeito que advém do cogito cartesiano, a sua relação com o capitalismo tecnológico, numa perspectiva heideggeriana, até a discussão do conceito marxista de mais valia, a partir do qual Lacan fundamenta sua noção de mais-de-gozar. Leandro Alves Rodrigues dos Santos, autor do artigo “O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre as vicissitudes de um ofício tão particular...”, propõe, entre outras, uma discussão a respeito do desejo do analista e das vicissitudes da prática psicanalítica no mundo contemporâneo e se interroga a respeito dos efeitos do fazer psicanalítico na vida do psicanalista. Concluindo essa seção, Andréa Hortélio Fernandes dedica-se a refletir sobre a posição do desejo do analista na prática com sujeitos que fracassam ao se inscreverem no discurso do Outro, assim como acontece no autismo, e desenvolve suas elaborações com base na experiência clínica a respeito do uso que os sujeitos autistas fazem desse operador clínico, desejo do analista. Na seção Direção do tratamento, contamos com três artigos que trazem a relevância do desejo na clínica e demonstram, de certa maneira, como uma análise se aproxima da metonímia do desejo como expressão do inconsciente. No primeiro texto dessa seção, Bela Malvina Szajdenfisz promove, mediante a teorização que realiza do caso clínico eleito para seu trabalho, uma aproximação entre a citação que faz Lacan, de autoria de Simone Weil, no Seminário O desejo e sua interpretação – “Se soubéssemos o que avarento encerra no seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo” –, com o qual intitula seu artigo, e a insistência do significante “avaro”, que faz enigma ao sujeito em análise. A autora privilegia os aspectos que concernem à relação da fantasia com o desejo e a função desejo do analista na direção do tratamento. Em “A letra do desejo – um relato de um sonho”, Maria Vitória Bittencourt demonstra, ao trazer em seu comentário o texto do “Sonho do unicórnio”, de Leclaire, e todo o desdobramento da cadeia significante que se constrói ao longo da análise, como é possível equivaler o trabalho analítico a uma prática da letra capaz de fazer surgir um significante de alíngua. “Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose” é o artigo de Lenita Pacheco Lemos Duarte, que segue a trilha da teoria freudiana das neuroses, buscando, por meio de dois casos clínicos, distinguir a relação do sujeito com seu desejo em cada um dos tipos clínicos da neurose. Na seção Resenha, Beatriz Oliveira se encarrega de expressar seus comentários a respeito de sua leitura do livro Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e ex-
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FREITAS, Ida
clusão no mundo contemporâneo, de Luis Achilles Furtado, publicado em 2013, em que o autor apresenta sua tese de doutorado em Educação, produzindo uma contribuição de peso para as questões referentes à abordagem do autismo nos campos da educação, especialmente no que concerne à inclusão, e no campo da psicanálise. Em Stylus 28 e Stylus 29, pudemos contar, além da habitual contribuição dos colegas que enviam seus textos, com a dos parceiros, tradutores, revisores e também com a participação espontânea dos colegas do Campo Psicanalítico de Salvador, que se lançaram à tarefa de transcrição e parte do estabelecimento do texto e revisão das conferências de Soler, aos quais agradecemos a iniciativa. A atual coordenação da Equipe de Publicação de Stylus conclui, com Stylus 29, seu trabalho de publicação desse importante meio de circulação dos textos da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano; por isso agradece também a todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para o acontecimento dos quatro últimos números de Stylus que foram publicados ao longo de 2012 a 2014. Desejamos que o presente número possa contribuir para os estudos e pesquisas dos leitores, a quem desejamos uma excelente experiência de leitura. Ida Freitas
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conferĂŞncia
O que resta da infância Colette Soler II Conferência – XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil Belo Horizonte, 26/10/2013 O que eu vou falar hoje tem, implicitamente, algo a ver com as marcas, porque não vou falar disso propriamente, e se relaciona com o passe e o final de análise. De fato, eu queria repercutir o que trabalhei no ano passado no meu curso em Paris. Eu havia escolhido como título “O que resta da infância”. Portanto, é uma questão sobre as marcas da história própria de cada um. Evidentemente, existe uma questão sobre a relação entre as marcas e a estrutura. E, no fundo, há um ponto em comum entre a estrutura e as marcas. Refiro-me às marcas da história. E, no final das contas, as aventuras das quais falava Patrícia Muñoz, começam muito cedo na vida. Então, existe um ponto em comum entre a estrutura e as marcas, que é o fato de não podermos fazer nada com isso. E não podemos fazer nada no sentido de que sofremos essas marcas. Não são exatamente a mesma coisa – estrutura e marcas, elas, porém, possuem esse ponto em comum, que evidentemente coloca o problema do limite da psicanálise, limite na operação psicanalítica, limite da operação psicanalítica, que não vai poder mudar nada nem na estrutura nem nas marcas. Vou fazer algumas observações gerais sobre esse tema, entre as marcas e a estrutura. Primeiro, quando eu digo estrutura, não estou falando da estrutura de linguagem. Há uma estrutura de linguagem, claro. No fundo, é isso que a linguística toma como objeto, mas, quando nós dizemos com Lacan “a estrutura”, o que estamos falando é da estrutura como efeito da linguagem. Vocês encontrarão isso explicitamente em Radiofonia (LACAN 1970/2003, p. 405), quando Lacan diz no começo da questão dois: “seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem”. É aí que vocês encontram a diferença assinalada por Lacan entre linguística e linguesteria. A linguesteria implica tanto a linguagem quanto aquilo que não é linguagem, ou seja, o corpo; o corpo imaginário ou como substância de gozo. O maior efeito de linguagem é o objeto a. Eu digo maior porque o $ (sujeito barrado) é outro efeito de linguagem. Efetivamente, sem essa estrutura do objeto a construída por Lacan, não se poderia conceituar nem o desejo nem o gozo. Em particular, não seria possível conceituar os gozos da repetição e do sintoma. Há um traço da estrutura aqui salientado: a estrutura é para todos, é universal, universal dos fa-
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lantes. Dito de outra forma, isso se parece com o destino. Ninguém escapa a isso. As marcas são o contrário, elas correspondem a um por um, cada um tem as suas, portanto, decorrem da contingência. Se começássemos a refletir sobre estrutura e contingência, teríamos um título possível. Constataríamos, imediatamente, uma trajetória de Lacan impressionante. Ele construiu a estrutura, começou com isso e indicou muito bem que a estrutura não excluía a história, ao contrário, a estrutura se inscrevia na diacronia. Isso ocorre em todo o período de Lacan até o final dos Escritos, de certa forma. E quanto mais ele avançou no seu ensino, mais frisou e destacou a questão da contingência, de certo modo em todos os níveis e até mesmo no nível do final da análise. Mas este é um pequeno parêntese que estou fechando. As marcas da história individual infantil – inclusive isso começa desde a infância –, poderíamos dizer que é aquilo que cessou de não se inscrever, e que, a partir daí, não cessa mais de se inscrever. Isso faz com que uma contingência, a marca de uma contingência, se prolongue em necessidade, e que não cesse mais de se inscrever. Essas marcas são sempre singulares, mesmo quando são as marcas de um traumatismo coletivo. As próprias marcas são singulares, isso é muito importante porque as marcas singulares são conscientes em geral, o sujeito pode falar sobre isso, não somente são conscientes, mas elas colam, aderem à pele. É aquilo ao qual ele está mais ligado, amarrado, e no fundo é isso que está no coração do sentimento da identidade pessoal, isso é muito sensível na vida. Quando encontramos alguém, um desconhecido, e queremos conhecer essa pessoa, não precisa de muito tempo nesse primeiro encontro para que um conte ao outro, e reciprocamente, a história da sua primeira infância, tal como ele estaria contando essa história a si mesmo. Pelo contrário, a própria estrutura é desconhecida, naturalmente desconhecida, é o que Lacan pôde dizer: a estrutura é aquilo que não se aprende da experiência. É o que o faz dizer que ele construiu o objeto a. E nesse sentido me parece que as marcas da história singular dissimulam a estrutura. No entanto, postulo que as marcas se escrevem conforme a estrutura e, nas marcas, a estrutura se torna efetiva. Isso é um problema para o passe, porque no passe alguém é suposto falar uma língua própria (“de son cru”), expressão francesa que Lacan empregou e significa: próprio, de si mesmo; ninguém mais poderia ter falado uma coisa dessas. Voltarei um pouco mais com a questão das marcas, porque existe marca e marca. E as únicas marcas que interessam à psicanálise são as marcas que inscrevem a estrutura, mas existem outras. Existem as marcas que provêm do fato de que alguém nasceu em algum lugar, e ter nascido em algum lugar deixa marcas de identidade. As pessoas nascem em uma língua, em um clima, em uma paisagem, em uma cultura, em uma tradição, e tudo isso fabrica o sentimento de identidade, nutre um
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O que resta da infância
sentimento de exílio e nostalgia quando fica longe desse lugar de origem, o que produz afetos muito fortes quando do retorno à terra natal. Mas existem as outras marcas que são os acidentes verdadeiros da história e do nascimento: lutos, doenças, deficiências, e quando alguém nasce deformado é uma marca. De certa forma, a psicanálise não se ocupa dessas marcas. O analisando pode falar a respeito se isso lhe satisfaz, e ele fala disso, mas não é isso que está em questão na psicanálise. Parece-me que há dois tipos de marcas que interessam à psicanálise. Vou deixar de lado a questão eventual da marca do analista no final da análise, uma questão muito eventual. Falo das outras marcas. Há dois tipos de marca que interessam à psicanálise: são, primeiramente, as marcas do trauma próprio de cada um; e, depois, as marcas que inscrevem o gozo que está no âmago do sintoma. Eu vou desdobrar um pouco isso. As marcas do trauma persistem, como sabemos, na forma da repetição; essa é a tese de Freud repensada por Lacan, mas que ele mantém. O trauma perdura, não volta como o recalque, não volta na cadeia significante como volta o recalcado; o trauma perdura, insiste na repetição, na forma da repetição do traço unário que indexa o trauma. Existem as outras marcas, às quais Lacan deu o nome de letra do sintoma. São dois tipos de marcas que participam do Um: o Um do traço unário, ou o Um da letra de gozo. Não se trata do mesmo Um, mas os dois procedem do Um. Essas marcas são indeléveis e se inscrevem na contingência, o que significa que são incuráveis, por isso, inclusive, na última vez que estive no Brasil, em Fortaleza, tomei como tema “Repetição e Sintoma”.1 Como o sujeito vai perceber a estrutura a partir dessas marcas sofridas? Pela análise. Todas as fórmulas de Lacan sobre o final de análise implicam um saber adquirido sobre a estrutura, porque os sujeitos já conheciam as marcas. É uma questão. Devemos entender como um sujeito que seria totalmente ignorante dos textos de Lacan e de Freud, que não teria aprendido a estrutura construída por Lacan depois de Freud, que não falaria, portanto, como nós agora; como um sujeito, no entanto, que se engaja numa análise, porque tem sintomas, poderia chegar a um fim que implicaria uma conclusão estrutural? Efetivamente, toda a questão da operatividade da análise é que está em jogo nesta questão que estou levantando sobre a marca, para, a partir da marca, chegar ao real da estrutura. Queria lembrar algumas afirmações de Lacan a respeito do final de análise. Ele diz: “passar da impotência ao impossível”, é um tema que implica a lógica; o impossível é alguma coisa que se demonstra. “Demonstrar o impossível da relação numa análise.” Como se demonstraria alguma coisa numa análise? “Saber ser um rebotalho”, saber adquirido, portanto. É uma expressão equívoca, “saber ser um rebotalho, dejeto”, porque, em francês, no texto de Lacan, ela significa “saber 1 Disponível em Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 23, p. 15-32, 2011.
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que se é um dejeto”. Dito de outra forma, que alguém não está inscrito no Outro a partir do significante. A expressão equívoca em francês pode também querer dizer “saber fazer com isso”, “saber se virar com isso, que é ser um dejeto”. E, obviamente, a questão é como se passa da experiência particular a uma conclusão para a qual Lacan dá uma fórmula generalizante. Em uma época, eu dizia, é necessário um analisante lógico; é verdade, mas é insuficiente, geral demais, porque, mesmo em lógica e em matemática, nenhuma conclusão pode acontecer sem um ato que coloque essa conclusão. Mesmo para dizer dois mais dois igual a quatro é preciso um sujeito que consinta dizer que dois mais dois é igual a quatro. Dito de outra forma, a ordem de dedução nunca é suficiente para fundar uma ordem de conclusão. Por outro lado, Lacan, ao lado dessas fórmulas que eu lembrei e entre muitas outras evidentemente, insiste sobre o caráter singular de um final de análise. Na Nota Italiana (LACAN, 1973/2003, p. 313), ele diz que é necessário que o sujeito tenha cingido o seu horror de saber de uma forma geral; ele é, acrescenta, da sua própria, destacado de todos. Cingir a causa de seu horror de saber, isso é uma aquisição de saber, no entanto singular, que não combina muito com o intercâmbio, o compartilhar. Este é todo o problema dos cartéis do passe: reconhecer uma estrutura num saber singular. Então, como a análise vai tocar nisso? Vocês podem notar, em tudo que estou dizendo, que há dois tipos de real implicado: de um lado, há o real que se demonstra como impossível, que é a grande definição de Lacan do real. O real é o impossível, mas o impossível se demonstra. E quando ele avança com o “não há relação sexual”, é a fórmula do real que deve se demonstrar numa análise. Por outro lado, há um real que se encontra, mas não se demonstra. O real da repetição e o real da letra do sintoma constituem algo do real que se encontra na contingência, nos dois casos. São esses “Uns”, da repetição e da letra do sintoma, que fazem existir o inconsciente no real. Dessa forma, talvez possamos distinguir o que a análise faz em relação a esses dois reais. Primeiro, como uma análise demonstra o impossível da relação sexual? Lacan respondeu a essa pergunta, portanto não preciso procurá-la no texto, está no texto Introdução à edição alemã dos Escritos (LACAN, 1973/2003, pp. 553-556). No fundo, a análise demonstra o impossível da relação sexual pelo que ela escreve, e o que ela escreve é sempre o Um. “Há Um” (“Y a d’l’Un”) é uma fórmula que, evidentemente, responde ao “não há relação sexual”, mas que Lacan produziu alguns anos depois. É uma demonstração fraca, não tão fundamentada; portanto, diz Lacan, pelo fato de que uma análise, por mais que avance, só vai produzir Uns, e não apenas o Um das marcas, mas o Um fálico. Vocês encontrarão essa referência no texto O Aturdito (LACAN, 1972/2003, pp. 449-497). A análise coloca a função proposicional ɸ (x), o que traz a ideia de que, pela associação livre, pelo deciframento,
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pelo fio das ideias que se desdobram, pela re- petitio, da demanda, há o Um que se impõe subjetivamente, como conclusão subjetiva, se assim podemos dizer. Esse é um primeiro eixo da resposta. Eu poderia ter feito um seminário apenas sobre esse ponto, mas me parece que foi convincente, muito próximo da nossa experiência. Inclusive, é por isso que a fase final de uma análise, antes do final, não é uma fase alegre, na medida em que o sujeito estava esperando uma solução para a sua solidão, ao Um dos seus sintomas, ao Um da repetição, aos impasses do amor. Ele, então, começa a perceber que não é a análise que lhe vai dar isso. Nesse sentido, existe um afeto, nessa fase do final de análise, que atesta ter o sujeito aprendido alguma coisa, que ele está se dirigindo para essa conclusão, e, portanto o “Há o Um” se demonstrou para ele. No entanto, concernindo ao outro lado do real, o real que se encontra, que se encontrou e deixou sua marca, suas marcas, como o sujeito vai chegar a uma conclusão, como dizia Freud? E aqui invoco Freud: como o sujeito vai concluir que sua infelicidade, que ele achava única, era, no final das contas, uma infelicidade banal, ou seja, procedia de uma estrutura que vale para todos? Voltei a me interrogar sobre as marcas da repetição e as marcas do sintoma, e sobre o que eu chamei de “as suas variáveis”, porque é certo que o que Freud escreveu no Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/1980), ou seja: um traumatismo, na relação com o Outro (Ⱥ) e que persiste depois, na forma da repetição, e o traumatismo que Freud escreveu como traumatismo infantil, não somente para os neuróticos, mas para todas as crianças, é uma maneira de dizer: estrutural. Freud não usa essa palavra, mas já é uma maneira de dizer isso: traumatismo para todos, fracasso das aspirações do amor, do desejo de saber e do desejo de criar uma criança. Lacan encontrou um termo para nomear esse traumatismo, que não pode não se produzir, dizendo, troumatisme, em vez de traumatismo, que vem do (trou) furo. É um idiomatismo que não tem tradução. É uma maneira de dizer que esse troumatisme, no fundo, provém do Outro, dessa marca do Outro que forçosamente é furado. O matema desse troumatisme é S(Ⱥ). A questão é que o analisante tem de perceber isso, dar-se conta disso, e constatamos que isso é possível, embora não ocorra em todos os casos; temos um signo clínico, sem que o sujeito necessite dizê-lo, a cada vez que vemos um analisante, que vem de anos e anos de análise, depois de ter denunciado aos gritos as respostas que ele obteve, de seu pai, de sua mãe e de todos os outros, acabar por dizer: “Bem! Eles fizeram o que eles puderam”. É uma coisa muito simples, mas que indica que, naquele Outro Ⱥ do discurso, não havia a fórmula para me responder. E é encorajador saber que é possível acontecer isso, mesmo que não se trate de todos os casos. Acabei por me perguntar se este isso poderia provir das diferenças do trauma singular de cada um, porque trauma para todos, sim,
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mas cada um com o seu. Aí, de novo, a estrutura avança no particular de cada caso, portanto, quais são os fatores que fazem variar essa fixação ao traumatismo? Eu acho que existe, em primeiro lugar, o que chamo as figuras do Outro. Com efeito, falamos do Outro com maiúscula, o Outro do discurso onde o sujeito foi recebido, acolhido, mas são os outros pequenos a que dão vozes e corpo a este grande Outro A. E, neste assunto, há uma grande variedade entre cada sujeito, inclusive com o fator de que o valor social, a questão social, entra na psicanálise, de acordo com a configuração das famílias, a cultura, a ausência de cultura e todos os fatores que a diferenciam. Isso vai das formas moderadas até o oposto, as formas de excesso, que nós conhecemos como transgressões, violências, negligências, e também que um sujeito nasceu em algum lugar; e ter nascido aqui ou lá não é a mesma coisa. Essas diferenças são as questões que interessam mais a todos os serviços sociais e educativos, um serviço que se interessa pelas formas singulares do traumatismo, especificamente as formas desfavoráveis aos sujeitos. É óbvio que a psicanálise tem de se haver também com essas questões, assim como Lacan nomeou “pais traumáticos”, porque, dependendo desses “pais traumáticos”, o furo pode ser mais ou menos perceptivo, e há algumas famílias em que o furo é quase tampado pela obscenidade do Outro, pela violência e excitação. É por isso que eu criei outro neologismo, tropmatismo,2 para expressar o furo tampado por um excesso. A respeito do Outro com o qual o analisante teve de se haver, estou falando do Outro real e não do Outro fantasmático, a análise nada pode a respeito disso; e, quando há realmente um excesso, um tropmatismo, com certeza é mais difícil, não impossível, mas é mais difícil para o sujeito perceber e apreender que é uma infelicidade banal. Isso é um primeiro fator de variável, mas existem outros pelos quais me interesso muito, que são os fatores nativos; são os fatores que não vêm do simbólico, nem da história nem do imaginário; são fatores que vêm do início, e a que Freud chamava de constituição. É muito relevante constatar como Freud, depois de ter desdobrado e desenvolvido todos os aspectos possíveis da determinação, retorna para um fator de origem, a constituição, que não dá para captar, apreender, no entanto está presente. Lacan não deu muita atenção a esta questão da constituição, no entanto eu gosto muito desta expressão que ele usou – as armas que o sujeito tem por sua natureza. Ele não desenvolveu isso, mas nós poderíamos escrever um capítulo, desenvolver esse tema, sobre quais são essas armas que o sujeito tem da sua natureza. Apesar de se chamar isso de constituição ou por outro nome, trata-se aqui de um fator que não provém nem da estrutura, nem dos acidentes da história. Chamei de nativo, mas talvez não seja a melhor forma de nomear, pois, se eu 2 Tropmatisme – neologismo criado por Soler a partir do deslocamento da palavra traumatisme, para troumatisme (neologismo de Lacan que significa o trauma produzido pelo furo), para trop (demais/ excesso) matisme. [Nota do tradutor].
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digo nativo, estou postulando que isso não vai mudar. Em todo o caso, o que Freud chamou de recursos do sujeito, inclui no traumatismo um fator desse tipo. O traumatismo é o encontro com uma experiência do real, o encontro do real numa experiência de desamparo, mas o desamparo em função dos recursos do sujeito. Freud não explica muito também quais seriam esses recursos, mas é uma indicação de que os sujeitos são mais ou menos traumatizáveis, há os encontros com o real e também o fator pessoal. Isso está presente em Freud de uma maneira muito forte, e evidentemente em Lacan mais ainda. Freud diz, textualmente, que o traumatismo inclui a avaliação das fraquezas e de nossas forças ante um perigo. Há uma tese que circula muito hoje em dia, não sei se aqui no Brasil também, que é a noção de resiliência. Detesto essa invocação da resiliência porque, de certa forma, é invocada frequentemente para sugerir ao sujeito que ele seja um pouco mais corajoso. Porém, existe algo de verdadeiro nessa noção, e Lacan diz isso de outra forma. Ele fala simplesmente da maneira como o sujeito responde ao real, e nessa fórmula não se trata do real que deve ser demonstrado, mas do real que se encontra, e o nome dessa maneira de o sujeito responder a esse real é a ética do sujeito. A definição que eu acabei de citar está no Seminário 7: a ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1991). Lacan diz que a ética não tem de se relacionar com as normas do Outro, a ética é a relação com o real, especificamente a ética individual, é a maneira como o sujeito responde ao real. Compreendemos então que, com essa definição Lacan pode falar da ética da psicanálise, de um discurso, e da mesma maneira, poderíamos falar da ética do mestre, do universitário, da histérica; e isso seria denotar a maneira como em cada discurso se responde ao real, ou melhor, a maneira como cada discurso trata o real, na medida em que o discurso já é justamente um tratamento do real. Quando Lacan se refere à ética enquanto aquilo que responde ao real, evidentemente está falando sobre o real do gozo. A ética da psicanálise (LACAN, 195960/1991) é um seminário sobre o gozo, um primeiro seminário sobre o gozo. Portanto, esse fator individual, ético, está em jogo na questão das marcas, da repetição e do sintoma, que são as duas grandes modalidades do gozo, prescritas pela estrutura de linguagem. Freud falou da escolha da neurose, embora o neurótico não tenha precisamente a impressão de que tenha escolhido a sua neurose; mas Freud indica com exatidão que essa escolha é a respeito do gozo, embora ele não empregue o termo gozo, mas, quando ele diz que, na raiz da histeria, está a aversão à carne, se isso não for uma escolha de origem, o que é isso? E quando ele fala do obsessivo, esse excesso de prazer, se não se trata aí de uma captação pelo gozo, o que é então? Portanto, em nossos termos, isso é como uma resposta ética. Chegamos, então, a uma questão crucial: será que uma psicanálise, uma aventura da psicanálise pode mudar a opção ética de um sujeito? A questão se desdo-
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bra, podemos desdobrá-la, eu a desdobro porque Lacan a desdobrou. Podemos, às vezes, mudar a opção diante do real do inconsciente, isso que é evocado por Lacan, quando invoca a mudança no horror do saber, de novo na Nota italiana (LACAN, 1973/2003, p. 313). Minha leitura desse texto encontrou diversas fases, e a última me fez perceber algo que não havia percebido antes: essa carta é uma distinção entre o desejo do saber e o desejo de saber. O desejo do saber é necessário para entrar em análise, e a marca do desejo do saber não é a marca do desejo de saber, isto é: a tese de Lacan, na Nota aos Italianos, em que ele, inclusive, aplica Freud, já que Freud tinha a marca do desejo do saber, e o desejo do saber é o desejo do significante, de desdobrar significante após significante, após significante. E produzir assim pequenos mais de saber, mais de saber e avançar sobre esses pequenos mais de saber. E como parar? Como parar quando alguém é tomado pelo desejo do saber? É necessário o desejo de saber, e Lacan diz que isso faltou a Freud, faltou a marca de saída; Lacan não formula assim, ele fala dos amores de Freud com a verdade, a verdade que corre depois do significante, e é isso que tem de cair para que haja um analista. Então, não vamos confundir as marcas do desejo do saber com as marcas do desejo de saber, marca de saber é saber o quê? É saber as consequências do inconsciente, da estrutura, é saber o destino da repetição e do sintoma que faz para nós o inconsciente. É isso que faz o horror, não é o significante que faz o horror; ele alivia, faz esperar o Outro, é uma esperança. Em relação ao horror do saber, primeiro passo do texto, a humanidade não quer o saber, então é necessário uma marca para detectar o desejo de saber, o qual a humanidade não quer. E, no final, é necessária outra marca, não do desejo de saber, que seria muito forte, mas, em todo caso, de uma ultrapassagem do horror de saber das consequências da estrutura. E Lacan é extremista neste texto, se o horror de saber não foi ultrapassado, não existe analista. Ou antes, não há analista digno de ser analista da Escola. Isso não vai impedir muitos analistas de funcionar, isso é muito extremo. Na verdade, Lacan parece pensar, nesse momento, que a análise permite que o sujeito ultrapasse, leve em conta, constate, o horror ao saber. Alguns seriam até levados ao entusiasmo, um afeto que eleva, que entusiasma. Portanto, quais são as consequências desse primeiro real, do inconsciente real? Sim, a análise tem um efeito certo, isso não quer dizer que esse efeito aconteça em todos os casos, mas ocorre suficientemente para que se diga que é possível. Podemos modificar a relação ética com o saber real, e dito de outra forma, a análise permite que o sujeito seja um pouco mais corajoso em relação àquilo que não queria saber na particularidade do seu caso, sempre. E agora, o que vamos dizer sobre a ética do sintoma de gozo, em relação à ética da relação com o gozo? Será que iremos lograr que uma histérica modere sua aversão à
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carne, será que iremos lograr que um obsessivo seja menos capturado pelo seu gozo? Acho que, neste ponto, Lacan não produziu uma resposta, mas formulou uma questão, embora não se reconheça sempre uma questão nessa fórmula. A meu ver, ele formula a seguinte questão: será que a análise de uma histérica pode fazer uma mulher? Vocês conhecem a fórmula? É impressionante, mexe muito com as mulheres especialmente, mas vamos ver o que queria dizer, quando Lacan disse isso. É que ele, assim como Freud, distingue o sujeito histérico da mulher a partir do traço da relação com o gozo carnal, a aversão na histeria; e Lacan considera que uma mulher não está nesta aversão, é a ideia dele. Mas, quando ele diz: será que podemos fazer de uma histérica uma mulher? – é isso que quer dizer, podemos levantar essa aversão. Não é uma questão que indique um desejo de retificar a histeria, é uma questão a respeito do alcance, do impacto da psicanálise, e sobre a ética em relação ao gozo. Inclusive, vou terminar com isto: quais razões teria um analista para querer transformar uma histérica em mulher? Não estamos hierarquizando os sintomas, porque seria melhor ser uma mulher sem a aversão à carne, do que uma histérica que teria a aversão? Cuidado! Temos de levar a sério essa questão, de que a psicanálise não tem de cuidar das normas, mas tentar não se preocupar com a norma, portanto concluo com isto: no que diz respeito à ética da relação com o gozo carnal, eu não vejo nenhuma indicação nos textos de Lacan que indiquem que a análise produziu uma mudança, mas ele colocou a questão. É isso! Tradução: Dominique Fingermann Transcrição e Revisão: Bárbara Cristina da Silva, Pollyana Silveira de Almeida, Conrado Ramos e Ida Freitas Revisão Final: Solange Fonsêca
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referências bibliográficas FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. XXVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980. LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Versão brasileira Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 400-447. LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 449- 497. LACAN, J. (1973). Nota Italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 311-315. LACAN, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 553-556.
resumo
A autora examina as diversas marcas deixadas pelas experiências da infância e sua repercussão no nível da repetição e do sintoma. Ela destaca diferentes abordagens do real, seja como impossível, seja como contingência indelével e se pergunta sobre as respostas éticas dos sujeitos e os efeitos possíveis da análise sobre esse ponto.
palavras-chave
Marca, repetição, sintoma, ética do final da análise.
abstract
The author examines the several marks left by childhood experiences and their repercussion at the level of repetition and symptom. She stresses different approaches to the real, be it as impossible or the indelible contingence, and asks herself about the ethical answers of the subjects and the possible effects of the analysis on this issue.
keywords
Mark, repetition, symptom, ethics final analysis.
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Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise Colette Soler Conferência de encerramento do XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil Belo Horizonte 27/10/2013 Eu parti, ontem, das diferenças das posições éticas e evoquei a ética do discurso psicanalítico. Gostaria de voltar a falar disso para vocês. Depois de ter falado das posições éticas pessoais, vou falar, hoje, da ética psicanalítica, ponto sobre o qual Lacan jamais variou. Essa ética não é individualista. Com o que ele avançou no final do seu ensino, evidentemente, a questão da possibilidade de uma ética não individualista se coloca na medida em que, como vocês sabem, no fundo, Lacan deixou de colocar uma ênfase sobre o sujeito dividido para sublinhar a unaridade (unarité) – é o seu termo – do falasser. Eu formulei isso dizendo: cada sujeito é um nó borromeano, um Um borromeano. Lacan produziu essa famosa fórmula: “Só há os dispersos disparatados”. E, no fundo, a ética do bem-dizer da análise produz o Um-dizer. Como, a partir disso, desenvolver uma ética não individualista? Evidentemente, a proposição de fazer uma Escola, em Lacan – não apenas uma associação, mas uma Escola – responde a essa preocupação. A gente já poderia responder, antes de mais nada, antes de qualquer consideração, que os discursos que Lacan escreve são quatro tipos de laços sociais e nenhum deles pertence a uma ética individualista. O laço social exclui a ética individualista. É preciso observar que o laço social inclui uma disparidade. Num laço social há sempre dois termos: um que está no lugar do semblante, como vocês sabem, e que comanda o outro. Portanto, não há paridade entre os dois. Hoje em dia amamos a paridade. No mundo capitalista só juramos em nome da paridade. E isso é incompatível com o laço social tal como Lacan o define. É preciso desenvolver o fato de que no laço social, não se trata, simplesmente, de conexões; não são simplesmente relações com os outros, ou com a vizinhança. No capitalismo há muitas conexões, vizinhanças. Isso não faz laço social, no sentido de Lacan, para quem o laço social é uma ordem. Uma ordem que produz uma ordem de gozo. Nesse sentido, uma vez que há laço social nós saímos de uma ética individualista.
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Retomo, então, a questão de saber como uma ética não individualista de um laço social pode se manter, em nosso tempo capitalista que destrói laços sociais enquanto multiplica as conexões. Eis, portanto, a questão que eu abordo. Isso leva a me interrogar sobre o real da psicanálise e o real do capitalismo. Eu evocava, ontem, dois tipos de real: o real que se demonstra como impossível e o real que se encontra. Hoje, eu falo de outra coisa: o real tal como ele pode ser situado no discurso capitalista e o real tal como pode ser situado na psicanálise. Vou partir de uma frase que todos vocês conhecem e que está no texto A Terceira, em que Lacan (1974/2002, p. 51), falando do capitalismo e da psicanálise no capitalismo, diz: “Há um único sintoma social: cada indivíduo é um proletário. Não há nada que faça laço social”. Esta frase diz, efetivamente, claramente, aquilo que falta a cada indivíduo. Falta a ele um semblante que faria laço social. E no fundo, quando Lacan profere o Seminário De um discurso que não fosse semblante (LACAN, 1970-71/2009), ele não fala do capitalismo, ele fala dos homens e das mulheres para desenvolver justamente o tema da não-relação sexual entre os homens e as mulheres. Portanto, não há laço social entre homens e mulheres – mulheres enquanto sexuadas, porque, evidentemente, enquanto sujeitos pode haver. Então, quando Lacan diz em A Terceira (LACAN, 1974/2002, p. 51), “Os indivíduos são proletários”, isso quer dizer que os corpos individuais são proletários, não estão em laço; os sujeitos podem estar em laço, mas os corpos não. Seria uma tese... Seria o capitalismo que produz isso ou não? Eu perguntava porque eu acho que não é culpa do capitalismo. A não-relação sexual em Lacan é uma consequência da estrutura de discurso e do fato de que os laços significantes não produzem laços de gozo. Então, a não-relação sexual, no fundo, na conceitualização de Lacan, é um universal. Sempre foi assim. Mas a gente não sabia. A gente não sabia antes do capitalismo. A gente não sabia durante todas as épocas em que os laços sociais comuns eram consistentes. E a gente não sabia por que os discursos ordenavam a relação entre os sexos, entre os homens e as mulheres, especialmente sobre o modelo do laço social desse discurso. Então, tínhamos o mestre e o escravo, um dominador e um dominado, referidos a homem e mulher. Eu o evocava ontem a respeito da metáfora paterna que, como metáfora sexual, não sai dessa configuração. Sempre se soube que havia problemas do amor, mas sempre se tentou conter esses problemas pela ordem social. Evidentemente Freud, que aparece no final do século XIX, abre o caminho que conduz à mensagem que Lacan produziu – “Não existe relação sexual”. Podemos demonstrar que é um dizer de Freud. A fórmula é de Lacan, a tese está implicada em tudo que Freud desenvolveu sobre a sexualidade. Eis aí, portanto, o que o século passado colocou a céu aberto, o real próprio do inconsciente: “Não existe relação sexual”. Qual é o real do capitalismo? Eu
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creio que podemos forjar uma resposta, a partir de todos os desenvolvimentos de Lacan e daqueles que nós mesmos já fizemos. O real do capitalismo, para fazer uma fórmula homóloga, poderia se formular assim: “Não existe laço social”. Não existe laço social instaurado pelo capitalismo. E, como sabemos, o capitalismo só instaura laços entre cada indivíduo e a produção do mercado. No fundo, o capitalismo coloca na realidade a estrutura da fantasia – o laço de cada um, não com o objeto da sua fantasia, mas com os objetos da produçãoconsumo. E daí, evidentemente, isso tem como consequência que o capitalismo realiza a solidão do sujeito da ciência. Sem dúvida, foi isso que permitiu a emergência da psicanálise. O capitalismo não é o avesso da psicanálise, ele é uma das condições de sua existência. Condição da aparição de Freud. É porque esse real do capitalismo de que não existe laço social, é porque ele destrói os semblantes que permitiam desconhecê-lo, que pudemos chegar ao “Não existe relação sexual”. Então temos duas foraclusões conjugadas: aquela do laço social no capitalismo e a da relação sexual na psicanálise. É claro que tudo é uma consequência do aparecimento da ciência que condiciona o capitalismo que, por sua vez, condiciona a psicanálise. Não esqueçamos que Lacan observou que é preciso se ocupar do que ele chamava correlação entre uma subversão sexual em escala social com os momentos incipientes da história da ciência. E nós vamos tocar essa correlação. Podemos nos perguntar se a psicanálise não exageraria sobre a má mensagem do capitalismo. Se a gente se volta para esses sujeitos que são instrumentalizados pelo mercado – a gente já declinou muitos afetos próprios ao momento capitalista na civilização: a solidão, a precariedade... e todos esses afetos, creio eu, se enraízam sobre os problemas de identidade produzidos pelo capitalismo. Portanto, é uma questão de saber como a psicanálise responde a isso. O sentimento de identidade está ligado à estabilidade dos laços sociais porque, quando o laço social é consistente, todos que entram nesse laço social recebem o que eu chamo de marcadores identitários: o lugar que eles ocupam, a profissão, os títulos, a função etc. Então, a estabilidade identitária desse sujeito está ligada à estabilidade dos laços sociais. No mundo capitalista em movimento e em reconfiguração constantes, o sentimento de identidade é, evidentemente, ameaçado, na medida em que os lugares, as profissões, os laços, tudo se torna precário. Até o trabalho é cada vez mais ameaçado de uma mudança imposta. Poderíamos estudar no mundo contemporâneo a busca de marcadores substitutivos. Como, justamente, na ética individualista do capitalismo, cada um tenta produzir marcadores identitários de sua própria escolha. A tatuagem, por exemplo, é um marcador identitário escolhido que o capitalismo não poderá apagar. Há muitos outros. Tentamos escolher a nossa própria imagem cirurgicamente, por exemplo.
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Alguém poderia fazer uma pesquisa mais metódica disso. Então, o que acontece é que os fenômenos que até então eram próprios da adolescência se generalizam. A adolescência é um período de espera da fixação identitária. E, por isso, é um período no qual o sujeito busca signos de ligação identitária. A forma de se vestir, as músicas que eles ouvem, todas as práticas próprias aos grupos dos quais eles fazem parte, são buscas de identidade grupal próprias de um período em que a identidade ainda não está assegurada. E na medida em que essas inseguranças identitárias se generalizam, também se generalizam os esforços de identidade grupal. O que é que a psicanálise faz de tudo isso? Como se coloca a questão da identidade na psicanálise? Vou começar pelo seguinte: a entrada em análise se dá a partir de uma questão de identidade. Aquilo que chamamos de a histerização de entrada, o “Che vuoi?”, é uma questão identitária. Qual é a sua identidade de desejo ou de sintoma? Portanto, a entrada se faz por uma suspensão da certeza identitária. E a tese de Lacan sempre foi, do começo ao fim, que o final de análise devia assegurar uma identidade. No começo a fórmula era: a análise conduz a um “Tu és isso”, um “Tu és” estático. Esta é uma fórmula de identidade. E no final do seu ensino é a identidade pelo nome do sintoma. Portanto, começamos por um sujeito não identificado para ir em direção a uma identidade singular. No que diz respeito à identidade sexual, nisso que eu acabo de lembrar, de um sujeito dividido em falta de identidade em direção a um sujeito que tem acesso à sua identidade, nem se falou em sexo – isso vale tanto para homens quanto para mulheres. Se a gente se volta para a questão da identidade sexual, a tese de Lacan foi, durante muito tempo, até 1972, precisamente: “Não há identidade sexual”. Há claro, um significante, um semblante, o falo – tanto pode ser escrito em maiúscula quanto em minúscula – mas esse significante não fornece uma identidade sexual. Ao contrário, ele projeta todas as manifestações sexuais, como diz Lacan, ao nível do parecer, logo ao nível do teatro, especificamente da comédia. É verdade que há uma comédia da relação entre os sexos – fazer o homem, fazer a mulher – mesmo no campo homossexual. E isso foi a tese de Lacan durante tantos anos que ele até dizia que o próprio ato sexual, o coito, não dava prova de nenhuma identidade sexual. Em 1972, ele vai introduzir, evidentemente, algo diferente, algo novo no Aturdito (LACAN, 1972/2003) – não é no Seminário Mais Ainda (LACAN, 197273/1985), é no Aturdito, logo antes – com o que nós chamamos agora as fórmulas da sexuação. As fórmulas da sexuação designam duas identidades sexuadas, duas identidades de gozo – a toda-fálica e a não-toda fálica. E com isso, pela primeira vez, Lacan introduziu um fator identitário no nível do real do gozo. A partir daí, então, um novo problema se produziu, para o qual Lacan não está isento de responsabilidade: todo-fálico é homem e não-todo fálico é mulher. Então, não estamos mais no teatro, não estamos mais no semblante, não estamos mais no fazer
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de conta que se é isso ou aquilo, estaríamos no “ou isso ou aquilo”. E o próprio Lacan, quando introduz o seu todo-fálico, ele o introduz de modo a especificar a identidade do lado masculino. E em seguida, do outro lado da sexualidade... Mas logo depois ele se corrigiu – não sei se vocês conseguem seguir suas correções na prática – mas no Mais Ainda (Ibid.), ele se corrigiu dizendo, primeiro, que essa identidade de gozo é independente da anatomia. Ou seja, que há homens que podem se colocar do lado do não-todo e mulheres que podem se colocar do lado do todo. Esta é a tese do Seminário Mais Ainda (Ibid.). E há até mesmo místicos que não estão do lado do não-todo, que estão do lado do todo-fálico. Portanto, isso complica as coisas. Porque temos uma identidade de gozo que não pode se identificar nem com a anatomia nem com o estado civil. E aí Lacan vai dar mais um passo, dizendo: os seres falantes têm escolha. Os seres sexuados se autorizam por eles mesmos. Esta é uma tese muito mais radical. É realmente uma forma de dizer: “O sexo não é o destino”. Freud pôde retomar “A anatomia é o destino”, e isso vai muito mais longe porque não somente a anatomia não é o destino, mas há liberdade de escolha. Acho absolutamente incrível, extraordinário, que Lacan tenha dito isso nos anos 1970, e hoje estamos em 2013 e escutamos por toda parte as vozes que dizem “Tenho o direito de escolher meu parceiro, o sexo dele, até mesmo o meu sexo”. Então, Lacan realmente não estava atrasado diante do que estava para acontecer no mundo. Todas as normas que presidiram a organização da relação entre os sexos, a psicanálise, hoje em dia, não pode mais sustentar nenhuma dessas normas, nenhuma... Por isso que eu estava tentando dizer que a metáfora paterna ainda estava numa forma de traçado da norma. Os sujeitos têm escolha, nada a retomar; é isso – essa escolha na psicanálise – é palavra final. Os sujeitos são livres para escolher. A gente sabe que tem muita gente, no mundo, que tenta rever isso, que faz revisões disso, a psicanálise é isso. Então, finalmente, como vai ser a resposta identitária do final da análise para os sujeitos, para os quais nem mesmo o sexo é prescrito? Vocês conhecem a resposta: a única identidade não precária que se evidencia na psicanálise é a identidade sintoma ou sinthoma (a forma que ficou para Lacan para escrever sintoma a partir do Seminário O Sinthoma [LACAN, 1975-76/2007]). Então, é uma grande reviravolta em relação ao discurso comum, e essa fórmula torna difícil dialogar a psicanálise com o discurso da época, porque a psicanálise, com o ensino, o último ensino de Lacan, o que chamamos de sinthoma, justamente, não é o problema, é a solução, é solução. Agora, o problema geral do “não há relação sexual”, o “não há” é compensado pelo “há sintoma” para cada um, então, é um sintoma-solução. O que torna difícil justamente o intercâmbio com outros discursos, nos quais sintoma é um treco que tem que eliminar; enquanto que a psicanálise diz que é a identidade
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verdadeira. Aí, bom, a gente encontra todos esses termos já conhecidos, cada um tem seu nome próprio, que não é seu patronímico, que é seu sintoma, o qual não tem homônimo; o patronímico tem homônimo, mas o sintoma, não. De forma que, o sentido do sintoma é o verdadeiro DNA do falasser, mas ele não se diagnostica da mesma maneira que o DNA. Vejam aí, no fundo, a identidade não precária da separação, que não tem nada a ver com uma identificação, como nós já dissemos, e que introduz o problema da ética não individualista. Porque esses falasseres, cada um com sua unaridade sintomática, como eles se articulam no laço social? A questão poderia se colocar em dois níveis, mas tem uma que me interessa aqui. O primeiro nível, que eu não vou desenvolver, é como um analisado se coloca nos laços sociais de sua época, é uma questão. A outra, que é mais importante para a gente, é a da possibilidade de uma Escola na própria psicanálise, porque a Escola é pensada por Lacan como um laço social. É por isso que ele evoca, antes de mais nada, a transferência de trabalho, que faz laços entre uns e os outros. O que é preciso para levar um analisado à Escola? Vou dizer de uma forma bem tola. É preciso que ele tenha sentimento de que o que apreendeu e experimentou em sua análise valeu suficientemente a pena para que outros também possam experimentar. Não se trata de caridade, não tem nada que ver com caridade. É que o que pareceu tão importante, para mim, pode também levar outros a quererem, a desejarem seguir na mesma direção. Tradução: Sonia Alberti Transcrição e revisão: Marcus do Rio Teixeira, Kelliane Sá, Caio Tavares. Revisão final: Sonia Magalhães
referências bibliográficas LACAN, J. (1970-71). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp.449- 497. LACAN, J. (1974). A Terceira. In: Cadernos Lacan. Porto Alegre, vol. 2, pp. 39-71, 2002. LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução: Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
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Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise
resumo
Em sua terceira conferência “Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise”, Colette Soler levanta a questão de saber como uma ética não individualista é possível para os falasseres, definidos como unaridades, e também no contexto de um discurso capitalista, que não é o avesso da psicanálise, mas que comporta um homólogo “não há relação social”?
palavras-chave
Ética, laço social, capitalismo, identidade.
abstract
In her third conference, “Possibility of a non-individualistic ethics of psychoanalysis”, Colette Soler raises a question we need to be aware of: How is a non-individualistic ethics possible for the speaking-beings, defined as unarities, and also in the context of a capitalist discourse, which is not the contrary of psychoanlysis, but holds a “there is no social relation” homologue?
keywords
Ethics, social bond, capitalism, identity.
