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“Mesmo assim, é do mal-estar que Freud nota em algum lugar, do mal-estar na civilização, que procede toda nossa experiência. O que há de impressionante é que o corpo, para esse mal-estar, contribui de um modo que sabemos muito bem animar – animar se posso dizer – animar os animais de nosso medo. De que temos medo? Isso não quer dizer simplesmente: a partir de que temos medo? De que temos medo? De nosso corpo. É o que manisfesta esse fenômeno curioso sobre o qual fiz um seminário um ano todo e que denominei angústia. A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo.” Jacques Lacan

Corpo e inconsciente II

I S S N 1676 -157 X

A Terceira - Roma (1974)

“O ser do corpo certamente que é sexuado, mas é secundário, como se diz. E como a experiência o demonstra, não é desses rastros que depende o gozo do corpo, no que ele simboliza o Outro.” Jacques Lacan O Seminário – livro 20 Mais, ainda (1972/73)

“O Gozo do Outro, do corpo do Outro que o simboliza, não é o signo do amor.” Jacques Lacan O Seminário – livro 20 Mais ainda (1972/73)

“O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente.” Jacques Lacan O Seminário – livro 20 Mais ainda (1972/73)

s t y l u s

associação fóruns do campo lacaniano

stylus

revista de psicanálise no 21 dezembro de 2010

afcl

21 dezembro 2010

Corpo e inconsciente II


associação fóruns do campo lacaniano

Stylus revista de psicanálise

Stylus

Rio de Janeiro

nº21

p.1-140 dezembro 2010


© 2010, Associação Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - revistastylus@yahoo.com.br

Comissão de Gestão da Afcl/Epfcl- Brasil Diretora: Sonia Alberti Secretária: Georgina Cerquise Tesoureira: Consuelo de Almeida Equipe de Publicação de Stylus Ana Laura Prates Pacheco (coordenadora) Ângela Mucida Conrado Ramos Leandro Santos Maria Helena Martinho Paulo Rona Silvana Pessoa Assessoria de Edição deste número Silvana Pessoa Indexação Index Psi periódicos (BVS-Psi) www.bvs.psi.org.br Editoração Eletrônica 113dc Design+Comunicação Tiragem 500 exemplares

Conselho Editorial Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador) Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador) Bernard Nominé (EPFCL-França) Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo) Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília) Edson Saggese (IPUB/UFRJ-Rio de Janeiro) Eliane Schermann (EPFCL) Elisabete Thamer (Doutoranda da Sorbonne-Paris) Eugênia Correia (Psicanalista-Natal) Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis) Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo) Henry Krutzen (Psicanalista-Natal) Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) Luiz Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba) Marie-Jean Suret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse) Nina Araújo Leite (UNICAMP/ Escola de Psicanálise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro)

FICHA CATALOGRÁFICA

STYLUS: revista de psicanálise, n. 21, dezembro de 2010

Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195

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sumário 07 editorial: Ana Laura Prates Pacheco

ensaios

13 19 29 37

Bárbara Maria Brandão Guatimosim: O corpo cantante Antonio Quinet: CORPOEMA - O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo Maria Helena Martinho: Um corpo na perversão Raul Albino Pacheco Filho: “Lease yout body”: a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria

trabalho crítico com os conceitos 49 57 71 77

Diego Mautino: O “corpo falante” e o mistério de uma outra satisfação Sandra Berta: Do trauma ao troumatismo Jairo Gerbase: O corpo no RSI Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer: Corpo: produto e suporte de representações sociais

direção do tratamento 95 111 121

Tatiana Carvalho Assadi: a-pelLe: um estudo clínico sobre os casos de FPS Gabriel Lombardi: A relação do neurótico obsessivo com seu corpo Rosane Melo: Corpsificação: circuito pulsional e sintoma

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contents 07 editorial: Ana Laura Prates Pacheco

essays 13 19 29 37

Bárbara Maria Brandão Guatimosim: The singing body Antonio Quinet: POEMBODY: the man, being-for-art, and his/her body Maria Helena Martinho: A body in perversion Raul Albino Pacheco Filho: “Lease your body”: the enchantment of the body and the commodity fetishism

critical paper with the concepts 49 57 71 77

Diego Mautino: The “speaking body” and the mystery of another satisfaction Sandra Berta: From trauma to troumatismo Jairo Gerbase: The body in RSI Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer: Body: product and support of social representations

the direction of the treatment 95

111 121

Tatiana Carvalho Assadi: The skin and the nomination: a clinical study of a case of PP Gabriel Lombardi: The relationship of the obsessive neurotic with his/her body Rosane Melo: Corpsification: drive circuit and symptom

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Editorial Ana Laura Prates Pacheco Em julho de 2010, a belíssima cidade de Roma sediou o VI Encontro da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, presidido pelos colegas Diego Mautino e Mario Binasco. O tema escolhido para esse Encontro não poderia ser mais oportuno: “O mistério do corpo falante”. Essa frase foi extraída da penúltima aula do Seminário Encore (1972/73), traduzido para o português como Mais, ainda: o real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente (p. 178). Encore (ainda), En corp (no corpo). Nesse Seminário, Lacan ensina que a experiência psicanalítica trata da substância gozante. Essa substância não é nem a res extensa de Descartes, nem tampouco a res anatômica dos mapas dos anatomistas. Trata-se, antes, da substância do corpo, com a condição de que se defina como aquilo de que se goza. Um corpo – afirma Lacan – isso se goza (p. 35). Mas, atenção! Atenção para a advertência de que o gozo do Outro – do corpo do Outro que o simboliza – não é signo de amor. O âmour (almor), neologismo que une alma e amor é, segundo Lacan numa transação fora-do-sexo. A alma ama a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta nesse caso (p. 114). A tentativa da ciência em localizar o gozo da mulher na anatomia é o sonho da fantasia masculina, como aponta Lacan em várias passagens do Seminário Encore, já que não apenas o gozo do Outro não é signo do amor, como também o corpo que o simboliza não pode ser reduzido a um pedaço de carne, que Lacan nomeia de gozo do órgão. É próprio da neurose excluir o Heteros que lhe causa horror. O seminário Encore transmite, assim, a impossibilidade de escrever a relação do real do corpo com a linguagem: o ser do corpo é sexuado, mas não é desses rastros que depende o gozo do corpo no que ele simboliza o Outro. O corpo, aqui, está longe de ser apenas uma imagem, ou mesmo o cadáver (corps), produzido pela inscrição do traço e a cessão do objeto a – ou seja, o corpo simbólico. O corpo, em sua dimensão real, é propriamente o “lugar do gozo”. Trata-se, portanto, de formalizar uma divisão no próprio campo do gozo. Como Lacan sublinha: A resposta que o gozo do corpo do Outro pode constituir não é necessária (p. 12). O amor, ao contrário, em sua necessária cumplicidade, sempre almeja o Um. Lacan convoca, aqui, a “carta de amor”, a carta de Paulo de Tarso que funda o universaStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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1 Atenção para a tradução errada em português: está traço, mas é rastro.

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lismo cristão, o Todo inscrito na máxima: amai-vos uns aos outros. Mas o Um, argumenta Lacan, “só se aguenta pela essência do significante”. E ele acrescenta: Encore é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda do amor. Ele abre, então, a questão: De onde parte o que é capaz, de maneira não necessária, e não suficiente, de responder pelo gozo do corpo do Outro? Não é do amor, mas do amuro (p. 13). O amuro é o que aparece em signos bizarros no corpo. São esses caracteres sexuais que vêm do além, sob a forma de gérmen. É de lá que vem o encore, o en corp (no corpo). Há rastros1 no amuro (p. 13). Se é evidente a referência do amuro à rocha da castração, ou seja, ao real da diferença sexual, Lacan, entretanto, adverte que são apenas rastros. A questão dos corpos sexuados é, portanto, tomada como “fatos de discurso”, ou seja, a sexuação humana é uma consequência lógica do discurso. E dessas consequências, o Psicanalista é convocado a extrair um posicionamento ético. Nesse número 21 da Revista Stylus – que prossegue no tema iniciado no número 20 “Corpo e inconsciente” – poderemos acompanhar, teórica e clinicamente, algumas provas desse posicionamento. Na seção “Ensaio”, contamos com os textos de Barbara Guatimosin e Antonio Quinet que articulam, com propriedade, Arte e Psicanálise. O primeiro parte de gravações originais de algumas canções e trabalha “os efeitos de lalíngua em algumas de suas versões, transcriações nas quais se cortam e se enodam significações, produzindo o novo desde efeitos de real no sentido”. O segundo conclui que “homem é um ser-para-a-arte, o teatro é o lugar da poesia encorpada, do significante gozante, da letra que se faz voz, lugar onde o ator demonstra a materialidade fonética da palavra, o gozo de lalíngua, lugar onde pode transformar seu corpo num poema, um corpoema”. Ainda nessa seção, Maria Helena Martinho se serve da obra-prima do escritor japonês Yukio Mishima, intitulada Sol e aço (1968), na intenção de destacar desse ensaio autobiográfico as descobertas feitas pelo autor sobre a relação entre “o corpo e as palavras”. E Raul Pacheco Filho explora “as conexões entre: de um lado, a alienação estrutural e trans-histórica do sujeito e seu ‘encantamento’ com os objetos; e, de outro, a alienação contingente e histórica do sujeito do capitalismo e o fetichismo da mercadoria”. Na seção “Trabalho crítico com conceitos”, contamos com o trabalho de Diego Mautino, apresentado em Roma – “O ‘corpo falante’ e o ‘mistério de uma outra satisfação’ –, no qual articula ‘mistério do corpo falante’” (mistério – corpo – falante) aos registros RSI, à revisão impressa por Lacan sobre o sintoma (tomando o artifício de Joyce como paradigma) e ao termo satisfação. Sandra Berta – em artigo também apresentado em Roma – aborda “as considerações sobre a passagem do trauma como acidente para o troumatismo, termo cunhado por Lacan para dizer do furo que afeta a estrutura Editorial


do parlêtre”. E Jairo Gerbase “examina como o sujeito maneja o corpo em função das estruturas clínicas: neurose e psicose, fazendo uma segunda relação entre este manejo e as dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário (RSI)”. Contamos, ainda, com a contribuição do artigo da Antropóloga Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer – “Corpo: produto e suporte de representações sociais” – produzido a partir de uma conferência proferida no FCL-SP, cuja proposta é indicar algumas das principais conquistas da antropologia e seu atual engajamento em discussões acadêmico-políticas pertinentes às noções de corpo e corporalidade. Na seção “Direção do tratamento”, o leitor poderá acompanhar um pouco mais da produção da Rede de pesquisa “Sintoma e Corporeidade”, do FCL-SP, por meio do trabalho de uma de suas coordenadoras, Tatiana Carvalho Assadi, cujo objetivo é mostrar, num caso de vitiligo, como a função de uma letra não escutada durante as entrevistas preliminares poder ser a marca da entrada em análise e da leitura como tática clínica num caso de fenômeno psicossomático. Rosane Melo discute, por meio de fragmentos clínicos, a relação entre a incorporação significante, tanto nos sintomas corporais da histeria, quanto nos fenômenos corporais da esquizofrenia. E Gabriel Lombardi, com o rigor que lhe é peculiar, extrai as consequências da oposição entre a conversão como sintoma com o qual o histérico chega a se vincular socialmente, e o sintoma do neurótico obsessivo que, nos dizeres de Freud, é “um assunto particular do enfermo”. Antes de finalizar, gostaria de lembrar que, com o número 21, a atual Equipe de Publicação de Stylus (2008-2010) se despede, agradecendo a todos os que apoiaram seu trabalho durante esse período e desejando aos futuros integrantes um ótimo trabalho. Boa leitura!

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ensaios

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O corpo cantante Bárbara Guatimosim com assessoria musical de Evandro Menezes Será preciso que uma vez, enfim, não sei se algum dia terei tempo de falar da música, nas margens. Lacan, Mais, ainda. p. 236.

A poesia pode ser vista como uma violência feita ao uso cristalizado da língua, e é nisso, segundo Lacan, que ela se aproxima da interpretação analítica.1 A práxis analítica e a poesia se valem dos jogos significantes e de sua sonoridade, do equívoco linguageiro, para provocar efeitos de sentido. Este é o valor que toma o S2 para Lacan no Seminário XXIV. Um S2 não por ser segundo no tempo ordinário, mas como tendo o duplo sentido, ambiguidade e polissemia intrínsecas à condição significante. Essa duplicidade e mesmo pluralidade de sentido é o que dá o poder a qualquer palavra de se tornar plena, diferente de quando os significantes se fixam apenas na significação, tornando toda e qualquer palavra vazia. Vemos isso claramente no empobrecimento do discurso neurótico, para não dizer do psicótico, quando se aferra a um significado e insiste em dizer sempre a mesma coisa. A associação livre, quando exercida em uma análise, libera lalíngua, sua lalação, sua canção e a partir daí, o que era significação fechada pode-se abrir ao equívoco da interpretação. “Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, porque o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é antes de tudo fraco.”2 Anunciar a pretensa verdade pode acirrar o não querer saber, pode fazer adormecer, mas o dizer verdadeiro, que porta o real, não mente, nem diz A verdade, e dependendo do tom da enunciação, afeta realmente o sentido, sua significação, promovendo o despertar.3 Que vocês sejam inspirados eventualmente por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é bem em que, eu diria, é bem em direção a quê vocês devem se voltar (...). A metáfora e a metonímia não têm peso para a interpretação senão enquanto capazes de exercer a função de outra coisa. E essa outra coisa da qual ela faz função é bem aquilo a que se unem estreitamente o som e o sentido; é à medida

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1 “O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter a dimensão do que poderia ser, do que poderia ser a interpretação analítica.” Lacan, Seminário XXIV – L’ insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, lição de 18/04/1977. 2 Lacan, Ibid. 3 “Será que a verdade faz despertar ou faz adormecer? Isso depende do tom em que ela é dita.” Lacan, Ibid. 4

Lacan, Ibid.

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Lacan, Seminário VII, A ética da psicanálise (195960/1988), p. 349.

6 “(...) a poesia, que é efeito de sentido, mas também efeito de furo. Somente a poesia, já disse, permite a interpretação.” Lacan, Seminário XXIV, op. cit., lição de 17/05/1977.

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7 Quando Lacan evoca a poesia, não se trata das Belas letras. “É uma outra ressonância que se trata de fundar sobre o chiste. Um chiste não é belo. Ele não consiste senão de um equívoco, ou como diz Freud, de uma economia.” Lacan, Ibid, lição de 18/04/1977. “É mesmo nisso que consiste o chiste. Consiste em servir-se de uma palavra para outro uso que não aquele para o qual ela é feita; dobramo-la um pouco, e é nessa dobradura que reside seu efeito operatório.” Lacan, Ibid, lição de 17/05/1977. 8 “O próprio Freud, numa

carta a Romain Rolland, articula espontaneamente que resistia ao gozo musical, e que esse gozo musical lhe parecia tão estranho quanto o que Romain Rolland lhe dizia sobre os gozos de ordem mística. Enfim, foi ele mesmo que articulou os dois, que teve a ideia de introduzir a música nisso”. DidierWeill, O circuito pulsional, (1996/1997), p. 102.

9 Lacan, Seminário XXIV, op. cit., lição de 18/04/1977. 10 “A fala, com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. Ela é corpo sutil, mas é corpo.” Lacan, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, (1953/1978). Escritos, p. 165.

