Preludio 18

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Prelúdio 18

Um homem devastado Maria Vitoria Bittencourt

O termo devastação é frequentemente atribuído às mulheres, não somente em sua relação à mãe, como também ao homem. Como disse Lacan "Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma. (...) Tratase mesmo de uma devastação. “[1]. Com seu filme “ O grito” (1957) Antonioni nos mostra não uma mulher, mas um homem devastado pela perda de amor. Numa Itália machista dos anos 50, não deixa de ser um ato de audácia da parte do cineasta ao colocar um homem numa posição feminina, aquela onde , segundo Lacan, não haveria limites às concessões que uma mulher pode fazer de seu corpo, de sua alma e de seus bens. A história gira em torno de Aldo e Irma, que vivem juntos, têm uma filha, porém Irma é casada com outro homem que deixou o país para trabalhar no outro lado do mundo, sem dar notícias. Uma carta que anuncia a morte do marido vai desencadear todo o drama de Aldo que deseja legitimar sua união. Irma recusa o casamento pois tem um novo amor. Tudo isso é filmado com o talento de um rigor estilístico de Antonioni: poucos diálogos, muitos olhares, deixando o expectador imerso no reino de um silêncio ensurdecedor, na espera do grito anunciado. Daí em diante, Aldo vai perambular pelo mundo, numa errância pelas paisagens tristes de sua província. Vemos um homem só, desgarrado, numa “sinfonia do cinza, seus vazios sem fim (...) a planície do Pó exalta a tristeza infinita, a tragédia silenciosa do personagem”[2]. Aldo é o retrato do vazio estrutural que faz parte do ser humano, num perpétuo exílio das coisas do mundo. Antonioni ilustra bem a incomunicabilidade do ser humano, numa estética da ausência, refletindo de maneira magistral o que há de impossível na relação entre os sexos. No final, o vazio invade a cena pois a queda de Aldo e o grito de Irma mantêm a ambiguidade : suicídio ou acidente ? Como disse Roland Barthes: “Em O Grito, o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum lugar consegue confirmar sua identidade, e a ambiguidade da conclusão , levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem”. O artista não propõe uma verdade mas produz o estranho efeito de velar e desvelar algo, um enigma que jamais será compreendido pois não há palavras para descrever o indizível. O filme mostra um homem desemparado, para quem nada mais importa – nem filha, nem amigos, nem a morte anunciada de sua aldeia pela máquina capitalista. Sua busca é ser o homem amado de uma única mulher, aquela que o completaria no casamento, realizando a sonhada fusão dos corpos. Antonioni ilustra a definição do amor em Lacan: busca de ser , busca de substância, busca de ser amado. Eis porque o amor exige reciprocidade, demonstrando sua dimensão narcísica. No amor, opera a aspiração de ser Um com o Outro, suplência à impossibilidade de complementar “ aqueles a quem o sexo não é suficiente para tornar parceiros” [3]. É uma posição essencialmente feminina, pois amar é dar o que não se tem, reconhecer sua falta e doá-la ao outro. Daí podemos concluir que esse prelúdio cinematográfico demonstra que a devastação não é própria da mulher mas da posição feminina de amar. Se Lacan designou um lado um pouco cômico na forma masculina de amar, o artista nos mostrou o lado trágico, que não raro encontramos em nossa clínica. [1] Lacan, J. Seminário O sinthoma Livro 23, Zahar Ed, Rio, 2007, p. 98. [2] Tassone, Aldo – Antonioni Flammarion, Paris, 2007,p.205. [3] Lacan, J. – Televisão, Zahar Ed, Rio, 1993, p.48.


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