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ensaios
Na mansão do dito imaginário: opsis e a seção diagonal
Na mansão do dito imaginário: opsis e a seção diagonal Ana Laura Prates Pacheco Este texto parte de duas experiências díspares e incomensuráveis, mas igualmente desconcertantes. A primeira é a leitura lenta e árdua do Seminário Les non-dupes errent (1973-74), de Jacques Lacan, que estou sustentando em meu próprio seminário no FCL-SP desde 2013. A segunda foi o encontro com a obra de Marcius Galan, chamada Seção Diagonal, que está exposta em Inhotim, Minas Gerais. A obra, segundo a curadoria da exposição, “propõe uma relação ativa com o espectador, causando uma reação inicial de descoberta e surpresa, seguida de um momento que pode variar do encantamento à decepção”. Confesso, entretanto, não ter me decepcionado, mas antes, me surpreendido e entusiasmado com a mostração operada pelo artista, a qual me ajudou a acompanhar a seguinte afirmação de Lacan (1973, s.p.): “É que o imaginário é uma dit-mansion tão importante quanto as outras. Isso se vê muito bem da ciência matemática. O imaginário, afirma Lacan, ‘é sempre uma intuição daquilo a ser simbolizado’”. É difícil reproduzir aqui o impacto provocado pela obra de Galan, mas na impossibilidade de transportá-los para Inhotim, trarei algumas fotos para que possam intuir, quem sabe, o que tentarei articular.
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Minha experiência foi a seguinte: entrei em uma sala vazia, toda branca, cujo único objeto presente era um espelho que refletia a própria sala e seu vazio. Eis, entretanto, que outra pessoa que entrou na sala comigo, atravessou o espelho, passando para o outro lado.
Revelava-se, assim, o fato de não se tratar de um espelho, nem sequer de um vidro transparente – outra percepção possível na experiência da instalação, segundo o relato de alguns. No meu caso, julguei (intuí? interpretei? percebi?) tratar-se mesmo de um espelho. Trata-se, na realidade, de uma montagem que usa elementos extremamente sutis, como uma moldura branca e um discreto jogo de cores para operar um corte no espaço.
Esse corte promove uma ilusão que pode durar um tempo indeterminado – sobretudo para aqueles que ali viram simplesmente um vidro. No caso de quem vê um espelho, como eu vi, a questão é mais complexa. No segundo seguinte ao atra-
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vessamento da ilusão, a pergunta que não pode mais se calar é a seguinte: como pude supor que ali havia um espelho, se minha própria imagem não vi refletida, pela simples razão de que um espelho real não havia? Ao supor um espelho, supus, por um segundo, uma imagem – a minha – que não existia. Aqui, não é apenas a imagem ortopédica do espelho que é uma ilusão, como havia proposto Lacan em seu famoso texto sobre O estádio do espelho (1949/1998). Lembremos: “O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopédica” (p. 100). Lembremos ainda que em 1960, no texto Observação sobre o relatório Daniel Lagache, Lacan apresentara seu famoso esquema dos espelhos conjugados, a partir da “ilusão do buquê invertido”, de Bouasse. Conhecemos bem o que Lacan chama de “modelo teórico”, o qual, segundo ele fará aparecer “de maneira analógica com estruturas (intra)subjetivas como tais, representando a relação com o outro e permitindo distinguir nela a dupla incidência do imaginário e do simbólico” (op. cit., p. 681).
Lacan dissera na ocasião que: [...] o que o modelo indica pelo vaso oculto na caixa é o pouco acesso que o sujeito tem à realidade do corpo, perdida por ele em seu interior, no limite em que redobra de camadas coalescentes a seu invólucro, e vindo costurar-se neste em torno dos anéis orificiais, ele o imagina como uma luva que pode ser virada pelo avesso (op. cit., p. 686). O eu é assim, uma montagem do imaginário pelo simbólico, já que a fala é designada por A (o Outro) no que Lacan chama de “nossa topologia”, “e é a esse lugar que corresponde o espaço real ao qual se superpõem os espaços virtuais ‘por trás do espelho’”.
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Diante da ilusão imaginária da neurose, Lacan propõe um segundo modelo para representar o efeito da travessia produzido pela queda do espelho que o analista sustentara enquanto Outro – ou: [...] ao se apagar progressivamente até uma posição a 90° de sua partida, o Outro, como espelho em A, pode levar o sujeito de $1 a ocupar a posição de $2 em I, de onde ele só tinha acesso virtual à ilusão do vaso invertido; só que nesse percurso, a ilusão fadada está a enfraquecer com a busca que ela guia” (op. cit., p. 687). 180 o
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Em 1963, Lacan retoma ainda esse esquema, entretanto com um passo a mais, chamado objeto a, definido como objeto não especularizável: “O investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária. É fundamental por ter um limite. Nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular. Há um resto” (p. 49). De um lado há o falo, e do outro o “a, que é resto, o resíduo, o objeto cujo status escapa ao status do objeto derivado da imagem especular, isto é, às leis da estética transcendental” (p. 49). Assim, para Lacan, nesse momento, o imaginário estaria regido pelas leis da estética transcendental kantiana, à qual a psicanálise, com o conceito de objeto a faz obstáculo. Mas quais são essas leis? Sabemos que o pensamento kantiano é um marco na criação da ciência moderna, na medida em que rompe com o que Luc Ferry chama de “argumento ontológico”, ou seja, a existência de Deus, presente – embora de modos distintos – em Descartes e Espinoza. Para Kant, as marcas da finitude estão no espaço e no tempo, “âmbitos incontornáveis da aisthesis, a sensibilidade” (FERRY, 2010, p. 23). Para Kant, portanto, a intuição ou o sensível, está subordinado ao espaço e ao tempo enquanto a priori. A partir de então, como aponta Ferry, “é o ponto de vista do homem que deverá ser privilegiado, e não mais o cosmos”; e a marca desse ponto de vista finito é aquela “da sensibilidade de um corpo situado no espaço e no tempo” (p. 33). Para Kant, na Estética Transcendental, “o espaço não
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é um conceito discursivo”. (...) “só podemos imaginar um único espaço, e quando falamos de vários espaços, entendemos com isso apenas as partes de um único e mesmo espaço. Essas partes tampouco poderiam ser anteriores a esse espaço único que compreende tudo, como se fossem esses elementos” (FERRY, 2010, p. 36). É muito interessante notar como, nos esquemas ópticos, mesmo aquele que inclui um objeto não especularizável, o espelho é sempre suposto “estar lá” para que o sujeito diante dele se posicione. Mais de dez anos depois da afirmação de que o imaginário seria regido pelas leis kantianas, entretanto, Lacan revê essa posição, afirmando, como já dissemos que o imaginário é uma dit-mansion (dito-mansão) tão importante quanto as outras. Segundo Lacan, é a dominância de opsis que “faz com que haja sempre intuição nisso do qual parte o matemático”. Conforme esclarece Kibuuca (2008) em Opsis na poesia dramática segundo a Poética de Aristóteles: “[...] no capítulo VI da Poética de Aristóteles são discriminados seis elementos que caracterizam a tragédia, sendo Opsis um deles. Opsis, traduzido frequentemente como espetáculo ou encenação, implica que se dê corpo ao texto escrito. Opsis, assim, é como Aristóteles nomeia o aspecto visual da poesia trágica a qual é composta pelo poema e pela representação cênica” (KIBUUCA, 2008, s.p.). Em seu primoroso texto Opsis, corpo e intuição, Sonia Alberti (2010) esclarece por meio de uma leitura rigorosa desse seminário, que “Lacan instrumentaliza o conceito de dimensão retomando sua etimologia, que remete por sua vez ao teatro medieval” (p. 152). Por falta de recursos técnicos, o palco continha todos os lugares nos quais as cenas se desenvolveriam. Esses locais eram chamados de “mensão”. É essa a analogia que Lacan faz com sua nova topologia borremeana: as três dit-mansions estão ligadas de modo a que se uma se solta, as demais não se aguentam. Nas palavras de Alberti: “Eis como Lacan reabilita o imaginário: sem ele não há nó” (p. 152). Lacan abre, então, todo um debate a respeito da diferença entre o espaço geométrico e o espaço vetorial, introduzido por Grassman e posteriormente formalizado por Peano. Ele afirma que “há três dimensões no espaço do ser falante – RSI –, o que de modo algum implica as coordenadas cartesianas as quais dependem da velha geometria”:
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Ao contrário, afirma Lacan (1973-74): É porque o meu espaço, o meu, tal como eu o defino por essas três dito-mansões é um espaço cujos pontos se determinam de uma maneira inteiramente outra. É o que ele chama de cunhagem, ou seja, a característica borromeana que faz com que os três registros se enganchem de modo a ficarem inseparáveis (s.p.). Trata-se “de uma outra maneira de operar com o espaço que nós habitamos realmente... se o inconsciente existe. Isso parte – ele diz – de outra maneira de considerar o espaço, sendo RSI estritamente equivalentes. Uma estrutura, comenta Lacan, “que muda certamente o sentido da palavra espaço, no sentido como ele é empregado na Estética Transcendental”.
Em um texto recente – Richard de Saint Victor e o nó borromeano, Bernard Nominé (2013) nos apresenta sua leitura de um tratado de teologia de Richard de Saint Victor que apresenta uma tentativa de articulação lógica da trindade: “Saint
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Victor se esforça para fazer entrar todo o real da condição humana e o real das questões metafísicas, que isso supõe, em uma escrita lógica, pretendida por ele como uma estética perfeita” (s.p.). Nominé (2013, s.p.) comenta:
É muito emocionante reencontrar nesses tratados o rastro (marca) de uma busca de escritura lógica para circunscrever o furo do simbólico. O que, depois de séculos, somente se pode fazer pelo uso do três o qual Lacan nos diz que é o real4. Os nomes do pai são três, é um real, é o real do nó. É verdade que Lacan afirma que o amor cristão foi o primeiro a enodar os registros borromeanamente, ao inventar a trindade. Mas precisamos tomar todo o cuidado para não confundirmos a topologia dos nós com uma “estética perfeita”, o que reeditaria o more geométrico ou a estética transcendental que Lacan faz questão de evitar. Se os três registros enodados borromeanamente são o Real, isso só vale na condição de que eles não formam Um, muito menos Um todo. Voltando à minha experiência com a instalação de Galan, Seção Diagonal, eu diria que essa obra mostra, sem Lacan, o que ele ensina a respeito dessa “sua noção de espaço”, já que o espelho não está dado a priori, mas é o próprio espelho – e não apenas a imagem – uma montagem en corps, não sem o Simbólico e o Real, portanto; e evidentemente, embora as três dimensões estejam simultaneamente presentes, elas ao mesmo tempo se furam mutuamente. Lacan, entretanto, retoma a interlocução com Kant e mesmo com seus antecessores – Leibniz e Newton. Tratava-se exatamente de um debate a respeito da concepção do espaço e sua dependência a Deus. Seriam o espaço e o tempo pressupostos autônomos e infinitos ou um conjunto dos objetos matérias do mundo? Lacan comenta a famosa controvérsia epistolar entre Leibniz e Newton a respeito da descoberta do algoritmo infinitesimal. No texto Derivadas como no tempo de Newton e Leibniz, Luana Lopes dos Santos Alves afirma que o modo como ambos procediam o cálculo diferencial e integral não utilizava funções como se faz
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atualmente. As dificuldades residiam na “consistência lógica dos conceitos”. “No cálculo moderno – ela comenta – essas dificuldades quanto aos fundamentos são esclarecidos pelo uso do conceito bem definido de limite.” Quanto a isso, Lacan (1973-74) é bastante explícito: “o nó borromeano não tem nenhuma espécie de ser. Ele não tem definitivamente a consistência do espaço geométrico o qual, sabe-se não tem limites” (s.p.). Ora, sabemos que a Topologia pode ser definida, como o faz Jean-Michel Vappereau, exatamente como a “parte da matemática que estuda a noção de continuidade e limite”. Daí as definições de espaços compactos, conexos, abertos e fechados com as quais Lacan trabalha na primeira aula do Seminário Encore – através do teorema de Borel Lesbesgues – e que retoma nas primeiras aulas do Seminário Les nos-dupes errent. A Topologia, lembremos, faz parte das geometrias não euclidianas, que são justamente aquelas que contradizem a concepção da geometria como correspondendo exatamente ao espaço físico. Os objetos topológicos, assim não precisam existir no mundo real, mas apenas na imaginação. Dois conceitos topológicos bastante trabalhados por Lacan na homologia por ele realizada entre a topologia dos nós e o espaço do parlêtre são os de invariante, equivalência e homeomorfismo. São essas as propriedades, que permanecem inalteradas, apesar das torções e transformações contínuas e reversíveis, que permitem a Lacan trabalhar a diferença entre forma e estrutura. Na experiência topológica de Seção Diagonal, o que o artista põe em cena é o “espaço lacaniano” não kantiano e suas propriedades. Segundo a curadoria da instalação: Em Seção diagonal (2008), este jogo (de ilusões) extrapola a representação e o objeto e, em última instância, faz o espectador re-examinar sua própria presença no espaço. Depois de experimentar a obra por uma vez, resta a frágil lembrança daquele momento inicial, cuja repetição é, pelo menos imediatamente, impossível. É Milner (1986/2006) quem me ajuda a formalizar essa experiência borromeana, com seu texto Os nomes indistintos. Ele ensina que “o real do borromeanismo” se institui pelo imperfeito “isso se aguenta”. “O borromeanismo – ele diz – só existe por esse instante do desenodamento no qual, por um único corte, os anéis são dispersos” (p. 12). E acrescenta: Pois é preciso garantir a um só tempo que nada de S nem de I dá acesso a R e que – é essa a essência do nó – o ser falante é incessantemente solicitado a imaginar R. É nesse ponto preciso que se atesta a hiância onde um sujeito passível dos espelhos se descobre abandonado por todas as analogias do céu e da terra. Então, nada subsiste a não ser os traços da dispersão pura... (p. 12).
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O instante de desenodamento pode, segundo Milner, ser seguido no instante seguinte por algum sentimento: “terror, piedade, fascinação, ou, por que não, delícia”. A esse instante Milner nomeia “escansão nua”: “num instante fora do tempo, nem espaço fora do espaço, acontece como que uma escansão nua cuja atestação reside apenas nos efeitos de dispersão que ela acarreta” (p. 13). Ela, entretanto, não pode ser olhada fixamente. Não é isso o que faz uma análise? Transformar o horror da dispersão em instante fugaz de delícia (Outro gozo?) com a queda da imagem? A análise como discurso, isto é, como laço – conclui Milner – “passou e refez o nó daquilo que, numa escansão, ela mesma havia liberado. Nada aconteceu senão que, nesse nada que separa um antes e um depois, ao sujeito acontece um real” (p. 14).
referências bibliográficas ALBERTI, S. Opsis, corpo e intuição. In: Heteridade Revista de Psicanálise, n.8, O Mistério do Corpo Falante I, IF-EPFCL, 2010. FERRY, L. (2006). Kant. Uma leitura das três ‘Críticas’. Rio de Janeiro: Difel, 2010. KIBUUCA, G. F. Opsis na poesia dramática segundo a Poética de Aristóteles. In: Anais de Filosofia Clássica, vol. 2 n.3, 2008. LACAN, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 96-103. LACAN, J. (1960). Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 653-691. LACAN, J. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. LACAN, J. (1973-74). O Seminário, livro 21: les non-dupes errent. Versão não publicada oficialmente. MILNER, J. C. (1983). Os nomes indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006. NOMINÉ, B. Richard de Saint Victor e o nó borromeano. 2013. Disponível em: <http://www.valas.fr/>. Acesso em 7, set. 2014.
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PACHECO, Ana Laura Prates
resumo
O texto parte da experiência com a obra Seção Diagonal, de Marcius Galan, exposta no museu de Inhotim, em Minas Gerais. A partir dessa experiência, desenvolvo a frase de Lacan do Seminário 21 Les non-dupes errent: “O imaginário é sempre uma intuição daquilo a ser simbolizado”. Para tanto, retomo brevemente o percurso do ensino de Lacan em relação ao registro do Imaginário, desde o texto sobre o Estádio do Espelho (1949), passando pela subversão operada pela noção de “objeto a” nos anos sessenta. Debato então as consequências da reabilitação do Imaginário, operada por Lacan a partir da topologia borromeana, a qual opera com uma noção de espaço que não é kantiana, e propõe uma apresentação da estrutura que não é da ordem do more geométrico. Proponho, finalmente, com Milner, uma homologia entre a “experiência borromeana” e o que ocorre em uma análise.
palavras-chave
Imaginário, nó borromeu, Jacques Lacan.
abstract
The paper bases itself on the experience with the artwork Seção Diagonal, by Marcius Galan, exhibited at the Inhotim Museum in Minas Gerais State. From this experience, I develop my work using as starting point the quote by Lacan at the 21st Seminar Les non-dupes errent: “The imaginary is always an intuition of what is to be symbolized”. For this purpose, I briefly resume the path of what Lacan taught in relation to Imaginary imprint, from the text Mirror Stage (1949) to the subversion operated by the notion of the “object a” in the 1960s. Therefore, I discuss the consequences of the rehabilitation of the Imaginary operated by Lacan based on the borromean topology, which operates with a non-Kantian notion of space, and proposes a non-geometric presentation of the structure. Finally, I propose, based on Milner, establishing a homology between the “borromean experience” and what takes place in a psychoanalysis session.
keywords
Imaginary, borromean knot, Jacques Lacan.
recebido 14/02/2014
aprovado 18/07/2014
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Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo
Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo Vanina Muraro Introdução Escolhemos a figura do Príncipe Hamlet para pensar a temática proposta para este número da revista, baseados na afirmação de Lacan de que a tragédia do Príncipe da Dinamarca é, essencialmente, a “tragédia do desejo” (LACAN, 19581959, p. 265).1 A complexidade do herói de Shakespeare, sua dúvida, o adiamento em realizar o ato encomendado pela sombra, permitem-nos diferenciá-lo rapidamente da figura decidida de Antígona. A escolha dela é límpida e não admite sequer a peripécia que encontramos no desenvolvimento de outras tragédias. Muito útil para fins didáticos de compreender a realização do ato, Antígona se parece menos a essa oscilação que nos ensina a clínica das neuroses. Gostaríamos de destacar que dada a riqueza e pluralidade de tópicos que aborda a obra, circunscrevemos a leitura ao seguinte viés: a disposição de Hamlet ante a morte, a qual nos ilustra, sem dúvida, o singular impasse que sofre seu desejo.
Hamlet ante a morte Uma das leituras possíveis dessa obra de Shakespeare, proposta por Lacan no Seminário 6, indica que a peça gira ao redor de um protesto que tem como motivo o não cumprimento dos ritos da morte. Essa irregularidade encontra-se disseminada na obra em quatro ocasiões cruciais. A primeira irregularidade consiste na apressada união entre seu tio e sua mãe. Trata-se da abreviação do luto pela morte do Rei. A segunda, quiçá a mais importante desta série – já que nela reside a razão da tragédia – consiste em que seu pai foi envenenado na flor do pecado, antes de estar preparado para dar esse passo, ou seja, sem oportunidade de arrepender-se e ser digno de perdão. Por isso, foi condenado a vagar entre os vivos, sem descansar na paz dos sepulcros, até que Hamlet efetue sua vingança. 1 Desenvolvemos mais amplamente essa temática, juntamente com Martín Alomo, em um livro de pronta publicação intitulado: Las tragedias del deseo. Antígona, Lear, Hamlet.
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MURARO, Vanina
Vemos delinear-se a topologia na qual se detém Lacan no Seminário 7, A Ética da Psicanálise: esse espaço situado entre duas mortes. É ali onde o pai de Hamlet encontra-se fixado, foi arrancado inesperadamente – diz Lacan – “essa barra passada sob as contas de sua vida faz com que reste uma soma idêntica à soma de seus crimes” (1958-1959, p. 281). “Ele [a sombra] o indica, ‘Eu fui surpreendido na flor de meus pecados’. Um golpe vem derrubá-lo, partindo de um ponto de onde ele não esperava, verdadeira intrusão do real, verdadeira ruptura do fio do destino” (Ibid., p. 363). Segundo Lacan, é ante o medo desse destino entre duas mortes que Hamlet se detém com seu to be or not to be.2 Nessa obra, a concepção de morte inscreve-se dentro daquela que Philippe Ariès, em seu livro O homem perante a morte, denomina “a morte domada”, ideal sob o qual a morte possui uma característica essencial: “a morte comum, normal, não se apoderava, traiçoeira, da pessoa, mesmo quando acidental como consequência de uma ferida, mesmo quando efeito de grande emoção...” (ARIÈS, 1987). De acordo com o historiador: Para que a morte fosse assim anunciada, era preciso que não fosse súbita, repentina. Quando não avisava, deixava de aparecer como uma necessidade temível, e sim esperada e aceita, de boa ou má vontade. Então, desgarrava a ordem do mundo em que cada qual acreditava, instrumento absurdo de um azar disfarçado às vezes de cólera de Deus. Por isso, a mors repentina era considerada infame e vergonhosa (Ibid). A terceira irregularidade, no que se refere aos ritos, a situamos a partir do assassinato de Polônio. Hamlet, irreverente, arrasta por um pé o cadáver e o esconde embaixo da escada. Finalmente, uma vez encontrado o corpo, o entererro carece de honras sob o pretesto de encobrir o acontecido. Essa irregularidade valerá a Cláudio a ira de Laertes – filho do conselheiro – e ocasionará a loucura de Ofélia. Por último, a quarta irregularidade refere-se à cerimônia cristã do sepultamento de Ofélia, apesar de ela ter cometido suicídio; irregularidade explicada somente pela condição nobre da jovem. Mais fiel aos mortos do que aos vivos – novamente igual a Antígona – Hamlet resiste a uma tipificação. Oscila entre uma posição inibida – bastante oposta à da heroína de Sófocles – e uma capacidade de ação que beira a imprudência. Contudo, se algo é inegável, é que frustra as expectativas daqueles que o rodeiam. Não se mostra um filho dócil com sua mãe e padrasto, tampouco corresponde ao 2 “O suicídio, isso não é tão simples. Nós não estamos somente sonhando com ele nisso que se passa no além, mas simplesmente isso, é que colocar o ponto final em algo não impede que o ser permaneça idêntico a tudo o que ele articulava pelo discurso de sua vida, e que aí não há ‘to be or not to be’, que o ‘to be’, qualquer que seja, permanece eterno” (LACAN, 1958-1959, p. 281).
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amor de Ofélia, frustrando, assim, as esperanças tanto da jovem quanto de Polônio. Permanece reservado ante Guildenstern e Rosencrantz quando fazem indagações a pedido de Cláudio. Finalmente, tampouco realiza a vingança encomendada por seu pai até a última cena, quando o faz de modo particularmente caótico. Sua resistência está presente em toda a obra e reside em seu desprezo pelos bens dos mortais – incluindo o trono e a própria vida – e, como consequência, sua capacidade de assomar-se à morte, de modo tal que só pode ser considerado “louco” por aqueles que o escutam.
A loucura do príncipe A maioria dos críticos concorda ao caracterizar a loucura de Hamlet como fingida. Mas que fins recobre? É um índice da liberdade do Príncipe tal qual seu desprezo pelos bens? É uma estratégia política para escapar de suas responsabilidades ou para dizer aquilo que sob outra enunciação seria impossível? A “loucura bufônica” – conforme Antoni Vicens (s.d.) – de Hamlet é utilizada como ferramenta para recusar as funções que derivam de sua linhagem. Especialmente, quando sob sua máscara, o Príncipe pronuncia as reflexões mais aterradoras sobre o destino dos corpos uma vez ocorrida a inexorável morte. Com Polônio, as manifestações da loucura de Hamlet consistem em subterfúgios sob os quais se escondem profundas ofensas, ou melhor, consistem em uma série de agudezas verbais que obrigam, inclusive o próprio conselheiro, a reconhecer que não carecem de lógica. Durante o Segundo Ato, por exemlo, na cena VII, Polônio, ao encontrá-lo perturbado, lhe diz: P: (…) Quer vir tomar um ar, meu senhor? H: Que ar? O do túmulo? P (aparte): Que agudeza e que verdade na réplica. Às vezes, as palavras dos loucos têm mais conceito que as dos sãos (SHAKESPEARE, 1604). Polônio não parece tão errado ao indicar que raras vezes o homum comum se aproxima desses raciocínios, tão ocupado que se encontra em velar o destino inevitável que o espera. Em relação a isso, Lacan destaca em sua aula de 22 de abril de 1959 do Seminário 6, O desejo e sua interpretação: Mas o que é preciso não esquecer é a maneira como ele faz o louco, esta maneira que dá a seu discurso este aspecto quase maníaco, esta maneira de apanhar no voo
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das ideias, as ocasiões de equívoco, as ocasiões de fazer brilhar um instante diante de seus adversários, esta espécie de clareira de sentidos (LACAN, 1958-1959, p. 352). Todavia, o personagem do Rei é o que fica mais perturbado com o comportamento do Príncipe. Sua loucura parece-lhe enigmática e seus contrassensos lançam-no na incerteza mais extrema. Detenhamos-nos no diálogo da Cena VI, Quarto Ato, quando Cláudio interroga Hamlet sobre o lugar onde está o cadáver de Polônio. C: Hamlet, onde está Polônio? H: Num banquete. C: Num banquete?! Onde? H: Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes políticos disputa seu cadáver (SHAKESPEARE, 1604/1979). Insiste na temática dos vermes e da decomposição da carne, tópico privilegiado por Hamlet quando se dirige a seu padrasto, como se quisesse lembrá-lo, por meio de seu humor duvidoso, de que o destino real também é a morte. A conversa continua e o diálogo fica ainda mais escabroso, porque Hamlet discorre sobre como o corpo de um rei, uma vez que tenha morrido, poderia ser devorado por um verme com o qual se pescasse um peixe que um mendigo comesse; logo, seria um peixe que se alimentou do verme que comeu o rei. Então, poderia um rei passar pelas tripas de um mendigo. Nesse ponto, Cláudio já não pode manter a conversa com seu sobrinho e exclama: “Que significam tuas palavras?” (SHAKESPEARE, 1604/1979). Trata-se de um diálogo que se torna impossível. A insolência de Hamlet chega a um extremo tal que, até esse Rei, vagaroso na ação de desfazer-se desse incômodo herdeiro, urde o plano de afastá-lo para sempre do reino.
O X do desejo de Hamlet Em relação a esses questionamentos que percorremos em torno da loucura bufônica, encontramos uma pergunta ainda mais impreterível: se não se trata nem da jovem Ofélia nem do trono, que fins persegue Hamlet? Aquilo que Hamlet almeja não é fácil de desvelar. Nosso herói que, nos dizeres de Goethe, tem a ação paralisada pelo pensamento, é capaz de perceber a complexidade de todos os elementos, mas está suspenso em sua ação. Como diria o mestre vienense: “há saberes e saberes” (FREUD, 1916/1992, p. 257). E o perspicaz Príncipe nada sabe daquilo que mais o concerne, está desorientado em relação a seu próprio desejo. Lacan afirma, no Seminário 6, que a tradição psicanalítica indica que Hamlet
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Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo
não pôde atacar aquele designado por sua vingança por causa de um desejo edípico reprimido. É na medida em que se trata de aplicar justiça ao mesmo crime que ele havia cometido, que não pode atacar aquele que possui sua mãe sem atacar a si mesmo, sem reavivar nele um desejo por ela marcado pela culpa. Será tardiamente na obra que Hamlet conseguirá orientar-se; somente na cena do cemitério, durante o enterro de Ofélia. Ali, a visão da dor e o ódio de Laertes, jovem irmão, tornam-se insuportáveis para o Príncipe. Ele não consegue tolerar semelhante manifestação de amor em relação a uma moça com a qual foi extremamente cruel sem se mostrar também consumido pelo desassossego. A identificação a Laertes o orienta. Nas palavras de Lacan: “É na medida em que alguma coisa, $, está aí numa certa relação com a, que se faz de repente esta identificação que lhe faz reencontrar pela primeira vez seu desejo em sua totalidade” (LACAN, 1958-1959, p. 285). Contudo, o que Hamlet, sim, parece saber é que para encontrar esse X que constitui seu desejo, deverá transgredir o limite do primum vivere, arriscar sua própria vida regida pelos bens e pelo conforto. A esse respeito, voltemos ao Seminário 6: (…) o problema do desejo, na medida em que o homem não é simplesmente possuído, investido, mas que, o desejo, ele tem de situá-lo, de encontrá-lo. Tem que encontrá-lo a seu mais pesado custo e à custa de sua mais pesada pena, a ponto de não poder encontrá-lo senão no limite, ou seja, em uma ação que não pode para ele se acabar, se realizar, senão à condição de ser mortal (Ibid., p. 274).
Conclusões Para concluir esse percurso, observamos como Hamlet recusa as expectativas dos outros, em vez de consentir com suas demandas, e realiza essa operação graças à estratégia da loucura fingida. Loucura, ironia, humor negro, todos e cada um desses recursos revelam-se vias para abordar o real enquanto insuportável. Hamlet não representa outra coisa que o drama do encontro com a morte – ser ou não ser – que atravessa toda a obra. Essas reflexões, referidas à fragilidade da vida e o destino dos corpos, uma vez chegada a morte, foram atribuídas por numerosos autores ao caráter melancólico do Príncipe. Entretanto, indicam a ausência de desejo própria à melancolia ou a falta de esperança de que um futuro tudo redima? O impasse em seu desejo não é outra coisa que o efeito funesto que teve a revelação feita pela sombra, traída por sua própria esposa, mulher amada e, por isso mesmo, tão monstruosa. Hamlet, cuja verdade carece de esperança, tem consciência de que nem sequer a paz dos sepulcros está garantida e que o valor é, na realidade, somente temor ao desconhecido. Uma vez orientado, graças à figura de Laertes, mostra-se decidido a
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MURARO, Vanina
perguntar pelo sentido da vida, a terrena, a única que se sabe certa, e culmina seu ato, em conformidade a uma posição ética que antecipa a cena prévia ao duelo: “Se o homem, ao terminar sua vida, sempre ignora o que lhe pode ocorrer depois, de que importa que a perca cedo ou tarde? Saiba morrer” (SHAKESPEARE, 1604/1972). Tradução: Maria Cláudia Formigone Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
referências bibliográficas ARIÈS, P. El hombre ante la muerte. España: Taurus/Alfaguara, 1987. AA. VV. (2009). AUN. Publicación de Psicoanálisis del Foro Analítico del Río de la Plata, no 1. Buenos Aires: FARP, 2009. ALOMO, M. Clínica de la elección en psicoanálisis. Libro I. Por el lado de Freud. Buenos Aires: Letra Viva, 2013. __________. Clínica de la elección en psicoanálisis. Libro II. Por el lado de Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2013. __________. La elección en psicoanálisis. Fundamentos filosóficos de un problema clínico. Buenos Aires: Letra Viva, 2013. FREUD, S. (1916). 18ª conferencia. La fijación al trauma, lo inconsciente. Em: FREUD, S. Obras Completas. Vol. XVI. Buenos Aires: Amorrortu ediciones, 1992. GRANVILLE-BARKER, H. Prefaces to Shakespeare. London: Heinemann Drama, 1995. HEER, L. Hamlet & Hamlet. Buenos Aires: Paradiso ediciones, 2011. LACAN, J. (1958-1959). El Seminario, livro 6: el deseo y su interpretación. Inédito. __________. (1959). El Seminario. libro 7: la Ética. Buenos Aires: Paidós, 2006. MADARIAGA, Salvador de. El Hamlet de Shakespeare. Buenos Aires: Sudamericana, 1949. SHAKESPEARE, W. (1604). Hamlet, trad. Leandro Fernández de Moratín, Buenos Aires: Cincel-Kapelusz, 1979. __________. (1604). Hamlet, trad. Salvador de Madariaga. En de Madariaga, S. (1949). El Hamlet de Shakespeare, Buenos Aires: Sudamericana, 1979. __________. (1604). Hamlet (En sus tres versiones), trad. Guillermo MacPherson y Patricio Canto, Buenos Aires: Losada, 1940. SOLER, C. Lo que no se elige. En: AAVV. Aun. Publicación de psicoanálisis. Buenos Aires: FARP, 2009, pp. 13-26. __________. Lacan, l’inconscient reinventée. Paris: PUF, 2009.
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Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo
VICENS, A. La locura de Hamlet y la del mundo. In: Revista digital Ornicar? En línea: <http://www.lacanian.net/Ornicar%20online/Archive%20OD/ornicar/ articles/209vic.htm>, s.d.
resumo
Fazendo uso da figura do Príncipe Hamlet, consideramos a disposição do herói perante a morte. Atitude que nos ilustra suas posições ante o desejo. A complexidade do herói de Shakespeare, sua dúvida, sua demora em realizar o ato encomendado pela sombra – que o diferenciam claramente da figura decidida de Antígona – permitirão aproximarmo-nos das oscilações que nos ensina a clínica das neuroses. Seguindo a indicação lacaniana presente no Seminário 6, O desejo e sua interpretação, tomaremos como chave de leitura os distintos modos de não cumprimento dos ritos da morte que se disseminam na obra. Faremos esse exercício com a finalidade de pensar a que obedece a loucura de Hamlet.
palavras-chave
Hamlet, desejo, morte.
abstract
Across the figure of Prince Hamlet, we will consider the disposition of the hero before death. The attitude which illustrates his positions before the desire. The complexity of Shakespeare’s hero, his doubt, his slowness in realizing the act entrusted by the shade – which clearly differentiates him from the decided figure of Antigone – will allow us to approximate to the oscillations that the clinic of the neuroses teaches us. Following the Lacanian indication in Seminar 6, The desire and its interpretation, we will take as reading orientation the different manners of not following the rites of death that are disseminated throughout the work. We will engage in such an exercise with the purpose of reflecting over what Hamlet’s madness obeys.
keywords
Hamlet, desire, death.
recebido 13/02/2014
aprovado 15/05/2014
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A letra e o desejo em André Gide
A letra e o desejo em André Gide Maria Lúcia Araújo André Gide foi um escritor que dedicou sua vida à literatura. Segundo Jean Delay, autor de sua psicobiografia, a obra de Gide “[...] é um dos ensaios mais completos que fez um homem para se compreender e se explicar”1 (LACAN, 1958/1998, p. 11). O próprio André Gide em seu romance autobiográfico Si le grain ne meurt declarou: “Nesta idade inocente, na qual se quer que toda alma seja apenas transparente, terna e pura eu vejo em mim apenas a escuridão, a deformidade e a dissimulação”.2 Ele relata que quando criança passava rapidamente da alegria para a tristeza e do entusiasmo ao desespero. Seu temperamento era indeciso, hesitante, ambíguo, pleno de contradições e essencialmente instável. Nos termos de Gide, ele foi uma criança triste, aborrecida, não se relacionava com os colegas e que, no entanto, não poderia fazer de outro modo (GIDE, 1955, p. 10). Sendo assim, interrogamos: O que escrever significou para Gide? Qual foi a contribuição da obra para a psicanálise? Teria André Gide superado a angústia, graças à literatura? Neste texto, busquei refletir sobre essas questões, sem esquecer que a premissa freudiana é de que a arte se adianta à psicanálise. Um dos principais enigmas do livro Si le grain ne meurt é o contraste entre a primeira e a segunda parte, pois na primeira temos um jovem extremamente religioso, tímido, seguidor da corrente dos huguenotes,3 e na segunda um imoralista, irreverente e audacioso. Embora André Gide tenha praticado a pedofilia, isso não impediu que em 1947 recebesse o prêmio Nobel de literatura. Assim, o que nos interessa como psicanalista é nos despojarmos da ideia da perversão como maldade, perversidade, ou práticas de gozo perversas, e nos debruçarmos a pensar a perversão como estratégia de gozo do sujeito, onde o que está em jogo é negar a castração do Outro, construindo a mulher ideal. Para Colette Soler, o valor da perversão diz respeito ao que podemos chamar “os impasses do gozo”, onde o perverso retrocede menos que o neurótico, que é um covarde diante das pulsões. Assim, “Uma estrutura clínica se define na relação 1 DELAY, JEAN. La jeunesse d’André Gide, Paris: Gallimard, 1956. 2 GIDE, ANDRÉ. Si le grain ne meurt, Paris: Gallimard, 1955, p. 10. 3 Huguenote – seguidor do protestantismo de orientação calvinista.