11 Lacan, Seminário XXIII, O sinthoma, (1975/2007) p. 18-19.

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que uma interpretação justa extingue um sintoma que a verdade se especifica como sendo poética.4

O analista na posição de objeto a esvaziado é, na interpretação, porta-voz de um sens blanc, sentido branco que com a paga de sua pessoa5 toca o real d’alíngua, modulação que tanto pode unir o som ao sentido, enodar o som à imagem e ao significante, como desvinculá-los, fazendo o golpe de sentido nas amarrações sintomáticas e o passo de sentido em outras direções, onde o sinthoma pode se configurar. Se a poesia tem efeito de sentido é por ter também efeito de furo.6 É também assim, pelo equívoco, que vemos o chiste operar para alcançar uma economia.7 É quando a economia do gozo neurótico é alterada, modificada ou que, literalmente, perde o sentido, que podemos nos certificar da efetividade de nossas intervenções e do rumo ético da direção do tratamento, alcançando o desejo do sujeito que em potência, nas entrelinhas, dorme ou se extravia na rede de sua estrutura. As cordas vocais, bem como outros instrumentos, produzem uma música que afeta o corpo antes de alcançar qualquer entendimento racional, para o desgosto de Freud que disso se queixava em sua relação inconformada com a arte sonora, talvez por faltar-lhe a noção do Outro gozo, o do corpo, o feminino.8 Adverte-nos Lacan que “Não é do lado da lógica articulada” — apesar de que ocasionalmente eu aí deslize — “que devemos avaliar o alcance de nosso dizer.”9 Porém, quando estamos na dimensão musical não estamos fora da linguagem e de toda lógica como podem pensar alguns, mas de uma outra lógica, na dimensão da lalíngua que macula de sons o código, corpo da linguagem.10 Lalíngua entoa o canto do corpo vivente e enriquece de melodias o tesouro dos significantes. Evidentemente a música não necessariamente fala. Mas se a fala ocorre no ser falante, não é sem música, voz que canta e toca, tornando o ser, além de falante, cantante. A voz é entre os objetos suporte da pulsão, talvez o mais fugidio, etéreo e dessubstancializado, talvez por isso o mais separado do corpo, mas também o mais invasivo, que entra despudoradamente pelos ouvidos sem bordas móveis ou esfíncteres, sem pálpebras e sem meios de se fecharem.11 É essa dimensão de lalíngua que faz Lacan, mesmo afirmando a não existência da metalinguagem, pensar junto com Kristeva, em uma metalíngua, que se pode conceber como uma tradução, uma transposição, uma interpretação, uma transcriação.12 Para continuar trabalhando o tema de modo mais cantante, vamos partir de algumas canções, escolhendo certas versões posteriores e destacando, nestas últimas, o que há de tradução e mesmo de interpretação e transcriação das primeiras. Algumas versões dispensam e mesmo explodem uma significação fechada não só da letra, O corpo cantante


mas também da música da qual partem e promovem, de modo contingente, desde a polissemia e da polifonia, uma abertura a sentidos e ritmos adormecidos em potência no original.13 Não ditos e não ouvidos, escutas e dizeres inéditos passam a transmitir-se a uma audiência na qual o corpo, aquém e além da razão, se surpreende na suspeita inconfessa de um “já sabia”, mas que se formula somente no a posteriori. Essa constatação de um saber revelado ou descoberto se articula ao que podemos entender como a efetividade, na economia pulsional, dos modos de interpretação na prática analítica, sempre calcada no equívoco e também no que pode ser o sucesso da sempre fracassada tarefa da tradução quando esta relança, reaviva, transporta ou transcria algo do original, que ainda não veio à luz.14 Pois quando nesse seminário, Lacan se pergunta quanto à possibilidade da emergência de um significante novo — não se trata necessariamente de um neologismo — não é pela novidade de seu sentido, mas sim pelo ineditismo de seu efeito, por tocar o real.15 Retroativamente podemos ler em A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud um exemplo desse efeito, quando, trabalhando a metáfora e a metonímia, Lacan comenta a jaculação: “O amor é uma pedrinha rindo ao sol”,16 frase que anuncia um novo amor, um destino feliz do amor de transferência e que ao se articular, (...) recria o amor numa dimensão que eu pude dizer parecer-me sustentável, contra seu deslizamento sempre iminente na miragem de um altruísmo narcísico. Vemos que a metáfora se coloca no ponto exato em que o sentido se produz no não-senso, isto é, na passagem da qual Freud descobriu que, transposta às avessas, dá lugar à palavra que é, em francês, ‘a palavra’ (le mot, le bon mot) por excelência, a palavra que não tem outro patrocínio senão o significante da espirituosidade e onde se vislumbra que é seu próprio destino que o homem desafia através da derrisão do significante.”17

e que atesta, ao mesmo tempo, sua liberdade e servidão na linguagem. Efeito que, de outro modo, vemos acontecer em dois momentos de uma mesma canção. Norwegian Wood, gravada pelos Beatles e escrita por John Lennon e Paul McCartney (1965, álbum Rubber Soul)18 a partir de um affair de John com uma garota, é retomada muito tempo depois por dois músicos mineiros que, como tantos, não negam a influência dos Beatles em seus trabalhos. Mas desta feita, quem imprime um estilo único e inconfundível nessa canção com uma transcriação pungente e impressionante são Beto Guedes e Milton Nascimento, arranjados por Wagner Tiso (1975),19 que do tom e ritmo alegres e despreocupados da versão original denunciam, em contracanto Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

12 “Há uma coisa que me aventurei operar no sentido da metalíngua. A metalíngua em questão consiste em traduzir Unbewust por (une-bévue) equívoco. Não tem absolutamente o mesmo sentido. Mas é fato que desde que ele dorme, o homem equivoca com toda força, e sem inconveniente algum (...).” Lacan, Seminário XXIV, op. cit., lição de 17/05/1977. 13

Lacan criticando o fato de não ser suficiente a linearidade da cadeia do discurso em Saussure: “Mas basta escutar a poesia, o que sem dúvida aconteceu a F. de Saussure, para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas diversas pautas de uma partitura”. A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud, (1957/1998). Escritos, p. 506-507.

14 As traduções, que são mais que meras mediações, promovem uma sobrevida do original que “(...) em renovação constante, alcança um outro e mais extenso desdobramento.” Benjamin, A tarefa do tradutor (1923/2008), p. 54. Desde esse ponto de vista fica difícil entender a afirmação categórica de Benjamin precedente no texto: “É evidente que uma tradução, por melhor que seja, nada significa para o original.” (sic!) p. 53.

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15 “Um significante novo, que não tivesse nenhuma espécie de sentido, seria talvez o que nos levaria àquilo que, com meus passos trôpegos, chamo o real. Por que não tentaríamos formular um significante que, contrariamente ao uso que dele se faz atualmente, tivesse um efeito? (...) Ficamos colados sempre no sentido. Como ainda não se forçaram bem as coisas para provar o que aconteceria se se forjasse um significante que fosse outro?” Lacan, Seminário XXIV, op. cit., lição de 17/05/1977. 16 Tradução proposta na A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud nos Escritos da Ed. Perspectiva, (1957/1978) p. 239, que me parece melhor do que a que encontramos no mesmo texto nos Escritos da Ed. Zahar: “O amor é um seixo rindo ao sol”, op. cit., p. 512. 17 Lacan, ibid., p.512. 18 É possível ouvir a gravação dos Beatles em http://www.youtube.com/ watch?v=v5sbS0hqEdU (acesso em 15/12/10)

com a letra, algo destoante ao extraírem da canção uma sonoridade trágica, em uma interpretação que alonga o tempo e agrava a melodia, introduzindo fora de sua linha interferências dissonantes, suspendendo o que ouvíamos até então na composição primeira, ao entoar, de um possível encontro amoroso, um insuspeito desencontro e a fantasia de uma vingança incendiária, ao final confessada. Your song, um dos primeiros e maiores sucessos de Elton John, foi criada em vinte minutos em 1969 durante um café da manhã e contou com a letra singela de seu companheiro na época, Bernie Taupin.20 Billy Paul, três anos depois, relança a música e a toma de uma maneira tão diversa, (“Billy Paul’s got a song!” “This is my song!”) tão outra coisa, que a torna irreconhecível. A letra de uma leveza romântica, ingênua e despojada que a balada de E. John deixou um registro quase triste e pesado,21 é gravada por B. Paul com o júbilo de uma alegria contagiante, (“I’m doing beautifull”) swing colorido, diversificado e ritmo dançante imprevisíveis na interpretação de E. John, mas que descobrimos na letra de Taupin, que B. Paul soube reler e interpretar.22 O fato de se tratar aqui de traduções ou versões em uma mesma língua ressalta mais ainda o efeito transcriador aqui produzido por lalíngua, metalíngua, ou pela eterna estrangeirice do vivo, do corpo na linguagem, que se faz ouvir e mesmo entender não pelo sentido, mas pela música que faz ressoar outra coisa, na mesma canção.23 Em ambos os casos faz-se de Your song, My song, do que vem do outro, do que se herda, uma escrita própria, autoral. Deixando tais performances ecoarem no litoral, fazer ondas nas margens, pode-se, pelo efeito, conceber aquilo que, na psicanálise, não é mera formação de compromisso sintomal, mas escritura, acorde singular sinthomático, signo de alguém. Alguém, que ao final de uma análise, pode tornar-se outro, apesar de continuar o mesmo.24

19 É possível ouvir a gravação em http://www.youtube. com/watch?v=emQP5AJKt6I (acesso em 15/12/2010).

20 Gravação de Your song por Elton John: <http:// www.youtube.com/ watch?v=mTa8U0Wa0q8> (acesso em 15/12/2010).

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Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: Quatro traduções para o português. Organizadora: Lúcia Castelo Branco. Cadernos Viva voz, Fale/UFMG: Belo Horizonte, 2008. DIDIER-WEILL. Alain. O circuito pulsional. In A nota azul. Trad. Fr. Cristina Lacerda e Marcelo Jaques de Morais. Ed. Contra capa: Rio de Janeiro, 1997. LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Fr. Inês Oseki-Depré. Ed. Perspectiva: São Paulo, 1978. LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Fr. Vera Ribeiro. Ed. Zahar: Rio de Janeiro, 1998. LACAN, Jacques. O Seminário – Livro XVII A ética da psicanálise (1959-1960). Trad. Fr. Antonio Quinet. Ed. Zahar: Rio de Janeiro, 1988. LACAN, Jacques. Seminário Encore. (1973-1973). FR. Analucia Teixeira Ribeiro. Publicação Escola Letra Freudiana. (Versão brasileira sem fins comerciais): Rio de Janeiro, 2010. LACAN, Jacques. O Seminário – Livro XXIII – O sinthoma. Trad. Fr. Sérgio Laia. Ed. Zahar: Rio de Janeiro, 2007. LACAN, Jacques. O Seminário – livro XXIV, (1976-1977). L’ insu que sait de l’une bevue s’aile à mourre. Foram consultadas uma versão brasileira sem fins comerciais e a tradução de Jairo Gerbase do texto estabelecido por J. Alain Miller: http://www.campopsicanalitico.com.br/Biblioteca (acesso em 15/12/2010).

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21 Tom que, por momentos, chega a ser nostálgico na linda versão de Your song, agravada por Al Jarreau. Conferir: <http:// www.youtube.com/ watch?v=YCsNGdCDaXo> (acesso em 15/12/2010).

22 “I’m gonna write it (write it), write it (write it), write it(write it)”

23 “I might come out with the Gospel (Gospel), the Blues (blues), The Jazz (Jazz), the Rock and Roll”. Encontramos, dentre outros, estes acréscimos à letra original na versão de B. Paul, que pode ser acessado em <http://www.youtube.com/ watch?v=ngSzc9ZX_58> (acesso em 15/12/2010). 24 “O nervoso curado realmente veio a ser um outro ser humano, embora no fundo ele permaneceu, naturalmente, o mesmo, isto é, ele veio a ser como, no melhor dos casos, sob as condições mais favoráveis, poderia vir a ser. Isso, porém, já é muita coisa”. Freud, (1916-1917) conferência XXVII, A transferência. Tradução do alemão proposta por Raquel Jardim Pardini e Sérgio Becker.

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Resumo A partir das considerações linguageiras que Lacan traça entre a atividade poética e a intervenção analítica, pretende-se, a partir de gravações originais de algumas canções trabalhar os efeitos de lalíngua em algumas de suas versões, transcriações, nas quais se cortam e se enodam significações, produzindo o novo desde efeitos de real no sentido. A autoria então se revela como uma tradução ou interpretação própria e surpreendente do que vem do outro.

Palavras-chave Interpretação, versão, autoria, lalíngua, poético.

Abstract From the languagional considerations Lacan sets between poetic activity and analitic intervention, the objective is, from original recordings of songs, to work the effects of lalanguage in some of it’s other versions, transcreations where significations can be scratched or linked producing real effects on the meaning. The authorship then reveals itself as a translation or personal (and surprising) interpretation of that which comes from the other.

Keywords Interpretation, version, authorship, lalanguage, poetic.

Recebido 24/11/2010

Aprovado 21/12/2010

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O corpo cantante


CORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo Antonio Quinet O “fala-a-ser”, ao sofrer os efeitos de lalíngua, desnaturaliza não só a natureza como a própria linguagem, a qual nada tem de natural.1 O que cada um faz com o que recebe da língua materna é o que lhe dará sua particularidade como ser corporal, que não se distingue de sua qualidade como ser falante. A relação com lalíngua é uma relação de criação, pois cada um terá sua “linguagem” própria, não apenas de falar, mas também sua maneira de andar, dançar, cantar, se posicionar e se relacionar, pois essa incidência de lalíngua se dará em seu corpo. Assim o corpo do fala-a-ser não tem nada de natural, ele é desnaturalizado ao receber o banho de lalíngua.

1 Proponho traduzir parlêtre por fala-a-ser (e não por falasser) como se diz falta-a-ser para manquer-à-étre. Assim, podemos referir por meio dessas expressões ao ver da fala e o ser da falta.

O homem, ser-para-a-arte De sua relação com lalíngua surge o homem como o “cabeça da arte”, e dessa forma, aponta Lacan, ele se desnaturaliza e toma por objetivo “natural” a arte. Lacan se alinha a Aristóteles de A Arte Poética, na qual o filósofo afirma: “a tendência para a mímesis é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distingue-se de todos os outros seres, por sua aptidão muito desenvolvida para a mímesis”.2 Assim, ele define o homem como um ser da mímesis. O homem é um ser que, naturalmente, tende a representar o que vê, ouve, sente, pensa e sonha. É a partir desse vocábulo que Aristóteles se refere à arte — mímesis é na Poética sinônimo de arte em geral. O grande equívoco de interpretação da tradição filosófica foi ter tomado a mímesis como imitação e propor fazer da arte uma imitação da natureza. E assim reduzir a arte a uma representação dentro do esquema modelo-cópia, ou seja, a arte como reapresentação, como retrato do que se vê, do que se escuta. A arte como imitação da natureza criou a natureza morta — nome curioso para se falar do retrato da natureza dos corpos vivos: frutas, flores e outros objetos. A arte-retrato explode no hiper-realismo na pintura — o que está na tela retratado pelo artista é mais real do que se vê.3 No século XIX, a arte como imitação da natureza, ou seja, a “arte natural”, ganha uma força renovada com Émile Zola, e o naturalismo, imediatamente tomado por André Antoine para ser Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

2 Aristóteles, Arte retórica e Arte poética (s/d, p. 244).

3 Essa afirmativa pode parecer paradoxal, mas com efeito não o é, pois o que se produz artisticamente toca mais ao real do que aquilo que a percepção visual, embebida no registro do imaginário, deixa captar.

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4 Lacan, Outros Escritos (2003, p. 568).

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adaptado ao teatro e se constituir com uma grande força em contraposição ao teatro declamativo de uma Sarah Bernhardt. Esse naturalismo no teatro — que chega às novelas de televisão imprimindo um estilo de representação teatral — foi duramente criticado como ilusão e enganação por Brecht anos depois. Como alguém pode fingir que está “natural” num palco como se estivesse num campo de centeio? Mas é possível estar mais presente num palco do que num campo de centeio por meio da representação artística. A mímesis aristotélica não deve, portanto, ser traduzida por imitação e sim — dentro do contexto desse primeiro livro sobre estética do mundo — como representação no sentido teatral, ou em francês mise-en-scène ou, em inglês, performance. A mímesis própria da arte é a colocação em cena — na cena do mundo — de algo que o artista percebe, sente ou imagina a partir de um artifício específico. E não é por acaso que o grande exemplo na Arte Poética é a tragédia, isto é, o teatro como colocação de um mito no palco. A tragédia é a mímesis, não de um personagem, e sim de uma ação. Isto significa que o paradigma da arte não é um homem imitando outro homem, como um ator imitaria um personagem (seus gestos, seus sentimentos, suas roupas, seus trejeitos) e sim um homem colocando em cena a ação realizada por outro homem a partir de sua arte de representar. A arte poética traz, portanto, a performance de uma ação como paradigma da obra da arte. Trata-se de colocar em cena corporalmente a poesia do autor que relata os feitos do herói trágico que será vivificada e encarnada numa ação pelos corpos falantes dos atores diante de espectadores. O teatro é o lugar da letra viva — poesia no corpo em tempo real. O fato de o homem ter uma tendência natural para a mímesis significa que o homem é um ser-para-a-arte. Como diz Lacan, no texto acima citado, o natural do homem não é a natureza e sim a arte, e ele pode então “orgulharte-se”. Joyce, efetivamente, se considerava um artista, a ponto de dar como título de um de seus livros O retrato de um artista quando jovem, escrito a partir de suas vivências infantis. Lacan não se considerava como tal, e sim como obra de arte: “não sou um poeta, mas um poema”.4 Se para Nietzsche é a pulsão artística dionisíaca, para Lacan é o real que faz com que o artista se transforme em obra de arte. Esse poema — que ele é como fala-a-ser — se escreve, mas não é um sujeito, nos indica Lacan, mesmo que ele tenha ares de um sujeito. Ao se transmutar em poema, o sujeito desaparece e o fala-a-ser se escreve. A transformação do artista em obra de arte corresponde a uma dessubjetivação; em outros termos, a uma destituição subjetiva. O ser-para-a-arte se distingue do sujeito do inconsciente. Este é o sujeito do significante, que por um lado está sempre sendo reCORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo


presentado por um significante para outro significante e assim está sempre deslizando na cadeia infinita da linguagem. Por outro lado, ele se encontra assujeitado a determinados significantes primordiais de sua história que o alienam ao Outro e o fazem repetir sempre o mesmo mote. Para que o ser-para-a-arte se manifeste é necessária a destituição subjetiva com o consequente esvaziamento desses significantes que determinam sua repetição inconsciente e sua história. O ator, como diz Novarina, vem morrer em cena. Pois se dessubjetiva para poder ser corpoema. Isto é necessário, apesar de contingente, para que se produza a arte como o novo, como criação ex nihilo, do nada. O artista, a partir dessa indicação de Lacan, não faz obra de arte, ele é arte. Lá, onde o ser falante vira obra de arte o sujeito desaparece, mas se escreve. Ao morrer ele espirra a sua tinta. E escreve-se como obra. A tinta de lalíngua escreve seu corpo, nos dois sentidos: que faz seu corpo escrever e faz uma escritura em seu corpo, seu corpoema. Eis seu produto artístico do contato com lalíngua, pois, como diz Colette Soler: “o corpo não é um produto da natureza, ele é, antes, um produto da arte”.5

5 Soler, O corpo falante (2010, p. 36).

O sinthoma-arte e o corpo Essa natureza do homem, a que o faz ser o cabeça da arte, ele só toca nela como sintoma.6 O homem sintomatiza por meio da arte. Se seu paradigma é Joyce que faz da arte seu sintoma, ele nos aponta aqui para uma generalização da arte como sintoma, quando situa a arte como o natural do homem, sendo que é a arte que lhe confere um corpo. Esse sintoma é a maneira como lalíngua se deposita para o falasser, como corpo falante.7 Freud se referiu na famosa carta 52 ao processo de tradução dos eventos psíquicos e dos acidentes dessa tradução nas diversas instâncias. O sintoma é compreendido como um defeito de tradução. Com o conceito do traumatismo de lalíngua constituindo o Inconsciente real, podemos dizer que a operação que o corpo falante realiza é da ordem de uma transcriação — termo criado por Haroldo de Campos para se referir a uma tradução que leva em conta as particularidades da língua fonte, ou seja, seu somatório único e exclusivo de equívocos, e sua incidência na língua alvo (da tradução). Trata-se de uma tradução criativa, para além do significado, na qual o tradutor utiliza a licença poética, podendo, até mesmo reivindicar sua autoria daquele texto. O fala-a-ser transcria a língua materna em sua língua própria. E faz com ela um corpo transcriado em letra — um corpoema. O cristal poético de lalíngua, como a soma dos equívocos acumulados em cada língua, é assim expresso Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

6 Cf. Lacan, Joyce, o Sintoma, op. cit. (2003, p. 562).

7 No Seminário XX, Lacan se alinha mais uma vez a Aristóteles, dessa vez, no De Anima, em que o filósofo aproxima a categoria de ser do corpo próprio do homem. Para Lacan, também o ser é o corpo, ou em seus termos, o parlêtre, o fala-a-ser é o corpo falante.

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8 Campos, Galáxias (1984).

9 Lacan, Idem (2003, nota de pé de página, p. 565).

10 Soler, L’en-corps (20012002, p. 23).

11 Lacan, Radiofonia (2003, p. 407).

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por Haroldo de Campos: “O povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tentando a travessia, [...] é o melhor artífice no seu martelo galopando no crivo do impossível no vivo do inviável no cristal do incrível do seu galope martelado”.8 O ser-corpo é esculpido pela chuva de marteladas de lalíngua traumática constituindo um corpo-leito para se escrever a história, a história corporal e fazer desse corpo um corpoema. No texto sobre Joyce, Lacan redefine o sintoma como acontecimento de corpo ligado ao que dessa língua se canta: l’on l’a, l’on l’a de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a.9 Coloca assim em cena lalíngua remetendo-a diretamente à lalação, de onde se origina o termo lalangue e sua tradução (a bem dizer, uma transcriação), tal como proposta por Haroldo de Campos, por lalíngua. O “lá-lá-lá-lá-lá” da música é componente integrante e fundamental do conceito de lalíngua presente nessa tradução proposta pelo poeta. Lalíngua é composta por significantes da língua materna + a música com a qual foram ditos. Os significantes de lalíngua são lalados. O sintoma como obra de arte pode se localizar no corpo na medida em que o sujeito sintomatiza sua relação com lalíngua no corpo e faz do seu corpo uma escritura — escrevendo em seu corpo sua maneira de lidar com lalíngua em toda sua originalidade e transcriatividade. E faz de seu corpo um corpoema. A língua lalada pelo bebê é composta pela conjunção da maneira como a língua materna lhe foi falada com a maneira como ela foi ouvida. Da mesma forma, o corpo é também lalado, pois, como diz Lacan, citado por Soler, “no encontro das palavras com seu corpo algo se desenha”.10 É desse encontro com lalíngua que a silhueta se esboça, que os movimentos se ensaiam e a partitura gestual se constitui e algo de sintomático se deposita no corpo como um acontecimento. Em Radiofonia, Lacan diz que o corpo tem uma marca que permite situá-lo numa cadeia de significantes.11 Essa marca é o efeito no corpo do traumatismo de lalíngua — marca que pode ser uma letra de gozo, um sintoma. O corpo é a via régia do inconsciente real. Encontramos isso no exemplo paradigmático de Édipo, como personagem trágico. Podemos tomá-lo pela via do encontro traumático com o desejo do Outro ou pela via de lalíngua traumática. Ele foi objeto do desejo mortífero dos pais que aos três anos de vida tentaram matá-lo. Desse encontro ele ficou com uma marca nos pés e no nome. Da chuva da lalíngua grega caiu-lhe o nome Oidipous — o pé inchado, de oiden, inchação e pous, pé, marcando seu corpo. Essa letra é o significante que fixa o gozo do crime paterno que por um lado histoeriza seu corpo situando-o numa linhagem de reis, por outro lado ela traz o saber do real de lalíngua: Oidipous é também uma palavra-valise que junta “eu sei” de oida, em grego com o pé. Óidipous é o Pé-que-sabe, letra que resulta dos equívocos CORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo


da lalíngua grega, mostrando que o corpo é a via régia do inconsciente lalinguageiro.12 Ferenczi se refere a uma memória do corpo que é “uma coleção de cicatrizes dos choques recebidos pelo eu”.13 Com Lacan, podemos dizer que se trata dos choques dos traumatismos causados por lalíngua que escrevem a letra no corpo. A escrita é o ravinamento do gozo que ao banhar o corpo lhe confere sua partitura gestual e de movimento. Segundo Lacan, “é na maneira pela qual lalíngua foi falada e também ouvida, (...), que algo aparece em sonhos, em toda espécie de tropeços, em todas as formas de dizer”. O analista deve saber ler o corpo e seus atos falhos e bem-sucedidos que não se resumem ao lapsus linguae. Os lapsus do corpo são sua maneira de manifestar sua escritura, para além do sujeito. Freud leu a escrita do sintoma na partitura histero-epilética que Charcot escreveu, executou e regeu com a orquestra de corpos vivos, que falavam o gozo com espasmos, contraturas, preces e agitação. Suas partituras de movimento são encenadas até hoje, como se pode ver, por exemplo, na coreografia de Café Müller de Pina Bausch. Freud soube ler no sintoma a miseen-scène do real da coisa sexual nos mistérios do corpo dançante.

12 Cf. Quinet, O tempo de laiusar (2009, p. 25-31).

13

Ferenczi, Diário clínico

(1990, p. 150).

O corpo em movimento À mortificação do corpo provocada pela linguagem para que o corpo entre na cadeia significante respondem as vias de gozo. O corpo é uma cadeia temporal de linguagem inconsciente por onde circula o gozo. O corpo vivo é o corpo gozante que se movimenta. A morte é o não-movimento. As vias do gozo do corpo são traçadas pelos significantes de lalíngua, e sua música, ouvida e lalada, levano a se movimentar ao ritmo das pulsões, como ecos do dizer no corpo, segundo a definição de pulsão por Lacan. Lalíngua produz o aparelho circulatório de gozo no corpo. A pulsão invocante dá o ritmo, o andamento; e as partituras gestuais ao corpo fazem ecoar ali a melopeia de uma lalíngua outrora ouvida; a pulsão escópica o coloca na cena do mundo desenhando seu deslocamento espacial. O corpo é o palco das manifestações do inconsciente real: partes esquecidas, movimentos falhos, lesões involuntárias — são inúmeros os lapsos de corpo. O corpo como gozante é um corpo andante porque falante: ele está sempre expressando, como diz a coreógrafa Regina Miranda, o “ir para um outro lugar”, “ir alhures”.14 Mesmo quando parado, o corpo expressa o batimento do Inconsciente. O corpo em transformação permanente se vincula às cadeias associativas do Inconsciente demonstrando que o corpo é estruturado como uma linguagem — a linguagem da pulsão. O corpo tem seu cogito: movimento, logo existo. Só na síndrome de Cottard, na total Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

14 Cf. Miranda, CorpoEspaço – aspectos de uma geofilosofia do corpo em movimento (2008).

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15 Novarina, Para Louis de Funès (2009, p. 50).

16 Idem (2009, p. 50).

abulia inerte, triunfo da pulsão de morte, o corpo parece parar. A música de lalíngua deve estar presente no corpo do ator atravessado pelas palavras do texto: essa música faz do corpo um corpo dançante. “Todo pensamento que não é dançado é falso. Todo pensamento sem ritmo e que não encontrou seus pés. [...] Todo bom pensamento se dança, todo pensamento verdadeiro deve poder ser dançado.”15 O ator sabe muito bem que todos os pensamentos vêm do corpo, que eles passaram pela prova da paixão, saíram das carnes; fazer morrer para criar o novo e fazer mexer também de forma nova. Lacan por várias vezes exortou os psicanalistas a pensarem com os pés, pois o que não se aprende se acha, mas somente no final de um longo trabalho debaixo da mesa. “Quer dizer, depois de ter pensado muito com os pés.”16 Há pensamentos sem pés e que não dançam: eles se esgotam muito rapidamente, são ideias, os jornais estão cheios, eles ficam de pé por pouco tempo.

A corpoeise e o ator

17 Valére Novarina é um dos maiores dramaturgos contemporâneos vivos que confere todo o valor à palavra poética no teatro, que deve ser expressa em todos os meios cênicos a começar pelo corpo do ator.

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Nas artes cênicas, o ator ou bailarino dá-a-ver um corpo como campo artístico onde ele escreve seu poema do movimento do ser. O teatro é o lugar da poesia encorpada, do significante gozante, da letra que se faz voz onde o ator demonstra a materialidade fonética da palavra, o gozo de lalíngua. A palavra na boca do ator traz, ou deveria trazer, a substância gozante e é por isso que ele vivifica a língua que está sendo falada e afeta o espectador fazendo nele vibrar, para além da mensagem, ou seja, do conteúdo e do contexto da peça, o gozo de lalíngua. O ator realiza por meio de seu corpo falante, a presença do real de lalíngua naquele momento hic e nunc do teatro. O espectador de cinema não goza da mesma maneira que o espectador de teatro — é a presença em cena do corpo falante trazendo a substância gozante de lalíngua que faz toda a diferença. O ator mostra como a linguagem não é feita para comunicar, como diz Novarina, se alinhando assim com Lacan.17 A palavra é feita para afetar, para fazer o espectador gozar. Desde Aristóteles se sabe que a função do teatro é de provocar afetos e gozo: terror, compaixão, entusiasmo. O ator se utiliza disso para trazer no atual da presença o corpo falado, lalado, que é o corpo que goza. A palavra na boca do ator traz a substância gozante, é por isso que ele vivifica a linguagem por meio de seu corpo falante. Daí ele faz vibrar no espectador sua substância gozante que vai para além do significado das palavras. Assim, o ator nos ensina a devolver à palavra seu enigma, tudo o que ela promete e não entrega — o enigma que o significado embaça. O ator coloca em cena os enunciados das palavras em uma determinada maneira de falar que faz vibrar lalíngua CORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo


através do corpo falante que não só fala com a boca, mas, como o histérico, com todas as partes, poros e secreções de seu ser-corpo. Em sua corpoiese o ator dá-a-ver o escrito da partitura que compôs para aquele espetáculo. Seu corpo dá-a-ler uma escritura para além do que ele fala. Esta pode até mesmo ser contraditória com o que ele está falando, revelando com seu lapso corporal tornado arte, a verdade que desmente seu dito. Ele pode dizer “eu te amo” e seu corpo falar “eu te odeio”, ele pode dizer “ele me pediu que o deixasse partir” e seu corpo dizer “eu o mandei ir embora”; ela pode dizer “fui eu que te dei a vida” e seu corpo revelar que ela tentou matá-lo ao nascer. O ator usa, sem dúvida, seu corpo como inscrição do inconsciente estruturado como uma linguagem metaforizando e metonimizando as mensagens que comentam, contradizem, pontuam seu texto verbal. Mas ele também dá-a-ler algo para além da mensagem, algo que não deixando de ser um escrito, permanece enigmático. Pois, algo de lalíngua aparece no corpo e em seus tropeços. No encontro das palavras do autor com seu corpo o ator desenha uma partitura gestual, de movimentos em que transpira afetos. Ele ali sintomatiza seu ser-para-a-arte. O gozo, como diz Lacan no seminário XX, não se cala, ele está sempre falando. Como? Por meio do corpo. Esse gozo do corpo contém o ser da significância, que pode e promete significar. Mas esse ser não é todo significante, ele é da significância e, no entanto, traz o enigma. O gozo que não se cala, fala no corpo falante, corpo dançante, corpo cantante, corpo atuante. E em vez de fazer o amor, esse corpo faz poesia. O gozo do corpo, diz Lacan, não é prometido à relação sexual e sim à poesia, que é a maneira do fala-a-ser de fazer amor. O gozo do corpo é prometido à corpoeise. No teatro, o encontro com o texto faz o ator ser traumatizado pela lalalíngua do autor e deixar esculpir um outro corpo transcriando nele sua escrita cênica. Quando essa operação é bem-sucedida ele transforma seu corpo em um corpoema. Esse encontro do ator com lalíngua do autor pode reproduzir o traumatismo desse primeiro encontro entre o que foi falado e o que foi ouvido e em seguida lalado. Essa reatualização do encontro com lalalíngua não ocorre sem angústia, inibição ou novos sintomas. O ator com seu corpo falante vem “preencher o texto furado do autor, dançar dentro dele”. O teatro nos dá-a-ver o nascimento da palavra falada a partir da trama do desejo e do trauma da lalíngua. Pois o ator é o passador do escrito para a fala e o faz com seu corpo, seu corpo falante, seu corpo trespassado pela palavra. Para fazer do enunciado do autor sua enunciação, o ator deve transformar os ditos num dizer que pode ser feito com o ato ou com a fala. O ator deve encontrar a maneira pela qual ele foi tocado pela palavra do Outro, o autor. E assim ele representará o que foi Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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18 Novarina, Carta aos atores (2009, p. 18).

19 Novarina, Para Louis de

ouvido no que foi falado — o que implica a canção de lalíngua. O l’on l’a l’on l’a l’on l’a da melopeia da fala. Sua música e seu ritmo, a prosódia que ele criará para aquele texto. Como o recitativo da ópera, a fala falada não é sem sua música, mesmo quando esta não é propositadamente musical como nas árias operísticas. O ator tem que dar corpo ao escrito e compor, com seu corpo falante, a partitura do texto de seu personagem. O ator não incorpora o personagem, como se fosse o delegado do autor. O ator dá corpo à fala do personagem a partir de sua relação com lalíngua, e faz seu corpo dançar como uma palavra lalada. O ator sabe o que é o corpo falante e a corporeidade da fala. É a palavra que o ator lança ou retém e que vem chicotear o rosto do público e afetar no real os corpos presentes dos espectadores no teatro. E assim, o teatro é uma experiência corporal coletiva. O trabalho do ator, com seu corpo, e sua corpoiese nos ensina o que é um corpo e sua relação com as palavras, pois o ator com seu corpo falante vem “preencher o texto furado do autor, dançar dentro dele”.18 Seu corpo é propositalmente trespassado por lalíngua, com sua materialidade significante e sua música lalada, e assim, “sua fala é um “falado-cantado”, seu caminhar um “andadodançado” e quando para, sua posição é um “parado-pulado”.19 Eis o que nos transmite a arte do corpo que dá-a-ver o corpo artístico desnaturalizado pela musicalalíngua do inconsciente real.

Funès (2009, p. 27).

Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. São Paulo: Ediouro, 15ª ed., sem data.

CAMPOS, H. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 1984. FERENCZI, S. Diário clínico. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1990. LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LACAN, J. Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LACAN, J. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. MIRANDA, R. Corpo-Espaço – aspectos de uma geofilosofia do corpo em movimento. Rio de Janeiro: 7letras – Viveiros de Castro Editora, 2008. NOVARINA, V. Carta aos atores. In: Carta aos atores e Para Louis de Funès. Rio de Janeiro: 7letras – Viveiros de Castro Editora, 2009. NOVARINA, V. Para Louis de Funès. In: Carta aos atores e Para 26

CORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo


Louis de Funès. Rio de Janeiro: 7letras – Viveiros de Castro Editora, 2009. QUINET, A. O tempo de laiusar. In: Stylus. Rio de Janeiro, n. 18, 2009. SOLER, C. O corpo falante. In: Caderno de Stylus 1. IF-EPFCLBrasil, 2010. SOLER, C. L’en-corps. Seminário de Colette Soler. Paris: 20012002.

Resumo O autor argumenta e justifica que o corpo do fala-a-ser não tem nada de natural, pois ao sofrer os efeitos de lalíngua, se desnaturaliza. Sustenta também que a relação com lalíngua é uma relação de criação e que cada um terá sua “linguagem” própria, não apenas de falar, mas também, sua maneira de andar, dançar, cantar, se posicionar e se relacionar, pois essa incidência de lalíngua se dará em seu corpo — palco das manifestações do inconsciente real. Para pensar esse tema e construir o seu argumento, o autor faz inúmeras referências à psicanálise, filosofia, literatura e artes cênicas, particularmente ao trabalho do ator, concluindo que, como o homem tem uma tendência natural para a mímesis, ou seja, que o homem é um ser-para-a-arte, o teatro é o lugar da poesia encorpada, do significante gozante, da letra que se faz voz, lugar onde o ator demonstra a materialidade fonética da palavra, o gozo de lalíngua, lugar onde pode transformar seu corpo num poema, um corpoema.

Palavras chave Corpo, lalíngua, criação e artes cênicas.

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Abstract The author argues and justifies that the body of the talkto-be has nothing natural because once it goes through the effects of lalingua, it denaturalizes. It is also argued that the relationship with lalingua is that of creation and that each person will have his/her own “language”, not only for speaking, but also, his/her way of walking, dancing, singing, positioning himself/herself, establishing relationships. The incidence of “lalingua” will take place in his/her body – stage for the manifestations of the real unconscious. To ponder over such a theme and build up his argument, the author counts on various references to psychoanalysis, philosophy, literature and scenic arts, particularly the actor’s work, concluding that, as man has a natural tendency to mimesis, that is, man is a being-forart, theater is then the place of the embodied poetry, of the significant in full pleasure, of the letter which turns itself into voice, the place where the author demonstrates the phonetic materiality of the word, the pleasure of lalingua, the place where it is possible to transform his body into a poem, a “poembody”.