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ARAÚJO, Maria Lúcia
entre o sujeito barrado $, efeito da linguagem e o Outro” (SOLER, 2007, p. 49). Além disso, a psicanálise nos ensina que a verdade se revela em uma estrutura de ficção. Nesse sentido, o que está em jogo é o que se fala e como se fala, ou seja, “a posição do sujeito na clínica do discurso” (LIMA, 2001, p. 38). Assim, Gide nos mostra todas as situações e todas as personagens de seu drama, onde sua obra será o desenlace. Ele colocou tanto de si em sua obra, que a vida e a obra se confundem. O autor afirmou, certa vez, que escrevia por necessidade e que teria se suicidado se não pudesse escrever. Sua escrita é, como ele costumava dizer, “internamente motivada. Subjetiva”. Ele transformava os momentos de profundo desespero, que o acompanhavam desde a infância, em literatura. Como precisa Lacan em Ou pior (1971-72/2012, p. 71), Gide tinha uma questão com o desejo. “O negócio dele era ser desejado. Há pessoas a quem faltou na primeira infância serem desejadas.” Ainda, de acordo com Lacan, no texto: Juventude de Gide ou a letra e o desejo, “[...] a mãe de Gide, não pôde conjugar amor e desejo. E, [...] no imaginário, ele se torna o filho desejado, [...] aquilo que lhe faltou na insondável relação que uniu o menino às ideias que cercaram sua concepção [...]. Há [...] um resíduo de uma subtração simbólica que se fez no lugar em que o menino, confrontado com a mãe, só pôde reproduzir a abnegação de seu gozo e o invólucro de seu amor. O desejo deixou ali somente sua incidência negativa, para dar forma ao ideal do anjo que não poderia ser roçado por um contato impuro” (LACAN, 1958/1998, p. 765). Em relação à angústia, “Por três vezes o menino ouviu-lhes a voz pura”. “[...] um tremor vindo do fundo do ser, um mar que tudo inundava, a Schaudern [...]”, palavra que Gide emprestou de Schopenhauer. E que em alemão significa sobressalto, calafrio ou situação catastrófica. Onde claramente há emergência de angústia (LACAN, 1958/1998, p. 762). Gide relata ao longo da obra os três momentos em que sentiu a Schaudern: o primeiro momento foi por ocasião da morte de um priminho. Ele ouve a conversa dos pais, começa a chorar, entra em desespero e diz à sua mãe: “Eu não sou igual aos outros”. Logo depois ele é inundado por esse sentimento, tal qual uma embriaguez dionísica, fonte de inspiração poética, mas que antes lhe trouxera o sentimento de não ser igual aos outros. O sentimento de ser excluído da relação com o semelhante. O pequeno Gide não conhecia muito o primo, mas compreendia que ele estava morto, e em seu romance autobiográfico, Si le grain ne meurt, diz [...] “um oceano de desgosto irrompe, explode de repente em meu coração” (GIDE, 1955, p. 132). Sua mãe tenta acalmá-lo e diz que todos nós vamos morrer, que o pequeno pri-
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A letra e o desejo em André Gide
minho está no céu, que não sofria mais etc. Mas isto não o acalmava, pois não era precisamente pela morte do pequeno primo que ele chorava. Gide não sabia por que uma angústia indefinível o invadia. O segundo momento ocorreu alguns meses depois da morte de seu pai, novamente a cena se repete, e se passa à mesa durante o café da manhã. Ele chorava, caía nos braços da mãe, tinha convulsões e sentia de novo a angústia inexplicável. Exatamente a mesma, sentida quando da morte do pequeno primo. E, de novo, ele não conseguia explicar o motivo exato de sua angústia (GIDE, 1955, p. 133). O terceiro foi quando ele descobriu que Bernard, um dos coleguinhas de escola, estava interessado nas prostitutas (GIDE, 1955, p. 133). Ocorre que a mãe de Gide havia recomendado que ele evitasse passar pela rua do Havre, pois era um lugar extremamente mal frequentado. Ele escuta as palavras da mãe como algo muito grave e pergunta a Bernard: “Bernard, quando você sair da escola você não vai passar pela rua do Havre, não é?”. Bernard não disse nem sim, nem não e perguntou a Gide o que este pedido queria dizer. Então, Gide é tomado pela angústia e relata: “De repente alguma coisa de enorme, de religiosa, de pânico, invadia meu coração, como a morte do pequeno Raul, [...] eu me precipitava aos joelhos de meu amiguinho. ‘Bernard! Oh! Eu te suplico: não vá’” (GIDE, 1955, p. 133). Outro fato relevante em relação à morte foi que Gide acreditava que levara o pai à morte pela mágoa causada por sua expulsão da escola, por causa dos “maus hábitos”, isto é, a masturbação. Ele considerava a morte um castigo vindo por alguma culpa e assim une erotismo à morte. A isto veio acrescentar a censura do tio Charles, irmão do pai, que interferia na educação do menino autorizado por sua mãe. Tio Charles, quando descobriu o interesse do jovem por uma prostituta, e como consequência a perda da virgindade, julgou a atitude de Gide escandalosa. De acordo com Lacan o menino Gide, entre a morte e o erotismo masturbatório, só teve do amor a fala que protege e a que interdita; a morte levou com seu pai aquela que humaniza o desejo. Por isso é que o desejo fica, para ele, confinado ao clandestino. Gide dizia que o que ele não tinha era o sentimento de realidade, quando ela se tornava desagradável ele se punha a flutuar “[...] eu não colo, nunca pude colar perfeitamente à realidade” (LACAN, 1958/1998, p. 764). Ora, sabemos que é a função paterna que sustenta o sujeito na realidade; se ela vacila, tudo cai no semblante. Quando Gide se confrontava com a castração, com a lei ele tentava driblar, tergiversar a realidade. “Na perversão o campo da realidade é profundamente perturbado por imagens” (LACAN, 1957-58/1998, p. 169). A partir destas considerações, interrogamos: para dirigir o tratamento, como o analista pode ter a precisão de que está diante de um sujeito de estrutura perversa? De acordo com minha pesquisa e apoiada nos textos de Freud e Lacan, suponho que uma indicação clínica fundamental, no tratamento do sujeito perverso, inclui
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precisar o fetiche como conceito, tirando-o da trivialidade e do senso comum. O fetiche, como prova clínica da estrutura perversa, aparece como um ponto de verdade do sujeito mantendo a existência do falo, ainda que deslocado. Não há falo, mas pode haver outra coisa, por exemplo, o brilho no nariz no caso do paciente de Freud, as cartas fetiche de Gide. Algo visível que substitui a ausência do órgão, além de ser o instrumento que permite localizar o trajeto até o Outro. Pode-se dizer ainda que o fetiche é uma criação inconsciente e está articulado a significantes. Aparece como desejo inconsciente, onde falta o índice de gozo, o ponto de verdade, onde se revela a castração do Outro. O perverso sabe que o Outro é castrado e por meio do mecanismo do desmentido se esforça para que ele, o Outro, apareça não castrado. Como? Colocando o fetiche, no lugar onde poderia aparecer a falta, a castração. De acordo com Lacan, o fetiche não é um significante. É um objeto e representa uma proteção contra a angústia de castração. O perverso vive na ambiguidade, por um lado aceita a castração e por outro a recusa. Seu lema é “Sei, mas mesmo assim...”. Desse modo, o fetiche se constitui como causa do desejo e tem função separadora. No tratamento da perversão, o analista sabe que existe uma lógica de pensamento; e ao tocar esta lógica, que governa estes pensamentos, ele pode tocar a verdade do sujeito. Para André Gide, colocar sua correspondência, isto é, as cartas como algo que completava o corpo de sua mulher, Madeleine e, pelo mesmo ato lhe oferecer o que ele considerava sua verdade, era dar às cartas fetiche um estatuto corporal, pois estas cartas tinham valor na relação de Gide com sua esposa. Além de ser um objeto inanimado como quer a perversão (MANDIL, 2003, p. 37). Segundo Mandil: No nível do significante, por exemplo, jamais seria possível perceber a natureza de fetiche das cartas enviadas por Gide a Madeleine, pois sua dimensão de fetiche não estava no conteúdo das cartas, mas no valor que tinham para Gide para além das mensagens nela veiculadas (MANDIL, 2003, p. 48). Quando Gide descobriu a destruição, ou a queima das cartas que endereçara a Madeleine, foi tomado pelo desespero, e só pôde ver a verdade da mutilação no nível do corpo da mulher amada, evidenciando a ruptura de seu caráter significante, pondo em primeiro plano a circulação de gozo ali envolvida, assinalada pela angústia desencadeada. Nas considerações de Fleig: A posição de Gide e de seus personagens em relação à mulher idealizada e dessexualizada que ocupa o lugar do objeto supremo do amor, preenchendo o
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A letra e o desejo em André Gide
furo do amor sem desejo, manifesta sua verdade quando se desvela a imagem mutilada do eu. A identificação com sua prima Madeleine constitui então o momento crucial de precipitação de uma posição que se torna a marca de toda sua existência (FLEIG, 2008, p. 81). Em um dos mais belos textos escritos por Gide, depois da morte de sua mulher, “Et nunc Manet in te”, ele narra como foi o acontecimento referente à queima das cartas por Madeleine: Alguns dias, algumas noites, eu me sentia esmagado pela recordação destas cartas destruídas. Era nelas principalmente que eu esperava sobreviver. Isto significava um tipo de contrato sobre o qual a outra parte não tinha sido consultada; um contrato que eu lhe impunha; e que minha natureza me impunha. Nunca teve correspondência mais bela, nunca escrevi assim a ninguém (GIDE, 1947, p. 90). André Gide reconhece que na sua relação com Madeleine havia uma espécie de contrato que sua natureza lhe impunha. Ora, sabemos que na perversão o sujeito faz uso de sua relação com o outro para usá-lo como depositório de suas pulsões. A questão gira ao redor da necessidade e não do desejo. Se na relação do sujeito ocorrer demanda de articular desejo e lei, a parceria é quebrada. O perverso precisa sempre do contrato que segue um ritual e que é necessário que seja mantido em segredo. Rudge afirma que: “No discurso perverso, o desejo do outro não deve se manifestar, nem levantar questões. Os [...] contratos perversos [...] são também recursos para evadir a lei do desejo do Outro” (RUDGE, 2005, s.p.). As cartas, diz Gide, eram frutos de seu amor por Madeleine. Ele narra que durante uma semana, após descobrir que elas foram queimadas, ele chorou de manhã à noite. “É verdade, eu perdi o testemunho de minha vida. Foi o melhor de mim que desapareceu e que não contrabalançará jamais o pior” (GIDE, 1947). Lacan conclui que a carta, que tem a natureza de fetiche, toma o lugar do qual o desejo se retirou e apresenta como prova a última frase de Et nunc Manet in te, em que Gide se detém diante da imagem de seu eu mutilado, “que não oferece mais que um buraco no lugar ardente de um coração”, que representa o lugar deixado vazio pelas cartas, e não pela morte de Madeleine (PORGE, 2003, p. 30). Cabe agora retomar a questão do início do texto: teria André Gide superado a angústia graças à literatura? Para responder não podemos deixar de levar em conta que o motivo da queima das cartas, realizada por Madeleine, deveu-se ao fato de Gide ter empreendido uma viagem com Marc Allégret por quem estava apaixonado. De acordo com Millot:
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ARAÚJO, Maria Lúcia
Graças a mil ardis, conseguiu levá-lo para viajar na Suíça, depois na Inglaterra. Seu diário traz a explosão que ele conheceu. “Uma imensa alegria me enternece e me exalta” (GIDE, 1889/1939, pp. 275-276). A escrita representa um modo de realização de um desejo, que, por aí se esgota. Gide utilizava, além disso, em a Tentativa amorosa, o procedimento do brasão que consiste, no primeiro, em pôr um segundo em abismo, este não reproduzindo o primeiro de modo idêntico, mas invertendo seus valores. A construção em abismo serve aqui ao propósito de Gide de acrescentar à báscula de um polo ao outro a inclusão em cada polo, de seu oposto, conjugando assim a alternância e a simultaneidade, e juntando assim mais estreitamente os contrários. Clivagem, alternância e clandestinidade formam um nó. A alternância, respondendo a uma dualidade interna, põe-se a serviço da dissimulação, a qual caminha junto com uma divulgação velada que joga com as oposições ser-parecer, verdade-mentira, realidade-ficção, com a qual se tece igualmente a criação literária. De modo significativo, o princípio de alternância ao qual sua produção obedecia será abandonado por Gide no momento em que o encontro com Marc Allégret tornará, por um lado, caduca a clivagem íntima pela qual desejo e amor eram, para ele, radicalmente separados (MILLOT, 2004, p. 54). A partir destas considerações, concluímos com Lacan (1958/1998, p. 495) que “[...] devemos levar em conta essa obra, pois ela acrescenta alguma coisa ao equilíbrio do sujeito”. E, além disso, salientamos que tanto a literatura como a conjunção de amor e desejo, na vida de Gide, contribuíram para o tratamento da angústia. Todavia, ressaltamos que isto só foi possível porque ele se responsabilizou por seu gozo o que implicou uma posição ética.
referências bibliográficas DELAY, J. La jeunesse d’André Gide. André Gide avant André Walter 1869-1890. Paris: Éditions Gallimard, 1956. DELAY, J. La jeunesse d’André Gide. D’André Walter à André Gide 1890-1895. Paris: Éditions Gallimard, 1957. FLEIG, M. O desejo perverso. Porto Alegre: CMC Editora, 2008. GIDE, A. Si le grain ne meurt. Paris: Editions Gallimard. Collection Folio, 1955. GIDE, A. Les Faux-Monnayers. Paris: Editions Gallimard, 1925. GIDE, A. Et nunc Manet in te – suivi de Journal intime. Neuchatel e Paris: Ides et calendes. Copyright by Richard Heyd, 1947. GIDE, A. 1889-1939, Journal op. cit., pp. 275-276. Inédito. Nota de rodapé retirada
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A letra e o desejo em André Gide
do Livro: La Jeunesse D’André Gide. Éditions Gallimard, 1957. LACAN, J. (1958). Juventude de Gide ou a letra e o desejo. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp.749-775. Tradução: Vera Ribeiro. LACAN, J. (1957-1958). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. LACAN, J. (1958-1959). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito. Publicação: Circulação interna da Asociação Psicanalítica de Porto Alegre. LACAN, J, (1971-1972). O Seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012. LIMA, M. M. Gozo e perversão. Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo: IPUSP, 2001. MANDIL, R. Os efeitos da letra – Lacan leitor de Joyce. Opção lacaniana, n. 3. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/UFMG, 2003, p. 48. MILLOT, C. Gide, Genet, Mishima: inteligência da perversão. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. PORGE, E. Jacques Lacan, um psicanalista – Percurso de um ensino. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. RUDGE, A. M. Notas sobre o discurso perverso. Interações v.10, n. 20, São Paulo, 2005, s.p. SOLLER, C. A qué se le llama Perversión? La perversión, como estructura clínica. Associón Foros Del Campo Lacaniano Medellín. Medellín, 2007.
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ARAÚJO, Maria Lúcia
resumo André Gide foi um escritor que dedicou sua vida à literatura. Segundo Jean Delay, autor de sua psicobiografia, a obra de Gide “(...) é um dos ensaios mais completos que fez um homem para se compreender e se explicar”.4 O próprio André Gide em seu romance autobiográfico, Se o grão não morre, declarou: “Nesta idade inocente, na qual se quer que toda alma seja apenas transparente, terna e pura eu vejo em mim apenas a escuridão, a deformidade e a dissimulação”.5 Sendo assim, interrogamos: O que escrever significou para Gide? Qual a contribuição da obra para a psicanálise? Teria André Gide superado a angústia graças à literatura? Neste texto busquei refletir sobre estas questões, sem esquecer que a premissa freudiana é de que a arte se adianta à psicanálise. Assim, me deixei ensinar pelos escritos de Gide.
palavras-chave
Letra, angústia, Jacques Lacan, psicanálise.
abstract
André Gide was a writer who devoted his life to literature. According to Jean Delay, the author of Gide’s psychobiography, the work of the writer “[...] is one of the most complete essays done by a man to understand and explain oneself”. André Gide himself in his autobiographical novel, If it dies, affirmed: “At this innocent age in which we want every soul to be not only transparent, but tender, and pure, what I see in me is only darkness, deformity, and dissimulation”. Based on this, we pose the following question: What did writing mean to Gide? Which would the contribution of such work for psychoanalysis? Would have André Gide overcome his anguish through literature? In this text I intended to reflect on these issues keeping in mind the Freudian premise which says that art comes before psychoanalysis. So, I let myself be taught by Gide’s writings.
keywords
Letter, anguish, Jacques Lacan, psychoanalysis.
recebido 3/02/2014
aprovado 3/07/2014
4 DELAY, JEAN. La jeunesse d’André Gide, Paris: Gallimard, 1956. 5 GIDE, ANDRÉ. Si le grain ne meurt, Paris: Gallimard, 1955, p. 10.
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“Joyce, o Sinthoma” – uma leitura
“Joyce, o Sinthoma” – uma leitura Glaucia Nagem “Os escritores criativos são aliados muitos valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.” FREUD, 1906[1907] Qual o uso que a psicanálise faz da arte? Esta pergunta permeia a leitura do texto Joyce, o Sinthoma. E nessa esteira podemos questionar: qual a importância de Joyce para Lacan no momento do Seminário 23? Uma via simples e aparentemente fácil seria analisar sua obra como se fosse um paciente – colocá-la no divã e acreditar que ali está a verdade do sujeito-artista. Outra via aparentemente tão fácil quanto seria colocar o autor no divã e tentar analisar sua biografia como se esta fosse o paciente. O que fez Lacan nesse momento? Ele não analisou a biografia, tampouco a obra. O que interessou a Lacan foi o tratamento dado por Joyce a seu texto, a seu escrito. Há algo de ilegível no que está escrito; há lapso no que se lê. Vejamos o que Lacan (1972-73) antecipa em seu Seminário 20: (...) vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível (...) Mas o que é Joyce, o que é? É exatamente o que eu lhes disse há pouco: é o significante que vem se infiltrar no significado. Joyce é um longo texto escrito – leiam Finnegans Wake – cujo sentido é proveniente disso: pelo fato de que os significantes se encaixam, se compõem, se vocês quiserem (...) penetram uns nos outros. É com isso que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas é realmente o que há de mais próximo daquilo que nós, analistas, graças ao discurso analítico, sabemos ler. É o que há de mais próximo ao lapso. E é a título de lapso que isso significa alguma coisa, ou seja, que isso pode ser lido de uma infinidade de modos diferentes. Mas é justamente isso que isso se lê mal, ou se lê ao contrário, ou não se lê, mas essa dimensão do “se ler” não será suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? E que aquilo
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de que se trata, no discurso analítico, é que é sempre ao que se enuncia como significante que vocês dão uma outra leitura, que não o que ele significa? (p. 104). Joyce aponta para a articulação de uma questão que Lacan coloca desde o início de sua obra, qual seja, a dimensão do escrito. Escrito, escrita, letra – são pontos que costuram toda a obra de Lacan, e Joyce indica uma direção que o interessa. Se o sujeito é o que um significante representa para outro significante, vemos que Joyce catapulta esses significantes e põe em questão isso que está entre um e outro significante. Afinal, o que seria a possibilidade de um significante que não remetesse a outro significante, mas a um vazio? Que em um significante muitos outros se aglutinassem, se encaixassem, se penetrassem uns pelos outros? “(...) river run, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs” (JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40). E a tradução de Haroldo de Campos (2001) nos auxilia a acompanhar em português: “(...) rio corrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação de volta a Howth Castle e cercanias” (p. 41). Leia em voz alta. Peça a alguém para ler e apenas escute a sonoridade do texto. Uma frase apenas poderia ser escutada por muito tempo. Finnegans Wake já nos provoca desde seu título: nome, fim e começo, acordar... Mas cada palavra usada se presta a esse exercício. Paremos na queda: “The fall w(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoorde nenthurnuk!)” (JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40). Alguns teóricos indicam que essa palavra imensa faz parte de uma pesquisa de Joyce dos muitos nomes e sonoridades de trovão. E como se trata de pura sonoridade, o tradutor manteve tal como escrito por Joyce. Sim, pesquisa – Joyce não retirava essas palavras de seu repertório apenas. Além de criá-las, ele as recolhia e as recebia dos amigos. Um árduo “work in progress”. Mas não se trata de um trabalho apenas dele. Cada um que se dispõe a ler seu texto, nem que seja alguns trechos, é convocado a trabalhar, pensar, construir e reconstruir os sons em palavras, as palavras em sons. Bernardina Pinheiros (2010) ressalta, na introdução de sua tradução de Ulisses, a importância da sonoridade na obra joyciana. Vemos com ela que, desde O retrato do artista quando jovem, essa sonoridade já estava em jogo: Se, como Joyce dissera em Um retrato, que “havia diferentes tipos de dor para todos os diferentes tipos de som”, também em Ulisses ele imprimirá ritmos próprios e distintos aos monólogos dos três personagens principais do romance, apropriados às suas respectivas personalidades (p. 12).
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Vemos aqui um dos elementos essenciais: o som, emitido pela fala, musicalidade da voz. Joyce trabalha desde muito cedo essa questão em sua obra. Lembremos que não só ele, mas muitos outros autores se aventuraram por essas veredas. Lewis Carroll, em seu poema Jabberwocky1 – Jaguadarte escreve em sua primeira estrofe: Era briluz. As lesmolisas touvas Roudavam e relviam nos gramilvos Estavam mimsicais as pintalouvas E os momirratos davam grilvos (CARROLL apud CAMPOS, 2001, p. 145) Isso que vemos em autores como Joyce e Carroll é uma marca de estilo, de trabalho literário. E neste ponto precisamos atentar que não foi isso o que apontou para Lacan o que é da ordem da estrutura. Se seguirmos pelo caminho de que foi aí que Lacan se apoiou, concluiremos que cada um desses autores que se dedicaram a destruir a estrutura prevista da língua poderia ser enquadrado em determinada estrutura ou em alguma tipologia patológica. Mas a voz não é apenas um som. Ela vem de um sujeito. E uma pergunta se impõe: quem fala? Esta questão se coloca para Lacan desde muito cedo. Já em seu Seminário 3 ele perguntava: O que é a fala? (...) Falar é, antes de mais nada, falar a outros (...) O sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma invertida (...) Desde que o sujeito fala, há o outro com A maiúsculo (...) Qual será essa parte, no sujeito, que fala? É o inconsciente (...) Esse inconsciente é algo que fala no sujeito. Além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não o sabe, e diz sobre isso mais do que crê (LACAN, 1955-56/2007, pp. 47, 52). Vemos aqui que, desde muito cedo, a fala é o que Lacan nos aponta como o mote para o inconsciente. O inconsciente estruturado como linguagem tem como um veículo o falar, ou seja, a articulação significante. Isso Lacan retira de Freud, e desde os anos 1950, insiste que os analistas atentem para esse fato. Em seus casos, Freud indica a importância de se escutar o que está sendo dito e como está sendo dito. Mesmo que o paciente fale outra língua, como no caso do Homem dos Lobos, Freud ressalta a importância de ouvir o dizer por trás do dito. Vejamos o que ele nos diz em O Ego e o Id: “A palavra é, pois, essencialmente o resto das palavras ouvidas”2 (1923/1981, p. 2.706). E ele conclui que é com esse material que o trabalho analítico opera. 1 Original: “Twasbrlling, and the slithytoves; Did gyre and gimble in the wabe; All mimsy were the borogoves; Ans the momeraths out grabe” (p. 44). 2 No original: “La palabra es, pues, esencialmente el resto mnémco de La palabra oída”.
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João Adolfo Hansen (2009), no prefácio de O inominável, afirma: É preciso regredir ao pressuposto do ato de fala e dizer o que se diz sem nunca dizer um sentido, mas estabelecendo orientações que fazem conexões ativas e provisórias. Por que falar? Uma causa plausível: porque é preciso eliminar radicalmente as significações e o sentido das palavras herdadas. Para que falar? Uma função real: para constituir a existência de algo fora da linguagem como o impensável inominável que impede, justamente, que a voz e o leitor delirem possuídos por ela (p. 25). E é exatamente a palavra que Joyce vai triturar em sua obra, tirando dela o que se ouve mais do que aquilo que se lê, ou até mesmo tirando dela o que se lê em uma dimensão de puro equívoco. Por isso mesmo faço a proposta de que se ouça o texto joyciano. Ele se serve dos sons, as palavras soam com ressonâncias variadas que são mais importantes em seu texto do que o próprio sentido. Em Lacan, um joyciano, Jacques Albert (2011) conta que Lacan “(...) foi a Londres mergulhar alguns dias na língua do Império, aquela em que Joyce tinha colocado tanto zelo amoroso a roer, de uma maneira que Lacan fez semblante de imitar em Joyce, o Sinthoma”3 (p. 44). Assim, acompanhar o texto Joyce, o Sinthoma, é um percurso de costura entre o que a teoria nos apresenta e o que Joyce nos ensina; é ler Lacan joyciando sua construção teórica. Essa leitura joyciana marca a transmissão de Lacan, que passa a utilizar de sua língua materna para transmitir em seus seminários. Lembremos do LOM, uma das criações de Lacan-joyciado. O que é isso? O homem, mas em sua máxima redução. Não o homem no simbólico, mas o que do homem toca o real. “LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (...) Il a (même son corps) du fait qu’il appartient en même temps à trois… appelons ça, ordres” (LACAN, 1975/2003, p. 565). Que em português foi traduzido como: “UOM, UOM de base, UOM ki temum corpo e só-só Teium (...) Ele tem (inclusive seu corpo) por pertencer ao mesmo tempo a três – chamemo-las de ordens”. Vemos aqui como Lacan desloca nesse texto o que era, a princípio, prioridade do Simbólico para o que é do Real em jogo na linguagem, como escreve Soler (2010): “‘Corpo falante’, isso desloca o campo da linguagem do Simbólico para o Real, pois o corpo do qual se trata não é o do estádio do espelho, o corpo da imagem, da forma. É o corpo substância que ‘se goza’ e se situa no espaço da vida” (p. 11). Ao lermos esse texto, vemos que Lacan, a partir de seus avanços teóricos sobre 3 No original; “il alla se plonger jours à Londres dans la langue de l‘Empire, celle que Joyce avait mis tant de zèle amouroux à ronger, d’une manière que Lacan fit mine d’imiter dans ‘Joyce le Syntôme’”.
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a la-língua, escreve e transmite em seus seminários utilizando-se “propositalmente” de sua la-língua materna. Isso faz com que a leitura do texto siga a mesma lógica da leitura dos textos joycianos, qual seja, seguir o que o som indica mais do que uma simples significação. O trecho de Joyce, o sinthoma citado, oferece um belo exemplo desse fato. Quando vemos a tradução, lemos: “UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium”. Em francês, porém, lemos: “LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun”. A respeito desse pequeno trecho, Jacques Albert ainda pontua que por trás do dito há um dizer que o som nos indica. Cahun é o sobrenome de Claude Cahun, artista plástica que, assim como Joyce e o próprio Lacan, frequentava a livraria Shakespeare and Company. Comenta Albert (2011): Ele tinha encontrado ali uma artista que tinha um gozo enigmático, rompendo tanto com seu nome – Lucie Schwob, que não era tão significativo assim quanto Cahun, onde “Caim” podia se ouvir – quanto com seu corpo colocado em jogo em muitos autorretratos, colagens, montagens, performances e outros cenários, e notadamente sua identidade sexual, cujo neutro era para ela palavra de ordem: Cahun era bem o caso. O caso do Um, já?4 (p. 46). Essa sonoridade se perde na tradução, ficando apenas a questão do um. Mas conhecer o trabalho de Claude Cahun e um pouco de sua história dá uma volta a mais na questão do um e da diferença sexual. Não há como esgotar o que oferece o texto Joyce, o Sinthoma como articulação teórica. Assim como o texto de Joyce, ele é para ser lido e relido, lido em voz alta, em português, em francês, pois se abre a cada leitura sem perder seu rigor.
4 No original: “Il avait rencontré là une artiste à la jouissance énigmatique, en rupture avec son nom – ‘Lucie Schwob’ n’était pas aussi parlant que Cahun, où ‘Caïn’ pouvait s’entendre – autant qu’avec son corps mis en scène, notamment de son identité sexuelle dont le neutre était pour elle le fin mot: Cahun était bien uncas. Le cas du Un, déjà?“
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“Joyce, o Sinthoma” – uma leitura
resumo
A autora propõe uma reflexão sobre a contribuição da obra de James Joyce à construção teórico-clínica de Jacques Lacan a partir da análise de seu texto “Joyce, o Sinthoma”. O foco deste texto está sobre a relação entre o modo criativo literário de Joyce e as articulações de Lacan ao abordar seu conceito de la-língua.
palavras-chave
James Joyce, literatura, la-língua.
abstract
The author proposes a reflection on the contribution of James Joyce’s work to Jacques Lacan’s theoretical and clinical construction departing from the analysis of his text entitled “Joyce, the Sinthoma”. The main focus of the article is on the relationship between Joyce’s literary creative mode and Lacan’s enunciations while approaching his concept of la-langue.
keywords
James Joyce, literature, la-langue.
recebido 4/02/2014
aprovado 3/07/2014
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Conflito entre psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade
Conflito entre psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade 1
Christian Ingo Lenz Dunker Fuad Kyrillos Neto Introdução Neste ensaio pretendemos examinar as rupturas e dissensões no interior da tradição lacaniana de psicanálise à luz de sua inscrição cultural e sua recepção social no Brasil. Considerando a psicanálise como prática clínica, discurso social e dispositivo de transmissão, a hipótese é de que os conflitos e divisões entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas presentes na brasilidade, particularmente, depois dos anos 1970. Assim, pretendemos contribuir para o entendimento sobre a grande penetração dessa forma de psicanálise no Brasil e também para o entendimento mais genérico da recepção de práticas, teorias e discursos no período posterior à Ditadura Militar. A psicanálise chega ao Brasil nos anos de 1920, em três contextos distintos: (1) na controvérsia modernista sobre a identidade nacional, em que ela assume um papel crítico em defesa da universalidade do sujeito, contra as teorias antropológicas do branqueamento; (2) na expansão da psiquiatria higienista, em que ela é mobilizada para renovar o discurso diagnóstico contra o positivismo francês, consagrando-se ainda como contramodelo liberal da prática hospital-asilar; (3) no debate sobre a interpretação da formação do pensamento econômico, sociológico e antropológico brasileiro, em que ela atua como uma espécie de psicologia das formas simbólicas sobre a gênese da autoridade e da dependência no contexto 1 No escopo deste trabalho adotamos uma definição convencional e nominalista do termo psicanalista, entendendo que este refere-se aos que, sem necessária sobreposição de condições (1) dedicam-se à prática clínica autodeclarando-se psicanalistas, (2) participam de escolas, associações e grupos, formais ou informais de formação de psicananalistas (3) escrevem, participam de atividades públicas, de natureza científica, de transmissão ou de divulgação sendo assim socialmente reconhecidos como psicanalistas seja por uma comunidade mais ampla ou mais restrita. Tal definição recobre, aproximativamente, noções como as de Analista Membro de Escola, Analista de Escola e Analista Praticante, usualmente encontradas em Lacan. Não empregaremos uma definição que pretenda estabelecer o que vem a ser o verdadeiro ou legítimo psicanalista, pois entendemos que este essencialismo, ingênuo ou propositado, é um dos motivos fundamentais do conflito entre os psicanalistas, qual seja, a posse, uso e controle hegemônico ou não do emprego deste significante no interior de relações de reconhecimento.
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da colonização e da endocolonização. Essa tríplice circunstância confere caráter particular à psicanálise no Brasil a um tempo, discurso de modernização, prática clínica e instrumento teórico de reflexão sobre processos de institucionalização. Isso descreve a extensão da penetração social da psicanálise até os anos 1970, mas não basta para entender a grande facilidade e capilaridade que as formas renovadas de psicanálise encontraram no Brasil depois desse período. O que torna interessante o estudo da rivalidade, das batalhas em torno do poder e da economia de autoridade, no caso da psicanálise lacaniana, é o modo como ela se apresenta: explicitamente como discurso destinado a tratar ou quiçá superar a forma fálica da luta pelo reconhecimento. Isso se mostra de forma clara em três conceitos mobilizados por Lacan no contexto das transformações clínicas e políticas que ele trouxe para a psicanálise francesa até os anos 1980: desejo do analista, ato do psicanalista e discurso do psicanalista.
Desejo, ato e discurso do psicanalista Lacan (1958/1998; 1959-60/1997) desenvolve a noção de desejo do psicanalista, tendo em vista a crítica do exercício do poder como sintoma da perda da autenticidade da prática psicanalítica. O desejo do psicanalista – com o que ele comporta de falta-em-ser e de pagamento com suas palavras, com seu corpo e com o juízo mais íntimo de seu ser – surge como uma alternativa ao excesso de ser, à identificação com o psicanalista e ao sistema de garantias constituídas pela figura institucional do analista didata. Trata-se assim de autorizar ou de formar um desejo, o desejo de analista, em contraposição à construção de uma posição egoica ou de mestria. Vemos, assim, que a noção de desejo do psicanalista é formulada como solução para a distribuição institucional da autoridade, segundo as regras da identificação fálica nas quais o mestre apoia sua autoridade. A ideia de ato do psicanalista ocorre principalmente no seminário homônimo (LACAN, 1967-68) e no importante texto que fundamenta uma nova forma de associação entre psicanalistas (LACAN, 1967/2003). O ato do psicanalista liga-se a momentos instituintes, como o início e o fim do tratamento psicanalítico, bem como a passagem de psicanalisante a psicanalista. O ato contrapõe uma dimensão temporal de dessubjetivação (destituição subjetiva), de fracasso e de travessia das identificações, justificando porque o psicanalista não se autoriza senão de si mesmo. São atos típicos: a fundação, a dissolução e a nomeação. Portanto, o conceito de ato do psicanalista é outra forma de crítica conceitual, mas agora articulada a dispositivos institucionais concretos, como o passe e o cartel, que pretendem não apenas isolar um desejo de obter a pura diferença, como o desejo do psicanalista,
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mas oferecer condições específicas para reconhecer tal acontecimento em uma comunidade experimental, conhecida como Escola de Psicanálise. Dessa feita, o falicismo não é questionado por uma crítica interna à qualidade do desejo ou à sua alienação, mas por uma lógica de sua distribuição, separação e reconhecimento, que pretende superar a dinâmica imaginária de identificação entre grupos, hierarquias e genealogias. O conceito de discurso do psicanalista liga-se fortemente ao Seminário 17 (LACAN, 1969-70/1992), ao Seminário 18, (LACAN, 1971/2009) e ao artigo Radiofonia (LACAN, 1970/2003). Ele compreende uma tentativa de formalização das possibilidades de laço social, segundo a relação entre o dominante (semblantes) e o Outro, e segundo o plano da desconexão entre a produção e a verdade que lhe dá causa. Aqui, o discurso do psicanalista é deduzido do discurso do mestre, como seu avesso (l’envers) ou como uma relação de subversão. Em vez do significante mestre, como dominante, o discurso do psicanalista terá o objeto a como agente. Se o discurso do mestre toma o outro no lugar de escravo que produz um saber, o discurso do psicanalista coloca, no lugar do outro, a posição de sujeito. Subvertendo relação fantasmática, entre sujeito barrado e objeto a, como se dá na enunciação do discurso do mestre, o discurso do psicanalista trará uma disjunção entre saber e verdade. O desejo do psicanalista, como desejo destituído de ser, fundamento e critério da ética da psicanálise, representa a promessa de um antídoto contra a transferência do sistema de interesses, da pessoa do psicanalista e das associações psicanalíticas, com a falicização da autoridade assim constituída para o interior do tratamento. Todos os poderes devem advir da palavra e de seu livre exercício. Aí está a asserção distributiva e equalizante contida na noção de desejo do psicanalista que a liga ao que Max Weber chamava de ética da convicção. O ato do psicanalista, como ato que se adianta ao sujeito que ele cria retrospectivamente, ataca outro ponto da questão. Uma vez que o desejo do psicanalista é um acontecimento concernente à experiência relativamente privada do tratamento, como regular sua articulação com o espaço público? A crítica potencial contida na noção de ato limita e desequilibra a correspondência entre privado e público. Limita a correspondência ao ato de cada novo psicanalista de autorizarse como tal segundo sua análise. Desequilibra a fixação desse ato ao regime de reconhecimento consensual e espontâneo, pelo recurso ao dispositivo do passe. Por meio dele uma experiência privada, idiossincrática e culturalmente específica de tratamento por ser publicamente reconhecida, nomeada e inscrita institucionalmente. A nomeação com AE (Analista de Escola) é um evento de considerável falicização, mas ela seria compensada pela orientação para a transferência de trabalho, para a crítica do funcionamento da escola e para a desconstrução dos sin-
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tomas identificatórios convencionais, gerados pelo conflito fálico entre analistas. Temos assim uma espécie de complemento da ética da convicção, expressa pelo desejo do psicanalista, na ética da responsabilidade, atinente ao seu compromisso com a transmissão. O discurso do psicanalista é uma estrutura muito mais permanente, que pretende fazer a crítica de certas formas típicas de falicização, situadas inteiramente na esfera pública, tais como educar, governar e fazer desejar. Ainda que a passagem ao discurso do psicanalista exija a mediação de estruturas complementares, como a estrutura da demanda e da transferência, reservamos aqui a ambiguidade que permitiria a emergência do discurso do psicanalista fora do contexto do tratamento. Nesse caso trata-se da intrusão, no espaço público, do que estaria suprimido pela economia da fala na situação clínica tout cour. O discurso do psicanalista pode emergir sempre que a progressão ou regressão instabiliza o discurso do mestre, tornando-se assim uma noção indispensável para pensar a prática do psicanalista em instituições em geral, não apenas a de natureza psicanalítica. Nessa medida, o discurso do psicanalista representa uma crítica à potência e à impotência dos discursos da educação e do governo, bem como um aliado que forçará o reconhecimento circunstancial do questionamento histérico. Cada um dos momentos de teorização crítica do desejo e dos laços entre analistas contém uma pequena variação no conceito de falo. Em 1958, o falo era um significante que controlava soberanamente a dialética do desejo (LACAN, 1958/1998), e com isso as relações de reconhecimento; em 1967, ele tornou-se um caso particular do desejo, a ser contraposto em sua causa, ao objeto a, e em sua indução de significação, ao sentido (LACAN, 1967/2003). Em 1970, ele era ainda mais restrito à função de mito específico por meio do qual o significante se sexualiza (LACAN, 1970/2003).