Key words Body; lalingua; creation; scenic arts.

Recebido 26/11/2010

Aprovado 18/12/2010

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CORPOEMA: O homem, ser-para-a-arte, e seu corpo


Um corpo na perversão Maria Helena Martinho Este texto pretende se servir de um verdadeiro tratado sobre o corpo, uma obra-prima do escritor japonês Yukio Mishima,1 intitulada Sol e aço,2 na intenção de destacar desse ensaio autobiográfico as descobertas feitas pelo autor sobre a relação entre o corpo e as palavras. O texto procura articular o que se desvela do saber inconsciente do autor com as teorizações de Lacan sobre o corpo, explicitadas em Radiofonia.3 Em Sol e aço, Mishima revela que ao repassar a sua infância se deu conta de que a linguagem vem antes do corpo:

1 Yukio Mishima nasceu em Tóquio, em 1925, e morreu na mesma cidade em 1970; ele suicidou-se rasgando as suas próprias vísceras; cometeu o seppuku (suicídio cortando o abdome), seguindo o ritual da casta dos

Quando repasso atentamente a minha infância, me dou conta que minha memória das palavras começa muito antes da minha memória da carne. Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da linguagem. No meu caso, antes vieram as palavras; então — pé ante pé, com toda a aparência de extrema relutância, e já vestida de conceitos — veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas palavras. Primeiro vem o pilar de madeira pura, depois os cupins que o comem. No meu caso, os cupins já estavam lá desde o começo, e o pilar de madeira pura só emergiu mais tarde, já meio carcomido.4

Num primeiro tempo, Mishima identifica-se com as palavras e vê-se destituído do corpo. Os cupins, que metaforizam as palavras, já estavam lá quando o corpo, metaforizado pela madeira, emergiu já “carcomido”. Mishima ilustra de modo excepcional que “o artista precede o psicanalista”, pois deflagra seu saber inconsciente sobre o que fora enunciado por Lacan, dois anos depois, em 1970, quando em Radiofonia ele teoriza sobre aquilo que Mishima havia enunciado: “o cupim” (metáfora da linguagem) é o que vem primeiro, para então se incorporar na madeira (metáfora do seu corpo): Volto primeiro ao corpo do simbólico, que convém entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem que lhe confere, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar.5

Em 1970, Lacan fala de dois corpos: o “corpo do simbólico” e o “corpo no sentido ingênuo”. O primeiro, o “corpo do simbólico” Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

samurais.

2 Mishima, Sol e aço. (1968/1985).

3 Lacan, Radiofonia (1970/2003).

4

Sol e aço. (op. cit., p.8).

5

Radiofonia. (op. cit., p.

406).

29


6

Quinet, Incorporação,

extrusão e somação (2004, p. 59).

7

Para ser mais precisa, no

texto De nossos antecedentes, Lacan diz que “o estádio do espelho”, produzido por ele em 1936, “antecipou nossa inserção do inconsciente na linguagem” (Lacan, 1966, p. 75).

8

Radiofonia. (op. cit. p.

406).

9

Lacan, Função e campo da

fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998, p. 320).

10

Corps (francês) se traduz

corpo e corpse (inglês) se traduz cadáver.

11

Radiofonia. (op. cit., p.

407).

12

Ibid., p. 406.

13 Mishima, Confissões de uma máscara (1949, p. 10).

30

— feito da materialidade sonora do significante — é constituído de linguagem. O segundo, o “corpo no sentido ingênuo, é tomado como um eu corporal, narcísico”.6 Lacan ressalta que só se pode ter um corpo “no sentido ingênuo” se este foi concedido pela linguagem. Aquele cujo corpo não está na linguagem não tem propriamente um corpo. A palavra mata a coisa constituindo assim, o corpo do falasser (parlêtre). Lacan verifica que o corpo dos seres falantes tem três dimensões: real, simbólica e imaginária. No início de seu ensino, ao retomar a noção freudiana de narcisismo, esclarece o registro do imaginário pela ênfase dada à alienação do infans na imagem do semelhante e pelo que aí se precipita de uma Gestalt antecipatória do corpo próprio do sujeito. Ressalta ainda que nessa experiência do espelho vivida pelo sujeito, a função da lei do Outro da linguagem aponta para o registro do simbólico, e o júbilo (gozo) aponta para o registro do real. Vê-se, assim, que desde os primórdios de seu ensino,7 Lacan observa que não há corpo sem simbólico, sem linguagem; o corpo é constituído de significantes, mapeado pelos significantes; “é secundário que o corpo esteja vivo ou morto”,8 pois “o primeiro símbolo em que reconhecemos a humanidade em seus vestígios é a sepultura”.9 Verifica-se então que em 1970, Lacan desenvolve o quê já estava antecipado em 1953: “O lugar onde se afirma de uma espécie que, ao contrário de qualquer outra, o cadáver preserva o que dava ao vivente o caráter: o corpo. Permanece como corpse,10 não se transforma em carniça, o corpo que era habitado pela fala, que a linguagem corpsificava”.11 No humano, ser falante, a linguagem lhe confere um corpo, e quando morre se torna um cadáver. Os animais não têm corpo, eles são carne, por isso quando morrem viram carniça. Em Radiofonia, além de reafirmar o que já havia dito sobre o corpo havia dezessete anos, em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan ressalta que o primeiro corpo, o da linguagem, é que faz o segundo, “o corpo no sentido ingênuo”, justamente “por se incorporar nele”.12 Por meio da narrativa do protagonista do romance autobiográfico Confissões de uma máscara, Mishima descreve cenas de sua própria vida, extraídas das suas mais remotas lembranças, situa o seu corpo na cadeia de significantes de sua história, ilustrando assim, aquilo que não cessa de se escrever: o seu corpo se faz cama para a “incorporação” do Outro: “minha avó arrancou-me dos braços de minha mãe no meu quadragésimo nono dia. Minha cama foi colocada no quarto de doente de minha avó, permanentemente fechado e abafado com odores de doença e velhice, e fui criado ali, ao lado de sua cama de doente”.13 Em A terceira, Lacan escreve o corpo, a vida e a morte no nó borromeano. O corpo está no círculo do imaginário, a vida no círUm corpo na perversão


culo do real e a morte no do simbólico. Para o parlêtre o corpo se inscreve entre a vida e a morte. No caso de Mishima, os significantes advindos daqueles que representam o Outro desvelam o lugar que esse sujeito ocupa no discurso do Outro: o lugar de morto. “Quando tinha cerca de um ano, levei um tombo e machuquei a testa. Minha avó tinha ido ao teatro. Quando ela chegou, perguntou: ele está morto?”14 O menino tornou-se vítima de alergias violentas. Recebeu o diagnóstico de autointoxicação. Ele teve muitas crises que anunciavam todos os sinais do envenenamento. Sua avó não cessava de afirmar a iminência de sua morte. O “tu estais morto” é um dos significantes-mestres — emitidos por sua avó, aquela que ocupa o lugar do Outro primordial — que o menino em sua ficção interpreta: “Pouco antes do meu quarto aniversário, vomitei alguma coisa cor de café. Ficaram todos em torno de mim, olhando meu cadáver. Prepararam uma mortalha, juntaram meus brinquedos favoritos e reuniram todos os parentes”.15 O corpo entra na linguagem sofrendo os efeitos dos ditos do Outro. Em Radiofonia, Lacan define o Outro por sua incompletude, como (-1), ou seja, como a falta de um significante no Outro, S (Ⱥ). Ele diz: “Menos-Um designa o lugar que é dito do Outro (com a inicial maiúscula). Pelo Um-a-Menos, faz-se cama para a intrusão que avança a partir da extrusão: é o próprio significante”.16 Nesse complexo texto de 1970, Lacan retoma o corpo e o articula, para além do imaginário, com o significante e com o gozo. Ele observa que o corpo se oferece como cama para a intrusão do S(Ⱥ): “O primeiro corpo faz o segundo, por se incorporar nele. Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação”.17 Como traduzir esse enunciado de Lacan? De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, incorpóreo é definido como: “que não tem corpo; imaterial, impalpável; incorporal”.18 Para a psicanálise, o que não tem corpo, o que é imaterial é o objeto a. Sendo assim, pode-se dizer que o objeto a é o que fica marcando o primeiro corpo, o do simbólico, e o efeito da “incorporação simbólica” do S(Ⱥ) — intrusão significante e extrusão de gozo — “é o esvaziamento do gozo da carne. E o resto dessa operação é uma concentração de gozo fora-do-corpo, que não deixa de ter efeitos sobre o corpo por intermédio da pulsão e do objeto a, condensador de gozo”.19 Em A terceira, quando se refere ao nó borromeano, Lacan afirma que “todo gozo está conectado com este lugar de mais-de-gozar do objeto a”.20 O gozo fálico (Jφ) está na interseção entre o real e o simbólico, “o que define seu caráter de fora-do-corpo”,21 da qual o corpo imaginário está excluído. Em Sol e aço, Mishima ilustra o que constitui para ele o gozo fora-do-corpo, o gozo fálico: a necessidade de transformar seu corpo frágil em um corpo esculpido tal Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

14 Ibid.

15 Ibid.

16 Radiofonia. (op. cit., p. 407).

17 Ibid., p. 406. 18 Ferreira, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986, p. 934).

19 Incorporação, extrusão e somação. (op. cit., p. 61).

20 Lacan, A Terceira (1974/1993, p. 103).

21 Ibid. 31


22 Sol e aço. (op. cit., p. 97).

23 Ibid., p. 8.

24 Ibid., p. 89.

25 Ibid., p. 90.

26 Ibid.

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qual uma obra de arte, a uma escultura grega. Aos trinta anos de idade, ele escolhe cultivar seu corpo usando sol e aço: a luz do sol — descoberta por ele em uma viagem à Grécia — e do aço — utilizado no halterofilismo. Já próximo do final apoteótico que busca para sua vida, ao pilotar um avião supersônico, diz: “ereto, o F104, um pênis de prata agudo, apontava para o céu. Solitário, como um espermatozoide, eu estava instalado dentro dele. Eu ia saber como se sente um espermatozoide no instante da ejaculação”.22 No mesmo ensaio, Mishima salienta: “se meu ser era minha residência, então meu corpo se parecia com um pomar que o cercava. Eu podia ou cultivar esse pomar ao máximo de suas possibilidades ou abandoná-lo ao acaso do mato”.23 De fato, Mishima se dedicou ao cultivo do seu corpo-pomar. Contudo, aos quarenta e três anos de idade confessa: “sou um que sempre só esteve interessado nos extremos do corpo e do espírito [...] Opostos conduzidos aos seus extremos tendem a se assemelhar; e coisas separadas ao máximo, aumentando a distância entre elas, acabam por se aproximar”.24 Essa é uma verdadeira definição do desmentido. Mishima tentou aproximar o corpo e as palavras ao longo de toda a sua vida, mas: [...] corpo e espírito nunca deram boa combinação. Eles nunca foram parecidos. Nunca experimentei na ação física nada que se assemelhasse à satisfação arrepiante e aterradora proporcionada pela aventura intelectual. Nem senti nunca na aventura intelectual o calor impessoal, a cálida escuridão da ação física.25

Apesar disso, Mishima não cessava de buscar a interseção tão almejada entre o corpo e o espírito: “em algum lugar eles devem se encontrar. Onde, porém? [...] Em algum lugar deve haver um princípio maior onde os dois se encontrem e façam as pazes. Esse princípio maior, eu pensei, era a morte”.26 Durante toda a sua vida, Mishima perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava na polaridade entre “o corpo e as palavras”. Tentou desmentir a castração do corpo esculpindo-o na forma de um deus grego; tentou desmentir a castração das palavras tornando-se o maior escritor nipônico de sua época. No entanto, a fenda entre os polos opostos não se preencheu, ao contrário, só ressaltou a irremediável incompletude de cada um dos termos. Três anos antes de seu suicídio, Mishima vislumbra a possibilidade daquilo que sempre havia buscado: a harmonia da fusão entre “o corpo e as palavras”. Pilotando aquele caça supersônico, o F104 (o “pênis de prata”), como se ele fosse “um espermatozoide”, diz: “a 4.500 pés de distância da terra, minha aventura intelectual e minha aventura física poderiam se fundir em harmonia. Era o que eu sempre havia buscado”.27 Lá no alto, a terra está cercada pela morte. Um corpo na perversão


“As regiões mais altas, onde não há ar, estão repletas de morte pura; ela contempla a humanidade lá de baixo.” Foi então, num momento de gozo sexual, que ele viu “a figura gigantesca da serpente de nuvens brancas cercando o globo terrestre e mordendo sua própria cauda”.28 O gigantesco anel-serpente que supera as polaridades revelava o mistério: “a carne e o espírito, o sensual e o intelectual, o dentro e o fora, vão desprender-se do chão e, mais alto, mais, mais alto até do ponto onde o círculo-serpente de nuvens brancas que cerca a terra, todas as coisas vão se encontrar. [...] O mundo interior e o mundo exterior tinham se invadido mutuamente e se tornado completamente intercambiáveis.29 Mishima já não duvida: só o gozo da morte com a consumação do gozo erótico poderia superar todas as contradições. No mesmo ensaio, Mishima assevera que a antinomia entre ver e existir é decisiva. Ilustra seu pressuposto a partir da maçã e do seu caroço. Explica que o olho pode ver a maçã vermelha a partir de fora, mas para o caroço existir é preciso se passar uma faca bem fundo na maçã, de maneira que se abra em partes e o caroço seja exposto. A maçã, metáfora do seu corpo, antecipa o que dois anos depois seria o seppuku de Mishima, com a exposição de suas entranhas. “Assim, a existência da maçã cortada cai em pedaços; o caroço da maçã sacrifica a existência com a finalidade de ver.”30 Ele diz que podia ver seu corpo musculoso no espelho, “mas ver não era o bastante para me colocar em contato com meu sentimento de existência”.31 “A faca deve cortar a carne da maçã — isto é, o meu corpo. Sangue corre, a existência é destruída, e os sentidos estilhaçados e dispersos dão à existência uma primeira garantia, fechando o hiato lógico entre ver e existir... Assim é a morte.”32 O seppuku de Mishima seria menos para provar a sua lealdade ao imperador enquanto ideia cultural, do que para provar que na morte haveria uma existência que não seria corroída pela falha da divisão subjetiva.

27 Sol e aço. (op. cit., p. 100). 28 “O Uróboro, serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela mesma. Esse símbolo contém ao mesmo tempo as ideias de movimento, de continuidade, de autofecundação e, em consequência, de eterno retorno. [...] significaria a união de dois princípios opostos. [...] Ao desenhar uma forma circular, a serpente que morde a própria cauda rompe com uma evolução linear e marca uma transformação de tal natureza que parece emergir para um nível de ser superior, o nível do ser celeste ou espiritualizado, simbolizado pelo círculo. [...] Ao contrário, a serpente que morde a própria cauda, que não para de girar sobre si mesma, que se encerra em seu próprio ciclo, evoca a roda das existências, o samsara, como que condenada a jamais escapar de seu ciclo para se elevar a um nível superior: simboliza então o perpétuo retorno, o círculo indefinido dos renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de um fundamental impulso de morte.” (Cf. Chevalier & Gheerbrant, Dicionário de Símbolos (1988, p. 922). 29 Sol e aço. (op. cit., p. 89). 30 Ibid., p. 64. 31 Ibid., 32 Ibid., p. 65.

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Referências Bibliográficas CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. LACAN, Jacques. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LACAN, Jacques. (1966). “De nossos antecedentes”. In: LACAN, Jacques. Escritos. Op. cit. LACAN, Jacques. (1970). “Radiofonia”. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LACAN, Jacques. (1974). “La tercera”. In: LACAN, Jacques. Entervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993. MISHIMA, Yukio. (1949) Confissões de uma máscara. São Paulo: Vertente Editora Ltda, s/d. MISHIMA, Yukio. (1968) Sol e aço. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. QUINET, Antonio. “Incorporação, extrusão e somação: comentário sobre o texto ‘Radiofonia’”. In: ALBERTI, S. & CARNEIRO RIBEIRO, M. A (Orgs.). Retorno do Exílio: o corpo entre a psicanálise e a ciência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.

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Um corpo na perversão


Resumo Pretendo me servir de um verdadeiro tratado sobre o corpo, uma obra-prima do escritor japonês Yukio Mishima33, intitulada Sol e aço (1968), na intenção de destacar desse ensaio autobiográfico as descobertas feitas pelo autor sobre a relação entre “o corpo e as palavras”. O texto procura articular o que se desvela do saber inconsciente desse sujeito com as teorizações de Lacan sobre o corpo, explicitadas em “Radiofonia” (1970). Mishima revela que ao repassar a sua infância seu deu conta de que a linguagem vem antes do corpo. Num primeiro tempo, ele identifica-se com as palavras e vê-se destituído do corpo: “o cupim” (metáfora da linguagem) é o que vem primeiro, para então se incorporar “na madeira” (metáfora do seu corpo). Mishima situa o seu corpo na cadeia de significantes de sua história, ilustrando assim, aquilo que não cessa de se escrever: o seu corpo “se faz cama” para a “incorporação” do Outro. Esse sujeito constituiu dois polos de pureza e perfeição, dois absolutos — “o corpo e as palavras” — por uma separação que exclui a mistura deles. Em compensação, ele quis unir esses polos contrários fazendo com que se juntassem nos extremos. Até o final de sua vida perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava na polaridade entre “o corpo e as palavras”. No entanto, a fenda entre os polos opostos não se preencheu, ao contrário, só ressaltou a irremediável incompletude de cada um dos termos.

33 Yukio Mishima nasceu em Tóquio, em 1925, e morreu na mesma cidade, em 1970; ele suicidou-se rasgando as suas próprias vísceras; cometeu o seppuku (suicídio cortando o abdome), seguindo o ritual da casta dos samurais.

Palavras-chave Perversão; corpo; linguagem.

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Abstract

34 Yukio Mishima was born in Tokyo, in 1925, and died in the same city in 1970, he committed suicide by ripping out his own guts, he committed seppuku (suicide by cutting the abdomen), following the ritual of the samurai class.

I intend to use a real treatise on the body, a masterpiece by Japanese writer Yukio Mishima34, titled Sun and Steel (1968), aiming to highlight, from this autobiographical essay, the discoveries made by the author on the relationship between “the body and the words”. The text seeks to articulate what is revealed from the unconscious knowledge of this subject with Lacan’s theories about the body, made explicit in Radiophonie (1970). Mishima reveals that in revisiting his childhood he realized that language comes before the body. Initially, he identifies himself with the words and finds himself deprived of the body: “the termite” (the metaphor of language) is what comes first, and then it incorporates “in the wood” (the metaphor of his body). Mishima places his body in the chain of signifiers in his history, thus illustrating that which does not cease to write: his body “becomes bed” for the “incorporation” of the Other. This subject established two poles of purity and perfection, two absolutes – “the body and the words” – by a separation that excludes their mixture. On the other hand, he wanted to unite the opposite poles causing the ends to join. Till the end of his life he sought a solution to the division of the “self ” that presented himself in the polarity between “the body and the words”. However, the gap between the two opposite poles was not filled; on the contrary, it only highlighted the irremediable incompleteness of each term.

Key words Perversion; body; language.

Recebido 20/11/2010

Aprovado 20/12/2010

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Um corpo na perversão


“Lease your body”: a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria1 Raul Albino Pacheco Filho Em 2005, Karolyne Smtih, de Utah, pioneira de um novo uso do corpo na contemporaneidade, fez uma tatuagem definitiva na testa, divulgando a marca de um site de apostas, por 10 mil dólares. A oferta cria a demanda, mas não necessariamente na mesma proporção. Daí que a empresa norte-americana “Lease Your Body” (“Alugue Seu Corpo”) pague na atualidade preços bem mais modestos. A modelo Sarah Dee, por exemplo, tatuou o nome da empresa na testa por módicos 200 dólares. E uma lanchonete de Ohio oferece aos consumidores, que aceitem tatuar no braço a imagem do sanduíche que é símbolo do estabelecimento, apenas um desconto de 25% das despesas.2 São as mazelas da lei da oferta e da procura que rege a economia capitalista. E ainda que alguns “proprietários de corpos” possam lamentar as reduções de preços provocadas pelas leis do mercado, tem-se que constatar que a queixa não é consensual. No texto “Em defesa de um mercado livre para órgãos do corpo”, Walter Block, da Loyola University, pondera que, se o comércio de órgãos [para transplante] fosse legalizado, “novas empresas especializadas surgiriam, ou talvez empresas de seguro e hospitais se encarregassem do serviço (...), [aumentando] vastamente a oferta de órgãos e doadores (...) e reduzindo os lucros a níveis que poderiam ser obtidos em outras atividades”.3 De modo semelhante, Walter Williams, da George Mason University, prevê que, com o livre mercado de órgãos para transplante, “a escassez dos órgãos poderia ser resolvida com preços que vão de 1.000 a 3.000 dólares por doador”.4 Convenhamos: algo bem mais em conta do que o preço de um rim no atual mercado negro ilegal de órgãos, que sobe a 80 ou até 150 mil reais no Brasil, ou à mesma quantia em euros na Espanha, segundo denúncias de jornais feitas em 2009.5 Trata-se de novas práticas e usos do corpo na contemporaneidade! Neste artigo, pretendo explorar algumas proposições a respeito do assunto, que divergem da concepção pós-moderna de que a contemporaneidade seria o momento histórico de uma economia do corpo instaurada sobre as ruínas de sua economia simbólica. Advogo, diferentemente disso, a concepção de que a economia do Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 Uma primeira versão do conteúdo deste artigo foi apresentada no II Colóquio Internacional “Práticas e Usos do Corpo na Modernidade”, realizado de 27 a 30 de outubro de 2010, no Instituto de Psicologia da USP, sob organização do Laboratório de Epistemologia Genética e Reabilitação Psicossocial e do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIPUSP). A versão original será publicada em livro com seu título original (“Mais-de-gozar e mais-valia: articulações entre a alienação do sujeito na estrutura e na história”). Agradeço ao Prof. Dr. Nelson da Silva Junior, coordenador da Comissão Organizadora do colóquio, a licença para publicação prévia em Stylus, com título diferente e ligeiras modificações em relação à versão original. 2 Mota, Outdoor ambulante, Carta Capital (8 set. 2010, p. 10-11).

3 Block, Em defesa de um livre mercado para órgãos do corpo, texto disponível na internet [Acesso em 18 out. 2010].

4 Williams, Meus órgãos estão à venda, texto disponível na internet [Acesso em 18 out. 2010].

5 Konichi e Rinco, Na Espanha, venda de órgãos pela internet pode aumentar com a crise, texto disponível na internet [Acesso em 18 out. 2010].

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6 Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1950/1998, p. 828).

7 Lacan, O seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/1988, p. 63).

8 Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1950/1998, p. 829).

9 Lacan, O seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/1988, p. 61).

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corpo da contemporaneidade é consequência da articulação entre a infraestrutura econômica e a economia simbólica do capitalismo, levada ao limite paroxístico de sua aceleração. Dada a extensão e complexidade da questão, apresento apenas as linhas gerais do esqueleto do argumento, reservando para ocasiões posteriores a junção da carne do detalhamento ao corpo da argumentação. Pretendo explorar as conexões entre: de um lado, a alienação estrutural e trans-histórica do sujeito e seu “encantamento” com os objetos; e, de outro, a alienação contingente e histórica do sujeito do capitalismo e o fetichismo da mercadoria. Com isso, pretendo traçar uma sequência que vai do gozo perdido do corpo ao gozo do corpo real, apontando como eles fornecem a base para o surgimento do gozo produtor de mercadorias. Em seguida, assinalo como este último, por sua vez, antecede e possibilita o gozo do corpo-mercadoria. É desnecessário que eu me alongue em considerações sobre como, para a Psicanálise, o corpo-organismo-natureza é subvertido pelo “pisoteio de elefante do capricho do Outro”, na medida em que “o desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade”.6 Mas cabe lembrar que, à perda da especificidade/particularidade do objeto do instinto operada pela intervenção do incondicional do objeto da demanda (pelo fato de que é sempre de demanda de amor, que se trata), segue-se o estatuto de “condição absoluta” a que o desejo eleva o seu objeto. Como diz Lacan no Seminário 11, no jogo do fort-da do netinho de Freud, o carretel não é a mãe: “é alguma coisinha do sujeito que se destaca, embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura (...) É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação”.7 Da hiância/fenda/fosso em que o sujeito se cria automutilado pelo buraco originado a partir do que dele se destacou (o objeto causa do desejo), surge o traçado centrífugo da pulsão, que o impele, ao longo da vida, na direção dos objetos do mundo. Nunca totalmente absorvido, mas nunca totalmente à parte deles: ex-sistente! Aqui reside, como já foi explorado à exaustão, seu melhor e seu pior: seu envolvimento com o mundo (que este não lhe seja indiferente), mas também sua alienação estrutural. E alienação em duplo sentido: em primeiro, porque “o desejo do homem é o desejo do Outro (...), ou seja, é como Outro que ele deseja (o que dá a verdadeira dimensão da paixão humana)”;8 em segundo, porque o desejo tem como causa um objeto. Aliás, se com este objeto “começa a encantação”, é pertinente a pergunta sobre o “segredo” que o faz “encantador”. “Cuidado! ainda não dissemos o que é o Trieb”,9 poderíamos repetir com o Lacan do Seminário 11. Continuando com as aspas: “O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo, no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falha de representação; da qual “Lease your body”: a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria


lá só existe um lugar-tenente. Esse ‘encantamento’ é o mesmo sobre o qual Kierkegaard se foca ‘em seu modo donjuanesco de abolir as miragens do amor’;10 e que, para ele, assim como para o Freud do ‘Além do princípio do prazer’,11 ‘já estava centrado na repetição’”.12 “Não mais que em Kierkegaard, não se trata, em Freud, de nenhuma repetição que se assente no natural; de nenhum retorno da necessidade. (...) A repetição demanda o novo. Ela se volta para o lúdico, que faz desse novo, sua dimensão.”13 O deslizamento metonímico do desejo, exigindo o novo, a novidade, em seus deslocamentos por entre diferentes objetos, vela o verdadeiro segredo do lúdico, do jogo, da metáfora que constituiu o sujeito e criou a marca que o representa no simbólico e dele desprendeu o objeto que o designa no real: a passagem de uma ordem a outra (da necessidade à demanda e ao desejo); a diversidade mais radical (diversidade de registro entre o simbólico do sujeito e o real do objeto), que constitui a repetição em si mesma. Repetição que se renova incessantemente, pelo próprio fato de que os objetos pulsionais nunca dão conta do fosso/fenda/ hiância criado pela entrada no simbólico e na linguagem. Repetição que constitui o fundamento do sujeito e de seu “encantamento” pelos objetos, na medida em que “tudo que, na repetição, varia, modula, é apenas alienação de seu sentido”.14 Como diz Freud no “Além”, “essa ‘perpétua recorrência da mesma coisa’”.15 Mas que, vou propor, fornece a base estrutural e trans-histórica sobre a qual podem se assentar as diferentes ordenações sociais do gozo, dispostas pela multiplicidade histórica de configurações dos discursos, como formas do laço social. Já em Althusser encontramos a proposição de que a ideologia é trans-histórica, na medida em que: “Tese I: A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”;16 e “Tese II: A ideologia tem uma existência material”,17 pois existe sempre em um “aparelho ideológico de Estado” e em suas práticas. No caso da Tese I, não vejo maiores problemas em harmonizá-la com o fato de que, sem contradizer o que há de singular na construção da fantasia e da realidade de cada sujeito, a ordenação dos gozos pela via dos discursos possibilita um mínimo compartilhamento da realidade no laço social. Realidade que, como a fantasia, sempre contém algo de “perverso” (“perverso” entre aspas e não no sentido de estrutura perversa), na medida em que, juntos, os sujeitos sempre manterão uma inclinação para construir realidades compartilhadas que visem à eliminação completa e absoluta da “falta”. Em “O futuro de uma ilusão”18 Freud analisou os meandros das “totalizações” religiosas. Já no caso da Tese II, diferentemente de Althusser (ainda que sem negar a pertinência de sua proposta), prefiro centrar o tema da materialidade da ideologia na conceituação lacaniana do gozo. O desejo renasce incessantemente e a pulStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

10 Ibid., p. 62. 11 Freud, Além do princípio de prazer (1920/1987).

12 Lacan, O seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964, p. 62). [Grifos meus]

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Id.

14 Id. 15 Freud, Além do princípio de prazer (1920/1987, p. 35-36).

16 Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (1970, p. 126).

17 Ibid., p. 128.

18 Freud, O futuro de uma ilusão (1927/1987).

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19 Marx, Das Kapital (1867).

20 Pacheco Filho, A praga do capitalismo e a peste da psicanálise (2009).

21 Marx, A mercadoria (1867/2006).

22 Lacan, O seminário, Livro 17: O avesso da Psicanálise (1969-1970, p. 30).

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são, sempre parcial, retorna inexoravelmente à origem, dando voltas no objeto sem conseguir recapturá-lo. E aí está, na produção do “mais-de-gozar”, o porquê de o inconsciente ser um “trabalhador incansável”, capaz de trabalhar à exaustão para recapturar apenas fragmentos de gozo. Mas, acrescente-se agora a esse modus operandi estrutural e à tese da trans-historicidade da ideologia, o fato de que o capitalismo põe em cena na História uma novidade contingente, ao possibilitar conectar a busca desse mais-de-gozar, pelos sujeitos, à produção de objetos-mercadorias: objetos-mercadorias com um valor socialmente unificado, por meio do “valor-de-troca”, conforme analisado por Marx em “O Capital”.19 Trabalho, mais-valia e valor-de-troca surgem na cena histórica viabilizando um modo particular de se conseguir um poderoso e inédito instrumento de articulação, fixação e padronização da “desejabilidade” de cada objeto, para os sujeitos de uma sociedade/cultura. Retomo aqui duas afirmações minhas apresentadas em um artigo publicado no no 1 de “A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia”, onde expus esta proposta: “talvez pudéssemos nos referir a isto como a fixação/padronização/ homogeneização do ‘valor-desejo’ de um objeto, para os sujeitos de uma sociedade/cultura. Este me parece um ponto fundamental para se analisar as consequências de uma cultura — a cultura capitalista, que conseguiu um modo de fixar/estabilizar/ancorar um mesmo ‘quantum’ de ‘valor-desejo’ de todos os membros de um corpo social para cada um dos objetos do mundo”.20 É assim que eu entendo a afirmação da trans-historicidade da estrutura: não como a subestimação da relevância da contingência histórico-social, mas, em vez disso, como a explicitação daquilo que lhe fornece, no sujeito, a sua base de apoio. Com isso, compreende-se que o objeto mais-de-gozar (um “bônus” e não uma transgressão à lei da interdição do gozo) possa ter sido destinado historicamente, no capitalismo, à exploração do trabalho e à formação de “mais-valia” (a mola propulsora dessa forma de laço social). Do mesmo modo, compreende-se que a “encantação” do objeto do desejo possa ter oferecido o fundamento sobre o qual veio a se apoiar, historicamente, o “ fetichismo da mercadoria”, no sentido marxiano do misterioso “quiproquó” pelo qual “a relação social determinada dos próprios homens assume aqui a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”.21 Para que isto acontecesse, foi necessário, como aponta Lacan no Seminário 17, que o proletário surgisse historicamente como um “despossuído, que justifica tanto o empreendimento quanto o sucesso da revolução [burguesa].”22 Despossuído não apenas da propriedade, mas também do seu “saber fazer”, expropriado por uma ciência progressivamente convergente na direção da produção de tecnologia, a serviço do capitalismo. E que não deixa lugar para o “Lease your body”: a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria


sujeito, reduzindo-o a um produto: os “trabalhadores-mercadorias”, “que substituem o antigo escravo (...), que são eles próprios produtos, como se diz; consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo”,23 postos à venda no mercado de trabalho. Cito Marx: “[No capitalismo] o trabalhador decai a uma mercadoria e a mais miserável mercadoria (...). Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. (...) Quanto mais o trabalhador se gasta (se consome) trabalhando, tão mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria frente a si; e tão mais pobre se torna ele mesmo. (...) O trabalhador coloca a vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto.”24 E assim como a apropriação da mais-valia é componente fundamental da estrutura econômica do capitalismo, são elementos constituintes da forma do laço social a ela articulado: a “encantação” do objeto, o “fetichismo da mercadoria” e a “despossessão” do trabalhador. Daí porque o capitalismo e a revolução burguesa, como formas material e simbólica de estruturação das relações econômicas e das relações sociais, tenham frustrado as expectativas com que acenaram ao mundo, em seu surgimento na cena histórica: de superação da fome e miséria material; e também de uma convivência social e política livre, justa e harmônica. “[A forma capitalista do processo social de produção] desenvolve a força produtiva do trabalho coletivo para o capitalista e não para o trabalhador e, além disso, deforma o trabalhador individual. Produz novas condições de domínio do capital sobre o trabalho. Revela-se, de um lado, progresso histórico e fator necessário do desenvolvimento econômico da sociedade [Marx não é um reacionário nostálgico do passado]; e, de outro, meio civilizado e refinado de exploração.”25 E o “tudo-saber” de sua ciência (não um “saber de tudo”, na terminologia empregada por Lacan), foi tendendo, rápida e quase que exclusivamente, a um saber sobre técnicas de produzir alterações em “objetos”, como resultado das alterações nas estruturas discursivas. Compreende-se, portanto, o lamento de Lacan: “Pois este é precisamente o S2 do senhor, mostrando o cerne do que está em jogo na nova tirania do saber. Isto é o que torna impossível que nesse lugar apareça, no curso do movimento histórico — como tínhamos, talvez, esperanças —, o que cabe à verdade”.26 O que não implica (nem recomenda) que nos limitemos a uma mera descrição pessimista e a um lamento passivo em relação às condições do presente histórico.27 Mas recomenda prudência na definição das políticas, estratégias e táticas de transformação do status quo, já que, por ser uma forma de alienação histórica que não operou pelo distanciamento do sujeito em relação aos “objetos do mundo” (o âmbito do mundano e do secular), o capitalismo amplificou formidavelmente, Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

23 Id.

24 Marx, Manuscritos Econômicos Filosóficos, apud Silveira (1989, p. 49).

25 Marx, O Capital, apud Ianni (1992/1979, p. 5-42).

26 Lacan, O seminário, Livro 17: O avesso da Psicanálise (1969-1970, p. 30).

27 Como me parece o caso da afirmação de Jean Baudrillard, em entrevista de 1999 no Caderno 2 de O Estado de São Paulo: “Eu não tento mudar o sistema de valores. O que eu pretendo é ficar fora do jogo e inventar uma outra regra para ele. Isso não é revolução, pois infelizmente não existe mais uma vontade política. Eu me coloco num universo paralelo, onde não há contradição violenta contra o sistema dominante, onde, mesmo que a minha posição o coloque em questão, não há nenhuma chance de revolucioná-lo na sua lógica. Estou na singularidade.” Texto disponível na internet [Acesso em 18 out. 2010].