Impasses fálicos da brasilidade Vejamos sinteticamente como certos impasses de falicização aparecem nas primeiras inscrições culturais da psicanálise no Brasil: (1) Na São Paulo do pós-guerra, a criação de uma instituição psicanalítica destinada à formação de novos quadros faz com que psicanalistas se aproximem de um projeto de higiene mental e se afastem dos intelectuais e artistas, seus parceiros até então (FACCHINETTI e PONTE, 2003; OLIVEIRA, 2005). A divisão entre o movimento institucionalista que pretendia fundar um braço da IPA (International Psychoanalytic Association) no Brasil e a penetração local da psicanálise como movimento cultural opunha internacionalistas e localistas. A prática da
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clínica psicanalítica em São Paulo ganhou impulso em 1936, com a chegada de Adelheid Koch. Nossa primeira didata demora a aprender a língua, estabelecendo em seguida critérios clássicos para sua instituição: análise didática, supervisão de dois casos clínicos e oferta de cursos teórico-técnicos (SAGAWA, 1994). Contudo, o estilo retraído e introspectivo de Adelheid, próprio de uma refugiada oriunda da Europa central, será rapidamente confrontado por Frank Philips, australiano de modos rebuscados e apresentação cosmopolita. Enquanto ela se inscrevia no espírito marginal da colônia, ele tornaria a psicanálise uma experiência para aristocratas. Virgínia Bicudo, nossa primeira analista, formada inicialmente em São Paulo, depois em Londres, manteve esse dualismo constante em sua trajetória. Vemos aqui o impasse fálico da significação das origens humildes não sem o gosto pelo estrangeiro, do comunitarismo rural, e não sem a força das famílias aristocráticas. De um lado a psicanálise como experiência ascensional, para as classes médias, de outro, a psicanálise como confirmação do signo de acesso privilegiado à cultura europeia. Vemos, assim, como a economia fálica do reconhecimento, entre nossos primeiros analistas, opunha virtudes privadas e signos públicos. (2) Mark Burke chegou ao Rio de Janeiro em 1948 com o intuito de fazer avançar a institucionalização da psicanálise no Brasil. Alguns meses depois desembarcou o segundo didata, Werner Kemper. Em 1951, começou a grave crise no Instituto Brasileiro de Psicanálise (IBP), envolvendo Kemper e Burke. O primeiro não aceitava os questionamentos do segundo sobre a prática profissional de sua mulher, promovida pela graça dos favores do marido à condição de analista didata (PERESTRELO, 1987). Abuso de autoridade, nepotismo e clientelismo na luta pela hegemonia levam Kemper a fundar o Centro de Estudos Psicanalíticos. Em 1951, com a chegada do primeiro grupo de psicanalistas argentinos exilados do peronismo, o Rio de Janeiro sediava nada menos do que três grupos que buscavam reconhecimento da IPA (De barulhos e silêncios: contribuições para a história da psicanálise no Brasil, op. cit., p. 72). Temos aqui uma história contada em outra chave. São atos disruptivos, denúncias e imposturas. Contrapondo-se à lógica da autoridade transferida diretamente do colonizador, seus excessos e desmandos exprimem-se em recorrentes cisões, atos de desconhecimento e de recusa de reconhecimento. A gramática de compromissos e alianças, de vícios privados e benefícios públicos parece confirmar o dito de que para os amigos tudo, para os inimigos a lei. (3) Em menos de vinte e cinco anos, a contar de 1975, quando fundou-se o Centro de Estudos Freudianos no Recife, São Paulo e Campinas e paralelamente o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, as cisões no lacanismo nacional parecem ter se multiplicado em ritmo acelerado. Tendo atrás de si o mito do processo francês, com a exclusão de Lacan da IPA, em 1953, a fundação da École Freudienne de Paris, em 1964, e finalmente sua dissolução em 1980, os atos de fundação e
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refundação parecem constitutivos do estilo de associatividade lacaniana. A cisão da Escola Brasileira de Psicanálise em 1998, dezoito anos depois da formação do Campo Freudiano no Brasil, representa o caso maior de um processo disseminador muito mais pulverizado. Ao contrário das Sociedades de Psicanálise, ligadas à internacional, nunca houve, na tradição lacaniana brasileira, um grupo suficientemente hegemônico e estável para impor seus costumes e práticas de modo unitário e inquestionado. Aparentemente estamos diante de uma combinação dos dois casos anteriores: atos de divisão motivados pela crítica ao pensamento único e à hegemonia discursiva criam novos e cada vez menores agrupamentos em torno de mestrias locais ou internacionais. Por outro lado, reforça-se o desejo de legitimidade, a crítica das imposturas e o empuxo à purificação das origens. A soma dessas duas forças – concentradas respectivamente em torno dos impasses do desejo de psicanalista e do ato do psicanalista – leva à concentração de expectativas em torno de uma comunidade que seja a um tempo orgânica e autenticamente criada segundo uma origem comum e regida por leis, estatutos e dispositivos consensualmente firmados e geridos. Esta combinação é o que se pode chamar escola, e sua expectativa é garantir o discurso do psicanalista. Durante o período da Ditadura Militar brasileira, a percepção social da psicanálise defendendo a neutralidade do analista diante do paciente, a primazia formal do contrato e a assepsia político-moral do tratamento torna-se um problema (COIMBRA, 1995; OLIVEIRA, 2005). A universalidade do método psicanalítico, expressão da dinâmica universal entre o consciente e o inconsciente, não poderia desconsiderar o contexto local de enunciação e a sua própria economia de poder e de autoridade no interior da transferência. É importante lembrar que a fundação da primeira associação lacaniana brasileira, em 1975, (ROUDINESCO e PLON, 1998) é contemporânea da redemocratização, da ressignificação do legado dos anos de chumbo e da nova feição institucional assumida pelo Brasil, sobretudo após 1992. Coetâneo da Tropicália e do Cinema Novo, o lacanismo propaga-se com a renovação da reflexão sobre a cultura e sobre a crise da cultura brasileira. Ele corresponde também a um experimento institucional e associativo em torno de novas formas de laço social. Além disso, ele tem uma forma de tratamento que age no interior das reformulações das políticas formal e informal do sofrimento. Durante muito tempo os analistas lacanianos deparavam-se com uma desqualificação cabal herdada da própria exclusão de Lacan pela IPA. Isso não é psicanálise, a frase ecoava entre os jovens candidatos, tendencialmente egressos dos cursos de psicologia mais do que das cadeiras psiquiátricas. Isso compunha mais um desafio ao caminho formativo, que se torna então politizado, baseando-se na narrativa revolucionária e na contracultura. Esse complexo de indiferença somado à gramática do reconhecimento
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negativo, que acompanhava a tensão entre as classes psicanalíticas em tempos de ditadura, impregnou o espírito do lacanismo brasileiro para o bem e para o mal. Nesse contexto emergem em lugar de mestria inúmeros analistas lacanianos. Isso não reflete necessariamente suas atuações clínicas, mas serve como uma espécie de testemunho ou prova pública de que eles são capazes de recusar o exercício do poder. Tal exercício de mestria apoia-se em alguns dispositivos culturais importantes: o domínio da obra de um autor de língua francesa, conhecido por sua erudição e complexidade; a possibilidade de ler e interpretar diferenças políticas no interior do movimento psicanalítico; bem como o manejo de lideranças combinando hierarquias psiquiátricas e hospitalares, universitárias e parauniversitárias. A mestria assim constituída é uma mestria acumulada, típica dos intermediários ou caudilhos dos processos de colonização. Não é que esses psicanalistas estejam inadvertidos quanto à possibilidade de manipulação da teoria psicanalítica pelas instâncias de poder. Pelo contrário, o problema parece estar na confiança excessiva de que haveria uma espécie de isolamento ou suspensão metodológica que garantiria a uma comunidade psicanalítica ser antes um fragmento cosmopolita da psicanálise mundial e só depois disso um caso particular e fortuito de brasilidade. Tal manipulação teria como resultado a dissociação absoluta entre a esfera do psicanalítico e do sujeito moral em sua vida pública e privada (CHNAIDERMAN, 1999). Tal fenômeno agravou-se e assumiu contornos dramáticos por volta dos anos 2000, quando o panorama etário da psicanálise lacaniana alterou-se substancialmente. Em vez da distribuição entre figuras pioneiras e seus grupos de referência – mais ou menos limitado ao número de transferências que cada qual conseguia suportar – emergiu uma quantidade inusitada de alunos, candidatos e interessados na atividade psicanalítica que exigia outra reconfiguração institucional. O crescimento dos grupos se via limitado – pela primeira vez em escala nacional – pela presença de escolas lacanianas rivais nas mesmas cidades do Brasil. Isso transportou para a dimensão dos grupos a antiga prática do reconhecimento negativo, gerando por sua vez novas exigências de diferenciação teóricas, genealógicas e institucionais. A superação da lógica do trauma antropofágico e do ciclo que vai da paranoia à servidão voluntária, a ultrapassagem da cordialidade ressentida e da vigilância predatória das transferências, bem como a redefinição do tamanho da casa que deveria acolher os psicanalistas (local e internacional) firmavam-se como promessas. Essas notas históricas permitem apresentar o que estamos chamando de impasses fálicos da brasilidade. No primeiro caso trata-se de observar que o falicismo liga-se à transmissão paterna de uma autorização para o desejo. O Nome-do-pai, como instância que localiza o falo no campo do Outro, age como organizador de um conflito de origens (LACAN, 1957-58/1998). Trata-se de um impasse próprio da filiação, que se impõe como uma espécie de meta-regra para o funcionamento
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totêmico da transmissão psicanalítica, com seus periódicos banquetes totêmicos e disputas de nomeação. O drama do falicismo das origens acentua-se toda vez que reconhecemos que para além das marcas formativas como psicanalista, cada um carrega suas inscrições de classe e cultura. Afinal, a soberania da transferência implica que as posições administrativas devem tencionar-se com o respeito e o reconhecimento livremente formados. Como nos lembra Chnaiderman (1999), há uma relação entre escuta analítica e escuta política. As relações de um Estado freudiano com o poder de Estado são, portanto, de negação e reprodução, de assimetria e de simetria invertida. Isso advém do fato de que por aqui a psicanálise de extração lacaniana tenha prosperado em associação com os movimentos de resistência política e depois de redemocratização do país, mas que em seu interior, ao mesmo tempo, prosperem tolerância, práticas e costumes de baixo democratismo. No início, dizia Lacan, está o lugar e não a origem (LACAN, 1967/2006, p. 12). E esse início prescreve lugares diferentes para os quais o falo adquire a função de indutor de comensurabilidades e trocas. Daí que toda vez que se acentue ou que se negue a função da origem e a consequente primazia genealógica como seu imperativo de pureza, chegamos a um impasse fálico. Chamemos esse impasse de trauma antropofágico, pois foi com essa denominação que os modernistas, como Mário e Oswald de Andrade, pensaram a cultura brasileira. No segundo caso, o que se desenrola sob a efígie dos atos de fundação e dissolução, o que está em questão não é bem a origem, mas o falo como operador de pactos, alianças e associações. Trata-se aqui da regra pela qual o acesso ao gozo só é possível pela escala invertida da lei do desejo (LACAN, 1960/1998). E a lei do desejo é a lei fálica do reconhecimento do desejo como desejo do Outro. Portanto, o impasse fálico gera-se aqui pela obstrução do reconhecimento do desejo, pelo desejo de reconhecimento e, ademais, desejo transformado em demanda. Seu sintoma é a indiferença, sua prática é a constituição de grupos por exclusão identificatória. Seu impasse é o impasse do mestre que não pode se conformar em ser reconhecido apenas por escravos, ou de escravos que constituem novas mestrias como uma luta fálica permanente entre significantes mestres travestidos de leis formativas. Torna-se assim impossível que o falo circule e realize sua função distributiva entre os psicanalistas, que não seja como aliança para a conquista de novos objetivos. Disso decorrerá uma política necessariamente expansionista, colonizatória e militante. O sintoma desse impasse compõe certas patologias da autoridade tais como o clientelismo, a troca de favores e a instrumentalização das relações de proteção. Ora, o problema da pessoalização da lei é que ela leva ao sentimento narcísico de injustiça e ao ressentimento com as pequenas diferenças. Por isso esse impasse fálico poderia ser chamado, em homenagem a Sérgio Buarque
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de Holanda, de impasse da cordialidade ressentida. O terceiro caso não se refere nem ao circuito paterno-filiativo, nem à dinâmica do mestre-escravo, mas a uma terceira função do falo, que é a de articular um tipo de gozo, em sua disparidade, entre homens e mulheres. O gozo fálico não é em si um problema, uma vez que é necessário para toda atribuição de sentido e distribuição da significação. O impasse do gozo fálico decorre de que sua subjetivação depende, necessariamente, de um tipo de universalidade negada tanto pela existência de exceções, quanto pela existência da não-totalidade no interior desse universal. A tendência ao fechamento do gozo fálico exprime-se em práticas de dominação ou no que Lacan chamava de exercício de um poder (A direção do tratamento e os princípios do seu poder, op. cit., p. 592). Esse é o real que está em jogo na formação das formações de psicanalistas. Formações que fazem passar do grupo à massa, da lógica da autoridade à gramática do poder, da experiência à sua forma determinada e improdutiva. Aqui, o impasse fálico decorre do uso da lei para desmentir seu propósito, da identificação com o síndico da lei, tanto com o executor sadeano, quanto com o zelador impessoal de regulamentos. Essa atitude de funcionário da psicanálise, de condutor da causa, de guardião da ordem e de vigia noturno da interpretação de texto cria um impasse fálico de tipo concentracionário. Para ele, o mundo se dividirá entre verdadeiros analistas e impostores usurpadores. Quem não está na casa-grande estará na senzala. Por isso, em deferência a Gilberto Freire, podemos dizer que se trata do complexo de casa pequena, segundo o qual a casa dos psicanalistas estará sempre pequena demais para eles mesmos – justificando a expansão permanente de seu discurso – e grande demais para os outros – justificando os expurgos e purificações.
Localismo, internacionalismo e institucionalismo Divididos entre localistas, que aspiram algum reconhecimento para a diversidade de seus percursos formativos e para a pertinência de suas práticas clínicas; internacionalistas, que advogam uma psicanálise mundializada; e institucionalistas, que acreditam na rediviva aplicação das ideias lacanianas em matéria associativa, a tensão permanece. À medida que a penetração do lacanismo em instituições universitárias, hospitalares e educacionais avançava; à medida que, portanto, se torna mais importante produzir justificativas públicas para empreendimentos associativos, acentua-se a tensão entre institucionalistas – que querem recuperar, por exemplo, o modelo de transmissão propugnado em torno da Escola de Lacan – e os anti-institucionalistas – que preferem permanecer independentes, preservando um estilo de formação em torno de um psicanalista mais experiente,
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baseado em vínculos mais pessoais. Assim, a questão da brasilidade assume duas chaves concorrentes: a da insistência no reconhecimento de um modo de sociabilidade nacional, com suas respectivas lideranças, e a do fazer-se reconhecer por instâncias internacionais, e seus respectivos baluartes. A polêmica contra a presença da psicanálise nas universidades exprime bem o caso diferencial dos que não querem ver nem as autoridades locais, nem a instituição psicanalítica, ou suas afinidades eletivas internacionais articular-se com o debate público. Inversamente, é no discurso da pureza, seja de fidedignidade da análise pessoal ou da teoria, seja da filiação genealógica, seja na aplicação das regras e dispositivos de Escola, que os três discursos se compõem e se identificam. A causa das rupturas e dissidências nem sempre reside em significativas divergências teóricas entre grupos. Souza (1994) aponta o caráter próprio de nosso empuxo à servidão voluntária como solução sintomática para as contradições entre liberdade e justiça. A servidão voluntária seria escandida pelos rituais periódicos de devoração totêmica, cujo produto engendra desde encarnações locais de caudilhos até a “fetichização” do texto lacaniano. Essa leitura, de natureza mais romântica e independentista, contrapõe-se com os que apostam na delimitação de regras e estatutos claros e consensualmente construídos em acordo com regras de fundação. Tanto o antídoto quanto o diagnóstico são conhecidos no Brasil como hipótese do déficit de implantação liberal. A cura para nossa servidão – a que radica na colonização por mestres estrangeiros ou seu sucedâneo na intracolonização por mestres locais – está nas regras e regulamentos, ou seja, na racionalização e impessoalização das práticas institucionais. A tensão entre românticos e liberais está presente desde o nascimento da primeira organização internacional de psicanalistas, marcada pelo debate entre o uno-original, representado pela psicanálise para vienenses, e o múltiplo-regulamentado, representado pela prática da psicanálise sem fronteiras (RIBEIRO, 2000). Ao contrário de outras práticas liberais como a medicina ou a advocacia – para as quais as associações adquirem um valor funcional de controle corporativo, força política e representação científica – na psicanálise, especialmente na psicanálise de orientação lacaniana, as Escolas compõem uma espécie de prova social de uma eficácia ética. Elas exprimem a promessa de um novo laço social que remonta à possibilidade de erigir instituições ou comunidades redentoras, nas quais tais patologias do social seriam mitigadas ou ausentes. Enquanto as linhagens derivadas da IPA tendem a ver o poder como um problema relativamente secundário em relação à prática clínica da psicanálise; para a tradição lacaniana, a posição crítica, a crise identitária permanente e a emancipação em relação ao poder é uma expectativa constantemente renovada. Foi nessa direção que suas posições conseguiram superar o elitismo preservacionista, abrindo a psicanálise para as classes
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médias e para a democratização de seus meios. Porém, isso instituiu, reversamente, um novo tipo de elite, baseado no acesso a autores e tradições intelectuais de alta complexidade, transmitidas de modo não trivial. Isso foi decisivo ainda para legitimar uma vida institucional dupla, envolvendo participação em associações psicanalíticas e instituições públicas ou privadas, bem como para a expansão da prática clínica para fora do consultório particular. O argumento liberal que privilegia a liberdade de escolha do candidato a analista é também a aposta de que tal liberdade pode ser utilizada para proliferar a prática do favor, do compromisso ou da filiação no espectro, que vai da manipulação direta de transferências até o populismo e as restrições fetichistas acerca do uso, posse ou propriedade do nome da marca, para retomar a bela expressão de Fontenele (2002). Aqui, o paradoxo crucial das escolas lacanianas é fazer-se reconhecer e conhecer mais além de seus próprios usos e costumes, de seu vocabulário e sotaques provincianos ou não. O livre acesso à transmissão corresponderá ao livre acesso às demandas de análise, o que nem sempre será bem tolerado pelas diferentes comunidades, às quais se aplica o princípio da transmissão.
A metafísica no buraco da política As estratégias de organização e de distribuição do poder desenvolvidas pelos psicanalistas não são muito diferentes das que encontramos nos grupos tradicionais, seja o genealogismo, típico dos primeiros tempos do freudismo; as arquiteturas verticais burocráticas, características do momento de internacionalização da psicanálise; o modelo comunitário-associativo de espírito e forma liberal ou a comunidade romântica e personalista. De forma sintética, podemos opor as políticas que confiam nos dispositivos e não nas pessoas (institucionalistas e internacionalistas) às políticas que confiam nas pessoas e não nos dispositivos (contrainstitucionalistas e localistas). De modo semelhante, poderíamos opor as políticas baseadas na confiança (ética da convicção) às políticas baseadas na eficiência (ética da responsabilidade). Porém, a coesão de psicanalistas em instituições se efetiva com a exclusão do discurso do analista. O que parece estranho na experiência psicanalítica brasileira é que a reconstituição e aplicação desse programa não estejam, com raras exceções, atravessadas por uma reflexão mais permanente e de fundamento sobre o processo colonizador, sobre as práticas institucionais correntes, sobre a diversidade de experiências políticas e implantações culturais que geralmente concorrem na formação de cada novo projeto associativo. A psicanálise é usada para pensar o Brasil, mas a brasilidade é muito pouco usada para pensar a psicanálise. Isso sobrecarrega o
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discurso institucional de Lacan em um universalismo formalista que facilmente se inverte em tirania localista, segundo nosso dispositivo de sincretismo cultural. Torna-se claro que a primeira dificuldade para o tratamento dos impasses fálicos no conflito entre psicanalistas é a dificuldade crônica de alinhar uma crítica das instituições psicanalíticas que considere as vicissitudes da brasilidade. A segunda dificuldade é que os impasses reconhecidos devem ser tratados em uma língua particular que são as próprias disposições textuais de Lacan sobre o assunto. Isso torna o buraco da política imediatamente preenchido por um uso metafísico dos conceitos, dos significantes e das citações. O exercício de domínio do texto se impõe aos argumentos e investe de autoridade os contendores. Isso faz com que o texto perca sua posição terceira de mediador simbólico e desloca a contenda imaginária dos envolvidos para uma justa de sabor escolástico. As associações psicanalíticas fundadas por Lacan possuíam um nível de abertura, inovação e democratização surpreendente, mesmo para a França dos anos 1960-1970. Baseados no experimentalismo institucional, no contexto cultural de renovação das modalidades de ensino e de questionamento do poder pelo desejo, os grupos lacanianos formaram uma espécie de vanguarda crítica e criativa, combatendo vivamente os sintomas enumerados por Lacan: genealogismo, gerontocracia, burocratismo, endogamia, falta de abertura a outros saberes, renúncia ao espírito científico de investigação e justificativa pública. Argumentamos que tanto a grande penetração cultural da psicanálise de corte lacaniano no Brasil, quanto seus sucessivos impasses de institucionalização derivam tanto da importância assumida pelo modelo revolucionário de transmissão e de organização entre psicanalistas quanto do provimento de uma discursividade institucional. Segundo Parker (2013), esse modelo teria encontrado em solo nacional duas condições favorecedoras: uma ampla disseminação da psicologia como disciplina universitária e prática institucional, além de uma grande infiltração cultural do cristianismo sincrético. Tais condições exprimem um déficit de implantação do individualismo liberal coligado a um sincretismo cultural que, por vários caminhos, participa da implantação da psicanálise no Brasil (DUNKER, 2008). Tal programa colocaria o psicanalista como um caso de vanguarda na experimentação por novas formas de vida institucional, comunitária e discursiva. Isso é frequentemente percebido por outras formas de psicanálise ou de psicologia, como o signo de certa inautenticidade, de impostura intelectual ou mimetismo de costumes mal incorporados. Em cada modelo do programa lacaniano há um contramodelo ou problema a ser particularmente tratado pelo laço entre analistas: a primazia da identificação com a posição fálica, no caso do desejo do psicanalista; a hegemonia do discurso do mestre-universitário, no caso do discurso do psicanalista; a noção de compor-
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tamento regrado, no caso do ato do psicanalista, e, finalmente, a noção de sociedade, no caso do conceito de escola.
Um caso real Em maio de 2013, a até então única brasileira nomeada no Fórum do Campo Lacaniano (FCL) como Analista de Escola (AE) pediu seu desligamento. O Fórum, como é popularmente conhecido, é uma das associações emergentes no Brasil da retomada. Ele surgiu da cisão de 1998 no interior da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e representa o terceiro momento do lacanismo brasileiro, depois do período dos fundadores (1975-1985) e o tempo da expansão individual das escolas e grupos pelos estados (1985-2000). Contando com um número substancial de membros, o FCL de São Paulo mostrava-se um exemplo nacional da confluência e do tratamento dos impasses fálicos que organizam os conflitos entre psicanalistas. Analista de Escola é exatamente a função daquele que deve fazer a crítica e concorrer para a superação dos impasses institucionais que acompanham a transmissão da psicanálise em uma dada comunidade. Segundo a conceitografia lacaniana, exaustivamente estudada e detalhadamente transformada em disposições administrativas entre 2000 e 2010, encontrava-se exatamente uma situação de conflito prevista. Os chamados dispositivos de Escola, tendo o passe em seu centro. No entanto, e apesar de todas as precauções, o experimento aparentemente não funcionou conforme esperado. Examinemos o ocorrido à luz dos impasses fálicos da brasilidade que apresentamos até aqui. Analista de Escola é uma função que continua agindo mesmo em ausência. A retirada de um AE deveria ser imediatamente percebida como um ato, no sentido do que vimos anteriormente. Mas um ato pode ser neutralizado e remetido a circunstâncias pessoais ou derrogado quanto a seus motivos. Ou seja, por mais que confiemos em dispositivos e regras impessoais de relação, a relação entre analistas ainda parece depender das tradicionais noções de reconhecimento e cordialidade. Porém, e isso parece ter um valor de generalização para o caso Brasil, pode ser mais fácil renunciar a compartilhar diferenças de percurso formativo do que reconhecer o caráter incontornável da dimensão da pessoa. Não há laço de discurso que seja imune à cordialidade ressentida que tenderá a perceber no Analista de Escola, não uma autoridade constituída, pessoal e impessoalmente, pública e privada, mas um privilégio a invejar. Nesse sentido, estaríamos diante do exemplo de um evento de trauma totêmico, ao modo do lapso na narrativa de Totem e Tabu, o momento no qual os filhos devoram o pai, para em seguida inadvertidamente se colocarem no lugar dele e assim tornarem-se a próxima vítima.
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Para além dos motivos de ordem pessoal, é interessante observar a mobilização de discursos localistas contra internacionalistas, como que a formar a série que vai da servidão voluntária à paranoia semidirigida. E o efeito é previsível, uma vez que a série institucionalista foi desativada. Ou seja, depois de anos falando em dispositivos, formas, funções e instâncias, tal ato imprevisto precisa recorrer às séries suprimidas. A separação mal posta entre funções e pessoas faz esquecer que existe um discurso que escolhe pessoas para funções, que seleciona regras para casos, que aplica exceções universais. Lembramos que uma das causas da cisão com a EBP é o funcionamento do campo freudiano descrito como: “Miller dirigindo junto aqueles que lhe são próximos, mesmo quando não ocupam cargos (e quando ocupam, tudo é legitimado)” (QUINET, 1998, p. 124). Vemos, assim, a fragilidade da confiança no discurso quando este destitui o valor das contingências, nas quais se inscrevem as pessoas. Em acordo com o tipo de capitalismo à brasileira – caracterizado pela precariedade e pela administração calculada da anomia – a categoria de impossível, como sucedâneo do conceito de Real, é convocada como princípio de poder. Temos então um bom exemplo de como a metafísica pode ser convocada para ocupar o buraco da política. O psicanalista que se autoriza de si mesmo não impede que eles se reúnam para desautorizar uns aos outros. Dessa maneira, a potência de desprezo, indiferença e desafetação torna-se a modulação maior da lógica de reconhecimento negativo. No fundo, a desqualificação de pessoas, o destrato de diferenças de estilo, a prevalência de militância com a respectiva atitude bélica para com outras formas e grupos de psicanálise decorre da evitação em reconhecer uma condição mais simples e elementar: a inscrição cultural da psicanálise. A recusa em aumentar a densidade da biodiversidade formativa, apoiada na soberania da noção de transmissão, torna cada vez mais difícil reconhecer percursos não normativos e antes chamados estandartizados. Importa que a tensão que leva à saída da AE replica a tensão muito antes acalentada entre a capital e as cidades no interior de São Paulo. Todo avanço científico ou aperfeiçoamento prático passa por uma concorrência relativa, seja de formas teóricas, de discursos ou de ofícios. Mas uma característica da luta pela hegemonia é reduzir a variância teórica ao erro de doutrina e o erro de doutrina à fidelidade primária. É assim que certos autores são suavemente excluídos, certos temas sobrevalorizados e algumas versões dos escritos de Lacan são canonizadas. Em vez da clínica miúda, da autoridade provisória conferida pela prática continuada, encontramos outro procedimento ascensional da cultura brasileira da retomada, ou seja, a leitura do texto sagrado com força de lei e investido de efeito normativo. Uma associação de psicanalistas pode desenvolver um discurso universitário muito mais universitário do que a própria universidade. Mas o ponto crucial é como ela lida com a relação entre o público e o privado. Arrogância, desprezo
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e desdém, derivados ou não da superestimação moral ou cognitiva, são formas incuráveis da experiência humana. Contudo, algo adicional acontece quando isso se torna a dominante de um discurso. O narcisismo da casa pequena age aqui estimulando a matilha de pensamento, a polícia do uso controlado das palavras e, principalmente, a vigilância do uso idôneo e justificável da propriedade da marca. Falar em nome de, representar ou simplesmente ser visto com nos leva de volta ao fantasma das origens. Detalhamos que nos primórdios da psicanálise brasileira, o fetiche personalista da autoria aristocrática opunha-se à massificação da psicanálise como um bem de domínio público, repleto de cópias imperfeitas. A chamada orientação para o real, mote e clamor discursivo de muitas escolas lacanianas, pode tornar-se uma orientação para segregação. A segregação é um dos nomes do real. Se os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo, os limites de uma Escola de Psicanálise são os limites de quem, do quê e dos porquês que ela pode incluir. Nos anos de 1960 ela excluía homossexuais, incultos ou apenas e tão somente os mais pobres. A segregação é, no fundo, outro caso de colapso da função de reconhecimento. A impossibilidade de reconhecer a procedência da alternância de poder. E isso vale para dualismos como centro e periferia, local e internacional, um regime mais confederativo (reconhecendo mais as contingências e exigências locais) ou um regime federativo (reconhecendo mais um centro convergente). A tensão não se resolve pela primazia de um ou outro polo. A elipse do reconhecimento é substituída pelo eclipse de um de seus polos, como se ele não fosse apenas uma alternativa que não nos incluímos, mas uma oposição que não deve existir. O tema do passe nos remeteria ao incômodo fato de que, apesar de muitos terem atravessado o procedimento do passe, apenas um havia sido nomeado. Nos bastidores da saída da AE pairava esta inquietação. Aqui, somos levados a reconsiderar a síntese final representada pelos discursos em detrimento da particularidade do desejo do psicanalista e da contingência do ato do psicanalista. Talvez confie-se demais na língua universal dos matemas, na potência normativa da Escola (pensada por Lacan para a França da década de 1960), na pureza trans-histórica dos dispositivos, na facilidade pela qual se poderia reconhecer a unidade da psicanálise. Por outro lado, muitos dos candidatos falam português; os passadores, espanhol e o cartel do passe, eventualmente, só francês. Entre as centenas de textos sobre o passe nesta e em outras Escolas de Psicanálise, poucos discutem o que é a língua na análise, o que é a cultura oral, o que são experiências locais de sofrimento, o que significa ser psicanalista em e para uma classe ou outra. Poucos abordam como os Analistas Membros de Escola (AME) – que indicam passadores – refletem a inscrição social da psicanálise no horizonte da subjetividade de sua época.
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A soberania dos processos discursivos, a fé no ideário liberal de impessoalização racional das instituições, o exílio forçado da falsa autonomia, o temor ao espaço público, a obsessão com a representação em cargos e delegações pode extrair o que há de pior nas pessoas. Nenhum empreendimento associativo no Brasil pode desconhecer o problema da concentração não só de renda, mas de poder, com a qual nossa história foi escrita. Concentração tem aqui o sentido de concentrar, criar centro, reunir para excluir, no sentido de não reconhecer. O ideal liberal – no qual ninguém habita os dispositivos que agem como orelhas invisíveis, ajustando o mercado e os conflitos – não pode ser superado apenas pelo retorno ao ideal romântico do desejo autêntico de psicanalista, cuja prova tautológica de subsistência é o horror à mistura com os processos institucionais de poder. Ambas as posições trabalham por si mesmas, sob o fundo da barbárie política. As formas jurídicas, disciplinares e administrativas de opressão serão o sintoma da falta de mediação para os conflitos fálicos.
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resumo
Neste ensaio examinam-se as rupturas e discordâncias no interior da tradição lacaniana de psicanálise, com foco em sua inscrição cultural e sua acolhida no Brasil. Considerando-se a psicanálise como prática clínica, discurso social e dispositivo de transmissão, a hipótese desse trabalho é de que os conflitos e divisões entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas, presentes na cultura brasileira, particularmente depois dos anos 1970. Pretende-se contribuir para o entendimento da grande penetração da perspectiva lacaniana de psicanálise no Brasil, como também subsidiar o entendimento mais genérico da recepção de práticas, teorias e discursos no período posterior à Ditadura Militar. Finalmente, à luz dos impasses fálicos da brasilidade apresentados no decorrer do texto, discute-se um episódio ocorrido em uma instituição de psicanalistas.
palavras-chave
Psicanálise, instituição, política, transmissão, poder.
abstract
In this essay shall examine whether the ruptures and disagreements inside tradition of Lacanian psychoanalysis, focusing on its cultural inscription and its reception in the Brazil. Considering psychoanalysis as a clinical practice, social discourse and transmission device, the hypothesis of this study is that the conflicts and divisions among psychoanalysts can remit to differents phallic grammars, present in the Brazilian culture, particularly after the 1970. It is intended contribute to understanding of the great penetration of the perspective of lacanian psychoanalysis in the Brazil, as well as subsidize the more general understanding of reception practices, theories and discourses in the post-military dictatorship period. Finally in the light of the phallics deadlocks of the brazilianness shown throughout the text, will be discussed an episode that occurred in an institution of psychoanalysts.
keywords
Psychoanalysis, institution, politics, transmission, power.
recebido 21/01/2014
aprovado 22/08/2014
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trabalho crĂtico com conceitos
A verdade ou o testemunho
A verdade ou o testemunho Cibele Barbará Após sua libertação do campo de concentração em 1945, no retorno a Paris, Jorge Semprun e um grupo de libertos discutem sobre o possível repatriamento e como irão contar algo da experiência daquilo que viveram. Contar as coisas como são? Contar a verdade? Como contar algo inimaginável? Quem vai querer escutar? É conhecida a preocupação entre os sobreviventes, tanto do genocídio ocorrido na Segunda Guerra como em outras experiências de horror, de que não haverá quem queira escutá-los, ou pior, quem acreditará no que contarão. Para Semprun, haverá uma quantidade enorme de testemunhos, das mais variadas formas e que, provavelmente, existirão documentos e outros tipos de materiais que servirão para análises de historiadores e outros especialistas. Tudo poderá ter algum status de verdade, diz ele, muita coisa poderá ser transmitida, mas não o essencial da experiência. Extraio do seu belíssimo livro A Escrita ou a Vida, testemunho da sua experiência no campo de concentração, dois trechos em que o autor fala dessa impossibilidade e a partir deles, teço algumas questões: Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade... salvo que faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica jamais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja... [...] O outro tipo de compreensão, a verdade essencial da experiência não é transmissível... Ou melhor, só o é pela escrita literária... (SEMPRUN, 1995, p. 126). Como contar uma verdade pouco crível, como suscitar a imaginação do inimaginável, a não ser elaborando, trabalhando a realidade, pondo-a em perspectiva? Com um pouco de artificio, portanto! (SEMPRUN, 1995, pp. 125-126). Para começar pergunto o que é um testemunho? Quais as diferenças e aproximações possíveis entre testemunho literário e os testemunhos dos dispositivos analíticos? Segundo Ginzburg (2013), o conceito de testemunho tem procedência jurídica e diz respeito ao lugar dado à voz que toma posição em um processo, em situação de impasse, de dúvida. Uma fala em tensão com a realidade em que a hegemonia de uma verdade singular está em conflito. É nesse sentido que os testemunhos estão associados ao trauma, já que se trata de recordar, repetir e elaborar o encontro com o horror, com o real.
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Em um debate sobre Literatura de Testemunho no Fórum do Campo Lacaniano São Paulo, Prates Pacheco (2011) discute a aproximação entre a literatura de testemunho com o testemunho do passe e alguns inconvenientes dessa vizinhança. Em primeiro lugar, Prates Pacheco (Ibid.) fala que o testemunho do passe não é literatura e, de certa forma, eu acrescentaria nem a experiência de análise. Em segundo lugar, ela explica não ser possível comparar o posicionamento de quem foi submetido involuntariamente a uma prisão, tortura ou qualquer outro crime contra a humanidade com aquele que se submete a uma análise. Além disso, diz que o testemunho daqueles que foram vítimas é da ordem da necessidade, uma via política para dar voz àqueles que foram excluídos. Ao ganhar lugar e destinatário, esta voz que testemunha tem a ocasião de quebrar a totalidade da história construída pelos discursos hegemônicos. Como diz Ginzburg (2013): “O fato de que a voz testemunhal não se refere a uma generalidade universalizante, mas a uma posição específica, situa seu interesse político, em contrariedade ao autoritarismo”. Este testemunho que sobrevive traz as marcas das vozes daqueles que não sobreviveram. Aqui, talvez caiba uma questão: apesar das diferenças existentes entre testemunho literário e o dispositivo de análise, oferecer um lugar para escuta a partir da ética psicanalítica não seria também um ato político? Em um artigo publicado na revista A Peste, sobre a relação do corpo com a contemporaneidade, Ramos (2010) diz que podemos entender o corpo como um objeto que concentra história. Corpo que, em parte seria civilizado, conformado pelos discursos sociais e que, em outra parte, em uma relação dialética, estaria um corpo sintomático, que não é modelo e nem modelado pelos ideais dos discursos sociais. Por ser um corpo sintomático, que goza de modo não civilizado, seria uma espécie de corpo dissidente, como Ramos (2010, p. 325) explica: Se o contemporâneo no corpo, a história no corpo pode ser apreendida pelos gozos estandardizados, por mais alienantes, criticáveis e estranhos que nos pareçam, o corpo sintomático, os gozos não estandardizados, não teriam um valor político na medida em que constituem uma dissidência? Se há um corpo que faz resistência aos discursos contemporâneos de conformar aos dispositivos farmacológicos e educativos que sugestionam e calam, não é porque há algo a se falar, a testemunhar? Se há tentativas de fazer calar, de apagar e esquecer a distensão de espaço, tempo e escuta proporcionada pelo discurso do analista, isso não é um ato político? Como diz o autor: “[...] não haveria, na escuta do corpo sintomático, um ato político de abertura de um devir?” (RAMOS, 2010, p. 325). De qualquer maneira, essa seria uma forma de pensar a proximidade da literatura de testemunho com o dispositivo analítico, mas, talvez, o ponto mais in-
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conveniente dessa aproximação, como levanta Prates Pacheco (no prelo), seja a diferença radical da posição do sujeito que testemunha por meio da literatura, daquele que testemunha no dispositivo analítico e/ou do passe. É que nas experiências desumanizantes das torturas ou dos campos de concentração, como ela diz: “O sentido cai, porque antes cai o homem” (PRATES PACHECO, 2011). Aliás, é preciso lembrar que um dos grandes projetos criados por Hitler, nomeado de “a solução final”, tinha como meta eliminar não só os judeus, mas acabar com todos os rastros humanos da sua existência (GAGNEBIN, 2009). Para Agamben (2008/2013), o campo de concentração, de Auschwitz em especial, foi um lugar de um experimento ainda não imaginado. Daí muitos testemunhos de sobreviventes recorrentemente nomearem esta experiência de “inimaginável”. Uma experiência devastadora em que o impossível é introduzido à força no real (AGAMBEN, 2008/2013). Ou, como explica Duba (2010, p. 41), trata-se de um acontecimento inédito que com efeitos de trauma, marca uma ruptura que explode os limites da representação: “Ou, em outras palavras, a literatura que se tornou possível a partir daí teve que incluir a representação de um real irredutível, o que se traduz por uma defasagem sempre presente na própria narrativa entre o acontecimento e o discurso”. Diferente disso, em uma análise, a interpretação inclui o sem sentido, o Real, para fazer cair a consistência da significação e não para fazer cair o homem. Aponta-se o sem sentido para fazer emergir justamente os traços, os rastros mais radicais da singularidade do sujeito humano, ao mesmo tempo em que evidencia que sua sujeição ao Outro é voluntária (PRATES PACHECO, 2011). Contudo, se existe alguma outra possibilidade de aproximação entre a psicanálise e a literatura de testemunho, talvez possamos dizer que é na importância dada por ambos à construção de um saber sobre a experiência. É só no discurso do analista que o saber está no lugar da verdade, e isso não pode passar despercebido, pois denota uma posição ética – a de que o saber construído pelo analisante tem valor de verdade, independente se corresponde ou não à realidade: “Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante – é justamente assim que recebe essa liberdade –, é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre, isto é, como um estouvado [...]” (LACAN 1969/1970-1992, p. 35). É o discurso do analista que institui, como diz Lacan (Ibid., p. 31), a histerização do discurso: “Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica”. Condição artificial que institui uma circulação entre os discursos, marcando o retorno do sujeito ao lugar de agente da sua própria história. Da mesma forma, a literatura de testemunho parece produzir também certa condição para a elaboração sobre um saber em uma experiência, sem a pretensão de sobrescrever uma verdade por outra indiscutível. Não é porque os testemunhos
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relativizem uma verdade histórica totalizante que significa que eles se tornem equivalentes, pois a escrita de cada testemunho carrega rastros singulares. Portanto, o testemunho literário, assim como a experiência psicanalítica, viabiliza diferentes versões que incluem aquilo que outros discursos totalitários tentam excluir, ao mesmo tempo em que situam a verdade apenas como um semi-dizer: “ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além da sua metade, não há nada a dizer.” (Ibid., p. 49). Neste sentido, como pontua Prates Pacheco (2011), a literatura de testemunho estaria mais do lado da experiência de análise do que exatamente a do passe: “Mais do lado do que Lacan chama de hystoire, historisterização, ou seja, uma experiência que institui um sujeito dividido no lugar de agente” (PRATES PACHECO, 2011). A questão é que nem todos os testemunhos desafiam o impossível de dizer. Muitos tendem à descrição e insistem de alguma maneira em falar a verdade do que se passou. É justamente neste ponto, da sua relação com a verdade, que o testemunho de Semprun (1995), a meu ver, diferencia-se; ele, já de saída, contou com o impossível. Seu livro “A Escrita ou a Vida” é mais do que o testemunho da sua experiência no campo de concentração. Neste livro ele relata o que pôde fazer com sua experiência no campo de concentração: “Não é um livro sobre ‘a coisa’, mas sim sobre o que ele pode fazer com ‘a coisa’, para permanecer vivo” (PRATES PACHECO, 2011). Há algo de inédito, de criação, de invenção. E este inédito não tem relação com o “inimaginável” da experiência do campo de concentração, como citamos antes. E sim, com a invenção singular, que criou para se separar do lugar de objeto que ocupava para o Outro. Invenção para dar conta de fabricar vida após tanta morte, para sair do sonho/pesadelo que a realidade havia se tornado após sua libertação. “O sonho da morte, única realidade de uma vida que, ela mesma, não passa de um sonho. [...] Nada era verdade a não ser o campo de concentração, é isso” (SEMPRUN, 1995, p. 237). Retomo sua fala: “Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade... salvo que faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica jamais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja” (Ibid., p. 126). É disparatado que na discussão com os repatriados já soubesse de antemão que a experiência que anteriormente vivera não era passível de ser transmitida, a não ser a partir de certa perspectiva, usando um pouco de artificio. Em seu testemunho, ele diz não ter conseguido isso de imediato: “Mas meu plano afigurava-se irrealizável, pelo menos no imediato e na sua totalidade sistemática. A memória de Buchenwald era demasiado densa, demasiado implacável, para que eu conseguisse alcançar logo de saída uma forma literária tão depurada, tão abstrata” (Ibid., p. 158). Ele fala em seu livro que precisou abrir mão por um bom tempo da ideia de escrever. Por um lado, precisava da escrita para fabricar vida após tanta morte,
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mas, por outro, deixar passar; deixar passar através da escrita naquele momento afigurava-se para ele um luto inacabado, uma passagem temporal radical demais, suicida. Daí o nome do livro A Escrita ou a Vida (Ibid., p. 162): Nada mais possuo a não ser minha morte, minha experiência da morte, para contar minha vida, expressá-la, levá-la adiante. Tenho que fabricar vida com toda essa morte. E a melhor maneira de conseguir é a escrita. Ora, esta me leva a morte, aí me tranca, aí me asfixia. Estou nesse ponto: só posso viver assumindo essa morte pela escrita, mas a escrita me impede literalmente de viver. Na condição em que descreve, escolhe a vida e abandona a escrita por mais de quinze anos. Algo que desperta a atenção é que durante esse tempo em que se afastou da escrita Semprun (1995) carregou a carta que havia ganhado, logo após a sua libertação da amiga Claude-Edmonde Magny1 sobre o poder de escrever: Tinha de escolher entre a escrita e a vida, escolhi esta. Escolhi uma longa cura de afasia, de amnésia deliberada, para sobreviver. E era nesse trabalho de retorno à vida, de luto da escrita que havia me afastado de Claude-Edmonde Magny, é fácil compreender. Sua Carta sobre o poder de escrever, que me acompanhava por todo canto, desde 1947, mesmo nas minhas viagens clandestinas, era o único vínculo enigmático, frágil, com aquele que eu gostaria de ter sido, um escritor. Comigo mesmo, em resumo, com a parte de mim mais autêntica embora frustrada (SEMPRUN, 1995, pp. 191-192). Nesta carta, a amiga lhe dizia que para escrever é preciso deixar-se morrer, pois a literatura só é possível ao término de uma ascese, de algum descolamento: um se desgarrar de si (SEMPRUN, 1995). A escrita só pôde ser retomada, dezenove anos depois da sua libertação do campo, especificamente em 1964, com a publicação do livro A Grande Viagem, mas não sem o retorno de muita angústia: Eu vivia na imortalidade desenvolta da assombração. Mais tarde, essa sensação se modificou, quando publiquei A grande viagem. A partir daí, a morte ainda estava no passado, mas este deixara de se afastar, de se dissipar. Muito pelo contrário, voltava a ser presente. Eu começava a remontar o curso da minha vida a essa fonte, esse nada originário (Ibid., p. 241).
1 Esta carta, transformada em livro, foi publicada em 1947 sob o título “Carta sobre o poder de escrever”, pela editora Seghers.