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28 Williams, Meus órgãos estão à venda, texto disponível na internet [Acesso em 18 out. 2010].

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não apenas as formas simbólicas de dominação ideológica (o marketing, a publicidade, as mídias etc.), mas também as formas concretas e materiais de dominação (as armas e as instituições estatais e privadas de repressão e controle). Seguimos até aqui a sequência histórica que permitiu articular o gozo do corpo real (mais-de-gozar) à produção de mercadorias e à geração de mais-valia: um processo econômico mais refinado de acumulação de valores do que, por exemplo, aquele historicamente caracterizado pela exploração da mão de obra do escravo. Podemos, agora, acompanhar o passo seguinte da exploração capitalista do corpo, no qual as possibilidades de sua troca mercantil se expandem para além do comércio de sua capacidade de trabalho, como mercadoria. Refiro-me à comercialização do próprio corpo — sua imagem, mas também a substancialidade concreta da sua materialidade orgânica e carnal e a das suas partes e órgãos — como mercadoria. Não se trata de um retorno anacrônico ao tempo histórico da escravidão, em que a divisão do trabalho apoiava-se na posse integral do corpo do escravo, pelo senhor. Em nosso tempo, como mostrei nos exemplos de aluguel do corpo para publicidade, no início de minha apresentação, a posse do próprio corpo permanece vinculada ao sujeito que lhe é coextensivo; o qual pode alugá-lo, ou mesmo vender suas partes, mas sempre no âmbito de uma regulação mercantil socialmente instituída e legitimada (excluindo-se da análise as transações ilegais e as redes do chamado “mercado negro”, bem entendido). O já mencionado Walter Williams, que defende o mercado livre de órgãos para transplante, contra a lei de 1984, do Congresso Americano (a qual proibiu a sua comercialização), antecipa-se ao argumento baseado na preocupação de que, se houver um mercado de órgãos, a população pobre venderá seus órgãos e adoecerá. Ele advoga: “(...) de um ponto de vista estritamente ético, as pessoas devem poder dispor de seus órgãos por qualquer motivo que lhes parecer razoável. Por quê? Bem, se acreditamos que as pessoas possuem o direito de propriedade de si mesmas, ou seja, são donas da própria vida e do próprio corpo, elas devem ter o direito de dispor de seu próprio corpo da maneira que desejarem, desde que não violem os direitos de propriedade dos outros. Se eu precisasse de um rim, eu preferiria que alguém que não estivesse disposto a me dar, pudesse me vender, do que continuar sem o rim.”28 Para exemplificar as novas formas próprias do nosso tempo, de emprego do corpo para a geração de mais-valia, lembro a vocês as agências de modelos encarregadas da comercialização de imagens de corpos e rostos para publicidade, com toda a rede de empresas e de serviços a elas vinculada, como as empresas de recrutamento, de fotografia, de elaboração de books, de gerenciamento pessoal e management de carreiras e assim por diante. Lembro também, apenas “Lease your body”: a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria


para oferecer mais um exemplo, toda a imensa rede de empresas e serviços encarregada do cuidado dos corpos, além da destinada a polir e reluzir as imagens na atualidade: academias de musculação e de bronzeamento, clínicas de cirurgias plásticas e de próteses, profissionais encarregados do gerenciamento e do marketing pessoal e profissional etc. Isso sem falar nas empresas encarregadas de cuidar dos corpos mortos. A Alcor Life Extension Foundation, por exemplo, é a maior empresa de congelamento de corpos dos EUA, que trabalha com base na criogenia (o estudo científico dos sistemas em baixas temperaturas). Ela atende aos clientes interessados em manter o corpo congelado após a morte, na esperança de um dia voltar a viver. E cobra US$ 120 mil para congelar um corpo e mantê-lo assim por, pelo menos duzentos anos. Oferece também a opção de congelar apenas a cabeça e, nesse caso, o serviço é mais em conta: US$ 50 mil. Se o cliente é estrangeiro, há o custo adicional de transporte do corpo até a clínica, localizada no Estado do Arizona, por US$ 20 mil (a cotação dos preços é de 2002 e já está um tanto desatualizada).29 Aí estão as novas práticas e usos do corpo na modernidade. Repito o que disse, no início, de que não creio tratar-se de “[...] uma economia do corpo que se instaura sobre as ruínas de sua economia simbólica”. Em vez disso, vejo uma economia do corpo: 1) assentada sobre uma infraestrutura que lhe oferece a sua base econômica; e 2) sustentada pelo aparato imaginário e simbólico e pelas ordenações de gozo que lhe configuram a sua forma característica de laço social. Termino com uma citação de Lacan, um tanto antiga, da conferência de 1967, “Alocução sobre as psicoses da criança”: “(...) no impulso do ‘teu corpo é teu’, no qual se vulgarizou no início do século um adágio do liberalismo, [encontra-se] a questão de saber se, em virtude da ignorância em que é mantido esse corpo, pelo sujeito da ciência, chegaremos a ter o direito de desmembrá-lo para a troca.”30

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29

Iwasso, Cresce interesse

por congelamento pós-morte. Folha Online, 19 de dezembro de 2002, texto disponível na internet [Acesso em 15 set. 2008].

30 Lacan, Alocução sobre as psicoses da criança (1967/2003, p. 367).

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Resumo Divergindo da concepção pós-moderna de que a contemporaneidade seria o momento histórico de uma economia do corpo instaurada sobre as ruínas de sua economia simbólica, advoga-se neste artigo a concepção de que a economia do corpo da contemporaneidade é consequência da articulação entre a infraestrutura econômica e a economia simbólica do capitalismo, levada ao limite paroxístico de sua aceleração. Exploram-se as conexões entre: de um lado, a alienação estrutural e trans-histórica do sujeito e seu “encantamento” com os objetos; e, de outro, a alienação contingente e histórica do sujeito do capitalismo e o fetichismo da mercadoria. Com isto, busca-se traçar uma sequência que evolui do gozo perdido do corpo ao gozo do corpo real, apontando-se como eles fornecem a base para o surgimento do gozo produtor de mercadorias. Em seguida, assinala-se como este último, por sua vez, antecede e possibilita o gozo do corpo-mercadoria.

Palavras-chave Palavras-chave: corpo, capitalismo, fetichismo, mercadoria, gozo.

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Abstract Diverging from the post-modern conception which holds that the contemporary times would be the historical moment of an economy of the body built upon the ruins of its symbolic economy, the present article advocates the conception that the economy of the body in contemporary times is a consequence of the articulation between the economic infra-structure and capitalism’s symbolic economy, taken to the paroxismal limit of its acceleration. The article explores the connections between: on one hand, the subject’s structural and transhistorical alienation and his/her ‘enchantment’ towards objects; on the other hand, the capitalism’s subject’s contingent and historical alienation and the commodity fetishism. This way, the article aims to establish a sequence which evolutes from the lost jouissance of the body to the jouissance of the real body, pointing out how they provide the basis for the emergence of the jouissance producer of commodities. Following, it highlights how the latter, therefore, anticipates and makes it possible the jouissance of body-commodity.

Keywords Body; capitalism; fetishism; commodity; jouissance.

Recebido 26/11/2010

Aprovado 20/12/2010

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trabalho crĂ­tico com os conceitos

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O “corpo falante” e o mistério de uma outra satisfação Diego Mautino “O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”1

1 Lacan, O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-

... eis o dizer, bem enigmático, com o qual Lacan conclui a sessão de 15 de maio de 1973 de seu seminário Mais, ainda, dedicado às “Rodinhas de barbante”, depois daquelas sessões em que ele fala do barroco, da sua exibição de corpos que evocam o gozo e na qual se surpreende de não ter tido antes a ideia de se servir dos nós de barbante para cingir aquilo que concerne ao gozo. Nesse momento em que Lacan introduz os nós em seu ensino, ele forja esta expressão: “corpo falante”; portanto, o real ao qual ele se refere, a partir de então, quando fala “o mistério do corpo falante” é o real da escrita do nó. Com as quatro rodinhas do nó, prova como, para manter juntas as rodinhas de barbante é necessário, efetivamente, o furo: o nó é mantido se é mantido o furo no centro, e é essa operação que, mais tarde, Lacan definirá como “verificação do furo”, que o transforma em real. Nesta perspectiva, é a terceira rodinha [real] que realiza o furo e, separando, une as três. A operação humana que leva ao real é definida como um fazer nós; e Joyce é o paradigma do artifício que tem o valor de um ato artístico. O artifício é o ato que enoda e realiza, dá ex-sistência, sem o qual não se tem nem noção do objeto: “não há fato senão por artifício”2 [discurso]. Voltando às três palavras deste sintagma novo: “mistério-corpofalante”, podemos ler, como propõe Michel Bousseyroux,3 o nó do real como mistério, o do imaginário como próprio do corpo e do simbólico como próprio do falante. Se até então o ponto de vista foi o “verdadeiro real” (paradigma do discurso científico), que os termos sujeito ou ser poderiam consentir, Lacan opera um novo passo com o “corpo falante” e assim o discurso do psicanalista toca um ponto vivo. Ele diz: “há um modo de cingir o singular, é precisamente pela via deste particular, este particular que faço equivaler à palavra sintoma. A psicanálise é o exercício dessa boa sorte”.4 Os semblantes abundam in natura, uma descontinuidade geratriz os transforma em significantes e assim passam a artifício de Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

73/1985, p. 178).

2

Lacan, O Seminário,

livro 23: O sinthoma (197576/2007).

3

Bousseyroux, Le mystère

du corps parlant (2004, p. 67)

4 «Il y a une façon de serrer le singulier, c’est par la voie justement de ce particulier, ce particulier que je fais équivaloir au mot symptôme. La psychanalyse est la recherche de cette bonne chance. … C’est quelque chose qui consiste à l’inciter à passer dans le bon trou de ce qui lui est offert, à lui, comme singulier.» Lacan, Congrès de l’EFP (Lettres de l’École, n. 24, Bulletin de l’École freudienne de Paris, p. 24).

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5 «Il est de la nature du langage [que] le référent n’est jamais le bon, et c’est ça qui fait un langage». Lacan, Le Séminaire, Livre XVIII: D’un discours que ne serait pas du

discurso, ou seja, de uma ordem do gozo regulado pelo semblante, a partir da qual não existe “fato” que não seja de enunciação [de discurso]. Ao entrar na diz-mensão humana — via a fundação do inconsciente —, o sintoma faz ex-sistir o inconsciente no real. A redução do sintoma à sua singularidade de sinthoma cinge no nó as três diz-mensões e o gozo que disso resulta, quebrando-se em ato na contingência entre a causa do desejo e a substância gozante. A psicanálise é a busca dessa boa sorte. “É na natureza da linguagem que o referente não seja nunca o bom, e é isso que faz uma linguagem”;5 colocar exatamente isso no centro, é o viático que permite chegar ao real do discurso psicanalítico, “o referente é sempre real, pois é impossível de designar”.6 Efeitos de verdade [a interpretação que fura o semblante] e referente impossível [impossibilidade de simbolizar a relação sexual] abrem duas vias através das quais o ato analítico toca o real.

semblant (1971/2006, p. 45).

6 Ibid., p. 46.

7 Cf. Soler, Politica della psicoanalisi (Quaderno di Praxis n. 1, pp. 9/11).

8 Cf. Soler, Il reale nella clinica psicoanalitica (2010, pp. 195-210); e Lacan, Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École (1967/2001, p. 243).

9 Cf. Soler, Lacan, l’ inconscient réinventé (2009, p. 77).

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O ato analítico

A partir do avanço teórico e clínico causado pela elaboração da estrutura do fantasma, ou seja, a lógica que permitiu a Lacan estabelecer o que ele chama de “um ponto de inserção do ato”, ele propõe um dispositivo de garantia válido para a formação do psicanalista de Escola: o passe. Este dispositivo permite articular o início e o fim da análise: do impasse ao passe.7 Contar o menos com o dispositivo do passe, então, comporta efeitos no conjunto dos tratamentos. O real do inconsciente, ou seja, o impossível da relação e o inconsciente real que cifra e se encarna, não mudam a estrutura do ato analítico, mas obrigam a centrar seu objetivo, não só no objeto [semblante], mas no real. O Real na clínica psicanalítica8 implica: seja um real que pode ser modificado, aquele do início, seja um real que se encontra no final. Se o inconsciente fala, mas não conclui — quando a análise inclui o final na perspectiva do passe —, o que é que decide o fim?9 A hipótese é que não seja nem o ICSR nem a verdade, mas um termo que aparece em um texto de 1976, que é inserido e que não é da ordem da linguisteria, um terceiro, que Lacan chama: “satisfação”. O inconsciente real é introduzido em Mais, ainda, mas devemos aguardar o Prefácio à edição inglesa do Seminário XI para que o final seja colocado com uma satisfação específica: reconhecendo no real a função de tampão [bouchon], o furo da verdade de onde o sentido escapa. Lacan encontra assim uma saída para o impasse da verdade mentirosa [vérité menteuse] e desloca o que faz função de tampão: do objeto a em direção ao real. Aquilo que do real faz tampão, ao invés de fechar, paradoxalmente, abre uma saída à decifração interminável do inconsciente. O sintoma é o que do inconsciente-alíngua [inconsciente real] se O “corpo falante” e o mistério de uma outra satisfação


manifesta no Real. O afeto de angústia é o que do Real aparece no imaginário, no qual o corpo consiste. O sintoma e o afeto de angústia são “eventos do Real”, em oposição a qualquer verossimilhança, que se repetem ao longo da análise, até passar da angústia à satisfação do final.

A satisfação e uma outra satisfação10

10 “Todas as necessidades do ser falante estão contami-

Por que esse termo de “satisfação”? A tese é de Freud, “o sintoma é uma satisfação sexual substitutiva”, um modo de gozar, paradoxalmente desprazeroso, devido ao recalque. Este é o primeiro modelo de satisfação autística, para designar um gozo do corpo que não passa pela ligação com o outro. O termo “satisfação” se encontra em Mais, ainda sob a forma do que Lacan chama de “uma outra satisfação”, aquela da fala. Nessa “outra satisfação”, Lacan põe em evidência o gozo de um real que a determina... em falha. Lacan enfatiza o fato de que essa perda — que condiciona a possibilidade mesma da psicanálise — concerne ao vivente; o que implica que a divisão do sujeito não se reduz ao corte significante. Além da recorrência significante no tratamento, a divisão é inerente ao real do vivente e, para cada um, especificada em experiências precisas e contingentes. Em cada caso, e porque o sujeito é constituído de duas partes, das quais uma é perdida e a outra cifrada, que nós podemos encaminhar numa psicanálise por meio do sintoma: 1. As manifestações sintomáticas do inconsciente real: onde uma cadeia significante revela o gozo-sentido [joui-sens] da verdade fazendo ressoar mais, ainda, no corpo [Encore, en-corps...11], que podem ser ligadas à cadeia do simbólico e do imaginário fazendo, então, linguagem. 2. O acontecimento de corpo, reduzido aos uns de sua “moterialidade” [moterialité des uns], letras de sintoma, ‘encarnados’ da alíngua, que não valem a não ser por um dizer particular, e, portanto, não fazem linguagem.12 O sintoma “acontecimento de corpo” presentifica um corpo marcado pela alíngua, e neste nível do “advento do Real” não estamos ao nível da lógica, nem da linguagem, nem àquele da fantasia, mas ao nível de uma contingência de encontro. O gozo vem do lugar do Outro, ou seja, que a substância gozante não se goza toda sozinha, mas com a mediação dos significantes, presos no lugar do Outro. E Lacan afirma: “este lugar do Outro não é para ser tomado em outra parte que não no corpo”. Ele, então, designa uma interseção entre a substância gozante e o lugar do Outro, indicando que a localização desta interseção é o corpo. “O corpo é terceiro em sua relação com o gozo e com o saber, isso faz Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

nadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação — sublinhem as três últimas palavras — à qual elas podem faltar.” O Seminário, livro 20, op. cit., p. 70.

11 Em francês estes dois termos são homofônicos encore, en-corps… [mais ainda, no corpo...].

12 Cf. Soler, Le “corps parlant” / Il “corpo parlante” (2008) e O “corpo falante” (2010).

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13 «Tiers ‘au-delà’ dans ses rapports à la jouissance et au savoir, le corps fait le lit de l’Autre par l’opération du signifiant». Lacan, De la

a cama do Outro.”13 “O corpo é o lugar do Outro.”14 Ao Outro, lugar do significante, que Lacan colocou no início de seu ensino, ele acrescentou o corpo lugar do Outro. É, portanto, porque o Outro se inscreve no corpo substancial que se tem acesso prático à determinação dos gozos, seja no plano erótico, seja na prática analítica.

psychanalyse dans ses rapports avec la réalité, Conférence 1967, (1968, pp. 51-59).

14 Lacan, Radiofonia (1970/2003).

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O mistério e a terceira satisfação A satisfação (tanto quanto a insatisfação, por outro lado) é o afeto, o eco que responde no sujeito a um estado de gozo, que [este último] não é do sujeito, mas do corpo. Uma vez posta a coalescência do significante com o gozo, Lacan pôde avançar sobre a satisfação atrelada à palavra, satisfação do blablablá que responde ao gozo fálico. E... o que poderia ser um saber que faz presa no real? Nós postulamos que o inconsciente faz a presa, mas o que nós podemos saber? Por definição, nada que não tenha estrutura de linguagem... Este impasse parece fundar a necessidade dos próximos passos de Lacan na direção do inconsciente real, no encalço de sua exploração linguística, lógica, topológica, dos recursos e dos impasses da estrutura. A hipótese é que a conceitualização desse Real é necessária para situar o que prevalece no discurso capitalista, mesmo para contrastá-lo [pour lui faire pièce], sabendo que o Simbólico não ganha frente ao Real e que a alternativa se joga entre o inconsciente real e o real do capitalismo. Permanece a questão do sujeito produto da psicanálise, para além do eventual passe final. Lacan assinalou que o objeto a — que está em posição de causa na economia subjetiva e no laço analítico — é impotente para pôr um fim ao meio-dizer da verdade. Pelo contrário, não cessa de cair fora do furo do discurso, e a sua instalação no lugar do semblante no discurso analítico não faz dele um discurso do real. O real ao qual o saber se adiciona é o real fora do simbólico, aquele que está escrito no nó borromeano — aquele da substância viva. É lá que o inconsciente real movimenta os resíduos da alíngua, alguns dos quais flutuam cifrados no simbólico, enquanto outros se depositam na letra idêntica a si mesma — lettre Une du symptôme, disse Lacan — que excluindo-se faz limite. Sobre a satisfação do fim, Lacan revela diferentes formulações que vão do “suficiente, basta”; até a satisfação ligada ao final da análise e ao ato — em que não se trata já da satisfação de estar feliz de viver, mas sim de um dizer que produz uma satis-factio. Na Proposição sobre o psicanalista da Escola, de 1967, que define o psicanalista no interior de uma comunidade de Escola [Escola que o passante escolhe para testemunhar da sua experiência], o dispositivo do passe diz respeito a uma experiência nem privada nem O “corpo falante” e o mistério de uma outra satisfação


pública, mas social, uma vez que a satisfação concerne àqueles que se associam em uma obra humana. Qual é, então, dos afetos do real, entre os quais o mistério da satisfação, o que marca o fim? Do amor ao saber, necessário à transferência de entrada, Lacan propõe chegar até produzir a aversão do sentido, um dos nomes do real. Do uso de um particular quebrar-se entre o impasse da verdade e o do real, uma outra satisfação, de final, é adquirida. Se a operação que se realiza no corte de um dizer particular poderá reencontrar-se no inconsciente, há alguma chance de se produzir uma satisfação nova. Estabelecendo uma equivalência entre letra e sintoma no final de uma análise, Lacan propõe o dispositivo e o estabelece para colocar à prova uma experiência original: o surgimento de uma nova escrita do real como impossível, a partir do evento de um dizer. Diante do surgimento de uma nova escrita do real como impossível a partir do evento de um dizer, que faz a presa de Joyce O artista, Lacan responde com surpresa: “Não sou um poeta, mas um poema.”15 Roma, 11 de julho de 2010.

15 Lacan, Preface a l’edition anglaise du Seminaire XI (1976/2001, p. 572).

Tradução: Ana Paula Gianesi e Ana Paula Pires Revisão da tradução: Diego Mautino

Referências Bibliográficas BOUSSEYROUX, M. Le mystère du corps parlant. In: L’en-je lacanien, no 3, Toulouse, Ed. érès, 2004. LACAN, J. Congrès de l’EFP. In: Lettres de l’École, No 24, Bulletin de l’École freudienne de Paris. LACAN, J. (1967). Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École. In: Autres écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001. LACAN, J. De la psychanalyse dans ses rapports avec la réalité, Conférence 1967. Scilicet, no 1, pp. 51-59, Paris: Seuil, 1968. LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LACAN, J. (1971). Le Séminaire, Livre XVIII: D’un discours que ne serait pas du semblant. Paris: Éditions Du Seuil, 2006. LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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LACAN, J. (1976). Preface a l’edition anglaise du Seminaire XI. In: Autres écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001. SOLER, C. Politica della psicoanalisi. In: Quaderno di Praxis n. 1, Roma, Biblink. Disponível em: www.praxislacaniana.it SOLER, C. Le «corps parlant» / Il «corpo parlante», Edizione bilingue, Ed. Praxis del Campo lacaniano, Roma, janeiro 2008. Disponível em: www.praxislacaniana.it SOLER, C. Lacan, l’ inconscient réinventé, Paris: PUF, 2009. SOLER, C. Il reale nella clinica psicoanalitica. Rivista Intersezioni del Campo Lacaniano n. 3, Edizioni Praxis del CL, Roma, Maio 2010. SOLER, C. O “corpo falante”. Caderno de Stylus no 1, publicação da Escola de Psicanálise dos Fóruns o Campo Lacaniano – Brasil, maio de 2010.

Resumo Este artigo de Diego Mautino articula as três palavras do tardio sintagma lacaniano, qual seja, mistério do corpo falante (mistério – corpo – falante), aos registros RSI, à revisão impressa por Lacan sobre o sintoma (tomando o artifício de Joyce como paradigma) e ao termo satisfação. Para tanto, a um só tempo, o autor percorre os avanços que Lacan empreendeu entre o inconsciente simbólico e o inconsciente real, fornece-nos um amplo panorama sobre a concepção de alíngua, oferece-nos uma leitura sobre a passagem dos impasses da verdade mentirosa ao Real (do objeto a ao Real) e retoma, desde Freud, o uso do termo satisfação, para, enfim, realocá-lo, com Lacan, numa proposta de fim de análise.

Palavras-chave Mistério, corpo, alíngua, sintoma, satisfação.

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O “corpo falante” e o mistério de uma outra satisfação


Abstract The article by Diego Mautino articulates three words of the late Lacanian syntagma mystery of the speaking body (mystery – body – speaking) with the RSI registers, with Lacan’s printed review of the symptom (taking Joyce’s artifice as paradigm), and, finally, with the term satisfaction. For this, the author, at one time, goes through the advances between the symbolic and the real unconscious perpetrated by Lacan. Besides that, he provides an ample panorama about the alingua conception, and grants us with the reading about the passage from the deadlocks of the lying truth to the Real (from the object a to the Real), and, since Freud, returns to the use of the term satisfaction which is, finally, relocated, now with Lacan, in an end of analysis proposal.

Keywords Mystery; body; alíngua; symptom; satisfaction.

Recebido 16/11/2010

Aprovado 12/12/2010

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Do trauma ao troumatismo Sandra Leticia Berta

Introdução Partiremos do seguinte: diferenciar trauma como acontecimento traumático do trauma estrutural: furo (trou) – troumatismo. Uma pergunta que permeia este texto: quais as consequências dessa diferenciação na clínica psicanalítica? Para tanto, diferenciaremos o trauma de estrutura – do parlêtre – do acontecimento traumático que se apresenta como sendo aquele em que a verdade e o saber coincidem univocamente, ou seja, aparentemente sem separação e sem lugar ao equívoco. Nessa definição tomamos como referência os discursos, lembrando que no discurso do analista o saber está no lugar da verdade (a/S2 - $/S1). Separação estrutural entre saber e verdade! Ao falarmos de acontecimento traumático e dos efeitos subjetivos, estamos propondo que, nele, há um efeito que provoca uma miragem na qual saber e verdade não se separariam. Desse modo, o acontecimento e seu retorno – detalhe por detalhe – velam a disjunção e o colocam com o estatuto de verdade absoluta. Saber sobre o acontecimento significaria saber “A” verdade. O acontecimento traumático visa assim elevar a contingência do acidente à verdade. Com isso se verifica um fechamento da pergunta pela causa. O acidente obtura a causa. Partindo desse referente podemos pôr à prova a seguinte hipótese: numa análise trata-se de restabelecer as vias que indiquem para o sujeito a disjunção entre verdade e saber. Uma análise promove um trabalho do saber sobre a verdade, mas justamente orientado pela divisão que o furo da causa promove, uma vez que o saber é o termo opaco em que o sujeito se perde. Se assim for, verifica-se que a verdade é não-toda e que nenhum acontecimento será capaz de dizê-la. Por outro lado, o saber mostra-se sempre insuficiente em dizer a “origem das coisas” ou mesmo “a coisa”.

Pontuações sobre o trauma Desde os primórdios da psicanálise o trauma se apresentou como esse caráter de acidente que imprime um excesso de excitação Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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1 Lacan, El Seminario. Libro I. Los escritos técnicos de Freud (1953-54/1992).

2 Lacan, O Seminário. Livro VI. O desejo e sua interpretação (1958-59/inédito).

3 No decorrer deste texto usamos diferentes escritas dessa palavra, conforme as referências: tuché, tyche, tiquê e tychê.

4 Lacan, O Seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1993).

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não tramitado pelo aparelho psíquico: RSI. Foi bem cedo que Freud conseguiu diferenciar o valor acidental do trauma das fantasias. Suas histéricas lhe cederam a bússola para tal empresa. As fantasias foram o degrau crucial que articularam a construção de uma realidade outra, realidade psíquica que enlaçava a ideia ao ato: exemplo disso de modo preciso foram as fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. As fantasias foram além do acontecimento. Se delas alguma coisa o sujeito pode extrair, extrair será um detalhe. Verdade não-toda. O detalhe em contraponto com a catástrofe: vale para o abuso, vale para a performance histérica. Entretanto, fazer coincidir a fantasia com o trauma é a estratégia neurótica que cristaliza o sintoma. Essa bússola orienta a direção do tratamento. Por sua vez, Lacan insiste em acentuar o trauma na sua relação ao real, justamente para diferenciar a realidade do real. Isso desde bem cedo no seu ensino. Ele privilegiou a temporalidade do trauma dividida em dois tempos e justificou insistentemente que a fantasia e o sintoma são modos de resposta ao traumático. Nos anos 501 opôs a fantasia ao acontecimento traumático, outorgando a este último toda sua opacidade, reinterpretando os dois tempos do trauma: o primeiro sendo o acontecimento e, o segundo sendo a construção da fantasia. Nesse sentido, os sintomas são uma resposta à fantasia e ao trauma. Posteriormente, no seminário O desejo e sua interpretação (1958-1959),2 o trauma foi definido em relação ao desamparo fundamental do infans, aquele ser que, embora imerso na linguagem, ainda não possui a palavra. Trata-se do desamparo do sujeito em face do desejo do Outro, pois ele apresenta-se como enigmático. O trauma é condição desse infans inocente, marcado pela palavra que o mortifica, mas também que o localiza nessa dialética da sua relação ao Outro. Lacan sustenta que a resposta a essa condição de desamparo é a construção da fantasia na qual se articula, tanto a significação possível do sujeito, quanto sua condição perante o desejo do Outro.

Sobre tiquê3 e autômaton Em 1964,4 o trauma toma um estatuto diferenciado, uma vez que o acento não se ancora na opacidade da origem, mas no acontecimento traumático como encontro, isto é, com um sentido que se associa ao atual e ao ato. Isso leva a fazer a divisão entre o autômaton dos significantes e a tiquê, que define o encontro faltoso. Um encontro com o perdido. Nesse ponto Lacan articula sua “invenção”, o objeto a, privilegiando suas articulações com o objeto pulsional. O autômaton, como a rede de significantes, define o retorno dos signos. A tiquê refere ao real como encontro. Para além do retorno Do trauma ao troumatismo


dos signos, e por causa desse retorno, se verifica esse real como encontro, que em Freud pode ser identificado ao umbigo dos sonhos. Essa relação entre tiquê e autômaton permite vislumbrar uma solidariedade existente entre o que se repete e o encontro, pois se há repetição é porque sempre se encontra a falta. A função da tiquê, do real como encontro – encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso – se apresenta primeiro, na história da psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção – a do traumatismo.5

Observamos que é nesse contexto do ano de 1964 que Lacan retoma o exemplo do sonho que Freud6 nos legou. Sonho amplamente comentado na literatura psicanalítica. Um pai dorme quando vela seu filho morto. Separado por um instante do Outro, esse pai sonha e vê seu filho segurando-o pelo braço. Além de vê-lo, ouve lhe dizer: Pai, não vês que estou queimando? Olhar e voz – os objetos lacanianos da pulsão – se encontram nessa frase para testemunhar que do real do trauma nada poderia ser apreendido em efígie ou em ausência. Trata-se da tessitura desse sonho que na interpelação do “não vês” acorda o pai para a morte de um filho. Um pai knoked pelo despertar traumático. O despertar vai ao encontro com a realidade para velar o real do trauma. Realidade psíquica que vela o trauma factual, fatal, acidental – tyquê. Na clínica, a modo de exemplo, poderíamos imaginar como segue essa história, dizendo que o melhor que poderia acontecer com esse pai seria fazer da voz, encarnada na palavra do corpo febril do filho morto, um sintoma. A contingência do sonho faz passar de maneira enigmática, nessa interpelação, a pergunta pela morte de um filho. Nas palavras de Caruth, acordar para sobreviver e “contar o que significa não ver, o que significa escutar as palavras impensáveis da criança que morre”.7 Lacan elucida esse sonho com o intuito de, nele, diferenciar na repetição: o retorno dos signos do encontro faltoso: Primeiro a tiquê que tomamos emprestada, eu lhes disse da última vez, do vocabulário de Aristóteles em busca de sua pesquisa da causa. Nós a traduzimos por encontro do real.8 O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida.9

Quando Lacan trabalha o conceito de repetição cita Aristóteles, em particular, A Física, livro II,10 capítulos: 3 As causas, 4 A sorte e a casualidade, e 5 A sorte e a casualidade como causas acidentais e inStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

5 Ibid, p. 57. 6 Freud, A interpretação dos sonhos (1900-1/1974).

7 Caruth, Modalidades do despertar traumático (2000, p. 128).

8 Na versão em francês está escrito rencontre du réel.

9 O Seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 56.

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10 Aristóteles. Física (1995). Edição em espanhol. Tradução livre para o português.

11 Mora, Dicionário de Filosofia, www.scribd.com/ doc/7238750

12 Garcia-Roza, Acaso e Repetição em Psicanálise (Uma introdução à teoria das pulsões) (1999, p. 39).

13 Mikosz, Introdução à leitura de Aristóteles (1991).

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determinadas. Lacan cita esse filósofo para diferenciar o retorno dos signos do que se produz por acidente. Optando por essa referência filosófica assinala que não existe causa única de todas as causas e que há causas acidentais que se vinculam inesperadamente às séries causais, entendidas como o retorno dos signos. Todavia, que há intervalos entre as séries causais, nos quais o encontro com o real, como impossível, se verificaria. Tomemos a definição de “acidente” que oferece José Ferrater Mora, no Dicionário de Filosofia:11 acidente é o que acontece a alguma coisa sem constituir um elemento essencial ou derivar da sua natureza essencial. Seguindo Ferrater Mora, as definições encontradas em Aristóteles sobre o acidente (sumbebhko) referem ao que pode pertencer a um ser, sem que por isso deva ser necessário nem constante. Por essa razão o acidental se diferencia do essencial. O acidental também se diferencia do necessário, de modo tal que o acidente é fortuito e contingente, podendo existir ou não existir. Entretanto, veremos que a causa acidental, que é uma variável da causa eficiente – a tiquê – se vincula à necessidade. Na Física, Aristóteles retoma sua teoria das quatro causas, que tinha sido colocada na Metafísica, livro V, capítulo I. Segundo Garcia-Roza12 a teoria das quatro causas diz respeito aos princípios ou fatores explicativos das coisas articulando-se às distinções fundamentais da sua filosofia: essência-acidente, matéria-forma, ato-potência com o intuito de mostrar que a filosofia consiste fundamentalmente numa indagação de princípios. A teoria das quatro causas responde à exigência de que não há mudanças sem causas. Segundo Mikosz,13 o movimento que implica mudanças é uma preocupação central para Aristóteles. A teoria das causas poderia ser suportada na pergunta: por que mudam os seres? E responder: por razão das causas. Esse autor assinala que as causas poderiam ser chamadas de implicações ou de condições de possibilidade dos processos de transformação, das mudanças “quer dizer, das atuações dos seres em potência enquanto tais”. Portanto, as mudanças têm como razão as quatro causas: 1. A causa daquilo pela qual uma coisa é produzida – causa material (hyle). O princípio material é requerido como condição de movimento, da transformação, da atuação do ser em potência, enquanto tal. 2. A causa que permite dar uma forma ou fórmula de quididade, o qual faz que uma coisa seja o que é, distinguindo-a das demais – causa formal (eidos). 3. A causa ou origem imediata do movimento ou repouso ou produtor de mudanças – causa eficiente (kinoun). 4. A causa que se refere ao fim ou objetivo para o qual uma coisa existe – causa final (telos). Além das quatro causas na ordem natural, Aristóteles dedicou uma atenção particular para as causas acidentais, a serem compreendidas dentro das causas eficientes, na qual trata das noções que Do trauma ao troumatismo


aqui nos interessam: Tyche e Autômaton. As causas acidentais podem referir a fatos que se produzem por exceção. Tudo o que escapa à determinação, na natureza, é excepcional e se realiza acidentalmente. “O oposto ao ser por acidente é o ser por si que contém todas as determinações causais de uma coisa.”14 No livro II, capítulo 4, Aristóteles diferencia sorte e acaso: “Assim, há de se examinar a casualidade e a sorte, ver o que é cada uma, se são o mesmo ou se são diferentes, e de que modo se encontram entre as causas que temos distinguido”.15 Tyche e autômaton são duas causas acidentais que pertencem às causas eficientes, distinguindo-se das demais pelo seu caráter de excepcionalidade. Enquanto a tyche é associada a uma necessidade (fortuna) desconhecida para o homem, porém dotada de algum grado de deliberação, o autômaton é associado ao acaso no qual não houve nenhuma deliberação humana ou divina. Mikosz, nos textos anteriormente citados, esclarece ambas as noções. Sobre o autômaton, disse que o caráter acidental se manifesta na coincidência das séries dos fatos. O encontro dessas séries não foi buscado com nenhuma finalidade. Ele toma o exemplo de Aristóteles: “A pedra não cai com a finalidade de cair na cabeça de alguém”, e as duas séries coincidem, mas a coincidência não é pretendida por nenhuma delas. Vejamos isso em Aristóteles: “Assim, a casualidade, como indica seu nome (autômaton), tem lugar quando alguma coisa acontece “em vão” (mátem). A pedra não cai com o propósito de ferir alguém, mas por casualidade, pois poderia ter caído por obra de alguém e com a finalidade de ferir”.16 Mikosz esclarece as diferenças entre tyche e autômaton, a partir das raízes etimológicas:

14 Sparano, A Física de Aristóteles (1991, p. 64).

15 Física, op. cit., p. 59. Tradução livre. “Así pues, hay que examinar la casualidad y la suerte, ver qué es cada una, si son lo mismo o son diferentes, y de qué modo se encuentran entre las causas que hemos distinguido.”