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Livro que ele escolhe escrever em sua segunda língua, o francês, por ser uma língua de exílio que lhe permitiu certo afastamento e possibilitou esta primeira publicação (SEMPRUN, 1995). Importante notar que devido à censura de Franco a publicação deste livro foi proibida e sua versão em espanhol feita no México. Seu editor, com o intuito de cumprir o ritual de entrega ao autor deste livro premiado, mandou fabricar um exemplar único com capa e formato tal qual a versão mexicana, mas com as folhas internas brancas “virgens de qualquer impressão” (Ibid., p. 263). Ao folhear o livro, com suas páginas brancas, Semprun conta que foi tomado, naquele “instante único”, pela lembrança do dia 1o de maio de 1945, quando uma borrasca de neve caía sobre as bandeiras vermelhas, no momento exato da sua libertação: “Naquele instante, naquele primeiro dia da vida de volta, a neve turbilhonante parecia me lembrar que seria, para sempre, a presença da morte” (Ibid., p. 264). Explica que foi como se a “neve de antigamente” tivesse caído de novo sobre sua vida e apagado os traços impressos do livro, segundo o qual havia escrito “numa sentada”: Era um sinal fácil de interpretar, uma lição fácil de tirar: eu ainda não havia conquistado nada. Esse livro, que levei quase vinte anos para poder escrever, desaparecia de novo, mal terminado. Teria de recomeçá-lo: tarefa interminável, decerto, essa de transcrição da experiência da morte (Ibid., p. 264). A neve, a antiga neve que naquele instante recaía sobre as páginas brancas do livro, não cobria qualquer texto. Não cobria uma língua qualquer: “Por certo, ao anular o texto de meu romance na sua língua materna, a censura franquista limitou-se a redobrar um efeito do real. Pois não escrevi A grande viagem na minha língua materna” (Ibid., p. 265). Contudo, conta que nesta época vivia em Madri a maior parte do tempo e aí reencontrava constantemente a sua língua de infância, e junto dela a cumplicidade, a paixão, a desconfiança, base para a intimidade para o desenvolvimento da escrita. Ele sabia que a questão não tinha a ver com o simples reencontro com a língua espanhola após o tempo de exílio na França. Entende que em parte foi obrigado a fazer isso devido às circunstâncias políticas do exílio, porém acha que este não era o único motivo de sua escolha pela língua francesa: Quantos espanhóis recusaram a língua do exílio? Conservaram seu sotaque, sua estrangeirice linguística, na esperança patética, insensata, de permanecerem eles mesmos? Quer dizer, outros? Limitaram deliberadamente o emprego correto do francês a fins instrumentais? Quanto a mim, eu havia escolhido o francês, língua de exílio, como uma outra língua materna, originária. Escolhi-me novas origens. Fiz do exílio uma pátria (Ibid., p. 266).
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Conta que sempre pensava nisso, especialmente quando, vez ou outra, lia a carta da amiga Claude-Edmonde Magny. Para ele, quando “o poder de escrever” lhe fosse restituído, poderia escolher sua língua materna (SEMPRUN, 1995). Talvez aqui seja preciso lembrar que o exílio não se resume à passagem de um país para outro: “Exilar-se é efetivamente um acontecimento”2 (BERTA, 2007). E apesar de tema recorrente na literatura e poesia, é uma experiência radical que transforma a relação do sujeito com o mundo (KOLTAI, 2005). Assim, além da questão da língua materna e apesar de o livro A grande viagem ser literatura baseada na experiência do campo de concentração, havia um tempo, o tempo presente do campo, da memória, que não era possível acessar naquele momento: O meu problema, que, todavia, não é técnico, é moral, é que não consigo, pela escrita, penetrar no presente do campo, contá-lo no presente... Como se houvesse uma proibição da figuração do presente... Assim, em todos os meus rascunhos a coisa começa antes, ou depois, ou em torno de, jamais começa no campo... E quando afinal chego lá, quando ali estou, a escrita fica bloqueada... Invade-me a angústia, torno a cair no vazio, abandono (SEMPRUN, 1995, p. 164). Para ele não bastava uma estrutura romanesca em terceira pessoa ou mesmo um simples depoimento enumerador dos sofrimentos e horrores. Era preciso alcançar, como ele diz, um eu da narração, nutrido com sua experiência, mas que vai para além dela “capaz de nela inserir o imaginário, a ficção... Uma ficção que seria tão esclarecedora quanto a verdade, sem dúvida” (Ibid., p. 163). “[...] Pelo artificio da obra de arte, é claro!” (Ibid., p. 126). Assim, em 1995, cinquenta anos depois, no desafio, no fio do impossível de dizer, ele publica o livro A Escrita ou a Vida, onde testemunha sobre sua experiência no campo de concentração e mais, sobre o que pôde fazer com o horror do sem sentido. De acordo com Fingermann (2005), alguns autores – incluo o nome de Semprun – podem ser chamados de Passadores do pior, porque seus textos transmitem o inominável cada qual a seu estilo e maneira singular: [...] porque os textos que produzem, possibilitam encontros inéditos, e ao mesmo tempo obscuramente familiares; encontros ainda inauditos até o exato momento em que tropeçamos numa frase, numa entonação, num tropo, que muda nossa vida. [...] Muitos são os textos arrebatadores que des-cobrem nossa ausên2 Para aprofundamento das questões a respeito do exílio, remeto às pesquisas sobre as relações do exílio e do luto, realizadas por Sandra Letícia Berta, especialmente na sua dissertação de mestrado “O exílio: vicissitudes do luto – reflexões sobre o exílio político dos argentinos” (1976-1983).
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cia, e nos fazem ceder à tentação de se atingir aí onde não estava: Duras, Beckett, Blanchot, Lispector, Levi. E outros também (FINGERMANN, 2005, p. 95). Não se trata de extrair do texto interpretações ou fazer uma psicanálise aplicada ao texto literário. Para Fingermann (2005), esta questão entre os literários e psicanalistas está mais que esclarecida. Trata-se antes de tentar aprender a trilha, o caminho realizado pelos artistas: Não é para nós uma questão apenas estética, mas também interesseira e ética. Interessa saber como orientar as análises para que no fim se reduza o texto da neurose à estrutura do conto – como diz Lacan. Interessa almejar que pela graça do desejo do analista que corta, talha e cala, a neurose ao final possa se deduzir e se reduzir ao matema e ao poema (FINGERMANN, 2005, p. 97). É surpreendente que estes sujeitos, dada a mesma estrutura neurótica – “[...] a partir da mesma origem da falta do objeto e dos mesmos recursos pulsionais” (Ibid., p. 97) – consigam criar obras singulares, cujo efeito enlaça: “Produzindo seu mais íntimo/êxtimo, a letra fisga o outro no mais íntimo/êxtimo. A letra, litter, literal, litoral – que desenha ‘a borda do furo no saber’, a letra, se for letra, ‘chega sempre a seu destino’: afeta, ativa, atua, ‘provoca em nós emoções das quais não nos acharíamos capazes’”. Gagnebin (2009, p. 55) no artigo Memória, História, Testemunho diz que algo só poderá ser transmitido se a realidade for trabalhada e, para que esse tipo de testemunho possa acontecer, é preciso certa narrativa não linear da história: “Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras”. Para essa autora, é Walter Benjamin quem fala de outra forma de narrar e que parece muito com esta forma de testemunho que inclui a dimensão da perspectiva e do artificio: “uma narração nas ruínas da narrativa” (GAGNEBIN, 2009, p. 53). Uma espécie de “narrador sucateiro”, catador de lixo, de restos, detritos, que apreende apanhar e incluir em seu testemunho; “aquilo que é deixado de lado como algo que não tem importância, nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer” (Ibid., 2009). “Só há discurso de semblante”, afirma Lacan (1971/2009, p. 136), sendo o semblante o lugar de agente dentro dos discursos que interpreta fundamentalmente a partir da função fálica. Interpretação que se apoia na verdade e que insiste na possibilidade de desvelá-la, de alcançá-la tal como o sujeito neurótico e sua relação com o falo. Mas, se toda interpretação vem do semblante, o que faz com que
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alguns testemunhos, obras de arte, poemas, transmitam algo para além da significação? O que este narrador sucateiro sabe fazer que alguns discursos não sabem? O que ele sabe interpretar da sua experiência, tal como Semprun soube desafiar e incluir na transmissão de seu testemunho? É exatamente essa pergunta que Lacan parece estar procurando responder. O semblante se apoia na verdade, só pode haver semblante no regime da verdade. Mas há um testemunho, diz Lacan (Ibid., p. 107), que é feito “sem nenhum recurso ao conteúdo”. Um semblante que conta com seu fracasso de representação, não para revelar a verdade, mas, sim, algo do sem sentido para fazer ressoar alguma coisa do significante. Depende, portanto, de ocupar um lugar onde o semblante falha. Nas palavras de Fingermann (2010, p. 343): “Instalar o objeto pequeno a no lugar do semblante [semblant], sentido em branco [sens blanc], é não produzi-lo nem reproduzi-lo como verdadeiro, é o pôr em causa, como hiância, furo, oco em que ressoa o falasser [parlêtre] aquém da tagarelice do sujeito”. Uma virada, como diz Lacan (Ibid., p. 113), entre centro e ausência, entre saber e gozo, que só se consegue por um embalo diferente: “que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que o traça (raye)”. Conforme destacam Caldas e Barros (2012), Lacan demonstra que todo discurso é artificio significante e que de fato o Real não se reduz à significação, porém é sensível aos efeitos de escrita, assim como na matemática que tem sua eficiência, mas é desprovida de sentido. O mesmo artifício, o mesmo material serve para construir algum sentido (semblante) e por não aderir totalmente a ele, deixa restar algo de enigmático, que pode indicar o real: Este discurso, por ser agenciado pelo objeto, traz o estranhamento diante do real do escritor, indicando que, mesmo como agente, sua posição de sujeito está mais próxima possível da posição feminina na qual experimentou um gozo indizível. Não importa se se trata de um escritor homem ou mulher. Trata-se de escrever a partir de uma experiência na qual faltou medida ou controle sobre o gozo (p. 197). Restos que, segundo as autoras, apontam para o que não tem nome, para aquilo que escapa a todos os ditos. Explicitando que transmitem um enigma, causam desejo. Mostram através do exercício sublimado de escrever o real que não se escreve, o que sabem fazer com o impossível (CALDAS; BARROS, 2012). Um saber fazer que rompe o semblante além das significações produzidas pelas leis do significante: “A letra parte do pior, da falta, para contorná-lo, produzindo esse contorno que tanto baliza quanto assinala. A letra está para além da angústia; ela faz sinthoma, uma solução que não ignora o pior: antes o trança e trespassa” (FINGERMANN, 2005, p. 98).
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Para Fingermann (2005, p. 105): “Esta é a lição da literatura para a psicanálise: no fim, uma psicanálise, passando pelo pior, pode fazer o melhor para o ser humano: transformá-lo em passador, rumo ao pior sem perder o humor”. Um narrador que já se sabe sucateiro e que faz uso disso para deixar passar. Deixa passar algo do impossível, do inenarrável, como diz Semprun, por meio de um instante contingente, a partir de certa perspectiva, com um pouco de artificio. Sem isso os testemunhos permaneceriam em uma contínua tentativa de tradução sobre o ocorrido, que busca, através da linguagem, dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro. Como diz Semprun (1995, p. 164): “Restarão os livros. Os romances, de preferência. Os relatos literários, ao menos, que ultrapassarão o simples testemunho, que darão para imaginar, ainda que não deem para ver”. Quanto ao exemplar único do livro A grande viagem com suas páginas brancas: “(...) permaneceram brancas, virgens de toda escrita. Ainda disponíveis, portanto. Gosto do seu augúrio e do seu símbolo: que esse livro ainda esteja por ser escrito, que essa tarefa seja infinita, essa palavra, inesgotável” (Ibid., p. 267).
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A verdade ou o testemunho
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resumo Este artigo tem como objetivo examinar, a partir do livro A Escrita ou a Vida, de Jorge Semprun, algumas relações entre os testemunhos literários e os testemunhos dados nos dispositivos psicanalíticos: a experiência da análise e a do passe. Também pretende percorrer algumas noções de verdade e testemunho a partir do conceito de semblante, apresentado especialmente por Lacan em O Seminário, Livro 18: De um discurso que não fosse semblante.
palavras-chave
Testemunho, verdade, semblante.
abstract
This article is intended to examine, from the book Literature or Life by Jorge Semprun, relations between the literary testimony and the testimony given in psychoanalytic devices: the experience of analysis (psychoanalysis) and the procedure of the Pass. It is also an aim to look at some notions of truth and testimony from the concept of Semblant, especially presented by Lacan in The Seminar Book XVIII: On a Discourse that might not be a Semblance.
keywords
Testimony, truth, semblant.
recebido 15/02/2014
aprovado 22/08/2014
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Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica 1
Martín Alomo I. O sujeito do cogito À guisa de introdução, começarei com um desenvolvimento que visa situar as particularidades do surgimento do cogito cartesiano. Para isso, interessa-me situar a noção de verdade que enquadra dito surgimento, contrapondo-a a outra distinta. Para ingressar nesse desenvolvimento, utilizaremos como porta de entrada a diferenciação entre a pólis helênica e a civitas romana. Civilização, isto é, o que resulta da civilidade romana, da civitas, articula-se com o discurso da modernidade de modo particular. Podemos constatar esse modo de articulação entre civitas e modernidade na forma particular de conceitualização da verdade.2 Não se trata da verdade como alètheia, ao modo da pólis grega, mas da verdade como adaequatio inter res et intellectus, ou seja, verdade como adequação entre o pensamento e a coisa.3 A concepção grega de verdade, que Heidegger situa em Heráclito e Parmênides, corresponde à alètheia, ao ocultamento-desocultamento do ser. Movimento alternante que propõe o surgimento do ser no des-ocultamento, na presença, mesmo que de modo inapreensível, pelo menos de forma direta ao pensamento, já que sempre, em algum momento, a a usência produzida pelo esquecimento, pela imersão novamente do ser nas águas do rio do esquecimento, retorna sempre evanescentes os efeitos de verdade.4 Por sua vez, na civitas romana, o sujeito agente da civilização funda-se na ilusão, mesmo que vivida como a mais clara realidade, da possibilidade de aceder a seus objetos, às coisas, a partir do pensamento. Nesse contexto, precisamente, tem lugar o movimento produzido por Descartes. De tanto pensar, de esgotar inclusive à deriva da dúvida, chega a um primeiro ponto de certeza: posso duvi1 Trabalho apresentado no Foro Analítico del Río de la Plata em 14 de novembro de 2012. 2 Cf. a respeito El Lógos o la razón desde Freud, em López (2011), especialmente a pp. 44-45. 3 Cf. Berger (1953/1981). 4 Cf. La idea de imperio, em Benoist (1993/2006).
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dar de muitas coisas, dos meus sentidos, das minhas ideias, contudo, não posso duvidar do fato de que estou duvidando. Para Descartes, esse ponto de chegada marca um deter da hesitação e a fundação de um novo sujeito. Esse sujeito moderno agora tem a certeza de ser, a qual lhe vem do fato de que pensa e que, além disso, pensa o pensado, ou seja, não tem dúvidas sobre o objeto em que pensou: esse sujeito, articulado à noção de verdade romana, que postula a adequação entre o pensamento e a coisa, é sujeito dos objetos de conhecimento que manipula. Finalmente, constituiu-se um sujeito transcendente. Heidegger assinala que isso não se deu de um dia para outro. O movimento cartesiano vinha sendo preparado durante centenas de anos. Descartes é, simplesmente, quem dá o passo decisivo. O primeiro ponto que me interessa deixar assinalado então é o seguinte: o sujeito da civilização, isto é, o sujeito cartesiano, comunica-se com seus objetos em uma relação contínua, constituindo-se no agente do vínculo. A instauração firme de um sujeito transcendente. Esse sujeito cartesiano, que Lacan vinculará com o sujeito da psicanálise em mais de uma oportunidade, constitui-se no recorte de seu objeto ao qual transcende, ou seja, um sujeito que fica por fora de seus enunciados. Um sujeito sem atributos, um sujeito que simplesmente é, sem mais. Esse sujeito é o da ciência moderna. Um sujeito deduzido do fato de que duvida, de que pensa. Ao ser dedução, também é, poderíamos dizer, um sujeito-quociente e, nesse sentido, um sujeito dividido, mesmo que isso seja adiantar-nos muito, já que nem Descartes nem a ciência propõem um sujeito dividido. E, finalmente, segundo assinala Lacan (1965/1998) em A ciência e a verdade, esse sujeito cartesiano que é o sujeito da ciência, é aquele de que se ocupa a psicanálise. Para compreender essa afirmação, devemos avançar no problema que nos propusemos elucidar.5 Uma primeira aproximação: o Cogito, ergo sum é analisado por Lacan na duplicidade do eu duplicado que interessa: há um eu penso e há também um eu sou. Ambos, de modo algum, coincidem. Podemos seguir os desdobramentos lacanianos sobre o assunto nos seminários Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, A lógica do fantasma e O ato analítico. Sabemos que o pensamento, em termos cartesianos, é um pensamento tão consciente como o sujeito que os pensa e que, evidentemente, isso difere dos unbevussten Gedanken, os pensamentos freudianos, inconscientes, que pensam sem se saber pensados, sem consentimento do eu. Todavia, ainda assim, há no sujeito cartesiano, sujeito-quociente, uma divisão que, com Heidegger, situaria em termos do esquecimento do ser. 5 Em seu livro Para una izquierda lacaniana, Jorge Alemán desenvolve amplamente esse ponto. (Gramma, Bs. As., 2009).
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Por um lado, trata-se de um sujeito que esquece, no sentido mais radical do termo, um sujeito que ignora sua qualidade de ser pura dedução lógica dos elementos do pensamento. Por outro, ignora também sua qualidade de ser esse objeto ao qual fica confinado pelo próprio pensar. O sujeito da ciência funda-se nessas duas ignorâncias radicais, poderia-se dizer: uma, sua qualidade de deduzido; e outra, sua qualidade de ser o objeto no qual se encontra lançado. Essa dupla ignorância, esquecimento do ser radical, funda a consistência do discurso científico articulado ao discurso da civilização moderna. “O homem do tecnocapitalismo esqueceu o ser” (HEIDEGGER, 1961/2000, p. 121). Escreve Heidegger em Nietzsche – nem bem Descartes introduziu a certeza do sujeito, o capitalismo assumiu que tal sujeito era o próprio ser e todo o ente deveria submeter-se a ele. Quanto ao modo de laço capitalista, Heidegger considera que o capitalismo, enquanto sistema globalizador, é um sistema vinculante. Diferente de um laço discursivo, que vincula os seres falantes, o capitalismo como sistema vincula as mercadorias a seus consumidores. Nesse sistema, o Dasein, em sua qualidade de aberto ao mundo, cai no mundo do inautêntico, já que as produções do capitalismo são produções de ninguém, produções em série que propiciam a homogenização, como se qualquer objeto pudesse adequar-se à realidade de qualquer Dasein (Ibid., p. 121 e seg.). E, em relação a Descartes, continua Heidegger: “sua tarefa foi a de fundar o fundamento metafísico para a liberação do homem à nova liberdade enquanto legislação segura de si mesma” (Ibid., p. 123). Quer dizer, situar seu fundamento no cogito, e já não em Deus.
II. A lei férrea Interessa-me revisar aqui a noção de “lei férrea” mencionada por Lacan em pelo menos dois lugares de sua obra escrita. Interessei-me por essa questão, pois vários colegas referem-se à lei férrea do discurso capitalista como uma determinação inevitável à qual nos submete a época. Primeiramente, encontrei a seguinte referência em A agressividade em psicanálise: Antes dele [Darwin], no entanto, Hegel havia fornecido a teoria perene da função própria da agressividade na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea da nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Escravo que ele deduziu todo o progresso subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo surgir dessas crises as sínteses que representam as formas mais elevadas do status da pessoa no Ocidente, do estoico ao cristão, e até ao futuro cidadão do Estado Universal (LACAN, 1948/1998, p. 123).
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Aqui temos a lei férrea, remetida por Lacan, à dialética do Senhor e do Escravo. Trata-se da lei férrea, então, enquanto lei de funcionamento de uma lógica específica, a do Senhor e a do Escravo, nesse caso, que regula os laços entre os indivíduos. Porém, em outro de seus escritos, mais precisamente em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), encontramos outro apontamento que especifica mais a questão em relação ao tema que nos convoca. Na parte IV: “Como agir com seu ser”, Lacan envolve-se em uma discussão sobre a identificação ao eu do analista no final de análise, a qual pode ser lida em elocubrações de alguns autores ingleses. Daí deriva a questão do problema da cessão do objeto na análise: É que esses objetos, parciais ou não, mas seguramente significantes – o seio, o excremento, o falo –, o sujeito decerto os ganha ou os perde, é destruído por eles ou os preserva, mas, acima de tudo, ele é esses objetos, conforme o lugar em que eles funcionem em sua fantasia fundamental, e esse modo de identificação só faz mostrar a patologia da propensão a que é impelido o sujeito num mundo em que suas necessidades são reduzidas a valores de troca, só encontrando essa mesma propensão sua possibilidade radical pela mortificação que o significante impõe à sua vida numerando-a. Ao que parece, o psicanalista, simplesmente para ajudar o sujeito, deveria estar a salvo dessa patologia, que, como vemos, não em nada menos do que em uma lei férrea (LACAN, 1958/1998, p. 620). Aqui a questão fica um pouco mais clara. A lei férrea, então considerada nos termos de Lacan, é a lei do significante. Nela, o sujeito está condenado a contar como um. Não só como um efeito, enquanto efeito de sujeito, mas também como um objeto, já que, enquanto tal, como objeto, entra em jogo no laço social, em que – cito – “suas necessidades estão reduzidas a valores de troca”. Até aqui vamos começando a colocar a questão. O sujeito está submetido à lei férrea do significante e conta como um no comércio social, no qual os objetos estão submetidos a uma transação regulada por valores de troca. É notável como nós, enquanto analistas, também estamos tomados por essa lei férrea, não estamos fora dela. Ainda mais: em O avesso da psicanálise, Lacan situa precisamente o lugar da latusa, esse lugar impossível, como aquele que seria esperado que o analista ocupasse. Mas, antes de desenvolver esse ponto, proponho-lhes um passeio por Marx.
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III. Marx, o fetichismo da mercadoria O tesouro capturado fora da Europa, diretamente por pilhagem, escravização, assassinato seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em capital (MARX, 1867/1992, p. 891). Essa passagem está no capítulo XXIV de O capital. Não desenvolverei o capítulo. Simplesmente assinalo um trecho, porque me parece bastante explicativo do que segue em seu desenvolvimento: aquilo de que são espoliados alguns, é capitalizado por outros. Alguns parágrafos adiante, com a seguinte sentença, conclui: “Se o dinheiro, segundo Augier, ‘veio ao mundo com manchas naturais de sangue numa das faces’, o capital, da cabeça aos pés, também [vem] a escorrer sangue e porcaria por todos os poros” (MARX, 1867/1992, p. 950). Porém, antes ainda, logo após iniciado O capital, lemos um subtítulo surpreendente: “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Esse recorte, a partir da elucidação da constituição da mercadoria como tal, toca questões metafísicas, antropológicas, gnosiológicas e teológicas. Não é por acaso que foi esse o subtítulo em que Lacan reparou para delinear seu objeto a enquanto mais-de-gozar (Ibid., p. 87). Talvez, essa condição surpreendente do subtítulo deva-se ao objeto de que trata, ou seja, a mercadoria. Marx diz que a mercadoria representa algo trivial, cuja compreensão é imediata. “Sua análise demonstra que é um objeto endemoniado, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” (Ibid., p. 87). Objeto endemoniado, sutilezas metafísicas, argúcias teológicas! E prossegue Marx, desta vez mais claramente hegeliano: “É de claridade meridiana que o homem, mediante sua atividade, altera as formas naturais de modo a que lhe sejam úteis” (Ibid., loc. cit.). Trata-se do escravo hegeliano; é ele quem trabalha a matéria, quem altera as formas da natureza, dado que é ele, como assinala Hegel, que faz a história.6 Segundo Marx, isso se realiza tranformando a natureza em mercadorias. Poderia se dizer que esse homem laborioso do sistema capitalista transforma a simplicidade da natureza em algo endemoniado, metafísico e teológico. Segue Marx: Modifica-se a forma da madeira, por exemplo, quando se faz dela uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa comum, sensível. Porém, nem bem entra em cena como mercadoria, transmuta-se em sensorialmente supra-sensível (Ibid., loc. cit.). Ainda usando o exemplo da mesa, vemos que a madeira é transformada em 6 Cf. a seção “A” do capítulo IV do La fenomenología del espíritu, “La verdad de la certeza de sí mismo” (HEGEL, 1807/1981, p. 108 e seg.).
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mesa, a mesa continua sendo madeira, mas, ao ser levada ao mercado de bens, passa a ser mercadoria e já escapa ao sensível, torna-se um ente metafísico. Esse mercado em que habitam as mercadorias é um mundo vertiginoso, regido pela oferta e procura e onde outros oferecem suas mercadorias. Esses objetos “objetalizam” aqueles que creem ser seus possuidores. Esses, por sua vez, oferecem mercadorias cujo valor de uso não requerem, não necessitam. Aquele que oferece uma mesa não necessita de uma mesa, não a necessita enquanto valor de uso e, por isso mesmo, a oferece como valor de troca. Escreve Marx: “Todas as mercadorias são não-valores-de-uso para seus possuidores, valores de uso para seus não-possuidores. Por isso, têm que trocar de dono” (MARX, 1867/1992, pp. 104-105). É assim que se produz o intercâmbio das mercadorias que objetalizam seus possuidores. Sob essa perspectiva, ir a um shopping não é ir senão a um lugar onde as mercadorias, dali das vitrines, gritam-nos “goza, goza de mim, compre-me”. O shopping é um lugar em que as mercadorias estão em busca de novos possuidores -objeto. As mercadorias nos vociferam, nos seduzem, nos encantam, são objetos endemoniados, metafísicos, teológicos. Marx pergunta-se: de onde brota, então, o caráter enigmático que distingue o produto do trabalho nem bem assume a forma de mercadoria? E responde: “obviamente, dessa própria forma”. Fundamenta essa resposta no fato de que aquilo que dá valor à mercadoria é o tempo de trabalho que o homem dispensa para produzi-la. Mas, por sua vez, o valor fetichista da mercadoria está no fato de que sua própria forma vela o tempo de produção, mostrando somente seu caráter fascinante no mercado de consumo. Escreve Marx: “Os homens veem o caráter social de seu próprio trabalho como caracteres objetivos inerentes aos produtos do trabalho, como propriedades sociais naturais dessas coisas” (Ibid., loc. cit.). Os homens veem seu trabalho coisificado. Desaparece assim o caráter social do trabalho, coisificando-se, de modo intenso, seu valor em um objeto privilegiado: o dinheiro. Esse objeto representa o valor da mais-valia, extraída quase cirurgicamente do fator “tempo de produção” das mercadorias. Enquanto isso, “as mercadorias”, escreve Marx, “fazem-nos ver o mundo como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores”. E, mais adiante, prossegue: (…) o dinheiro é essa mercadoria à qual todas as outras mercadorias se remetem, o dinheiro é o equivalente geral das mercadorias. Mas é precisamente essa forma acabada do mundo das mercadorias, o dinheiro, que vela de fato, ao invés de revelar, o caráter social do trabalho (MARX, 1867/1992, pp. 104-105). “Em um mundo de objetos” – conclui Marx – “os homens tornam-se coisas e intercambiam coisas. Em um mundo configurado desse modo, é o objeto que determina o sujeito.”
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IV. O mundo das latusas Na aula XI de O avesso da psicanálise, Lacan retoma a questão do cogito nos termos dos Seminários 14 e 15, isto é, em relação ao objeto a. Mas, essa nova volta tem uma particularidade: encontra o objeto a, denominado agora mais-de-gozar, tomado no funcionamento dos discursos. E, para estabelecer uma continuidade com o comentado a propósito de Marx, citamos Lacan (1969-70/2002): “Com efeito, a partir desse discurso [o psicanalítico] não há senão um afeto, ou seja, o produto da tomada do ser falante num discurso, na medida em que esse discurso o determina como objeto” (p. 143). E, nessa nova volta ao cogito cartesiano, nessa aula a que me refiro, “Os sulcos da aletosfera”, Lacan deixa assinalado que o sujeito conta como um. Eu sou um, enquanto sou um que pensa. Inversamente a Heidegger, que escreve Cogito sum, com Lacan poderíamos escrever Sum cogito. Não um Penso sou, mas um Sou penso; justamente porque sou, penso, conto como um. “Eu penso logo: sou”, escreve Lacan, brincando com os termos cartesianos para sublinhar que o “sou” elide o “conto como um” que pensa. A esse pensamento, que procede por um método exaustivo, algorítmico, poderíamos dizer que há algo que lhe é inapreensível para seu cálculo, sempre resta um excesso: o objeto a. Esse ser que excede, esse objeto a minúsculo, podemos situá-lo no produto da ciência moderna. Com efeito, não deveríamos esquecer, de qualquer modo, que a característica de nossa ciência não é ter introduzido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas sim ter feito surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepção (LACAN, 1969-70/2002, p. 150). Seguindo essa linha de raciocínio, vemos que o discurso da ciência, articulado ao discurso do capitalismo, multiplica os novos objetos que se propõem como oferta de gozo à disposição dos consumidores. Nos termos de Marx, poderíamos evocar o mundo das mercadorias clamando por um possuidor. Porém, agora, mediante ciência e tecnologia, trata-se de mercadorias sofisticadas. Vivemos em um mundo povoado de gadgets, de bugigangas, de artigos ultramodernos que, em pouco tempo de existência, revelam sua condição de descartáveis. Basta para isso que, em poucos meses, esteja à venda um modelo ainda mais ultramoderno, fazendo com que a categoria de obsoleto faça ouvir a voz das novas mercadorias clamando por um possuidor-objeto que as compre. Se Marx considerava a mercadoria um objeto endemoniado, metafísico e teológico, Lacan vai dizer que as criações da ciência são feitas de insubstâncias. Trata-
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se da insubstância l’acosa, dirá ele. E, quase conversando com Marx, prossegue: “fato que altera completamente o sentido de nosso materialismo” (Ibid., p. 151). Estamos diante de uma mercadoria não só coisificada, mas também a-coisificada. A ciência, a partir do cálculo com o número, isto é, afastada da evidência de um materialismo sensorial, produz agora objetos insubstanciais, os quais não por isso são menos fascinantes e encantadores, pelo contrário. Do mesmo modo que para Marx a forma da mercadoria velava o caráter social do trabalho, as criações da ciência velam, diz Lacan, nos fazem esquecer que nós mesmos estamos determinados no discurso como objetos a. Possuidores-objeto das mercadorias tecnológicas que nos feminizam, pelo afeto feminizante que importa ao devir o objeto a. Esse efeito/afeto feminizante do a minúsculo pode ser palpado unicamente, comenta Lacan, quando se põe em andamento o discurso analítico. Somente nele, o sujeito pode encontrar-se, inesperadamente, como objeto passivo do discurso que o porta. Nesse campo em que a ciência “opercebe”, ou seja, em que opera/percebe coisas produzidas por ela mesma, mas inacessíveis aos sentidos naturais, estamos infestados de ondas, por exemplo. Ondas elétricas, ondas invisíveis, ondas satelitais. Lacan refere-se a esse campo como sendo o da “aletosfera”, em alusão à esfera da alètheia, o campo da verdade como o que torna presente o ser intermitentemente. Se alguns astronautas caminharam na lua – observa Lacan –, foi porque nunca saíram dos limites desta aletosfera. Lá, dentro desses limites, a voz humana, através dos microfones e alto-falantes, os mantinha aferrados à vida. A fina análise de Lacan continua; uma análise da mercadoria científico-tecnológica que o leva a encontrar a voz humana no interior das novas invenções. Essa análise distribui o que opercebe, a ciência que opera nesse novo campo determinado por forças suprassensíveis, e o operado. Isto é, o que opera e o operado. Assim como Marx dizia que o obejto determina o sujeito, Lacan distingue entre o que opercebe na aletosfera e o que é operado pelo que opercebe. Esse sujeito passivizado, convertido em a minúsculo, não descobre em absoluto sua verdade, conclui. A respeito do produto dessa operação científico-tecnológica, Lacan (1969-70/2002) diz: Vamos chamar isso de latusas. O mundo está cada vez mais povoado de latusas. Como isso parece lhes causar graça, vou escrevê-lo com a ortografia. Notarão que poderia tê-lo chamado de latusias. Teria ficado melhor com a ousia, esse particípio com tudo o que tem de ambíguo. (…) E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas (p. 153).
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Dentro dessas latusas, assinala, encontrarão vento. Elas estão cheias de vento: o vento da voz humana, afirma. A voz humana que lhes diz: gozem, gozem, comprem-me e gozem. A latusa é o angustiante e, justamente porque há latusa, é que podemos dizer que a angústia não é sem objeto, comenta Lacan. Sobre o analista, diz que o impossível é justamente que ocupe esse lugar, o lugar de latusa. Cito: “É no plano do impossível, como sabem, que defino o que é real. Se é real que haja o analista, isto se dá justamente porque é impossível. Isto faz parte da posição da latusa” (Ibid., p. 154). Interessa deter-me nesse ponto: o analista ocupando a posição impossível da latusa. A partir daqui, isolarei algumas linhas de pensamento que já estão presentes em tudo que foi exposto. Em primeiro lugar, a latusa obtém sua denominação por uma imersão radical no rio do esquecimento. Se a verdade da pólis é alètheia, uma alternância entre ocultamento e des-ocultamento do ser, a latusa da civitas capitalista remete puramente ao ocultamento no Leteo. O Leteo, para os gregos, era o rio do esquecimento. Daí que as latusas sejam um nome do esquecimento do ser. O ser ao qual nos referimos em psicanálise é o ser ao qual fica cominado o falante ao habitar um discurso, um ser de objeto. Esse objeto que se é fica soterrado no esquecimento, na ignorância. Sua consistência pode ser palpada unicamente no transcurso de uma análise, comenta Lacan, uma vez colocado em andamento o discurso analítico. Mas, também, o ser em psicanálise remete-nos à falta-a-ser e, nesse sentido, a latusa é um artefato dado nas mãos do sujeito para que ele não se encontre com a castração. Por essa via, temos a latusa a serviço do não querer saber sobre a castração. No que se refere aos distintos modos do não querer saber, cada uso de latusa será particular de cada sujeito. Essas latusas “esquecidas”, ou melhor, “esqueser”, de um ser feminino que remete ao objeto, a ousia, seriam, melhor, latousias enquanto esquecimento da essência – feminina – que foi ou algo assim, se tentamos traduzir mais ou menos o aoristo grego. Por outro lado, as latusas são os gadgets, assim o diz Lacan. “O mundo está povoado de gadgets, entenda-os como latusas.” Ele também diz que o analista deveria poder ocupar o lugar impossível de latusa. Com isso, está dizendo que as latusas não são somente gadgets. Ou, quiçá, que as latusas-gadgets assinalam um lugar disponível que, além dos gadgets, também poderia ser ocupado por outra coisa, eventualmente por um analista bem situado. Entendamos a proposta de Lacan não como um analista advindo mais uma latusa, e sim ocupando o lugar disponível que fica assinalado pela existência das latusas no mundo. A particularidade do analista situadao como objeto a no dispositivo serve-se desse lugar ao qual nos referíamos, assinalado pela existência das latusas, não para aprofundar a via do esquecimento do ser, mas para buscar a partir daí, como
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objeto tomado no campo transferencial do analisante, a coordenação com o sujeito desde dentro do dispositivo. Desse modo, o objeto-analista na transferência, com seus dois aspectos – semblante que propicia o trabalho de desciframento e presença real que angustia e detém as associações – pode intervir sobre a materialidade do insconsciente, em suas síncopes e, no momento em que cessam as associações, propiciar uma intervenção sobre a pulsão. Essa intervenção sobre a pulsão, situada na temporalidade pulsátil do inconsciente, torna manifesta a diferença radical entre a função da latusa e a do analista. A primeira apoia-se na satisfação da pulsão pela via do consumo, produzindo um curto-circuito na articulação de saber, que fica des-continuada pela produção de um mais-de-gozar, cuja verdade última encontra-se secretamente comandada por um significante mestre que outorga para si a verdade do gozo. A posição do analista, por sua vez, é bem diferente. Essa apoia-se nas escanções da temporalidade do inconsciente para situar em seus momentos de fechamento as manifestações da pulsão que, agora, entram em jogo na transferência com o analista. Esse, longe de pressuporse em seu discurso como possuidor da verdade sobre o gozo, trabalha com a base de um saber de reserva, que lhe confere sua posição na transferência. A latusa apaga o sujeito sob a figura do consumidor, constituindo uma religião do maisde-gozar e erigindo os objetos que ali advêm como sendo os bezerros de ouro de nossa época. O analista, ao contrário, serve-se da posição de objeto a como causa de desejo para escutar o “mais... quero mais...” que o mais-de-gozar torna presente, mas não para satisfazer a pulsão com um objeto adequado à demanda de consumo, e sim para fazer lugar, no sujeito, à emergência – leia-se produção – dos significantes mestres que comandam e comandaram sua existência. Creio que esse ponto é de grande interesse clínico para pensar as novas particularidades da subjetividade da época em que estamos na nossa clínica.
Comentários finais Se o lugar de latusa pode ser ocupado também por algo que não é um gadget, ou seja, por algo que não é um artefato tecnológico como por exemplo, um analista, isso nos permite abrir o jogo a um campo mais amplo, em que as latusas que pululam no mercado não são somente artigos tecnológicos. Acredito que essa linha de pensamento leva-nos a ampliar o horizonte no que diz respeito àquilo que costumamos chamar de patologias do consumo, lugar-comum ao qual acabamos referindo-nos cada vez que tentamos dizer algo sobre as patologias de nossa época. Se é certo que a anorexia, apenas para dar um exemplo, é considerada uma
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Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
patologia do consumo, não é menos certo que o objeto discursivo, inclusive o objeto publicitário “anorexia”, é uma latusa à mão de qualquer sujeito que esteja em busca de um sentido que lhe permita exercer seu não querer saber sobre a castração, dotando-se um ser, por exemplo, um ser anoréxico. Com essa consideração, refiro-me à divulgação feita pelos meios de comunicação e, sobretudo, à informação disponível na internet acerca do que representa o ser anoréxico. Divulgações essas que, algumas vezes sob a forma de advertências e informação para a prevenção primária da saúde, apesar das boas intenções, acabam sendo campanhas publicitárias sobre o tema, e seus informes, instrutivos a respeito de como se tonar um bom anoréxico. Devemos somar a isso a quantidade de páginas na internet que explicitamente constituem uma apologia ao assunto, com fotos, instruções sobre como vomitar o alimento sem que os demais percebam etc. Não deixa de ser um mundo que se oferece como um modo disponível de gozar, tal qual ocorre também com as adições ou qualquer outro tipo de conduta humana que não consideramos patológica. O traço que destacamos aqui não é o patológico ou o são de uma prática, e sim o fato de que todas elas – saudáveis ou enfermiças – circulam nos meios de comunicação como oferta de gozo. Cada modo de gozo de uma época vem envolto em uma realidade discursiva que é parte constituinte do objeto que se oferece. Há o objeto-anoréxico no mercado, poderíamos dizer, assim como há o objeto-drogadicto, em busca de sujeitos -possuidores de tais objetos. Esses possuidores-objetos, diríamos com Marx, são capazes de objetalizar-se em diversos graus, deixando-se levar, pelas consequências de seus modos particulares de gozo, até limites incalculáveis a priori. Parafraseando Lacan em Encore, que dizia ser impossível antecipar o resultado de uma batalha porque não se pode saber até que ponto o inimigo está disposto a gozar fazendo-se matar, da mesma maneira, não podemos calcular antecipadamente de que modo cada possuidor-objeto, isto é, cada sujeito anoréxico, bulímico ou drogadicto, por exemplo, estará disposto a gozar com seu ser adquirido por meio das ofertas que a civilização lhe oferece. Trata-se, ademais, de ofertas não inócuas, não são meros objetos. Se, como vimos, a mercadoria caracterizada por Marx tampouco constitui um objeto inócuo, mas com qualidades “suprassensíveis”, os objetos contemporâneos que circulam no suporte tecnológico que a indústria provê aos mass media, são objetos que portam em si uma voz que ordena gozar, um imperativo de gozo. Tradução: Maria Cláudia Formigone Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
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ALOMO, Martín
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Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
resumo
Propomos estabelecer o percurso teórico que nos permita reconstruir a noção de “latusa”, formulada por Jacques Lacan no seminário O avesso da psicanálise. Para isso, começaremos situando as condições do sujeito que se desprende do cogito cartesiano e o modo particular que se imbrica com o surgimento do capitalismo tecnológico. Para tanto, recorreremos a elaborações de Martin Heidegger. Com base em algumas passagens de O capital, de Karl Marx, situaremos o conceito de mais-valia, a partir do qual Lacan construirá sua noção de mais-de-gozar. Tratase de um percurso necessário para chegar às latusas. Por último, analisaremos a posição da latusa em relação à posição do analista. Esse percurso nos permitirá situar a relevância clínica do problema, no que se refere à situação do analista no mundo capitalista.
palavras-chave
Civilização, capitalismo, Jacques Lacan, mais-de-gozar, latusa.
abstract
We propose to establish the theoretical trajectory which will allow us to reconstruct the notion of “letosa,” formulated by Jacques Lacan in the seminar L’envers de la psychanalyse. For this, we begin by setting up the conditions of the subject which are detached from the Cartesian cogito, and the particular way in which it is interwoven with the emergence of technological capitalism. To pursue that objective, we resort to elaborations by Martin Heidegger. Also based on some passages of Das Kapital, by Karl Marx, we situate the concept of surplus value, in which Lacan founded his notion of plus de jouir. This is a necessary path in order to get to the letosas. Finally, we analyze the position of the letosa in relation to that of the analyst. This path will allow us to pose the clinical relevancy of the problem, concerning the analyst’s situation in the capitalist world.
keywords
Civilization, capitalism, Jacques Lacan, plus de jouir, letosa.
recebido 13/02/2014
aprovado 05/05/2014
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O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre as vicissitudes de um ofício tão particular... Leandro Alves Rodrigues dos Santos A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar. Via de regra, a psicanálise possui um médico inteiramente, ou não o possui, em absoluto. Sigmund Freud Durante o percurso que venho sustentando no campo psicanalítico, já por quase duas décadas, há uma pergunta que sempre me instigou: afinal, qual a possível ou, melhor dizendo, as possíveis razões pelas quais um psicanalista pode insistir em continuar mantendo sua prática clínica, calcada numa complicada oferta em um mundo que parece contradizer a receptividade dessa invenção tão original e, sem exagero, estranha, especialmente quando comparada às outras modalidades de tratamento que imperam no mercado dos tratamentos dos chamados males anímicos? Mais ainda, interrogo-me: como fica nessa conjuntura a relação de cada psicanalista com o que se convencionou chamar de “desejo de analista”? – termo estabelecido ousadamente por Lacan e que condensa múltiplos aspectos, que vão desde motivações profundamente arcaicas e pessoais até aspectos sumamente éticos, no sentido mais nobre da palavra. Vale lembrar Lacan (1964/1998) quando, neste tópico, ressalta que: [...] o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo aqui como função essencial (p. 222).
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Essa pergunta não reverbera gratuitamente, até mesmo porque algum tempo atrás defendi uma tese de doutoramento que abordava justamente as vicissitudes da clínica psicanalítica, desse oficio tão particular, já chamado por Freud (1937/1987) de “profissão impossível”, expressão que encobria certo tipo de admoestação diante do espinhoso caminho pelo qual transita o psicanalista. É providencial retomá-la neste momento: Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito rigorosas a que tem que atender no desempenho de suas atividades. Quase sempre parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas; conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo (p. 282). Freud, aliás, nunca enviou sinais muito animadores, ou incentivos reconfortantes, ao contrário, pintava com cores fortes o que reservava àqueles que optavam por praticar a tal profissão impossível. Bastam alguns exemplos para ilustrar essa dureza característica do inventor da psicanálise. Comecemos com o que ocorre na relação analítica, um fenômeno de base vital para um desenrolar do tratamento, no qual uma declaração de Freud (1912/1987, p. 143, [grifos nossos]) já alertava sobre um paradoxo: Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Ou ainda sobre a intensidade da dimensão fantasística que, além de atravessar radicalmente a dinâmica transferencial, favorece uma fixação do paciente em aspectos que pouco se afeitam à realidade: É tarefa do analista tirar constantemente o paciente da ilusão que o ameaça e mostrar-lhe sempre que o que ele toma por uma vida nova e real é um reflexo do passado. E para que não caia num estado em que fique inacessível a qualquer prova, o analista toma o cuidado de que nem o amor nem a hostilidade atinjam um grau extremo. [...] Um manejo cuidadoso da transferência, de acordo com essa orientação, é, via de regra, extremamente compensador (Freud 1940[1938]/1987, p. 204, [grifos nossos]).
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Mas mesmo que isso tudo seja necessário e esperado, o cenário que surge, ou o playground transferencial, como Freud (1914/1987) insinua, torna-se então um terreno minado, no qual o psicanalista deve ter coragem para aceitar a parte que lhe cabe nessa fantasia enredada pelo paciente, bem como habilidade e lucidez para sair dela de quando em quando e poder atuar estrategicamente no caso. Freud (1915[1914]/1987, p. 221, [grifos nossos]), nesse tópico específico, traça uma interessante analogia: O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e escrúpulo quanto um químico. Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis, por causa de seus efeitos? Manejar a transferência, driblando os explosivos exageros do amor ou da hostilidade que surgem travestidos de resistências, não requer do analista apenas alguma dose de perspicácia, mas também um desdobrar-se quase permanente para dar conta dessa dimensão repleta de imprevisibilidades. E devemos dizer desdobrar porque o analista não detém a vantagem do paciente, que pode não só despejar todas as facetas de seus modos de transferência na relação com o analista, como também conta com ele para poder ter acesso a essa manifestação de seu inconsciente, que deve se tornar consciente pondo em marcha alguma esperada dose de elaboração. Já o analista não conta com ninguém naquele momento, nem concreta e fisicamente, tampouco com uma teoria asseguradora, como por vezes esperam os praticantes, especialmente os mais iniciantes no percurso clínico. Mas Freud (1940[1938]/1987, p. 201, [grifos do autor]) não para por aí, pois tece outras analogias e algumas de suas sempre interessantes metáforas que colaboram para compreender um pouco mais desse cenário: Com os neuróticos, então, fazemos nosso pacto: sinceridade completa de um lado e discrição absoluta do outro. Isso soa como se estivéssemos apenas visando ao posto de um padre confessor. Mas há uma grande diferença, porque o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que ele sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não sabe. [...] Acontece um certo número de outras coisas, algumas das quais poderíamos ter previsto, mas também outras que estão destinadas a surpreender-nos. A mais notável é a seguinte: o paciente não fica satisfeito de encarar o analista, à luz da realidade, como um auxiliar e conselheiro que, além do mais, é remunerado pelo trabalho que executa e que se contentaria com um papel semelhante ao de guia numa difícil escalada de montanha.
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Diria mais: o paciente não sabe e, em muitos casos, não quer saber, visto que, diferentemente de um padre confessor – que espera apenas arrependimento a partir de uma suposta completude da confissão –, o analista incide justamente nesses pontos da divisão, evidenciando em momentos específicos pontos que levam à dimensão do não-dito, na qual o arrependimento seria de pouca valia. Além do mais, convenhamos que isso acaba se configurando uma desagradável tarefa para o paciente: destinar um quantum de esforço para dizer o que sabe e provavelmente esconde e, principalmente, para dizer o que não sabe ou, como lembraria com propriedade Freud (1916[1915-16]/1987, p. 126, [grifos nossos]), dizer aquilo que “não sabe que sabe e, por esse motivo, pensa que não sabe”. Mais uma vez entra em cena considerável dose de esforço e habilidade necessária ao analista que, com base em seus cálculos particulares, precisa cuidadosamente cadenciar o processo, pois também está em jogo uma contabilidade do paciente. É porque leva em conta a cadência do paciente que Freud (1913/1987, p. 186) adverte os psicanalistas da necessidade de se manterem alertas, especialmente nesse ponto que consideramos desgastante, pois é esperado que o neurótico alimente a suposição de que a análise implica sempre um ganho, deixando intactas coisas que, no fundo, muito provavelmente não quer alterar: É tempo, agora, que empreendamos um levantamento do jogo de forças colocado em ação pelo tratamento. A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado que deste se origina. A intensidade desta força motivadora é diminuída por diversos fatores – que não são descobertos até que a análise se acha em andamento – sobretudo pelo que chamamos de ‘lucro secundário da doença’, mas ela deve ser mantida até o fim do tratamento. Cada melhora efetua uma sua diminuição. Sozinha, porém, esta força motivadora não é suficiente para livrar-se da doença. Duas coisas lhe faltam para isto: não sabe que caminhos seguir para chegar a esse fim e não possui a necessária cota de energia para se opor às resistências. O tratamento analítico ajuda a remediar ambas as deficiências. A saída proposta por Freud (1913/1987, p. 171, [grifos nossos]), ao que parece, engloba outra dificuldade corriqueira, que é comunicar essa dificuldade ao paciente com meticulosa sinceridade: Para falar claramente, a psicanálise é sempre questão de longos períodos de tempo, de meio ano ou de anos inteiros – de períodos maiores do que o paciente espera. É nosso dever, portanto, dizer-lhe isso antes que ele se decida finalmente sobre o tratamento. Considero mais honroso, e também mais conveniente, cha-
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mar sua atenção – sem tentar assustá-lo, mas bem no começo – para as dificuldades e sacrifícios que o tratamento analítico envolve, e, desta maneira, privá-lo de qualquer direito de dizer mais tarde que foi enganado para um tratamento de cuja extensão e implicações não se deu conta. Um paciente que se deixa dissuadir por essa informação mostrar-se-ia, de qualquer modo, inadequado posteriormente. É bom o progresso do entendimento entre pacientes, o número daqueles que enfrentam com êxito este primeiro teste aumenta. Posto isso, passemos agora para outro aspecto, quiçá pouco comentado, acerca das autoexigências feitas pelo próprio analista durante o decorrer de sua prática, culpando-se em possíveis momentos de insucesso ou de distanciamento diante de certo ideal que é secretamente cultivado. Freud (1933/1987, p. 189, [grifos nossos]) abordou de um jeito bastante direto esse tópico: Os iniciantes em análise, principalmente, ficam em dúvida, em caso de insucesso, se devem atribuí-lo a peculiaridades do caso ou à sua própria inabilidade de manejar o procedimento terapêutico. Mas, conforme já disse anteriormente, não creio que se possa conseguir muito com intentos nessa direção. Ainda que lembre aos iniciantes que o interessado em se tratar deve entrar, desde o começo, com sua cota de implicação: Quando, porém, tomamos em tratamento analítico um paciente neurótico, agimos diferentemente. Mostramos-lhe as dificuldades do método, sua longa duração, os esforços e os sacrifícios que exige; e, quanto a seu êxito, lhe dizemos não nos ser possível prometê-lo com certeza, que depende de sua própria conduta, de sua compreensão, de sua adaptabilidade e de sua perseverança (FREUD (1916[1915]/1987, p. 27, [grifos nossos]). Essa seria a condição básica que, de imediato, possibilitaria a ampliação dessa possibilidade de recepção do inconsciente, algo que não o fizesse resistir à assunção de conteúdos inesperados que, justamente por não se coadunarem com o que se espera de um laço social, acaba por causar embaraços durante uma sessão. Essa é uma dificuldade que Freud (1917/1987, p. 171, [grifos nossos]) considera notável quando se trata de psicanálise: Para começar, direi que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que torne a psicanálise difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas de uma dificuldade afetiva – alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles
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que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente. Em outras palavras, trata-se de envolver-se profunda e radicalmente com uma indispensável análise pessoal e, por meio desta, defrontar-se sem preconceitos com o próprio inconsciente, sem um saber prévio e estabelecido como garantia. Isso implica saber, por exemplo, em certo momento, acerca das tais nem sempre nobres razões que alicerçam o desejo de curar, como lembra com propriedade Gérard Pommier (1998, p. 437): Aquele que quer tornar-se analista geralmente o deseja muito tempo antes de ter começado uma cura pessoal. Neste caso, ele se engajará numa profissão ou numa formação sobre a qual pensa que o aproxima de um tal objetivo: por exemplo, começou estudos, de medicina ou psicologia. O saber universitário que ele assim acumulará será útil sem dúvida, por mais de um motivo. Entretanto, a sapiência acumulada apresenta também um inconveniente. É que o futuro analista ignorará deste modo o traço particular de seu passado distante sobre o qual sua ambição se apoia, porque seu curso de estudante, depois sua experiência profissional, mascararão facilmente esta origem. Como está escrito nos manuais, ele crerá engajar-se nesta profissão para fazer o Bem e ignorará em que Mal recalcado seu desejo se apoia. Após esse rol de vicissitudes que surgem durante o exercício da atividade psicanalítica, gostaria de destacar algo mais que percebi na confecção de minha tese de doutoramento, peça acadêmica na qual compilei e lancei um olhar mais apurado a determinadas dificuldades presentes no psicanalisar e, grosso modo, posso dizer que em alguns aspectos se igualam às dificuldades de quaisquer outras profissões, sem grandes diferenciações, porém por outros ângulos se singularizam de maneira muito evidente. Dentre eles elegi e abordei alguns tópicos específicos, elencando algumas das dificuldades que enfrenta o psicanalista, como é possível depreender a partir de um trecho do resumo que apresenta a referida tese: Este estudo aborda o trabalho do psicanalista, tomando como vértice de investigação as dificuldades que esses profissionais atravessam na sua prática clínica cotidiana. Nesse contexto, mudanças no perfil dos pacientes, crises de demanda frente ao incremento da concorrência com psicofármacos e psicoterapias diversas, significativas exigências da formação, estabelecimento de laços com outros analis-
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tas e vicissitudes na relação com a família podem ser considerados índices do mal-estar do psicanalista frente ao ato de psicanalisar nos dias atuais (SANTOS, 2011). Porém, mesmo assim, os psicanalistas persistem, a psicanálise cresce, e desse modo posso avançar na tentativa de resposta à minha questão inicialmente proposta, hipotetizando que, na errância de um desejo – e não importa qual – provavelmente chegaremos à conclusão de que, a partir da metapsicologia proposta por Freud, há entre a pulsão e o objeto um caminho que merece ser investigado cuidadosamente; portanto, levar a cabo o intento de psicanalisar, aceitar demandas variadas e se autorizar a escutar os que o procuram, não necessariamente garantirá ao psicanalista que sua empreitada poderá ser um símbolo de tranquilidade, linearidade e, principalmente, de regularidade. De fato, a clínica cotidiana nos mostra com fartura de exemplos que muitos fatores entram em cena nesses momentos, interpelando as expectativas, intenções, planos, idealizações e, ouso dizer sem rodeios, a essência do desejo daquele que decidiu propor a regra fundamental. Cabe-nos então problematizar de maneira mais refinada essa persistência, fazendo um uso metodológico da já famosa resposta de Freud à sua filha, quando perguntado sobre o que seria uma pessoa feliz, afinal havia estudado a alma humana por tanto tempo que por certo deveria saber. Sem se furtar, Freud aponta o amor e o trabalho como duas grandes saídas, ou seja, aquele que pode amar e trabalhar corroboraria dois índices importantes de felicidade e, de certa maneira, afincaria os efeitos positivos de um processo analítico levado a bom termo. Não restam muitas dúvidas de que um psicanalista, em sua análise pessoal, deve então ter passado por tudo isso, lidado profundamente com as questões do trabalho e do amor, detalhe que possivelmente potencializou profundas re-significações e afortunadamente reposicionamentos nesses dois campos tão cruciais da condição humana. Dessa maneira, lidar com as dificuldades inerentes a essa decisão – aliás, com a exigência que essa atividade, prática, práxis, profissão ou oficio, não importa o nome que se dê – impele aos que nela ancoram seu desejo uma peculiaridade significativa, que é manter sempre aceso esse desejo de analista que subjaz sua oferta mais formal na cultura. Diante desse paradigma, podemos nos perguntar se é possível manter sempre o fogo alto, como alguns pratos requerem? Nessa analogia, vale lembrar que fogo demais queima e de menos inviabiliza a consecução da receita. Parece-me então que o elemento-chave que alicerçaria essa resposta diz de uma medida, da dosagem desse entusiasmo que por sua vez é também algo muito particular, seguramente íntimo e quase certeiramente conectado a substratos muito profundos da personalidade, ou em nossos termos, a liames muito afeitos aos quebra-cabeças fantasmáticos de cada psicanalista, do analisando que é, do analisando que foi e que, de alguma forma, sempre será. Jean Clavreaul (2007),
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psicanalista francês contemporâneo de Lacan, pode nos ajudar ilustrando essa hipótese a partir de dois trechos preciosos, extraídos de seu testemunho ao Quartier Lacan, documentário e livro que recentemente vieram a público. No primeiro deles aborda justamente essa questão do desejo de analista: Se é preciso um desejo específico para exercer esse ofício, é o que analista deve ser capaz de reinventar a teoria para cada novo paciente. Essa reinvenção incessante supõe uma curiosidade, um interesse infatigável pelo outro. O paradoxo desse interesse inesgotável é induzir em alguns o amor da transferência e, em outros, o ódio: com efeito, essa curiosidade incessante tende a desencorajar as explicações medíocres com as quais o sujeito pode querer se contentar (p. 26). Amar e trabalhar implicam então estar decididamente no laço com o outro, desse interesse infatigável pelo outro, mas reservando a ele outro lugar, não objetificado ou reduzido a um mero personagem num cenário montado pela força estruturante da neurose, advinda de uma fantasia que mereceu ser questionada inapelavelmente durante as sessões nas quais pôde se escutar. Afinal, custa-se muito, e em todos os sentidos da palavra, abrir mão do quantum de idealização que comporta esses dois projetos, inicialmente considerados como passaportes tranquilizadores de satisfação absoluta, de felicidade arrebatadora e, especialmente, de pseudocertezas que posteriormente se mostram muito frágeis. Psicanalisar e suportar as agruras dessa decisão, além de afetar visceralmente a relação do psicanalista com o amor e o trabalho, também o empurra a suportar as vicissitudes de cada um que o procura e, para inquietá-lo, justamente nesses dois campos específicos. Tal coragem nesse enfrentamento não se mostra pelas palavras, mas pelos atos. É o que podemos claramente extrair do segundo fragmento de Clavreaul (2007), quando fala de sua experiência como analisando de Lacan, quando o compara a outros analistas anteriores: Em relação a eles, eu diria que Lacan não pensava em meu ser cheio de dificuldades ou cheio de esperança, ele só se interessava pelo que eu dizia. Logo, comecei com ele. Tive então de ser hospitalizado. E ele veio me ver no hospital, umas vinte vezes talvez, para que fizéssemos as sessões. Devo dizer que, na época, isso não me havia impressionado, porque eu não tinha modelo para me dizer como um analista devia fazer ou não. Evidentemente, não era comum, mas Lacan era assim. Há um monte de coisas dessa ordem que ele fez existir ao longo de sua vida e que são muito diferentes da imagem que em geral passam dele (p. 29).
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Afirmar então que cada psicanalista deveria se haver com seu desejo de analista, com as errâncias, invariabilidades, imperfeições e arbitrariedades que nele estão presentes, pode soar como um desperdício, pela obviedade e redundância da colocação, mas também parece ser razoável que Freud já nos lembrava de que cada analista só vai até onde seus complexos permitem, só pode analisar até onde foi com sua análise pessoal e, ainda assim, a despeito disso tudo, pode angariar recursos que o permitam caminhar nessa trilha espinhosa. Deve e pode contar também com a ajuda e o acolhimento dos pares, que poderia ser mais frequente e mais disponível, tanto dentro quanto fora das instituições psicanalíticas, pois noto que essa temática ultrapassa o terreno da análise e da supervisão. Talvez seja o lado mais nobre do que chamamos de transferência de trabalho, tema abordado insuficientemente em nossas produções e pesquisas. Alio a isso um aprofundamento que julgo salutar, que se embrenha nos possíveis efeitos que a prática da profissão impossível potencializa naqueles que a praticam. Tal aspiração se deve ao contato com um trecho específico de uma carta endereçada a Freud por Sandor Ferenczi, em 6 de maio de 1910, publicada na coletânea que engloba a correspondência desses dois amigos e desbravadores dessa nova forma de olhar e pensar o humano: Caro Professor, estou me sentindo como um velho engenheiro ferroviário que conheço, que – aposentado após 50 anos de serviço – se põe diante da locomotiva parada à sua frente e exclama com ingênua admiração: ‘Mas é mesmo uma bela invenção!’ Há anos que a Psicanálise ocupa minhas horas da manhã à noite, sou um operário desse método, ela é minha ferramenta e meu pão de cada dia. E não passa dia em que eu não tenha de parar – com frequência, no meio do trabalho – para admirar o enorme progresso no conhecimento da humanidade, seja da humanidade doente, seja da humanidade saudável. ‘Mas é mesmo uma bela invenção!’ (p. 230).
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O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre as vicissitudes de um ofício tão particular...
Fazelder e Patrizia Giampieri. Rio de Janeiro: Imago, 1994. 2 vols., 378/309p. LACAN, J. (1964). O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Tradução de MD Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre a transferência em psicanálise. Tradução de Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 480p. SANTOS, L. A. R. O trabalho do psicanalista: das dificuldades da prática aos riscos do narcisismo profissional. São Paulo, 2011. 250p. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2011.
resumo
Trata da delicada questão do desejo do analista, enfatizando algumas particularidades presentes no ato de psicanalisar, em especial sobre as possíveis razões do entusiasmo necessário à manutenção de tal prática em tempos atuais. Manter a psicanálise viva e acolher os interessados no tratamento pode exigir do analista profundas re-significações no campo do amor e trabalho. Propõe também ampliar a investigação nos efeitos e consequências de tal profissão na vida do psicanalista.
palavras-chave
Psicanalista, desejo, profissão.
abstract
The article deals with the sensitive issue of the analyst’s desire, emphasizing some peculiarities present in the act of psychoanalyze, in particular related to the possible reasons towards the enthusiasm necessary for the maintenance of such a practice in current times. To keep psychoanalysis alive and welcome those interested in treatment may require from the analyst deep re-significations in the fields of love and work. It also proposes to extend the investigation on the effects and consequences of such profession in the psychoanalyst’s life.
keywords
Psychoanalyst, desire, profession.
recebido 15/02/2014
aprovado 10/06/2014
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O desejo do analista e o autismo
O desejo do analista e o autismo Andréa Hortélio Fernandes O desejo do analista é que a análise se dê. Para tanto, o analista seria convocado a operar no lugar de agente do discurso do analista. Operar da posição de objeto a que pode causar o desejo do sujeito. Contudo, quando na clínica o analista confronta-se com alguém cuja posição de sujeito aí não se presentifica, o analista é convocado a fazer a “psicanálise invertida”, termo cunhado por Colette Soler (1997, p. 2). Tal situação me levou a pensar sobre o que pode o psicanalista diante de alguns sujeitos que fracassam ao se inscreverem num discurso, mas especificamente no discurso do Outro, como é o caso das crianças autistas. Portanto, o presente texto busca investigar qual o uso que essas crianças podem fazer do desejo do analista. É a partir deste questionamento que pretendo tratar o binômio – O desejo do analista e o autismo. Os binômios que tomo aqui como pares de opostos constituem a base arcaica da língua. A clínica com crianças cuja hipótese diagnóstica é de autismo mostra como elas se interessam bastante em pôr em ação os pares de significantes opostos. Elas costumam dedicar bastante tempo das sessões em, por exemplo: abrir e fechar porta, ascender e apagar a luz. Segundo Nominé, “o autista é fascinado por esse nível arcaico” da linguagem expresso pelo “funcionamento binário do significante” (NOMINÉ, 2012, p. 16). No autismo existiria, então, “uma espécie de gozo automático do significante” (Ibid). Nas crianças ditas autistas é possível perceber “um gozo muito primitivo que não é articulável à fala e que não é partilhável com ninguém” (Ibid). Familiares dessas crianças chegam à clínica ressentidos pela perda e/ou ausência da fala, do olhar, ou melhor, de qualquer sinal de uma demanda destas crianças. Os analistas advertidos pelo jogo do Fort-da do neto de Freud sabem que uma especificidade da língua é que “primitivamente os significantes se constituem por pares de opostos” (Ibid), não retrocedem diante do autismo. No seu texto Autismo e Paranoia, Colette Soler diz que as crianças ditas autistas “são sujeitos, mesmo que elas não falem, uma vez que são tomadas no significante pelo fato de se falar dela; no Outro há significantes que a representam” (SOLER, 1999, p. 222). Ela propõe que escrevamos o sujeito autista com o seguinte matema: s – sujeito representado, subposto, posto embaixo dos significantes que o representam no Outro.
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S1 ____ s Esta é a primeira emergência de todo sujeito, ser falado pelo Outro. A questão que se coloca é de como o sujeito pode vir à agente de um discurso, “tornar-se alguém que fala, dito de outra maneira, alguém que se anima de libido” (SOLER, Ibid). Com o matema acima, Soler deseja demonstrar que o sujeito suposto pelos significantes do Outro ainda não fez sua entrada no real. Isto justificaria a necessidade de uma psicanálise invertida. É a libido do Outro que se liga às crianças autistas, aqui é importante “evocar sua inclusão no lugar do Outro” (Ibid). Como é pela demanda que o sujeito “faz sua entrada no real” (Ibid, p. 225), é por essa via, também, que pode vir a se separar do Outro. Logo, o olhar e voz concorrem na relação que pode vir a se estabelecer entre a criança autista e o Outro. Assim, com bastante frequência, no início do tratamento, o analista é tomado como um objeto qualquer da sala. Ao olhar o analista, o olhar da criança o atravessa. A criança pega no analista como se pegasse num móvel da sala. E com o tempo, a criança vem a se apoiar na perna, no braço do analista, deixando-se tomar pela libido do Outro. As crianças autistas evidenciam na clínica que “não entram por conta própria na alienação significante... Essas crianças, na condição de sujeitos, permanecem puros significados do Outro” (Ibid, p. 226). Essas crianças, muitas vezes, são consideradas unicamente no nível da palavra e dos significantes do Outro. Os analistas ao falar delas com a mãe ou com aqueles que as rodeiam terminam por dar continuidade a isso. Bernard Nominé traz um caso, bastante ilustrativo, acerca disso que foi denominado por ele “o menino de botas”. Era um menino que não dizia uma só palavra e logo que entrava na sala se despia. Nominé conseguiu fazer com que ele parasse de se despir, mas o garoto continuava a tirar os sapatos. Quando o pai vinha pegar o filho era uma luta para calçar-lhe os sapatos. Então, Nominé é informado pelo pai que o menino passava o dia todo descalço e à noite só dormia depois de calçar as botas que seu avô tinha lhe dado. O nome do menino era um nome bastante raro que foi dado pelo pai, a contragosto da mãe. Na região em que morava esse nome era bastante conhecido por evocar “um célebre desportista que tinha a particularidade de sempre fazer dupla com seu irmão” (NOMINÉ, 1999, p. 241). Nominé declara ainda que o irmão gêmeo do avô do seu paciente fez carreira neste esporte, enquanto seu avô era tesoureiro do clube, pois tinha os pés aleijados.1 O avô também fabricava botas, o pai do menino sonhava em ser 1 No original em francês, pés aleijados é “pieds bots” que remete ao significante “bottes”, botas.
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artilheiro2 e deu ao filho o nome de um célebre artilheiro. Nominé relata estar neste momento no início de sua prática como analista e ter feito a seguinte intervenção: “Talvez você acredite que papai lhe peça para substituir os feios pés de vovô” (Ibid). De imediato, o menino colocou os pés sobre os de Nominé e passou a se grudar nele a cada sessão, tal efeito para Nominé ilustra o status da criança como “puro significado do Outro” (Ibid, p. 242). Segundo Nominé, ao “bancar o Outro” para o menino, “ele entendeu poder fazer Um com o analista”. O fazer Um com o analista é algo sobre o que o analista deve estar advertido na clínica com crianças autistas. Algumas vezes, elas chegam numa relação muito próxima com um dos membros da família e isso é ilustrado pela recusa veemente da criança em deixar que seu acompanhante fique na sala de espera ou é o acompanhante que tem dificuldade em aceitar isso. Mas, o que chama a atenção, algumas vezes, é o jogo quase simbiótico entre a criança e esse Outro. Em muitas brincadeiras, inclusive acrobáticas, essas crianças revelam que seu corpo é uma continuidade do corpo do Outro. Sobre isso, é interessante destacar que, segundo Lacan, “o que cria a estrutura é a maneira como a linguagem emerge de início em um ser humano” (LACAN, 1976, p. 46). E ainda, com Lacan, sabemos que de início não há linguagem, há alíngua. Dito de outra forma “não há senão suportes múltiplos da linguagem, que se chama de alíngua” (LACAN, 1977). A entrada na linguagem supõe as operações de alienação e separação. Colette Soler insiste nisso ao afirmar que o sujeito suposto pelos significantes do Outro ainda não fez sua entrada no real. Aqui, Soler faz referência a uma passagem do texto Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (LACAN, 1958/1998). Nesse texto, Lacan critica a suposta diferenciação primária referendada pelo fato de que o recém-nascido alterne o estado de vigília e de sono dada à “existência de aparelhos que garantem um mínino de autonomia” (LAGACHE apud LACAN, 1958). Para Lacan, a realidade da diferenciação tal como é proposta por Lagache “deixa em suspenso seu uso propriamente significante, do qual depende o advento do sujeito” (LACAN, Ibid, p. 661). É a isso que Soler se refere acerca da entrada no real e da entrada num discurso, ou melhor, no discurso do Outro. Lacan comenta que à necessidade que sustenta essa diferenciação primária é preciso somar-se a demanda, mesmo antes de qualquer estrutura cognitiva, para que o sujeito “faça sua entrada no real” (LACAN, Ibid). Tudo isso remete à questão de alíngua. De acordo com Robert e Rosine Lefort, o bebê, ao balbuciar, ainda está “no ‘Há do Um’, onde o gozo da alíngua se inscreve como gozo do Um antes do Outro” (LEFORT, 1991, p. 4). O significante aí está ligado ao objeto a, um objeto a do Outro, o Outro é 2 Artilheiro em francês é “botteur”.
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portador desse objeto. Nesse momento, não há nenhuma espécie de apelo ao Outro. Assim, cabe lembrar que no autismo “a ausência da dimensão do apelo é a contrapartida e o complemento da recusa de ser chamado pelo Outro” (SOLER, 1999. p. 225). O gozo em causa seria prévio ao Outro “furado pela virtude do significante” (LEFORT, op. cit.), já que “é o significante que faz furo no real do Outro pela demanda” (Ibid). O gozo em causa é possível pensá-lo como prévio ao Outro que está em jogo na incorporação significante. Este último é Outro que é barrado (Ⱥ), inconsistente, uma vez que não há um significante (S) que garanta sua existência e consistência; Outro próprio da neurose. O gozo prévio ao Outro pode ser tomado como um real do ser vivente. Na psicose, ele retorna no real e, na neurose, ele retorna no simbólico. A não-incorporação significante do Outro simbólico está em causa no que diz respeito à problemática do corpo no autismo. No que diz respeito ao autismo teríamos um “aquém da alienação, uma recusa de entrar, um permanecer na borda” (SOLER, 1999, p. 219) do discurso do Outro. A inscrição em um discurso acontece dada a efetivação da operação de separação. E é a inscrição do Nome-do-Pai no Outro que permite a inscrição num discurso. Assim, na neurose a efetivação da estrutura está posta dada a efetividade das operações de alienação e separação. O sujeito neurótico entra no discurso tanto que o retorno do recalcado se faz no próprio simbólico. Já na psicose, a operação de separação não acontece dada a foraclusão do Nome-do-Pai. O psicótico está na linguagem, mas está fora do discurso uma vez que a operação de separação não é operante. Na psicose paranoica, encontramos o fora do discurso ilustrado pela instalação do sujeito no campo da alienação, sem que haja a operação de separação. Na psicose, portanto, o que é foracluído do simbólico retorna no real, por meio das alucinações e delírios. É a incorporação significante que mortifica a carne e faz surgir o incorpóreo; tanto a libido como órgão do incorpóreo como o objeto a. Nessa perspectiva, o circuito da pulsão seria a representação de como o organismo libidinal vai pegar e, portanto, contornar, os objetos a e como o sujeito utiliza-se da linguagem, da fala, para isso. Abaixo, o circuito pulsional conforme proposto por Lacan (1964/1985, p. 169): Aim a
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Logo, um corpo para existir no simbólico supõe uma produção de um vazio, pela operação significante, que é a própria extração do objeto a. Contudo, no autismo encontramos uma “holófrase contínua” (RODRIGUEZ, 1999, p. 245), termo proposto por Leonardo Rodriguez, cuja manifestação encontramos nas frases construídas sem intervalos ou pontuação e com bastante ecolalia. Lacan estava atento a isso tanto que numa conferência, em Genebra, sobre o sintoma falou que a dificuldade para escutar sujeitos autistas, “para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de personagens de preferência verbosos” (LACAN, 1975/1998). De fato, as crianças autistas são tomadas como articulando muitas coisas, e o que precisa ser examinado é onde escutaram o que articulam. Leo Kanner, psiquiatra, foi um dos primeiros a perceber e estabelecer isso. Os autistas estão na linguagem ao serem falados pelo Outro, mas permanecem fora do discurso; logo, é possível dizer que o autismo é “uma doença da libido” (SOLER, 1999, p. 228), sendo a libido um órgão criado pela linguagem. Soler ressalta que o autismo seria uma “doença que vai muito além das relações ditas de objeto” (Ibid). É assim que na análise é a libido do Outro que se liga à criança autista. Isto pode acontecer por meio do manejo do significante. Um menino que iria fazer três anos e estava sendo treinado pelos familiares a cantar parabéns em seu aniversário, já que recomeçava a verbalizar algumas palavras, faz um desenho com muitas garatujas e o número 3 sobressai ao olhar da analista que marca: “olha o 3”. A criança olha o desenho e se volta para a analista com um largo sorriso. A partir daí passa a nomear e identificar os andares do seu apartamento como o de outros familiares que visita com frequência, como dos profissionais com os quais tem atendimento. Para Soler “é sobre o Outro como máquina significante, sobre o corpo da linguagem” (Ibid.), que uma criança autista se liga, como também pelo toque, pelo fato de tocar a analista. Uma criança costumava circular bastante durante o atendimento até que com ajuda da analista alcançava a janela e a partir daí começava a expressar por palavras, portanto, significantes, o que via. Entretanto, é preciso ainda examinar o estatuto do significante em causa. Surge, então, a pergunta: a criança autista permanece como puro significado do Outro? Soler, no texto Autismo e Paranoia, toma um exemplo de caso clínico de Margaret Malher (MALHER apud SOLER, 1999). Trata-se de Stanley que tinha jogos nos quais ele próprio se ligava e desligava, além de brincar assim com o interruptor. Segundo Soler, “Stanley nos mostra, à sua maneira, que o corpo do Outro, aqui o analista, é o lugar do corpo incorporal: que ele diga bebê ou que ele o toque têm o mesmo efeito” (Ibid.). Ele costumava chegar inerte às sessões e seja quando tocava a analista, ou seja, quando abria o livro que tinha uma figura de bebê, ele próprio entrava em movimento. Atestando “como se ele próprio tivesse
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uma espécie de escolha entre se ligar ao Outro ou não” (Ibid.). Isso tem referência com a operação de alienação: ou bem a criança fica como um puro corpo vivo, sem libido, inerte, ou “se torna uma máquina significante” (Ibid.), é maquinizado. Na clínica, até mesmo um boneco pode fazer a criança autista se ligar. Por meio de um boneco em cujas partes do corpo tocamos e ele se põe a possa cantar, espirrar, dizer que sente cócegas ou contar números, uma criança insistia em fazer a escolha em apertar a mão do boneco, pois assim conseguia que ele cantasse sempre uma mesma música. A letra da música dizia: “Lá fora tem um mundo colorido onde as cores fazem sentido: azul, verde, vermelho e amarelo. Cores diferentes desse mundo encantado, cores e formas para todo lado”. Essa criança, ao chegar à sessão, corria para o boneco e, inicialmente, pedia à analista para ligar o botão que fazia o boneco funcionar, depois ela própria ligava o botão. A criança apertava insistentemente o botão até que a mesma música tocasse repetidas vezes. Em seguida, ia para a janela e pedia para abri-la, depois de algum tempo a cor verde se tornou sua cor favorita e era uma das cores presentes na letra da música. Voltemos à pergunta: a criança autista permanece como puro significado do Outro? Leo Kanner no texto intitulado “Linguagem fora de propósito e metafórica no autismo infantil precoce”, datado de 1946, discute essa questão (KANNER apud RODRIGUEZ, 1999). De acordo com Rodriguez, para Kanner, “algumas expressões verbais fora de propósito e sem sentido de crianças autistas são, na realidade, expressões metafóricas” (RODRIGUEZ, Ibid., p. 249). Para Kanner estaríamos, então, diante de uma metáfora de transferência de significado entre palavras; assim, “uma coisa se põe no lugar de outra, à qual apenas se assemelha” (KANNER, 1946, p. 16). Era assim que um menino de quatro anos, ao encontrar entre os brinquedos da sala Nemo, do filme Nemo, sempre o pegava para brincar. Certo dia descobre, na estante da analista, uma escultura que lembra a forma de um peixe. Ele a nomeia de Nemo e a leva para a pia, enche a pia de água para mergulhar “Nemo”. Para Rodriguez, as ilustrações de Kanner, nesse artigo apontam mais para as definições de metonímia. Ao citar o texto Kanner dá razão a Lacan (CECCARELLI apud RODRIGUEZ, 1999), Rodriguez enfatiza que a falta de intervalo entre S1 e S2 impede que haja sujeito como metáfora, já que para haver metáfora é preciso que a cadeia significante não seja plena. Como sabemos, Lacan (1964/1985) faz referência a isso ao falar da holófrase da cadeia significante presente na psicose, no fenômeno psicossomático e na debilidade mental. Lacan não se refere ao fenômeno psicossomático e na debilidade mental como estrutura, mas sim que elas apontam para algo específico da relação do sujeito com o Outro. É interessante, então, lembrar que Lacan já havia chamado atenção sobre isso no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
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(1958/1998). Nesse texto, Lacan diz que “a condição do sujeito (neurótico ou psicótico) depende do que acontece no Outro, A, e tal acontecimento se articula num discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)” (LACAN, 1958/1998, p. 555). No exemplo com Nemo vemos que ele pode ser um dos estágios da aquisição da linguagem por qual passa uma criança. Trago, então, outro exemplo. Uma criança de cerca de dois anos vê uma locomotiva se aproximar e a nomeia por “Thomas”, a locomotiva é nomeada pelo nome próprio do desenho animado Thomas e seus amigos, de um canal fechado da TV. Para essa criança, como é para todos que adquirem a linguagem durante um tempo, “o nome próprio carece do traço essencial do nome próprio: nomear algo, um objeto individual na sua singularidade” (RODRIGUEZ, op. cit.). Contudo, encontramos isso institucionalizado na linguagem quando, por exemplo, utilizamos Gilette no lugar de barbeador. O significante Gilette passa a ser o nome próprio de barbeador e não remete apenas à marca Gilette, há uma ampliação de sentido. No autismo, a holófrase do par significante S1 e S2 não é sem consequências. O “S1 se subtrai ao discurso e, aderido como está ao S2 holofraseado, ele o ‘arrasta’ consigo para fora do discurso S2” (Ibid.). Assim, a clínica com crianças autistas revela que os significantes se mostram congelados e exercem apenas a função de signo, representar algo para alguém sem a dialética própria à função significante. Entretanto, costumamos ouvir diferentes acepções sobre a saída do autismo. Para Rodriguez, isso corresponderia “ao ‘descongelamento’ desses signos e à sua mutação em significantes” (Ibid.). Cabe ainda colocar mais uma questão: tratar-se-ia de uma aquisição sem volta ou de uma alternância? Retomarei um último recorte clínico, no qual tentarei abordar essa questão. O menino em vias de fazer três anos que era cotidianamente treinado pelos próximos a cantar “Parabéns para você” e apagar a velinha. Essa criança ao desenhar ainda faz bastante uso de garatujas, onde vemos o furor do polimorfismo sexual da criança, porém o número 3 aparece e a analista marca: “olha o 3”. A criança, que ia fazer outro desenho, para e volta-se para a analista com um largo sorriso. Ao mesmo tempo, essa criança ainda mantém uma linguagem com muita ecolalia onde é vislumbrado o seu apagamento enquanto sujeito por meio do qual o sujeito permanece excluído do discurso que enuncia. Por fim, concordo com a afirmação de Colette Soler, segundo a qual “esses sujeitos não entram por sua própria conta na alienação significante” (SOLER, 1999, p. 226). Se o fazem é na medida em que podem encontrar um analista como o parceiro que pode escutá-los e acompanhar como se dá e se desenrola a relação com o Outro para essas crianças. Longe de automatizar a linguagem e a vida das crianças autistas, o analista deve estar atento à possibilidade de a criança poder deixar de ser um puro significado do Outro.
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O desejo do analista e o autismo
resumo
O artigo examina o que pode o psicanalista frente a alguns sujeitos que fracassam ao se inscreverem num discurso, mas especificamente no discurso do Outro, como é o caso das crianças autistas. O texto busca investigar qual o uso que essas crianças podem fazer do desejo do analista, através de recortes clínicos. Parte da constatação de que essas crianças se interessam bastante em por em ação os pares de significantes opostos, demonstrando um fascínio pelo nível mais arcaico da linguagem. Ressalta que longe de automatizar a linguagem e a vida das crianças autistas, o analista deve estar atento à possibilidade da criança poder deixar de ser um puro significado do Outro e assim adentrar na alienação significante. Para tanto, adverte que, muitas vezes, é necessário encontrar um analista como o parceiro que pode escutá-los e acompanhar como se desenrola a relação com o Outro para essas crianças.
palavras-chaves
Desejo do analista, autismo, alienação, Outro, linguagem.
abstract
The article examines what the psychoanalyst can do as he finds himself working with some individuals who fail to enroll in a speech, specifically in the discourse of the Other, as it happens with autistic children. The text aims to investigate the use which these children can make of the analyst’s desire, through clinical samples. It departs from the conclusion that these children become very interested in putting into action the pairs of opposing significants, demonstrating a fascination for the most archaic level of language. It also points out that far from automatizing the language and the lives of autistic children, the analyst should be alert to the possibility which may lead the child into no longer being a pure meaning of the Other and thus go into significant alienation. To this end, the article warns that it is often necessary to find an analyst who will work as the partner who can listen to them and follow how the relationship with the Other for these children unfolds.
keywords
Desire of analyst, autism, alienation, Other, language.
recebido 15/02/2014
aprovado 21/06/2014
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.125-133 novembro 2014
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direção do tratamento
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Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo
Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo 1
Bela Malvina Szajdenfisz Lacan faz essa citação, de autoria de Simone Weil, em O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, na lição de 13/05/1959, quando convoca os psicanalistas a ocuparem o lugar de objeto a, objeto este que causa o desejo de o sujeito trazer algo de sua verdade à tona, impulsionando o discurso inconsciente. A autora se apropriou dessa citação, como uma metáfora, com o objetivo de desenvolver o trabalho do psicanalista em sua prática clínica enquanto objeto a, lugar em que o analista põe o sujeito analisante ($) a produzir os significantes que o determinam. A questão da avareza aparece durante o processo de uma jovem em análise, como um significante do Outro, significante esse que ela toma para si como uma sina que a persegue e que lhe provoca um mal-estar. O significante “avaro”, com suas derivações “avarento” e “avareza” se faz presente na fala da jovem de uma forma insistente, o que a leva a buscar saber sobre o segredo familiar que lhe faz enigma. Ela esconde no seu “cofre” o objeto precioso, o pai biológico, por não querer perdê-lo, mas a ele não tem acesso, efeito de um dito materno proibitivo na adolescência e de uma confrontação, na época, inamistosa com esse pai. O fragmento desse caso clínico, que muito contribuiu para a clínica da autora, é o de Verônica,2 que após muitas andanças pelo mundo acompanhando os pais que a criaram, retorna às suas origens, a cidade de São Paulo,3 em busca do pai que lhe foi “arrancado” ainda na infância. Verônica trabalha para uma ong4 como pedagoga. Saiu da cidade em que atual1 Este artigo baseia-se na apresentação realizada por ocasião do XIV Encontro Nacional da EPFCL – “O desejo e suas errâncias”, cujo título original foi Em busca da verdade. O título foi extraído de uma frase de Simone Weil, escritora francesa, citada por Lacan (1958-59/2002, lição de 13 de maio de 1959, p. 394). Foi utilizado pela autora como uma metáfora. 2 Nome derivado do latim verum (verdade) . 3 Neste artigo as cidades, nomes e profissões utilizadas pela autora são fictícios. 4 Organização não governamental que trabalha em comunidades carentes.
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mente vive sua família, porque queria se distanciar de seu controle. Trouxe consigo o desejo de busca pelo pai biológico e a tiracolo, o namorado alagoano que, ao passar em um concurso público para o magistério superior, mudou-se para outra cidade no norte do Brasil. Verônica não o acompanhou. Diz que o ama, mas teme recomeçar uma nova peregrinação. Atribui à universidade um obstáculo para sua vida, pois quando pequena, foi obrigada a morar com os pais no exterior, por causa dos mestrados e doutorados deles e agora, na fase adulta, vê isso se repetir. Diz que não quer isso para si, mas quer construir sua própria família em outra base, que não a da família em que foi criada. Na sua primeira entrevista, Verônica se queixa de uma gastrite e se apresenta com manchas pelo corpo, sem diagnóstico preciso. As manchas apontam para o sintoma, levando a perceber que ali há uma mensagem. Ela é o mensageiro que carrega suas marcas. Seu código pessoal está gravado no corpo, exigindo uma decifração. Os pais biológicos de Verônica se conheceram em São Paulo, ainda estudantes de biologia, e foram morar juntos quando ela nasceu. Ainda pequena, eles se separaram. Sua mãe, sentindo-se desamparada, sem trabalho, conseguiu uma bolsa para o mestrado em uma cidade no sul do Brasil, onde encontrou em Figueiredo5 alguém que pudesse lhe dar uma sustentação e com ele acabou se casando. Verônica, que queria muito ter um pai, aos cinco anos arrancou a foto de seu pai biológico do álbum de bebê e a substituiu pela foto de Figueiredo, seu pai adotivo, que simplesmente riu. Ela se queixa até hoje de que perdeu seu pai verdadeiro por um pai que a adotou parcialmente. Isto porque prometeu dar-lhe seu sobrenome e nunca o fez. Como ele havia passado para um doutorado no exterior, a família precisou acompanhá-lo e nunca mais se falou dessa mudança de nome. Em uma das sessões, Verônica evoca uma passagem traumática de sua adolescência. Silva, seu pai biológico, veio ao seu encontro, mas sua mãe interveio impedindo qualquer aproximação, só consentindo após a concordância dele em custear os estudos da filha, o que o fez por curto período. Com a interrupção do custeio dos estudos, Verônica se viu na contingência de trabalhar, mas só conseguiu quitar a dívida com a ajuda do pai adotivo, irritando a mãe a tal ponto que ele exigiu que a filha entrasse na Justiça contra o próprio pai. Na sua fantasia de adolescente, ela imagina que seu pai nunca mais vai querer vê-la. Ela diz não querer nenhum contato com ele, mas precisa saber de sua história. Verônica lembra-se de ter exercido funções domésticas, de organização da casa por um bom período. Enquanto sua mãe trabalhava em outra cidade, ela cuidava de sua meia-irmã mais nova. Ela, por não se sentir parte da família, em sua 5 Sobrenome fictício dado para ressaltar a notoriedade do sobrenome da família. João Batista Figueiredo foi o trigésimo Presidente do Brasil no período de 1979 a 1985 e o último presidente do período do regime militar.
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fantasia se via como uma personagem do conto de fadas “A gata borralheira”, conhecida também como Cinderela, conto que retrata uma jovem que vivia com sua madrasta malvada junto a suas duas filhas que a faziam de serviçal. No entanto, originalmente, a verdadeira gata borralheira era a única filha biológica do pai, sendo que as meias-irmãs, essas sim, eram filhas adotivas do pai de Cinderela. Dentre as queixas, a avareza da mãe ainda a incomoda. Reclama que, mesmo em boa situação financeira, essa mãe nunca lhe comprou roupas femininas de marca, como o faz com a irmã. Ela até hoje tem dificuldade de entrar em loja de marca, confirmando o lugar de “borralheira”, significante que faz equivocidade com “borrar”, como “borrar o caderno de matemática”, matéria que tinha dificuldade quando retornara do exterior. Na ocasião, ouvia com frequência do pai adotivo: “Você nem parece uma Figueiredo!”. Pode-se pensar na hipótese de que, no caso, borralheira não é somente a que fica marginalizada, como a história da gata borralheira, mas a que “borra os Figueiredo”. É interessante notar que Verônica traz na sua carteira de identidade o sobrenome do pai biológico, Silva, mas não o usa nas suas assinaturas. Utiliza apenas o sobrenome da família materna, Campos. Sua mãe insiste que ela é uma Figueiredo. Figueiredo é o estatuto da família. O seu lugar na família é, no entanto, diferente do lugar dos Figueiredo. O não ter o sobrenome do pai adotivo a torna uma exceção, fazendo valer o pai biológico, o pai que foi descartado ao se separar dela. Biologia é a profissão escolhida por todos os membros da família. No caso, Verônica se crê também uma exceção, na medida em que não escolheu trabalhar na universidade, nem seguir a profissão da família. Escolheu ser pedagoga. Ao ocupar um lugar diferente do de Figueiredo, ante a fantasia de gata borralheira, Verônica não se coloca na série no momento em que se separa da casta dos “perfeitos”. Na realidade, ela fica muito dividida em relação à sua filiação. Por um lado diz que, diante da mãe e do Figueiredo, sempre precisou se esforçar muito para ser digna deles, mas ao mesmo tempo se culpa por querer ir à procura do pai biológico, o que seria uma ingratidão com seus pais atuais. Percebe-se que sua fragilidade e sua insegurança a levam à duplicidade em quase tudo: dois empregos, dois pais, duas mães, duas casas. Ao longo do processo analítico verifica-se em Verônica uma transformação. Ela, agora, apresenta-se como uma mulher bem feminina e sedutora, usa amplos decotes e adereços que permitem cobrir-se e descobrir-se, uma particularidade sua que faz naturalmente. Essa jovem retornou a São Paulo em busca de sua verdade e começou o tratamento alguns meses após sua chegada. Em maio de 2013, o namorado mudou-se da cidade e ela decidiu permanecer na cidade que escolheu para ela. Repete, com frequência, que não foi isso que sonhou para ambos. Ela tenta manter-se fiel ao
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projeto original de encontrar aquele que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu convívio quando criança. Em O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, Lacan nos diz que o discurso fragmentado, efeito do recalque, contém elementos interpretáveis que vão surgindo à medida que o sujeito em análise tenta reconquistar-se na sua originalidade. Mas, ainda que a enunciação aponte para o lugar do falante e do seu desejo, o mais próximo a que se pode chegar diz respeito a fragmentos, ou a um dizer marcado pela falta (LACAN, 1958-1959/2002, lição de 28/01/1959). Lacan, em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (LACAN, 1958/1998), acrescenta que para apreender o desejo é preciso tomá-lo ao pé da letra, na decifração da cadeia significante, um processo cuja lógica traz a marca da impossibilidade de um saber todo, a recusa de uma verdade irrefutável. Fixado como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da operação de linguagem, motor na enunciação do “isso fala” do inconsciente, um saber muito maior do que o homem crê saber. É um saber ele mesmo, um saber que não se pode saber por que está recalcado, um saber que faz parte do recalque original, algo da ordem do impensável, um saber que a gente sabe sem sabê-lo (LACAN, 1976-77, lição de 14/12/1976). Ao final de seu ensino, Lacan relativiza a descoberta freudiana em produzir um corpo de significantes e significações nas interpretações dos casos clínicos. Ele nos diz que a linguagem deve ser pensada como real, pois há um saber no real e é nesse saber que está a verdade, priorizando, assim, o gozo. Nesse sentido, uma psicanálise que visa tudo interpretar e dar sentido a todas as coisas, a tudo que é falado pelo sujeito, é de outro estofo. As interpretações nada dizem, são meras intervenções no dizer do analisante. O analista participa do inconsciente do analisante sustentando o seu desejo, mas, na análise, o Um dialoga sozinho, pois ele recebe sua própria mensagem sob forma invertida. Satisfazer a demanda dirigida ao saber é algo da ordem do inacessível, uma vez que é um-dizer que se sabe sozinho (Ibid.). Assim, ao ouvir a partitura de um sujeito, o analista não pode ser tomado pelo sentido, mas precisa ouvir os engasgos, os tropeços, os tons, os sons, o silêncio, uma enunciação para além dos ditos. Em relação à verdade, cito Soler (2009): A verdade articulada é impotente ao dizer do real que a comanda, não chega ao seu núcleo real, ainda que teime em fazê-lo. Se se a recalca, ela retorna; se se a amordaça, ela se mostra em outro lugar; se se demanda o que ela esconde, ela mostra apenas uma meia verdade. Sua insistência reiterada nos deixa, no entanto, entrever um real de causa inominável que a anima, um impossível de dizer desse ‘objeto que falta’, para sempre perdido, ainda que engendre o mais-de-go-
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zar de onde o desejo se articula ao gozo (p. 19, tradução da autora). Verônica lamenta-se da sina que a persegue até os dias atuais, sina com a qual se identifica em sua fantasia: a da mãe, com seu sofrimento e sua avareza. Ela esconde no “cofre” esse pai imperfeito, objeto agalmático não-todo, capaz de furar a série dos perfeitos. Encerra em si o objeto de seu desejo, um objeto mortificado, fora do circuito, subtraído, inapreensível, um gozo para além da linguagem, que escapa ao discurso e se experimenta no corpo. “Por que tenho que saber tudo?” “Eu não tenho que saber tudo!” são ditos de Verônica que confirmam um amor cujo pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio de sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade. O sujeito com que a psicanálise trabalha é produto do discurso da ciência, mas a ciência da psicanálise é de outro estofo. Na psicanálise há um saber que não comporta conhecimento. É um saber que não se sabe, mas que está lá recalcado e que contém uma verdade que o sujeito crê saber. Mas o sujeito não sabe nem do texto, nem do sentido, nem da língua, cabendo ao analista promover a decifração de seu enigma. Esta primeira clínica de Lacan se pauta em dar um sentido ao que o sujeito diz. Na segunda clínica, Lacan aponta para uma intervenção no querer gozar do sujeito, ou seja, ele muda a noção de estrutura, sendo esta pensada não como linguagem, mas como real. O objeto a, nesse segundo caso, está fora da linguagem e se concentra como objeto condensador de gozo, não sendo da ordem do sintoma. O modo de barrá-lo é pelo ato analítico, sendo o corte da sessão uma de suas possibilidades. Esse caso clínico pode mostrar à autora que uma clínica não exclui a outra. Sua utilização se dará em função da prática, da habilidade e do desejo do analista. O efeito é a busca do sujeito analisante por um melhor se sentir.
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resumo
Este artigo traz um fragmento de um caso clínico de uma jovem que, após muitas andanças, retorna às suas origens, o São Paulo, cidade em que mora seu pai biológico. Vai em busca da verdade que se esconde por trás de um segredo familiar. Fixado como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da operação de linguagem, motor na enunciação do “isso fala” do inconsciente, um saber muito maior do que o homem crê saber. Verônica quer encontrar aquele que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu convívio quando criança. Guarda no cofre o objeto de seu desejo, um objeto mortificado, fora do circuito, inapreensível, um amor que denuncia que o pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio de sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade.
palavras-chave
Verdade, desejo, saber, impossibilidade.
abstract
This article presents a fragment of a clinical case of a young woman who, after many wanderings, returns to her origins, São Paulo, the city where her biological father resides. She goes in search of the truth that is hidden behind a family secret. Fixed as a constant by the fundamental fantasy, the desire is there, as an effect of language operation, the engine of the enunciation of the ‘this speaks’ of the unconscious, a knowledge far greater than what man believes he knows. Verônica wants to find the one who, in her fantasy, was pulled away from her life when she was a child. She keeps in a safe the object of her desire, an object which is mortified, out of circulation, ungraspable, a love that denounces that the alleged object is the rest, her cause, the basis of her dissatisfaction and perhaps of her impossibility.
keywords
Truth, desire, knowledge, impossibility.
recebido 15/02/2014
aprovado 25/08/2015
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A letra do desejo – um relato de sonho
A letra do desejo um relato de sonho Maria Vitória Bittencourt Foi com seu texto O sonho do unicórnio que Serge Leclaire elaborou sua concepção do desejo inconsciente como ordem da letra, numa demonstração da psicanálise como uma prática da letra. Esse texto teve várias versões e foi debatido no Seminário de 1965, Problemas cruciais para a psicanálise (LACAN, 1964-65). A grande novidade introduzida por Leclaire, ao apresentar o caso de Phillipe para defender sua tese, não traz o relato de uma análise, nem uma biografia do paciente, mas um sonho em que a cifra do inconsciente é desvelada a partir de uma interpretação do analista, prova da primazia do significante. Isso pode ilustrar a ideia de Freud de que um sonho pode englobar toda uma análise, pois equivaleria a todo o conteúdo da neurose, e que “a interpretação completa deste sonho coincidirá com o término de toda a análise” (FREUD, 1912/1969, p. 123). Outro ponto inédito nesse texto é o fato de o próprio analisante efetuar o trabalho de deciframento do sonho, pois ficou demonstrado que se tratava da análise de Leclaire com Lacan, concluída sete anos antes (ROUDINESCO, 1986, p. 321). Talvez seja o único caso clínico que temos de Lacan como analista, estabelecendo-o como um paradigma da análise lacaniana. Assim, é como analista de sua própria experiência que Leclaire escreveu esse texto e podemos considerá-lo que teve um valor de passe, no sentido da hystoricização de sua análise com Lacan. Segundo Michel Bousseyroux, essa dimensão de passe é particularmente notável nas três lições do Seminário 12, Problemas cruciais para a psicanálise, em que Lacan convida Leclaire a retomar o caso Phillipe e pede aos membros de sua escola que deem sua opinião sobre o caso (BOUSSEYROUX, 2009, p. 82). A resposta de Leclaire a todas as questões debatidas nesse seminário se encontra no texto publicado em 1966, considerado sua última versão (LECLAIRE, 1966, p. 106). Esse trabalho foi apresentado no Colóquio de Bonneval, de 1960, consagrado ao Inconsciente, organizado por Henri Ey, cuja proposa era abrir um debate com os filósofos, psiquiatras e psicanalistas das duas tendências na época: Lacan e IPA. O que estava em jogo era o ensino de Lacan e seu retorno a Freud nas relações do inconsciente e da linguagem. Desta maneira, esse sonho vem demonstrar a prevalência do significante sobre todo o metabolismo das imagens, a partir de um estudo detalhado da função da letra. Propomos a leitura da versão publicada em 1968,
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no primeiro livro de Leclaire intitulado Psicanalisar (LECLAIRE, 1968, p. 99). Eis o relato do sonho: A praça deserta de uma aldeia, é insólito. Eu procuro alguma coisa. Aparece, pés nus, Liliane, que eu não conheço, que me diz: faz muito tempo que não vejo uma areia tão fina. Estamos numa floresta e as árvores parecem curiosamente coloridas, com tons vivos e simples. Penso que tem muitos animais nessa floresta e, quando me apresso a dizer isso, um unicórnio cruza nosso caminho. Andamos os três em direção de uma clareira que se supõe abaixo (Ibid. p. 99). Eis o texto manifesto do sonho que, pela via das associações, Leclaire vai extrair aquilo que insiste em seu dizer: o texto inconsciente. A partir desse relato, um deciframento de grande riqueza de detalhes vai se efetuar em torno de associações do paciente, das quais vamos retomar alguns pontos. O trabalho em torno do sonho traz várias lembranças. Primeiramente, a praça deserta remete à fonte do unicórnio que se situava na aldeia onde, muito pequeno, passava as férias com a família. Fonte essa em que o pequeno Serge gostava de beber água com um gesto de juntar as mãos como uma concha. Beber a água da fonte o leva à lembrança de Lili, uma prima de sua mãe que o havia apelidado de “Philippe tenho sede”, pois a criança não parava de repetir: “tenho sede”.1 Cada vez que se encontravam, ela o chamava de “Philippe-tenho-sede”, uma fórmula que se tornou um signo de reconhecimento, uma espécie de pacto que diz, sobretudo, o jogo de sedução entre os dois e da espera de uma satisfação garantida. Segundo Leclaire, no sonho, o paciente realiza seu desejo de beber, remetendo a um evento da véspera, que fornece ao sujeito o meio de apaziguar um desejo de beber diferente da necessidade real. O desejo de beber estaria ligado a essa mulher, Lili, que testemunha que sua queixa é entendida como um apelo ao desejo, portanto desejo de Lili. A evocação da sede pelo analista permite a abertura de lembranças de infância, quando tinha de três a quatro anos de idade. Lembra então da sua relação com a praia e de sua fobia pelo contato com a areia no seu corpo, como também com migalhas, fobia que se manifestava à noite na cama, fato que suscitava uma grande angústia. Outro tema do sonho, o pé, remete a essa manifestação quanto ao corpo: esforçava-se para tornar a sola do pé bem dura, como um chifre,2 para andar sem risco de se ferir na praia e assim ser admirado por seus amigos, graças à sua proeza. Uma maneira de realizar sua fantasia obsessiva de manter seu corpo protegido pelo revestimento de couro invulnerável (Ibid. p. 103). Surge o significante chifre, que remete à cicatriz de Philippe, no mesmo lugar 1 Em francês, “Philippe j’ai soif”. 2 Em francês, “corne”.
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onde está implantado o chifre do unicórnio.3 Uma marca sobre o corpo onde comemora um valor fálico e seu traço. Para Philippe, essa cicatriz que atinge a integridade de seu corpo é, antes de tudo, um signo de reparação, de sutura, de preenchimento. Tudo isso se articula aos cuidados atenciosos de uma mãe impaciente de satisfazer às necessidades de seu corpo. Esse amor materno excessivo, que trazia muita satisfação a Philippe, não impedia sua eterna sede, marca do destino do obsessivo. Vemos que o falo aparece nessa cicatriz, falo desejado por Lili, efetuando um remanejamento da organização libidinal do sujeito. Assim, a partir desses elementos do sonho, Leclaire isola uma série de significantes que se repetem no dizer de seu paciente, significantes que vêm desvelar a cadeia metonímica do desejo do sujeito. São eles: “Lili-sede-praia-vestígio-pele-pé-chifre”.4 Então, o autor nos convida a deixar de lado toda tentativa do que chama de reconstrução e tomar essa cadeia significante inconsciente na sua literalidade, aproximando os termos das extremidades, fazendo surgir o significante Li-corne. A atenção se fixa na estrutura literal de Li-corne, para se despreender do valor altamente significativo de uma representação da linguagem, para se ater ao jogo de letras que indica a via para o inconsciente. (Ibid. p. 110). Pois Li-corne condensa Lili, e corne que o sujeito deseja ter, dois extremos da cadeia onde o falo vai se situar na cicatriz, marca do objeto de desejo de sua mãe. Li-corne também remete a “belo corpo de Lili”5 e ao objeto mitológico – o unicórnio – evitando assim que esses elementos se fixem numa imagem. Desta maneira, decompondo a estátua do unicórnio em um jogo de letras – Li-corne – o analista permite a redução do relato à cadeia significante. Lembramos que o unicórnio é um animal mitológico, emblema da pureza e força, cuja lenda diz que o único ser capaz de domá-lo é uma donzela pura. Assim, para capturá-lo é preciso deixar uma virgem na solidão de uma floresta, como oferta ao unicórnio, que desta maneira viria colocar seu chifre no seu interior, cujo efeito seria de adormecê-lo. Nesse momento, Leclaire evoca a estratégia do analista e sua interpretação, descrita como aquela de uma “reverberação” onde, “deixa se desdobrar e se esgotar a intensidade do eco significativo, até que se imponha o traço literal (…) deixando ressoar como o apelo da sereia, som que o paciente produzia quando soprava nas mãos em concha”. Vemos como essa intervenção do analista anula o sentido, não se situando na dimensão da significação. Podemos considerar um exemplo de interpretação lacaniana. O efeito dessa interpretação se encontra na rememoração de brincadeiras infantis, em que o menino fazia piruetas e saltos, movimentos sempre carregados de muita 3 Em francês “licorne”. Importante ressaltar a semelhança entre “corne” e “Licorne”. 4 Em francês “Lili-soif-plage-trace-peau-pied-corne”. 5 Em francês, “joli corps de Lili”. Destacamos a semelhança na sonoridade de “corps” e “corne”.
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jubilação, e acompanhados pela emissão de um significante “Poor(d) j’e-li” (Ibid. p. 112). Lacan retoma esse exemplo no Seminário 11 para ilustrar que “a interpretação não visa ao sentido, mas a reduzir os significantes no seu não-senso significante (...)” e que, o mais importante não é essa significação para o sujeito, mas o essencial é que ele veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está, como sujeito, assujeitado (LACAN, 1964/1979, p. 237). Poordjeli é fabricado pelo sujeito e só surge como efeito da interpretação do analista. Pelo fato de ser produto da lalíngua, não podemos dizer que é um significante fora do sentido, pois está carregado de um sentido opaco que concerne o sujeito e, segundo Lacan, fixa a cadeia de seu desejo, sustentado pela fantasia. Trata-se de um significante fabricado a partir da voz entendida de mãe que o chamava de “coitadinho do tesouro”,6 seu preferido, objeto de suas carícias noturnas (LECLAIRE, 1968, p. 114). Assim vemos, como a partir do trabalho de um sonho, surge um significante que ilustra a noção introduzida por Lacan em 1975: o moterialismo da lalíngua: “É a maneira pela qual a lalíngua foi falada e também entendida na sua particularidade que algo aparece nos sonhos, nos tropeços, no modo de dizer” (LACAN, 1975/1985, p. 12). Poderíamos fazer outras considerações sobre a letra nesse trabalho de Leclaire, onde ele apresenta todo um desenvolvimento sobre as letras do nome próprio do sujeito, propondo uma articulação com a fantasia fundamental. Pois Poordjeli faz função de nome secreto do sujeito, nome de seu gozo onde o sujeito comemora a letra fálica. Não deixa de ser supreendente da parte de Leclaire esse trabalho sobre a letra, pois lembramos que seu sobrenome foi modificado em 1950, por insistência de seu pai, para evitar problemas ocorridos com a família judia na segunda guerra mundial. Seu sobrenome era Liebschutz, sobrenome alemão que quer dizer amor e proteção (ROUDINESCO, 1986, p. 292). Nesse texto dos anos 1960, a noção de letra não tinha a mesma função que vai adquirir no ensino de Lacan, pois até então não havia distinguido letra e significante. O mesmo para a lalíngua, que será introduzida somente a partir do Seminário Mais ainda. Porém, não podemos deixar de ressaltar como, a partir de um traço literal, Leclaire demonstra como, na história libidinal infantil de Phillipe, seu corpo foi investido com a letra do desejo materno. Leclaire nos apresenta que, ao seguir a via do real na experiência analítica, letra por letra, o inconsciente pode ser elucidado na sua moterialidade. Talvez por isso, nesse mesmo seminário, Lacan observa que nesse texto de Leclaire, “as coisas vão mesmo muito mais longe” (LACAN, 1964-65). Esse trabalho sobre o sonho de Leclaire teve origem na minha constatação de que, nos diversos testemunhos no Cartel do passe, o sonho, ou os sonhos, eram sempre apresentados para descrever um momento de virada da análise, um mo6 Em francês “pauvre trésor”.
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mento de passe. Essa experiência teve como efeito produzir alguns textos sobre o sonho – “Sonho: via régia?”, “O inconsciente: trabalhador ideal”, “Uma via da satisfação” (BITTENCOURT, 2007, 2009, 2010). É verdade que, nos testemunhos dos passadores, se tratava antes, de sonhos em que a presença do analista, com sua interpretação, trazia uma outra dimensão – aquela de um despertar, que nunca se dá sem evocar uma certa relação com o real. Num deles, a partir de uma interpretação do analista, o efeito foi o surgimento de uma fórmula da lalíngua, carregada de gozo. Portanto, um sonho pode tocar, se aproximar do real do inconsciente, não porém sem a presença do analista. Foi isso que um passante nos mostrou – um sonho que fez surgir um significante da lalíngua, língua esquecida que permitiu aceder ao sentido do sintoma. A dimensão do gozo pôde ser atingida graças à lalíngua, tocando o real do sintoma reduzido a uma letra – via mais curta – onde se revela o modo pelo qual o sujeito goza de seu inconsciente – singularmente e realmente. Vemos nesse sonho de Leclaire, não somente uma demonstração da função da letra no inconsciente, como também podemos considerar como uma ilustração da passagem do analisante ao analista, objetivo central da Proposição do Passe, de Lacan. Ao teorizar o processo que produziu efeito em sua análise, tornando-se analista de sua própria experiência, deixa um testemunho da marca de seu desejo e do seu entusiasmo pela causa analítica.
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A letra do desejo – um relato de sonho
resumo
Com seu texto “O sonho do unicórnio”, Serge Leclaire elaborou sua concepção do desejo inconsciente articulado à letra. O trabalho em torno de significantes do sonho demonstra como a psicanálise se revela como uma prática da letra, onde lalíngua tem uma posição primordial. Podemos considerar que esse texto teve valor de passe pelo fato de se tratar do relato de um sonho em análise, cujo autor se faz analista de sua própria experiência – o que mais tarde Lacan chamou, em 1976, de hystoricização de análise. Trata-de de uma teorização de sua própria experiência de analisante, um testemunho da função da letra no inconsciente, ilustrando a passagem do analisante a analista, objetivo fundamental da Proposição do Passe, de Lacan.
palavras chave
Sonho, desejo, letra, inconsciente, passe.
abstract
With his text “ The dream of the unicorn“, Serge Leclaire elaborates his conception of the desire of the inconscious articulated with the letter. The work with the signifiers of the dream demonstrates how psychoanalysis reveals as a practice of the letter, where lalangue has a most important place. We can regard this text as having a value of passe by the fact that it discuss a work of a dream in his own analysis. Becoming the analyst of his own experience, he illustrates the hystorisation of an analysis, as Lacan define it in 1976. Making a theory of his experience as an analysand, he testifies the foncion of the letter in the inconscious and the passing to analyst, the fundamental objective of the Lacan’s Proposition of the passe.
keywords
Dream, desire, letter, inconscient, passe.
recebido 15/02/2014
aprovado 21/07/2014
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.143-149 novembro 2014
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose 1
Lenita Pacheco Lemos Duarte Após anos de investigação, Freud começa a mencionar seu trabalho sobre as neuroses em 1894, e procura esclarecer a etiologia das neuroses no Rascunho K (1896a/1976, pp. 241-249), buscando diferenciar os diferentes tipos de gozo vivenciados no primeiro encontro com o sexo e a vicissitude da separação vinculada a essa experiência. Trata-se de um rascunho denso e complexo, onde Freud fala que há quatro e muitas formas de neuroses de defesa, fazendo uma comparação entre histeria, neurose obsessiva e uma forma de paranoia. Atribui vários traços em comum, afirmando: são “aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos normais: de conflito (histeria), de autocensura (neurose obsessiva), de mortificação (paranoia), de luto (amência alucinatória aguda)” (FREUD, 1896a/1976, p. 241). Desta forma, Freud faz uma distinção entre a estrutura do sujeito e a doença desencadeada. O aparecimento destes estados estaria sujeito às mesmas causas precipitantes de seus protótipos afetivos, desde que a causa satisfaça a duas outras pré-condições – que seja de natureza sexual e que ocorra no período precedente à maturidade sexual. A neurose é infantil por definição. Nesse artigo, Freud denominou-as de “psiconeuroses de defesa”, aproximando a neurose obsessiva da histeria, ressaltando que ambas têm em comum o fato de resultarem da ação “traumática” de experiências sexuais vividas na infância, e de constituírem um esforço de defesa contra qualquer representação e qualquer afeto que provenham dessas experiências e tente perpetuar o que elas tinham de incompatível com o eu. Freud destaca que o trabalho defensivo da neurose (obsessiva ou histérica) “consiste em transformar a representação forte da experiência infantil penosa numa representação enfraquecida e em orientar para outros usos a soma de excitação que, por esse estratagema, foi desligada de sua fonte verdadeira” (KAUFMAN,1996, p. 359).
1 Parte deste trabalho foi originalmente apresentada no I Colóquio da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Fórum Rio: “Histeria: Sujeito, Corpo e Discurso”, 2003 e na XIV Jornada da AFCL, Belo Horizonte, “O Desejo e suas Errâncias”, 2013. O desejo nas neuroses também foi tema de pesquisa do Cartel realizado por um grupo de psicanalistas de Niterói, RJ, do qual fiz parte, no período de 2007 a 2009, sob o título de Diferenças entre as neuroses histérica e obsessiva.
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Freud observa que a diferença entre tais neuroses consiste em que, na neurose obsessiva, assim como na fobia, a fonte de excitação permanece necessariamente no domínio psíquico, enquanto na histeria ela é “transportada para o corporal”, por um processo de conversão. O caráter puramente mental dos processos obsessivos é mais obscuro e incompreensível do que o da histeria, sendo mais difícil entender um dialeto em que a língua dele é próxima, no caso, a histeria. Na neurose obsessiva, o processo pelo qual a representação do episódio passado se desliga do seu afeto próprio e esse afeto se une a outra representação que lhe convém, e que já não é incompatível com o eu, é um processo que, por um lado, se produz fora da consciência, por outro, consiste numa substituição em que podemos ver “um ato de defesa (Abwehr) do eu contra a ideia incompatível” (KAUFMAN, Ibid.). Intervindo durante ou após a puberdade, a transformação das impressões penosas da experiência sexual infantil, por vezes muito precoce, culmina em obsessões que assumirão a forma de ideias, atos ou impulsos. No artigo sobre a Etiologia das Neuroses, Freud evoca outra diferença fundamental entre a histeria e a obsessão, no que se refere à natureza das experiências sexuais precoces, vividas respectivamente por um e por outro. Caracteriza o caráter ativo de experiência erótica infantil como a causa da patologia obsessiva, quando afirma: “Em todos os meus casos de neurose obsessiva, em idade muito precoce, anos antes de experiência de prazer, tinha havido uma experiência puramente passiva; e isso dificilmente se daria por acaso” (1896a/1976, p. 244). Freud pensara ter encontrado a razão da conexão mais íntima desta última e de maior frequência de obsessões nos sujeitos neurastênicos. Quanto à causa da patologia histérica, diz que esta “pressupõe necessariamente uma experiência primária de desprazer – isto é, de natureza passiva” (Ibid., p. 248). Dessa maneira, Freud achara ter descoberto o motivo da conexão da histeria com o sexo feminino, e da maior frequência das obsessões nos sujeitos masculinos. No entanto, em 1913, no texto A Disposição à Neurose Obsessiva (1913/1976, p. 401), Freud reconhece que essa forma de explicar as respectivas etiologias por essas afinidades não era pertinente, como já dera indícios desta dedução desde a Carta 46 (1896b/1976, pp. 249-253). Ele vai situar a vida sexual precoce como origem da neurose histérica e da neurose obsessiva, revelando como característica fundamental dessa última, seu vínculo estrutural com o sentimento de culpa. Ao reviver o gozo sexual que antecipava a experiência ativa de antigamente, o obsessivo faz recriminações a si mesmo num trabalho psíquico inconsciente de transformação e de substituição. “Resta para a histeria”, segundo Freud, “uma relação íntima com a fase final do desenvolvimento libidinal, que se caracteriza pela primazia dos órgãos genitais e pela introdução da função reprodutora” (1913/1976, p. 408). Na neurose histérica, esta aquisição está submetida ao recalque, não implicando regressão
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ao estádio pré-genital. Freud ressalta que ocorre também uma outra regressão na histeria, a um nível mais primitivo, dizendo: “A sexualidade das crianças do sexo feminino é, como sabemos, dominada e dirigida por um órgão masculino (o clitóris) e amiúde se comporta como a sexualidade dos meninos” (Idem, Ibid.). Observa que “esta sexualidade masculina tem de ser abandonada mediante uma última onda de desenvolvimento, na puberdade, e a vagina, órgão derivado da cloaca, tem de ser elevada à zona erógena dominante” (Ibid., p. 409). Prosseguindo, embora considere cedo demais, Freud afirma que “é muito comum na neurose histérica que esta sexualidade masculina seja reativada e, então, que a luta defensiva por parte das pulsões egossintônicas seja dirigida contra ela” (Idem, ibid.). Segundo Quinet, os tipos clínicos também se situam distintamente quanto ao desejo. Este é estruturado não como uma resposta e sim como uma questão inconsciente, situado no nível de “quem sou eu”? Para o obsessivo, trata-se de uma questão sobre a existência (estou vivo ou estou morto?); para a histérica, trata-se de uma questão sobre o sexo (sou homem ou sou mulher?) que é subsumida pela questão – tanto para o homem quanto para a mulher histérica – “o que é ser mulher?” (QUINET, 1996, p. 29). Feitas estas breves considerações, minha proposta de trabalho é apresentar recortes de dois casos clínicos, destacando o conflito na histeria de Juma, “a mascarada sintomática”, e a experiência de desprazer e a autorrecriminação na neurose obsessiva, tendo como consequência a culpa pela experiência proibida evidenciada por José, “o fóssil engessado”. Os fragmentos evidenciam como os tipos clínicos se difereciam quanto a questões sobre o desejo e a existência.
Juma, “a mascarada sintomática” Inicialmente, Juma procura atendimento para o filho de seis anos de idade que apresenta medo, dificuldade para juntar as letras e tem queixas frequentes de enjoo, vômito, alergias alimentares e diarreia. Nas entrevistas preliminares, Juma apresenta uma demanda de análise e passa a falar do seu desejo de se separar do marido, criticando-o: “Eu que resolvo os problemas do meu filho e banco tudo em casa, e ele sempre passivo”, quando acaba revelando que mantém um relacionamento afetivo com um médico, casado, com quem tem conseguido “algum prazer e amor”. Queixa-se de seu estado permanente de tensão e de diversos sintomas físicos que apresenta: espasmos musculares, dor no peito e, principalmente, constantes problemas vaginais que dificultam seu relacionamento sexual. Juma diz que costuma lembrar-se de seus sonhos, mas alega que estes são incompreensíveis para ela. Relata que sonha muito que “possui um pênis, medindo meio metro de comprimento, seja dependurado no cordão, seja no lugar do cli-
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tóris”. Outro que se repete: “Recebo telefonemas de meu amante, antigo médico de meu filho, que ao chegar de viagem quer me ver com urgência. Sempre vou correndo ao seu encontro”. Juma explica que esse sonho reproduz o que acontece no seu cotidiano, pois sempre corre para atender o amante quando ele a chama, mesmo que seja para um encontro fortuito, o que a deixa “confusa e insatisfeita”. Juma fala que apresenta frequentes lapsos, enganando-se ao preencher fichas, nas quais se apresenta como do sexo masculino: “Escrevo meu nome no lugar reservado ao nome do pai. Não sei porque acontece isso, se eu sou mulher e sou a mãe!”. Esses ditos da analisante apontam para manifestações do inconsciente que sinalizam a questão sexual da histérica: “Sou homem ou sou mulher?”. Durante a análise, Juma interroga e busca decifrar o sentido de seus sintomas, acrescentando outras queixas no corpo: “Hoje acordei surda, com dor de estômago e cólicas intestinais. Acho que é para não ouvir a voz do meu marido e para consultar meu gastro, pois estou com saudades dele. Meu pescoço também fica duro, vou ao ortopedista”. Aqui, a analisante mostra como joga com intensa plasticidade corporal, entregando-se a uma constante simbolização e sexualização na qual os significantes copulam. Ela chega a dizer: “Eu sou muito sintomática!”. No entanto, Juma reclama: “Vou a vários médicos, mas nenhum me cura!”. Recorrendo ao ensino de Lacan, Quinet diz que “a histérica inventa um mestre para não se submeter a ele, mas para reinar apontando as falhas de sua dominação e mestria” (1996, p. 29). Juma afirma que mesmo estando insatisfeita com seu marido, “que é parado, bobo e passivo”, não quer se separar, e resolve tentar “encará-lo”. Pensa em seu pênis e fantasia uma boa trepada, mas foge, enquanto busca entender por que recua, “ora se sentindo anestesiada, ora sentindo aversão por ele”, como fala, mantendo seu desejo insatisfeito. Pontua a analista: “Mas você permanece casada com ele...”! “É, e não sei a razão disso”, diz ela. Paradoxalmente, comenta que escolheu esse homem porque sexualmente fora o mais potente que conhecera. Pontua a analista: “Potente!”. E ela exclama: “Sim, no início lembrava meu pai superpotente, só com a diferença que papai tentava comer todas as mulheres, até minhas amigas”. Juma lembra-se de ter visto uma das relações sexuais entre seus pais, o que a deixou com muito medo e raiva por ter visto o pai agressivo, além de se decepcionar com a mãe, pois a considerava assexuada, não percebendo-a como uma mulher submetida a um homem autoritário e prepotente. Após uma briga do casal, seu pai contou para ela, na época com dez anos, que sua mãe o traíra antes de seu nascimento, o que a deixou transtornada pela dúvida quanto à sua paternidade e decepcionada por sua ideia de “santidade materna”. Juma frequentemente dorme com o filho justificando que precisa cuidá-lo pelos problemas alérgicos que apresenta, e seu marido não se incomoda e não se oferece para ajudá-la, o que indica que ele não barra o desejo incestuoso da mulher. Juma
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exclama: “Lá em casa está tudo misturado, só há brigas e desencontros entre mim, ele e o menino. Brigamos muito, porque meu marido me quer muda e eu quero falar. Ele dorme numa cama e eu em outra!”. No entanto, buscando aguçar a fantasia do marido, ela não se despe, mas se veste, quando exclama: “Gosto de comprar calcinhas e sutiãs, tenho prazer de me enfeitar para ele”. Lacan diz que “é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada” (1958/1998, p. 701). Continuando, afirma: “É pelo que ela não é que pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada” (Idem, Ibid.). Desse modo, ela recorre às máscaras, faz-se de falo, indicando que, para além dos panos e enfeites, está o que constitui seu maior mistério: o gozo feminino. Não tendo um significante que a identifique como mulher, resta-lhe criar uma imagem agalmática para se sentir amada e desejada, sua principal reivindicação. A impossibilidade da analisante é de se oferecer como objeto de desejo ao marido, de quem ela sabe que se encostar o dedo, “ele vem correndo”. Seu filho foi usado para que Juma chegasse à análise, para ver se o marido reagia e para desvencilhar-se de seu sofrimento corporal. Reclama de suas insatisfações junto ao marido e ao amante, que não a satisfaz sexualmente, mas lhe dá amor, quando diz: “Tenho dois homens iguais, incompletos! Com meu amante eu relaxo, é quando consigo me descolar do papel de mãe. Ele me ouve, com quem me sinto mulher, apesar de ele falhar sexualmente. Meu marido é bobo e parado, mas potente sexualmente. Eu o provoco, mas fujo dele”. O filho aparece como “sintoma do casal parental” (1968/2003, p. 369), e seus sintomas alérgicos e dificuldade de aprendizagem escolar revelam a impossibilidade da relação sexual e a falha do pai em barrar o desejo da mãe. Assim, Juma mantém com o marido uma relação de perene insatisfação, em que ela procura impor sempre algum obstáculo entre ela e essa pessoa incômoda, que presentifica para ela o desejo. Ser objeto de desejo é uma coisa dolorosa e equivocada para ela, que, como observado, aparece convertido em seu corpo. Ela produz vários sintomas e uma série de problemas vaginais, mostrando que seu desejo está cada vez mais forte, quando afirma: “Está tudo ardendo, queimando, fica tudo em brasa, igual a uma fogueira! Tenho que correr para o meu ginecologista!”. No encontro com o sexo, Juma traz a cena primária dos pais, na qual ela vive um desencontro ao ver um homem agressivo sexualmente e uma mulher submissa, que, em sua lógica, articula-se como ser mulher = ser passiva, calar = sofrer, posição masoquista de ser agredida. Assim, ela tenta de todos os modos escapar de ser objeto de desejo de um homem e poder gozar como mulher, evidenciando dificuldades em
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assumir a castração e usando seu filho como tampão fálico. A estrutura histérica revelada nesse caso se resume a encontrar um homem, sustentá-lo, denunciar sua impotência e fazer com que esse homem seja impotente. Ser objeto de desejo é uma coisa dolorosa e equivocada para ela, que, como vimos, aparece convertido em seu corpo quando ela produz vários sintomas e uma série de problemas vaginais. Nesse caso, observa-se que a analisante tem no marido um parceiro sexual com o qual faz uma manobra histérica para escapar dele. Juma vai consultar vários médicos que lhe deem um saber e um alento para sua dor. Todos, porém, são considerados “impotentes” para curá-la. Recorrendo ao ensino de Lacan em O Seminário, livro 17: O Avesso da Psicanálise (1969/1970-1992), Quinet destaca que “a histérica inventa um mestre não para se submeter a ele, mas para reinar apontando as falhas de sua dominação e mestria” (1996, p. 29). Em Rascunho K (1896/1976, pp. 248-249), Freud diz que na histeria, o início está no trauma sexual pressupondo uma experiência primária de desprazer, de natureza passiva, de um gozo a menos. Do trauma, então, tem-se uma representação sobre o qual incidirá a barreira do recalque. O destino do afeto que acompanha a representação recalcada seria a conversão em algum lugar do corpo e disso resultaria o sintoma. No lugar da representação recalcada encontraremos uma lacuna psíquica. Quando o processo é bem-sucedido, segundo Freud, temos a operação bem-sucedida do recalque. A conversão da representação no corpo implica uma alteração, que ele chama de condensação, porque, na realidade, essa conversão no corpo não se dá de qualquer modo. A parte do corpo escolhida para representar a ideia ou a representação recalcada guarda uma relação simbólica, o que aponta para o sentido dos sintomas. Trata-se de uma operação de linguagem, condensação em Freud, e metáfora para Lacan. É a presença do sintoma que vai falar de uma relação específica do sujeito com a linguagem e, por isso pode-se ler o sintoma; ele está escrito no corpo, como sinaliza Freud, porque uma parte do corpo se presta a serviço da conversão. Há uma parte do corpo que entra em jogo na complacência somática (1905/1976, pp. 38-39). Juma não vai, de consulta em consulta, buscar um médico que lhe dê um saber e um alento para sua dor? Todos, porém, não são considerados “impotentes” para curá-la? No artigo Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, (1908/1976, pp. 163-170), Freud ensina que o sujeito identifica-se ao mesmo tempo com o homem e com a mulher, ou seja, a histérica se identifica com o homem ao desejar o desejo dele por ela e com a mulher ao desejar ser objeto de desejo do homem. Freud descreve certos ataques histéricos em que “o paciente desempenha simultaneamente ambos os papéis na fantasia sexual subjacente. Em um caso que observei, por exemplo, a paciente pressionava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como mulher), enquanto tentava arrancá-lo com a outra (como homem)
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(Ibid., p. 169). O que Freud chama de masculino corresponde ao que é o ativo, e o que ele chama de feminino corresponde ao passivo. Como ressalta Quinet, “podemos declinar dizendo que o que Freud está chamando de masculino é o desejante, e o que ele chama de feminino, o desejado. Na histeria há sempre um desejo insatisfeito, mesmo no sujeito satisfeito sexualmente” (QUINET, 2003). Nesse sentido, Freud dá um corte na história da histeria, pois desde os gregos até Charcot, a origem da histeria é vinculada à abstinência sexual. A presença de uma reivindicação fálica está associada à própria estrutura histérica, a qual está sempre em falta. A histérica cria uma falta e o outro é o culpado por essa falta, porque em última instância ela não permite que o outro lhe dê o que ela deseja, permanecendo dessa forma no desejo insatisfeito. O histérico é o próprio sujeito, o sujeito dividido, o inconsciente em exercício. Quando Juma foge do marido, parceiro do desejo, para experimentar o “amor” por intermédio do amante, isso significaria uma estratégia histérica na qual ela se oferece apenas como objeto de amor, gozando da fantasia de ser amada, enquanto se furta de ser objeto sexual. Parece-nos que ela continua gozando da insatisfação, mantendo-se fixada na posição fálica ao indicar a falta também no amante, pois apesar de todo amor que este lhe dá, ela o chama de “pão-duro” e “impotente”. Dessa forma, Juma “como histérica, unilateraliza a castração do lado do homem para escamotear sua própria falta” (QUINET, 1995, p. 18). Ou seja, algumas mulheres sabem conscientemente que marcam o parceiro com a castração simbólica e que é preciso esse jogo para que ela o deseje. No discurso histérico, o sujeito dividido encontra-se no lugar do agente, no lugar do que comanda, para um benefício que é de produção de saber. O sujeito histérico parece demandar o saber, mas o que ele quer é o ser. Uma maneira de remediar a falta de ser é o laço social pelo qual ele tenta alojar-se no vazio do Outro. No que concerne ao desafio, o histérico, sobretudo em análise, o sustenta até o fim, e faz do desafio a sua questão. O acting out parece ser, na histeria, o instrumento clínico desse desafio, do ser em busca do “parceiro” que tenha chance de responder.
José, “o fóssil engessado” Em processo de análise, José fala que sempre trabalhou com o pensamento, o racional, a simbologia, buscando certezas nos livros. Diz ele: “Me perco muito em palavras e conceitos, fico dias nessa coisa, misturado e preso em cadeias de palavras. Se penso na palavra meditação, vem reflexão, ego, eu, e assim vai”. Fica deprimido porque não consegue concretizar nenhum projeto, “perpetrar coisa alguma”, sentindo uma angústia “imobilista, inoperante, aparvalhante”, como
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diz o analisante. Formado em cinema, alega que ficou “engessado e fossilizado ao virar funcionário público, só compilando dados para o chefe”. José lembra-se que, na infância, a mãe o alertava sobre a maldade no sexo, a não ir na conversa de ninguém. Até que um rapaz lhe oferecera bolas de gude transparentes que o deixaram fascinado e ele embarcou na sedução. Relata que não houve penetração: “Só houve bulinação, e eu fiquei satisfeito com a troca”. Esse acontecimento não teve significação para ele, até ouvir alguém dizer que o sexo era coisa proibida, quando percebeu que fora “sacaneado”, expressando: “Caí na real, empalideci, me senti um criminoso”. Acrescenta que se sentiu angustiado e com sentimentos de culpa por haver concordado em participar daquela relação, se autorrecriminando. Continuando, afirma que as orientações de seu pai foramvoltadas para que nada de funesto acontecesse com ele, do tipo: “É melhor ficar em casa do que sair, jogar, chutar, ser aplaudido ou vaiado. Ficando no banco de reservas, não lhe acontecerá nada, meu filho”. Mas, segundo José, é melhor ser vaiado quarenta e nove vezes vezes em cinquenta chances e acertar só um gol que não chutar, não tendo nenhuma chance de fazer gol. Acrescenta que não conseguia pegar no volante porque o pai sempre dizia: “Cuidado, você vai se acidentar”. Durante uma viagem, afirma que contou, em quarenta e cinco minutos, trinta e duas coisas negativas que o pai falou. Diz que não percebia que isso tinha relação direta com ele, achando tudo folclórico, pensando que o pai era “pirado”. Quanto à religião, exclama: “Quando eu era pequeno tinha medo de não acreditar em Deus, pois me ensinaram que eu ia me dar mal se não tivesse essa crença. Minha vida foi moldada em procurar certezas na religião”. Até iniciar seu tratameto, o analisante não notara que todas essas observações deixaram fortes marcas em sua subjetividade. José comenta que passou a beber para romper com os valores familiares, explicando: “Sempre endossei os dogmas religiosos paternos, vivendo de reflexões e assertivas do hinduísmo, budismo, islamismo, alcorão e da bíblia, que faziam parte de minha bibliofilia, da mania de colecionar livros”. Comenta que se não fosse esse saber, sua iconografia psíquica seria outra, que são as várias imagens mitológicas que construiu em função da leitura da bíblia. Lembra-se de que depois se ligou a um grupo de artistas, dizendo que seu batismo foi um grande “porre”, mas com o tempo, precisou afastar-se dessas pessoas por julgá-las “culturalescas”, refugiando-se na bebida. Retornava sempre ao bar para conversar, mas acabava profetizando dogmas religiosos, quando lembrava-se do pai, que sempre repetia histórias de heróis bíblicos. Diz ele: “Lá no bar eu não falava de mim, das minhas questões, das minhas prioridades, das minhas emergências, carências, insuficiências, brechas, crateras, fraturas e dos meus vazios. Lá, eu ficava hibernando as ideias, carpindo os pensamentos no copo de cerveja. Acompanhando todo o ritual do cadáver, velar o corpo, orar por sua alma, até sepultá-lo. Qualquer
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projeto tinha de ser carpido ali, e eu ia escrevendo e bebendo até ficar embriagado, inconsciente, esquecendo tudo”, o que sinaliza seu desejo mortificado. Associando livremente em análise, José evidencia sua procrastinação indicando como é difícil agir, concretizar e perpetrar seus planos. Ele contabiliza e compila dados, enumera ideias, lança e verifica hipóteses, faz relatórios, revelando sua “iconografia mental”, como ele mesmo afirma, ou seja, “os labirintos tortuosos de sua mente’, nos quais se mostra escravo dos pensamentos, prevalecendo o deslizamento metonímico (hinduísmo, budismo..., exigências, carências, insuficiências...). Sem se dar conta, José repete as verdades instituídas, alienantes, não sabendo nada sobre seu desejo. Embriagado pelas palavras, pelo simbólico, seus atos sucumbem na ruminação mental e, em sua solidão, compartilha com a bebida o gozo do pensamento. Mas certo dia, ele é capturado pela pulsão escópica, pelo objeto olhar, ao ficar fascinado e impressionado quando vê a garçonete do bar enfiar, penetrar os dedos nos gargalos das garrafas para recolhê-las das mesas. Nesse momento desperta a questão do desejo, e passa a observá-la e segui-la criando questões e fantasias, quando afirma: “Quem seria aquela mulher, seria casada, a “rainha do lar” como sua esposa de quem afirmava não sentir mais nada? Em processo de análise, José deixa de falar da garrafa e passa a descrever a mulher clara que conhecera no bar. Pontua a analista: “Clara”? “Sim, ela é clara assim como você”, responde José. Corta-se a sessão e ele não comparece na sessão seguinte. No entanto, dias depois, passa no consultório e deixa uma caixa de bombons para a analista, evidenciando a transferência erótica e resistência. Por meio de contato telefônico, o analisante é convidado a voltar, e ele retorna. Em análise, José procura se desvencilhar das verdades impostas pelos mestres encarnados por teólogos nos quais buscava compulsivamente um saber. Em sua “bibliofilia”, José se apresenta instalado no discurso do mestre, evidenciando a dialética do senhor e do escravo em que ora se coloca como pastor, encarnando a lei de Deus ao “pregar” nos bares, ora se apresenta escravizado das certezas dos versículos e mandamentos bíblicos, nos quais verdades absolutas lhes foram impostas. Freud, em sua correspondência a Fliess, nos seus primeiros estudos sobre a etiologia da neurose obsessiva, observa que esta neurose de defesa está vinculada à conotação de prazer quando do primeiro encontro com o sexo, mas quando sua recordação é evocada, esta se acompanha da autorrecriminação, tendo como consequência a culpa pela experiência proibida. O que era prazer se torna desprazer. Em seguida, recordação e recriminação são recalcados para dar origem à escrupulosidade. Ao retornar o recalcado, o afeto da recriminação se associa a um conteúdo deformado: a ideia obsessiva, que é o sintoma de compromisso. A recriminação que acompanha a recordação da experiência sexual de prazer lhe confere a posteriori a característica de experiência proibida. Ela representa a lei pela qual o
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gozo é marcado como proibido e seu retorno. “A obsessão traz ao mesmo tempo a lei e sua transgressão, o gozo e sua condenação” (QUINET, 1997, p. 68). A experiência sexual de prazer da infância de José adquire no a posteriori uma conotação condenável que se desloca para seus atos, daí sentir-se “imobilizado, engessado”, pois passar ao ato, isto é, “perpetrar” seus pensamentos, equivale a realizar uma ação criminosa. Embriagado pelas palavras, pelo simbólico, seus atos sucumbem na ruminação mental e, em sua solidão, compartilha com a bebida o gozo do pensamento. Durante muito tempo a garrafa de cerveja foi a parceira ideal de suas frustrações e aspirações, “o casamento feliz” (FREUD, 1912, p. 171). José vai com projetos para o bar, mas seu alcoolismo é uma tentativa de anestesiar e anular o gozo do crime de sua infância e, ao apagá-los de sua memória e consciência, desaparece como sujeito, evidenciando seu desejo impossível. Neste caso observam-se os fenômenos intrassubjetivos característicos da neurose obsessiva. Beber não tinha importância para José, até ele se deparar com as dívidas, com a justiça, com a lei simbólica, quando emergem manifestações de intensa angústia e culpa ao perceber sua omissão diante dos fatos em que estava implicado. Via-se como “co-gestor” de uma situação numa sociedade que tinha com um amigo, que foi à falência, alegando sua implicação no fracasso, já que não comparecia na empresa. Em suas associações, evidencia sua procrastinação, indicando como é difícil agir, concretizar e “perpetrar” seus planos, que continua adiando. Ele contabiliza e compila dados, enumera ideias, lança e verifica hipóteses, faz relatórios o tempo todo, revelando sua “iconografia mental”, como expressa, ou seja, os labirintos tortuosos de sua mente, em que se mostra escravo dos pensamentos, prevalecendo o deslizamento metonímico. José goza do pensamento, satisfazendo-se no sintoma da ruminação mental obsessiva. Dessa forma, “o obsessivo não só anula seu desejo como tenta preencher todas as lacunas com significantes para barrar esse gozo: ele não para de pensar, duvidar, calcular” (QUINET, 1996, p. 28). Inicialmente, aprisionado aos significantes mestres (S1), aos imperativos superegoicos, representados não só pelo Outro paterno e materno, mas também pelos mestres religiosos, José repetia as verdades instituídas, alienantes, não sabendo nada sobre seu desejo. Mas ele é capturado pela pulsão escópica, pelo objeto olhar, focalizado na mulher “clara” do bar, pelo qual fica fascinado, quando aparece a questão do desejo. Ao se sentir um “criminoso”, portador de um pênis “estilete” que pode machucar a mulher, José afasta-se do objeto causa de desejo para não “perpetrar”, ou seja, realizar um ato condenável que o deixaria culpado. É na análise, por meio da neurose de transferência, quando aparecem as resistências, que ele pode atualizar e elaborar a experiência traumática. Presenteando a analista e interrompendo o tratamento ele recua, tentando “protegê-la” e, desse modo, busca anular suas fantasias agressivas associadas ao gozo da penetração (“a mulher enfiando os dedos
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nos gargalos”) que estavam veladas em seu vício do alcoolismo. Insatisfeito sexualmente com sua esposa, a “rainha do lar, a mãe zelosa”, José procura uma mulher que lhe demande e que possa satisfazer seu desejo a contrabando. Com a análise, percebe que seu alvo mudou. Continua indo ao bar, não mais para beber, mas para focalizar seu objeto causa de desejo, “a pérola do olhar”, como diz, uma imagem “clara”, fascinante e idealizada que criou. Ele a vê, mas é nela que ele se vê, ficando nesse jogo de espelhos e imagens em que o que vê é sua própria imagem refletida no espelho, representada por ela, “a mulher do bar”, a quem ama narcisicamente. É ela, no lugar de objeto a, mais-de-gozar, que o faz sair da inércia, da pulsão de morte, que o faz despertar da embriaguez mortífera, repetitiva, para poder lembrar, sonhar e fantasiar. Construir uma história na qual o outro está presente, a quem pode endereçar e reabrir a questão sobre seu desejo (Che vuoi). “O que o outro quer de mim?” (LACAN, 1958/1966, p. 829). Em associação livre, lembra da história infantil da Cinderela, indagando: “O que a mulher clara do bar, a Cinderela quer de mim? Ela precisa de proteção, de amor?”, questiona José diante da emergência da libido, com toda sua luminosidade. Ele segue a mulher por todos os cantos como um bom voyeur, e de longe a admira, enquanto afirma: “Não é sexo não, é diferente!”, negando seu desejo, que permanece na ordem do impossível. Em suas fantasias, José procura uma mulher que possa proteger e botar seu pênis, “colocar o sapatinho”, como em seus sonhos de criança, quando observa-se que a articulação significante substitui a relação sexual. Os significantes copulam, substituindo o ato sexual, e coloca a distância a parceira, que observa seu desempenho intelectual sem ser por ele tocada, situação que desencadeia significativa fonte de angústia. Ao se deslocar da “acidez profética” dos discursos do mestre, paterno e religioso, questionando os imperativos categóricos vindos do Outro, José passa da coerção do pensamento à dúvida e, na “doçura do romantismo”, busca um mestre (analista) que lhe dê um saber sobre a verdade de seu gozo, já que a barreira do recalque o impede de ter acesso a esse saber. Assim, o analisante, ao não encontrar um mestre encarnando o saber, nem um sujeito das paixões no lugar de agente do discurso do analista, passa a produzir e a destituir os significantes que o martirizavam, determinando sua vida. E o desejo de José de saber sobre a questão sexual, sobre a relação entre um homem e uma mulher, se transforma na busca de uma investigação epistemológica, mostrando a histerizaçao do discurso.
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Considerações finais Num momento preliminar de seu trabalho, o analista procurará investigar a que o sintoma está respondendo, que gozo este sintoma vem delimitar. Para o paciente, o sintoma lhe dá certa consistência, certo faz de conta do sujeito. Lacan nos ensina que o sintoma é inteiramente alienado ao Outro. É uma resposta ao Outro. É necessário que seu sintoma, que é um significado para o sujeito, readquira sua dimensão de significante, implicando o sujeito e o desejo. O sintoma aparece como um significado do Outro, é endereçado pela cadeia do significante ao analista, que está no lugar do Outro, que tema atribuição de transformar esse sintoma na questão, nomeada por Lacan de “Que queres”? (Che vuoi?), (1958/1966, p. 829), questão chamada desejo. Cabe ao analista, portanto, introduzir o desejo nessa dimensão do sintoma. Os exemplos clínicos demonstram que a fonte de excitação pode ser transportada para o corpo, por um processo de conversão (histeria) no caso de Juma; ou pode permanecer no psíquico (obsessivo), como evidencia José. O caráter puramente mental dos processos obsessivos é mais obscuro do que o da histeria, sendo mais difícil entender um dialeto em que a língua dele é próxima. Em Freud, temos a histeria como o grande protótipo da neurose. Na etiologia da neurose obsessiva, o encontro com o sexo é prazeroso, mas se acompanha da autorrecriminação, tendo como consequência a culpa pela experiência proibida. Como ponto de partida, na neurose obsessiva temos o trauma sexual e o excesso de prazer. Segue-se à representação, que vai corresponder ao encontro traumático do excesso de prazer e que Freud vai chamar de autorrecriminação. A partir daí toma outro rumo na neurose obsessiva, segundo Freud, onde o sujeito crê na autorrecriminação. Então, o recalque incide sobre ele, e o afeto é deslocado numa solução de compromisso, aparecendo de ideia obsessiva como sintoma. Temos aí, também, uma operação de linguagem: o deslocamento por metonímia e o aparecimento de ideia obsessiva como solução de compromisso. Esta mantém a autorrecriminação recalcada (fora da consciência), porém, o deslocamento do afeto permite que o sujeito goze de sua obsessividade, da ideia obsessiva. Goza no sentido de que tem prazer e de que também sofre. O prazer e o sofrimento são mantidos. Os recortes clínicos mostram que a pergunta sobre sexo incomoda o sujeito pelo fato de ele ser um sujeito de linguagem. Isto significa que a sexualidade humana não tem nada de natural. Ela é determinada pelo significante. Ninguém sabe direito o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”. Todo humano vive sob a ameaça da suposta “bissexualidade”, termo que Freud tomou de Fliess, apontando para a perplexidade do sujeito humano diante do sexo, por estar dissociado de qualquer coisa que seja da ordem do instinto. O sujeito está determinado pela linguagem, ou seja, ele está submetido aos parâmetros culturais.
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Em análise, Juma mostra nos seus ditos, de várias formas, seu desejo insatisfeito e sua divisão enquanto sujeito. Esta analisante ilustra que a mulher não forma um universo, daí dizer que A Mulher não existe, como diz Lacan. Juma mostra que a mulher é não-toda submetida à ordem fálica, ela não faz série, ela se desdobra, se mascara e faz semblante de falo, mostrando que seu gozo é enigmático, devendo ser tomada uma a uma. Isso, a clínica psicanalítica não cansa de ensinar, onde observa-se que cada mulher apresenta uma forma particular de gozar. José inicia a análise “engessado” e submetido a verdades oriundas dos discursos dos mestres paterno e religioso, curtindo ruminações e sentimentos de culpa. Dessa forma, mostrava sua impossibilidade de agir que é correlata à sua modalidade de sustentação do desejo como impossível. Mas com o tratamento psicanalítico, por meio da transferência, ocorre a histerização de seu discurso, quando emerge a questão do desejo: o que quer uma mulher “clara, a Cinderela?”. E na sua divisão como sujeito, sujeito dividido, encontra-se no lugar do agente que comanda a produção de saber. Na posição histérica, José passa a questionar as certezas nas quais se encontrava alienado, assim como seus desejos e atos, ao estabelecer a transferência de amor com a analista, sujeito suposto saber sobre as questões de sua existência.
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resumo
Freud busca esclarecer a etiologia das neuroses, diferenciando os tipos de gozo vivenciados no primeiro encontro com o sexo, comparando a histeria com a neurose obsessiva. Destaca o conflito na histeria, pressupondo uma experiência de desprazer e a autorrecriminação na neurose obsessiva, tendo como consequência a culpa pela experiência proibida. Os tipos clínicos difereciam-se quanto ao desejo, que é uma questão inconsciente. Recortes da clínica mostram as questões da histérica sobre o sexo, e da existência para o obsessivo.
palavras-chave
Conflito, autorrecriminação, desejo, neurose histérica e obsessiva, gozo.
abstract
Freud aims to enlighten the etiology of neurosis making differences of kinds of experienced enjoyment in the first meeting with sex, comparing the hysteria with obssesive neurosis. He destinguishes the conflict in hysteria, presuming an experience of unpleasure and self-recrimination in the obsessive neurosis and consequently guilt because of a prohibited experience. The clinical types are different in terms of desire, as it is an unconscious subject. Profiles of the clinic show issues of hysteria about sex and the existence for the obsessive.
keywords
Conflict, self-recrimination, desire, hysterical neurosis and obssesive, enjoyment.
recebido 15/02/2014
aprovado 22/08/2014
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Resenha do livro: Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
Resenha do livro Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo Beatriz Oliveira Luis nos apresenta, em forma de livro, sua tese de doutorado em educação. Aí já temos uma escolha ética que será sustentada ao longo de toda sua pesquisa: tratar do campo da educação – mais particularmente da que se propõe inclusiva – à luz da psicanálise. A coerência está no fato de que ele, um psicanalista, parte de sua própria experiência com escolas, educadores e alunos para colocar em questão o fascínio em torno da “figura do autismo” – como o autor mesmo escolhe nomear seu objeto de pesquisa – refletindo sobre seus determinantes e suas incidências sobre a educação inclusiva. Tal fascínio se revela já no próprio título ao fazer uma referência freudiana ao quadro His Majestythe Baby, de Arthur Drumond. No entanto, também se demonstra pelo lapso que o próprio Luis revela ao leitor ao nomear: “nossa majestade, o autista”, a partir do qual se evidencia sua implicação nessa mesma problemática levantada por seu trabalho. Assim, temos que de uma pesquisa acadêmica extrai-se o texto de um autor o qual, do início ao fim, “admite a falta que é a própria condição da constituição do saber, que só pode ser construído no um a um” (FURTADO, 2013, p. 213). Antes de apresentar o texto, me parece fundamental destacar sua importância no cenário atual a respeito das questões sobre o autismo. Como o próprio Luis destaca na Introdução, um ano após a defesa de sua tese, a psicanálise foi prescrita do tratamento do autismo na França e em particular, num documento assinado pela Secretaria do Estado de São Paulo. Tal documento tornava instituído o tratamento do autismo na saúde pública apenas por profissionais psicólogos de orientação cognitivo-comportamental. A crítica a esta proposta gerou um movimento importante em São Paulo, denominado “Movimento Autismo, Psicanálise e Saúde Pública”, organizado por psicanalistas e profissionais de saúde mental para debater o papel da psicanálise no cuidado da pessoa com autismo. Isso nos mostra o quanto este livro se torna uma peça importante para qualquer psicanalista nos dias de hoje.
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OLIVEIRA, Beatriz
Em seu livro, Luis traça o caminho em torno de três passos principais. Primeiro, faz a crítica à categoria nosográfica do autismo e seu uso ideológico e institucional na educação destas pessoas. Segundo, demonstra que o próprio termo “autismo” instaura problemas em torno da dimensão do sujeito e, à luz da psicanálise, procura pensar a inclusão destes sujeitos. Terceiro, a partir da ideologia pós-moderna, se pergunta se o autismo poderia ser uma metáfora do mundo contemporâneo como propõem alguns autores. Vê-se que a pesquisa não é pequena, pois procura articular o campo da clínica, educação e política. Por isso mesmo não é um texto para se ler com pressa, mas sim, lembrando que estes campos se enodam e que, em vários momentos, o leitor passeia por diferentes questões sem, no entanto, perder a orientação ética de Luis: a via do sujeito e sua enunciação singular num discurso que forclui a dimensão da subjetividade. Inicialmente, Luis nos apresenta os pressupostos que nortearam sua pesquisa, bem como sua escolha pela psicanálise e pela educação inclusiva. Para sustentar aquilo que Luis nomeia como “fascínio pela figura do autismo”, o autor retoma a história do autismo, desde as descobertas de Jean Itard com Victor de Aveyron e as consequências destas para o que veio a se propor como “educação especial”. Não só isso, mas também faz um estudo histórico da própria psiquiatrização da infância para retomar a antiga polêmica da diferença entre idiotia e retardo, estabelecida por Séguin: a idiotia como um bloqueio na linha do desenvolvimento e o retardo como patologia da lentidão. Tal diferença levaria a distintas formas de tratar e educar as crianças. Seu objetivo, com isso, foi mostrar que os antecedentes genealógicos da noção de autismo e de sua educação e tratamento já apresentavam problemáticas encontradas hoje em diversas teorias (Idem, p. 65). Assim, ao retomar as controvérsias presentes no próprio estabelecimento do autismo por Leo Kanner, Luis adverte para o apagamento da contribuição da psicanálise para o estabelecimento desse diagnóstico a partir da noção de “transtorno de desenvolvimento”: o distanciamento do autismo enquanto categoria nosográfica diferenciada da esquizofrenia, distanciando-a das psicoses – alvo de tratamento clínico – leva-o a ser entendido como “deficiência”, objeto da educação especializada. “O autismo passa a ser situado em termos de problemas cognitivos e seu déficit nos processos psíquicos justificados por disfunções cerebrais inatas” (Idem, p. 66). Isso se verifica ao acompanharmos as instituições especializadas nos dias de hoje, no Brasil, tal como Luis apresenta no final do segundo capítulo. É nesse ponto que Luis já nos introduz no campo político. Seguindo Zizek, ele dirá: as mudanças na concepção teórica e “científica” do autismo ilustram a cumplicidade entre a ideologia multiculturalista e a hegemonia totalitária técnocientificista, representada pelo cognitivismo-comportamental contemporâneo, questão que ele abordará mais detidamente no último capítulo.
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Resenha do livro: Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
O capítulo três é fundamental para que possamos acompanhar o panorama atual das diferentes formas de se conceber o autismo, o que levou a duas grandes posições: aquelas que defendem o autismo como um transtorno a ser tratado e outras que sustentam o autismo como um modo de ser diferente da normalidade. Tais concepções geram movimentos diferentes para a abordagem do problema. As primeiras advogam pelos métodos específicos de educação e tratamento – aqui se situam muitos grupos de pais de autistas; já a segunda, coerente com a “neurodiversidade”, nomeada como grupos anticura, milita em prol de uma comunidade em que o “modo de ser” destas pessoas seja respeitado. Assim, Luis vai tornando claro ao leitor que há muitas nuances determinantes para as práticas institucionais adotadas e que devemos, enquanto psicanalistas, estar advertidos dos conflitos existentes em torno do que se chama de autismo. Se há um aumento atual no número de casos diagnosticados como autismo, este é mais consequência de interesses político-econômico-institucionais do que causa destes mesmos “interesses”. Nesse sentido, a ampliação e extensão do diagnóstico do autismo a partir de sua classificação como transtorno levou algumas instituições a se manterem, aumentando consideravelmente o número de alunos a serem incluídos em suas propostas. “Dependendo do critério diagnóstico utilizado, o número de alunos matriculados que deve ser comunicado às entidades financiadoras pode variar...” (Idem, p. 110). Luis conclui: Apesar da utilização de palavras de ordem que pregam a inclusão das pessoas com autismo, o uso ideológico das categorias psiquiátricas, a apresentação de métodos específicos ou a criação de comunidades autistas só apontam para um fator diametralmente oposto à lógica de qualquer educação que se pretenda inclusiva: a exclusão radical do sujeito (Idem, p. 119). No quarto capítulo, Luis apresenta diferentes concepções do autismo sustentadas por psicanalistas lacanianos e se pergunta: quando lidamos com pessoas autistas ou quadros psicóticos muito precoces, trata-se de educação ou psicanálise? Por isso, me parece de extrema importância ele apresentar em seguida sua pesquisa em torno dos textos de Lacan e Freud, para extrair dali o que se falou sobre autismo. Partindo do que Lacan fala dos autistas como verbosos, Luis sustenta que “o fato de falarmos sobre estas crianças e tomarmos suas produções como portadoras de sentido é o que nos permite considerá-las como sujeitos” (Idem, p. 144). Na mesma direção, ressalta o quanto Freud deixou claro até o final de sua obra a ressalva quanto ao uso do termo autismo por Bleuler, o qual não se alinhava à sua teoria da sexualidade – Freud propunha o uso do conceito de autoerotismo
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como “retorno do investimento pulsional sem necessidade do apelo ao outro” – o que, para Luis, se torna mais um argumento pela suposição do sujeito no autismo. Tendo como pressuposto o conceito de sujeito para Lacan, Luis considera então que: (...) incluir o psicótico e o autista não é sinônimo de adaptação e uniformização, de torná-lo um igual. A inclusão a ser pretendida deve levar em consideração a inclusão da radical diferença no seio da sociedade, onde normalmente se supõe a igualdade entre os indivíduos. O sujeito nunca fará conjunto em relação à norma (Idem, p. 158). Embora esteja presente ao longo de todo o texto a dimensão política do autismo, é no final de seu trabalho que Luis fará uma análise mais aprofundada a respeito da relação do autismo e o discurso vigente. Tendo como referência autores como Soler e Zizek, sustentará que (...) o caráter objetor do sintoma autístico é o de fazer greve com a palavra. O autista faz fracassar o discurso da norma naquilo que ele tem de mais fundamental e que possibilita qualquer dispositivo de normatização: a alienação no discurso do Outro (Idem, p. 170). Nesse sentido, Luis sustentará que a psicanálise se torna um discurso de urgência, pois vai na contramão do discurso cientificista ao considerar as singularidades. Não só isso, dá lugar a uma enunciação que fica forcluída diante do esclarecimento do sintoma pelas vias dos elementos bioquímicos e hormonais. Assim conclui o autor: “Ora, a cultura da redução do sintoma a uma desordem orgânica é extremamente favorável e coerente com esta derrisão da palavra e suas implicações políticas, que propiciam o individualismo consumidor” (Idem, p. 178). Luis é categórico em sustentar a posição contrária à proposta de uma fórmula generalizada do modo como os autistas devem aprender ou a utilização de métodos educacionais especializados. Tal proposta é avessa à psicanálise, pois naquele caso, estar submetido a uma norma universal, longe de dar lugar à diferença, provoca cada vez mais sua exclusão: A luta para responder sobre a origem do autismo através de hipóteses “psicogênicas” ou “organogênicas” dissimula o verdadeiro problema que jaz nesse conflito: a foraclusão da dimensão da subjetividade no mundo contemporâneo e o estabelecimento de um quadro generalizado de intolerância (Idem, p. 197).
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Assim, a partir da leitura de Zizek, Luis conclui que há um real em jogo no autismo e que as diferentes teorias definem objetos distintos. Ou seja, falar em autismo implica pensar de que autismo se está falando. Isto não é sem consequência social, política, clínica, educacional e principalmente ética. Ao final desta leitura, reiteramos a aposta de que só é possível a inclusão seja do autismo ou de qualquer sujeito na educação quando se leva em conta a dimensão do impossível presente nessa mesma inclusão.
referência bibliográfica FURTADO, L. A. Sua Majestade o Autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo. Curitiba: CRV, 2013.
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Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da Psicanálise no que estes concernem à transmissão da Psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da Psicanálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à Psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, entrevista e resenhas; cabendo a EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.
Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver.
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Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverĂŁo conter um resumo na lĂngua vernĂĄcula e um abstract em lĂngua inglesa contendo de 100 a 200 palavras. DeverĂŁo trazer tambĂŠm um mĂnimo de trĂŞs e um mĂĄximo de cinco palavras-chave (portuguĂŞs) e keywords (inglĂŞs) e a tradução do tĂtulo do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.
Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a nĂŁo o encaminhar para outro(s) veĂculo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com . Alternativamente, podem ser enviadas em mĂdia digital, acompanhadas de trĂŞs cĂłpias impressas, para o seguinte endereço: FĂłrum do Campo Lacaniano â&#x20AC;&#x201C;SĂŁo Paulo Revista Stylus: Revista de PsicanĂĄlise da Associação de FĂłruns do Campo Lacaniano Brasil Rua Lisboa, 1163. CEP 05413-001 â&#x20AC;&#x201C; Pinheiros (SĂŁo Paulo â&#x20AC;&#x201C; SP) Os artigos devem conter os seguintes elementos:
Normas para publicação: t 1SJNFJSB MBVEB DPOUFOEP BQFOBT P UĂ&#x201C;UVMP EP BSUJHP OPNF T EP T BVUPS FT EBdos do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais, em 10 linhas, no mĂĄximo] e endereço completo (com e-mail). t %FNBJT MBVEBT OVNFSBEBT DPOTFDVUJWBNFOUF B QBSUJS EF VN SFQFUJOEP P tĂtulo, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. t /P DBTP EF JOWFTUJHBĂ&#x17D;Ă&#x153;FT EFTFOWPMWJNFOUPT UFĂ&#x2DC;SJDPT SFMBUPT EF QFTRVJTBT EFbates e entrevistas, deve ser incluĂdo um resumo de no mĂĄximo trezentas palavras, ao final, na mesma lĂngua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mĂnimo trĂŞs e no mĂĄximo sete). ApĂłs esse resumo, deve-se incluir tambĂŠm uma tradução do mesmo, em inglĂŞs (abstract), acompanhada da tradução do tĂtulo e das palavras-chave. t /P DBTP EF FOUSFWJTUB EFWFN TFS JODMVĂ&#x201C;EPT BP Ä&#x2022;OBM PT TFHVJOUFT EBEPT EBUB da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos
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de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluĂdos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. t /P DBTP EF SFTFOIBT EFWF TF JODMVJS BP Ä&#x2022;OBM B SFGFSĂ?ODJB DPNQMFUB EB PCSB resenhada. As ilustraçþes devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas tambĂŠm em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um tĂtulo sugestivo do seu conteĂşdo.
Sobre citaçþes e referĂŞncias bibliogrĂĄficas: Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas TĂŠcnicas, lançada em 2002, disponĂvel nos seguintes endereços eletrĂ´nicos, ambos oriundos do sĂtio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de SĂŁo Paulo: Citaçþes: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) ReferĂŞncias bibliogrĂĄficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/ normalizacaodereferenciasabnt.pdf)
Citaçþes no texto: As citaçþes diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que â&#x20AC;&#x153;nĂŁo hĂĄ duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.â&#x20AC;? JĂĄ as citaçþes diretas (ou textuais) que excederem trĂŞs linhas devem vir em parĂĄgrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (alĂŠm do parĂĄgrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os tĂtulos de textos citados devem vir em itĂĄlico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapĂŞutica psicanalĂtica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerĂĄvel nĂşmero de pessoas estĂĄ praticando a psicanĂĄlise e, reciprocamente, trocando observaçþes, notamos que nenhum psicanalista avança alĂŠm do quanto permitam seus prĂłprios complexos e resistĂŞncias internas; e, em consequĂŞncia, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanĂĄlise e levĂĄ-la, de modo contĂnuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observaçþes sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em
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produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. As citações indiretas devem contar as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideais originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (Alberti e Elia, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Alberti, et al, 2009, p. 122). C) Mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada). Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parentêses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).
Notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.
Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em
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congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955) A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61) O seminário – livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (p.440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Gra-
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ça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: FINGERMANN, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud. org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nr m=iso>. Acesso em 08 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br
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Sobre autores e tradutores Ana Laura Prates Pacheco Psicóloga, Psicanalista. Especialista, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Pesquisadora convidada do LABEURB/UNICAMP. AME da EPFCL, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil. Coordenadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância da EPFCL-Brasil. Autora de Feminilidade e experiência psicanalítica (2001) e Da fantasia de infância ao infantil na fantasia (2013). E-mail: analauraprates@terra.com.br
Andréa Hortélio Fernandes Psicanalista, AME da EPFCL, Membro do Campo Psicanalítico de Salvador, Membro do Fórum Salvador, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII, Professora da Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Psicologia (UFBA), Pesquisadora do CNPq. E-mail: ahfernandes03@gmail.com
Beatriz Oliveira Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP. E-mail: biaoliv@uol.com.br
Bela Malvina Szajdenfisz Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Mestre em Psicologia da Educação. Membro da Internacional dos Fóruns da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. Membro do Fórum Rio. Membro de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, delegada da IFCL 2012-2014. Membro da comissão de redação da revista Folhetim. Coordenadora da Biblioteca do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro 2012-2014. Endereço: Rua Soares Cabral, 80/1201 – Laranjeiras – Rio de Janeiro – CEP 22240-070 E-mail: bmal.trp@terra.com.br
Cibele Barbará Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Rua Jureia, 896 – Chácara Inglesa – São Paulo – SP 04140-110 11 98937-6334 E-mail: cibelelbarbara@singularclinica.com.br
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Christian Ingo Lenz Dunker Psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Rua Abílio Soares, 932 – Paraíso. 04005-003 São Paulo - SP E-mail: chrisdunker@usp.br
Colette Soler Doutora em Psicologia (Paris VII). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais Psicanálise na Civilização (Contra Capa), O que dizia Lacan das mulheres (JZE), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (Annablume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta), A repetição na experiência analítica, (Escuta). E-mail: solc@wanadoo.fr
Dominique Fingermann Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil | Fórum São Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras). E-mail: dfingermann@terra.com.br
Fuad Kyrillos Neto Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Praça Dom Helvécio, 74 Sala 122 CEP 36301-160 São João Del Rei – MG E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br
Glaucia Nagem Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL), Fórum São Paulo. Endereço: Rua Wanderley 700, Perdizes – São Paulo. CEP 05011-001 E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br
Leandro Alves Rodrigues dos Santos Psicanalista, membro do FCL-SP e da EPFCL-Brasil, Doutor em Psicologia Clínica (USP-SP) e atualmente pós-doutorando em Psicologia Social (PUC-SP). E-mail: leandroarsantos@uol.com.br
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Lenita Pacheco Lemos Duarte Psicóloga. Psicanalista. Membro da AFCL RJ e da IF-EPFCL-Brasil. Participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Pós-graduada em Psicanálise pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: duartelenita@gmail.com
Maria Lúcia Araújo Psicóloga. Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: araujomalu@uol.com.br
Maria Vitória Bittencourt AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo lacaniano; Mestre em Psicanálise da Universidade de Paris VIII; Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro. Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 230, bl. 2 ap. 801-C – Gávea – CEP 22451040 – Rio de Janeiro. Telefone: (21) 3486-4111 E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com
Maria Claudia Formigoni Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br
Martín Alomo Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Graduado e Professor de Psicologia na Universidade de Buenos Aires, onde atua como docente e pesquisador. Psicólogo do Hospital Braulio Moyano da Cidade de Buenos Aires. Membro do Foro Analítico del Río de la Plata e da Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Codiretor da revista AUN, Publicação de Psicanálise do FARP, e Diretor da revista Nadie duerma, Publicação digital de Psicanálise do FARP. Entre outros livros, publicou La elección irónica. Estudios clínicos sobre la esquizofrenia, por Editorial Letra Viva. E-mail: martinalomo@hotmail.com
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Sonia Alberti Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise e Prociência da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Rio de Janeiro. E-mail: sonialberti@gmail.com
Vanina Muraro Graduada em Psicologia pela UBA – Universidade de Buenos Aires. Coordenadora do Foro Analítico del Río de La Plata. Membro da Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Codiretora da Revista Aun, Publicação de Psicanálise do FARP. Docente e pesquisadora da Faculdade de Psicologia, Universidade de Buenos Aires. Endereço: Av. Pueyrredón 1108 6 K (1118), CABA, Buenos Aires, Argentina E-mail: vaninamuraro@fibertel.com.ar
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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se espetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.
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Pareceristas do número 28 Andréa Hortélio Fernandes (UFBA / EPFCL – Salvador) Ângela Diniz Costa (EPFCL – Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva / EPFCL – Belo Horizonte) Clarice Gatto (FIOCRUZ/ EPFCL – Rio de Janeiro) Conrado Ramos (PUC – SP/ EPFCL – São Paulo) Daniela Sheinkman Chatelard (ENB / EPFCL – Brasília) Elizabeth Thamer (EPFCL – Paris) Eliane Shermann (EPFCL – Rio de Janeiro) Fátima Pereira (EPFCL – Salvador) Lia Silveira (EPFCL – Fortaleza) Luis Achilles Rodrigues Furtado (UFC – Sobral/ EPFCL) Raul Pacheco (EPFCL – São Paulo) Silvana Pessoa (EPFCL – São Paulo) Sonia Borges (EPFCL – Rio de Janeiro)