16

Ibid., p. 64. Tradução

livre. “Así, la casualidad, como indica su nombre (au-

A distinção que Aristóteles faz usando as duas palavras autômaton e tyche e, às vezes tomando um pelo outro, às vezes usando simplesmente apó tyche por fortuna, para coisas imprevisíveis ou não previstas, é uma distinção um pouco discutível. Mas, ele mesmo dá um fundamento. Então poderíamos dizer o seguinte, conforme a etimologia que ele dá: Autômaton é composto por autós mais máten, segundo a etimologia dada pelo próprio Aristóteles. Autós significa por si mesmo no sentido de espontaneidade, e mais máten que quer dizer em vão, sem sentido [...] Portanto, o autômaton é a natureza agindo sem intenção [...] Já a palavra fortuna ou sorte (tyche) é um caso de autômaton, e é mais aplicada à realidade humana. E podese também definir esta fortuna como sendo o intelecto agindo para além da intenção: intellectus agens praeter intentionem. A palavra para a fortuna é tyche que vem do grego tynchâno, que quer dizer: encontrar, topar. O alemão diz antreffen, Zufall. Surgir assim meio inesperadamente. Também significa: caber a, ser destinado a. Seria uma espécie de sina. Daí nós entendermos muito esta fortuna ou sorStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

tômaton), tiene lugar cuando algo ocurre «en vano» (máten). La piedra no cae con el propósito de herir a alguien, sino por casualidad, pues podría haber caído por obra de alguien y con la finalidad de herir.”

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17 Introdução à leitura de Aristóteles, op. cit., p. 85.

18

Física, op. cit., comentá-

rios de Echandia.

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te como uma espécie de sina, o destino das pessoas. Uma força cega, talvez, por detrás dos acontecimentos. Mas também tynchâno pode significar simplesmente acontecer, ocorrer. Há um aspecto de imprevisível o de não regular nesta palavra. Achar-se, estar presente. De fato não havia necessidade nenhuma.17

Echandia18 – tradutor e comentador da versão em língua espanhola – sublinha que nos três capítulos da Física, que tratam sobre as causas acidentais, Aristóteles, buscando conceituar o esquema causal da tyche e o autômaton, retoma o que para muitos pensadores anteriores era a verdadeira razão de todo acontecer, em íntima conexão com a ideia de necessidade. Ele também adverte que a tradução desses termos é difícil, e que, por vezes, se perde o significado. Assinala que desde os tempos homéricos os grandes poetas tinham dito que o divino se manifestava como tyche, isto é: que a experiência do divino era a experiência da tyche. Ambos os termos pertenciam ao modo grego de sentir e conceber o mundo. Os romanos traduziram tyche por fortuna, pois acreditavam que sua antiga deusa Fortuna corresponderia à deusa Tyche. Assim também traduziram autômaton por casus (causalidade) e algumas vezes por spontaneus (génesis automaté por generatio spontanea), ambas as traduções sendo parciais. Por outro lado o termo Autômaton, que deriva de automático e autômata, teria entre os gregos um uso mais profano, porém não menos inquietante, assim como se encontra entre os hipocráticos: alguma coisa é autômaton quando se produz por causas que o determinam de maneira espontânea e cega, como por exemplo a chuva ou a autocuração. O casual, o que Aristóteles chama tό apo autómatou estaria nos seus efeitos concretos sobre tal ou qual coisa, não na trama causal que o determina. A tyche, “sorte”, chamada tó apó tychés é traduzida por “fortuito”. A tyche tampouco faz referência aos efeitos, mas à trama da qual eles resultam, e por essa razão os gregos não veem diferença entre tyche e necessidade. A mesma interpretação é proposta por Garcia-Roza quando esclarece que para os gregos o fato da tyche designar uma causa oculta ou desconhecida para a razão humana não significava que ela deveria ser vinculada com um caráter absurdo ou, mesmo, fortuito do fenômeno. O que nos interessa destacar é que essas duas versões da causa eficiente não referem a um caos ou à ausência de ordem, mas a um acidente que articula séries causais independentes que pressupõem uma ordem natural à qual se articula uma exceção. Eis o exemplo que dá Aristóteles no qual se entrecruzam duas séries. Um homem poderia ir a um determinado lugar para receber uma soma de dinheiro de um devedor se soubesse que tal devedor receberia ali um montante de dinheiro. Mas acontece que ele vai a esse lugar e, por Do trauma ao troumatismo


acidente, ele encontra o devedor e recupera esse dinheiro. Lemos em Aristóteles “Vemos, então, que a sorte é uma causa acidental que concorre nas coisas que se fazem por algo e que são objetos de escolha. Por isso, o pensamento e a sorte se referem a uma mesma ordem, uma vez que não há escolha sem pensamento”.19 Assim, por detrás das coisas que acontecem sempre do mesmo modo e daquelas que acontecem na maior parte dos casos, existem outras que constituem exceções às regras habituais da natureza, consideradas como desvios secundários. Um adendo importante é o seguinte: o que se chama de sorte, fortuna ou mesmo destino, para Aristóteles, tem a ver com atividades nas quais o homem intervém. A sorte se limita necessariamente à atividade humana. Assim o autômaton pode ser coisa da natureza, mas a tiquê, a sorte, é exclusiva do homem. Eis o fundamental que queremos destacar desse percurso. Talvez seja por essa razão que, na responsabilidade que compete ao sujeito na sua relação ao trauma, Lacan tenha sublinhado o lado da tiquê, o encontro do real. Lembremos que o homem faz a escolha de receber o dinheiro. Para Lacan, o trauma é sermos seres de linguagem, o qual implica considerar a relação do sujeito ao Outro, e com isso introduzir a questão do objeto (seja pela via dos objetos de escolha, seja como causa de desejo, seja como o objeto ligado à satisfação). Nesse sentido podemos dizer que o trauma “exterior” não se constitui como tal, a não ser por um sujeito que levante a pergunta pela verdade e que seja afetado por um saber possível sobre o “acidente”, isto é, sobre a tiquê.

19

Ibid, p. 62. “Vemos

entonces que la suerte es una causa accidental que concurre en las cosas que se hacen para algo y que son objeto de elección. Por eso el pensamiento y la suerte se refieren a un mismo orden, ya que no hay elección sin pensamiento.”

Sobre realidade e Real O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz – a expressão nos diz bastante sua relação com a tiquê – como por acaso. [...] Não há que tomar as coisas ao pé da declaração do sujeito – na medida em que aquilo com que precisamente temos que trabalhar é com esse tropeção, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante.20

O real não é o que retorna como signos, mas o que se repete como falta. O trauma deveria ser suturado pela homeostase subjetivante que orienta o princípio de prazer, mas os tropeços assinalam o fracasso dela. O que retorna ao mesmo lugar é esse encontro no qual os significantes hipernítidos perdem sua função de significar, perdem sua condição de ligar o aparelho, razão pela qual o exemplo do despertar do sonho demonstra o fracasso da função-semblante do significante. O sistema da realidade (a fantasia) deixa prisioneiro o real, por isso a realidade permanece alerta, em souffrance (sofrimento, paciência, espera de algo indeterminado). A realidade está Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

20 O Seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 56.

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em souffrance, está aí sustentando como pode sua relação com o real. A fuga no funcionamento do princípio do prazer conduz para o mais além desse campo. Devemos lembrar que em 1963 Lacan construía sua teoria sobre a angústia, elevando o objeto ao estatuto de real e conectando com isso a falta de objeto, própria ao desejo, com a satisfação pulsional. São os restos, vistos ou ouvidos, que resistem à rede de significantes. Observemos que ao falar da repetição (Wiederholen), Lacan se pergunta o porquê da repetição ter aparecido primeiro, com Freud, associada às neuroses traumáticas. Colette Soler aponta:

21 Soler, Trauma e Fantasia (2004, p. 55).

22 Dunker, O cálculo neurótico do gozo (2002, p. 117).

23 Dunker, A função terapêutica do real: entre trauma e fantasia (2006).

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O traumatismo se impõe numa temporalidade de ruptura: o sujeito não tem nele a mínima parte, isso lhe cai em cima. É uma temporalidade de instante, mas de um instante que não se percebe facilmente, enquanto existem tantos instantes que se evaporam no esquecimento e a partir do qual se instala uma constância, como uma onda que se propaga, rebelde ao apagamento. De alguma forma, portanto, um instante que engendra algo, uma perpetuidade.21

Segundo essa autora, o que se apreende em um encontro, por mais brutal que ele seja, não poderia ser traumático sem uma participação subjetiva, sem que o sujeito do inconsciente acuse recibo dessa ruptura, entendendo esse “acusar recibo” na resposta subjetiva, seja pela via da fantasia, ou seja pela via do sintoma. Isso também é sustentado por Christian Dunker quando escreve que na neurose traumática o que está em falta é a própria realidade, como anteparo ao real. Comentando o sonho ao que fazemos referência, esse autor escreve: Diante desta pergunta o pai enlutado, acorda. Este é o ponto-chave. A realidade vem recobrir o traumático na perda do filho, representado pela sua aparição. Se Freud fala inúmeras vezes na “fuga para a neurose” como uma estratégia para lidar com o real, no caso da neurose traumática há, inversamente, uma “fuga para a realidade” para lidar com o real.22

Esse autor adverte que o trabalho do trauma não é unidimensional, trata-se de uma dialética entre velamento e desocultação na qual o empenho é de devolver ao trauma sua vigência, malgrado as reações da defesa. Em um momento posterior, Dunker23 avança essa tese, articulando o núcleo real entre trauma e fantasia. Divide o encontro do real (trauma), por um lado; e o ato que toca o real (fantasia) este último ligado ao acting out. Retoma a expressão “encontro do real” para assinalar, com Lacan, que esse lugar é aquele que se situa entre trauma e fantasia: trauma e fantasia são as duas Do trauma ao troumatismo


bordas do Real concernido pelo encontro, as duas séries que se encontram na tyche. Numa relação de inversão, o autor propõe que as duas bordas referem tanto ao Real que volta sempre ao mesmo lugar, quanto ao Real que é o instante fantasmático do encontro faltoso. E adverte que desse cruzamento restam: o sintoma como desencontro e a pulsão como reencontro, ambos a serem considerados nas consequências do tratamento psicanalítico: a pulsão pode vir a ser liberada da fantasia e o sintoma pode vir a ser liberado do trauma, essa é a função terapêutica do real, que dá nome a seu texto. Retomemos, então, ao sonho desse pai que vela seu filho, para nos perguntar por essa relação entre real e realidade que se impõe à questão do trauma. Pois, se devemos diferenciar entre a função da repetição (Wiederholen), a função do retorno (Wiederkern) e a rememoração (Erinnern), observamos que nesse sonho se presentifica a cena tão próxima de uma realidade indizível, que não se integra à rememoração (Erinnern) a não ser deixando aparecer essa frase “pai, não vês, das ich verbrenne, que estou queimando”. Nela, é o laço do retorno dos signos (Wiederkern), isto é, o autômaton (simbólico), e da repetição (Wiederholen), isto é, a tyche (real), que se conjuga para deixar cair o apelo de uma voz; isso que é impossível de dizer – a morte de um filho – e impossível de ver. Acontecimento e “destino” se entrecruzam. Razão pela qual o despertar leva o sujeito de novo a uma realidade: desperta para seguir sonhando, para manter o retorno dos signos além do encontro do real. Entretanto, como Lacan observa: entre o acidente que se repete como por acaso e o comovedor da frase do sonho “O que é falhado não é a adaptação, mas a tiquê, o encontro”.24 A propósito da repetição e comentando esse sonho do pai, Colette Soler colocava para nossa comunidade em novembro de 2010:25 a repetição do encontro faltoso com o Outro é estritamente solidária com o encontro bem-sucedido com o a, que faz objeção ao encontro com o Outro, que institui a fantasia que faz objeção ao encontro. Se o saber, além de suposto é opaco, então podemos dizer que o umbigo do sonho que acorda o pai para inocular-lhe uma realidade possível que ultrapasse o encontro com a solidão do olhar e da voz que a frase do filho carrega, esse umbigo assinala a falta radical de um saber último. Freud e Lacan, cada um a seu modo, chamaram isso de castração, de impossibilidade de dizer sobre o sexo e a morte. O umbigo do sonho indica que “não há proporção – relação sexual”, que não se alcança o Outro, nem mesmo no amor, que não há abraço possível para alcançar o Outro; e que toda crença neurótica tenta driblar esse fato. Do Outro, em última instância, nada sabemos. Ao Outro o supomos e por isso o inconsciente se ancora numa suposição, sendo que ela se desvanece no final de análise: melhor dito, no limite, quando o sujeito constata que com o Outro jamais Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

24 O Seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 70.

25 Soler, Seminário Repetição e sintoma (29 e 30 de novembro de 2010, notas pessoais).

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fará Um. E que o que lhe resta são, por um lado os significantes mestres que lhe funcionaram como imperativos da demanda e um litoral que indica o furo ao qual não há S1 – e seu gozo concomitante – que o sature.

Do traumático ao trou 26 Lacan, Les non-dupes errent (1973-74/ inédito).

27 Ibid., aula de 20 de novembro de 1973. Tradução livre do espanhol para o português.

28

Ibid., aula de 19 de

fevereiro de 1974. Tradução livre do espanhol para o português.

29 Berta, O objeto a, separador dos gozos (2010).

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Em Les non-dupes errent,26 já iniciado seu percurso na teoria dos nós bo, Lacan insiste em diferenciar realidade psíquica e real. O sentido (imaginário) ele nos diz: é muito curto. O que se descobre do saber inconsciente é o sentido sexual, o “sentido – não sentido”. E é onde toda construção ficcional falha em dizer a verdade, uma vez que não há verdade senão do que não tem sentido.27 Por isso Lacan dirá que a verdade, não toda, somente é sustentável através da escrita, além do saber. Um passo a mais na disjunção entre saber e verdade. A invenção é do escrito e compromete a dimensão da letra. Curioso é ver que após ter criticado o negócio da matemática no Seminário anterior, Lacan retoma o valor da letra na função do escrito, em particular quando articula o furo no saber e a invenção. O saber inconsciente inventa: “[...] todos sabemos porque todos inventamos um truque para preencher o furo (trou) no Real. Lá onde não há relação sexual, isso produz ‘troumatismo’ (troumatisme). A gente inventa. Inventa-se o que se pode”.28 Ir do traumático para o troumatismo será possível se, na clínica, destacarmos o non-sense que se vincula ao “efeito de sentido” – sem com ele se confundir – fazendo vacilar o sentido fixo e unívoco do acontecimento. Flagrar o acontecimento para equivocá-lo. Acontecimento do corpo, dirá depois Lacan. Isso significa que o acidente, contingente, se marca como necessário (o que não cessa de se escrever), justamente porque falha na sua inscrição simbólica. Na clínica trata-se de passar desse necessário para o possível (o que cessa de se escrever). Uma analisante29 encontra no equívoco “in-visível” esse real do corpo falante, o qual lhe permite articular um saber além do trauma factual, além da realidade que a localiza numa cena infantil traumática cujo excesso se imprime com a marca do gozo sexual. O sintoma fóbico equivocado pelo dito “in-visível” é testemunha de um corpo torneado pela pulsão, eco do fato de que há um dizer. Colette Soler, em livros editados nos últimos anos, sustenta a hipótese da lalíngua traumática, e orienta essa leitura ao pontuar nos textos de Lacan, dos anos 70, a elucubração do inconscientelinguagem. A hipótese que ela traz acentua a expressão “saber sem sujeito” na qual a recorrência da estrutura de representação do sujeito – representação de significantes – o deixa separado do saber inconsciente. Parece-me que a elucubração de saber do inconsciente Do trauma ao troumatismo


troumatiza o sujeito. É o puro exercício do significante à procura de uma verdade pela via do saber que fará passar o saber ignorado, S2, do lado do S1. Cito Colette Soler: Lacan o formulou explicitamente. Pelo decifrado de um significante ignorado do saber, que não representa o sujeito, mas que regula seu gozo no sintoma, um S2 pois, sejam que o chamem signo ou letra, isto é, um significante causa e objeto de gozo, converte-se em S1, não significante do sujeito, mas significante mestre do seu gozo. O qual não significa que a estrutura da representação deste S1, enquanto ao saber, se reduza. Ela é recorrente. É o que o seguinte esquema inscreve (S1 (S1 (S1→ (S2))). Este é homólogo, do lado do S2, saber inconsciente, do esquema da divisão do sujeito com o saber S1 → | S2 | (S1 (S1 (S1→ (S2))) Lalíngua aparece, então, como o grande depósito de onde o decifrado extrai alguns fragmentos, mas que permanecem saber inexpugnável.30

30 Soler, De un Trauma al Outro (2007).

A análise opera a passagem do evento traumático para o troumatismo; da realidade para o real, do unívoco para o equívoco. A equivocação dá a pista de como o parlêtre é afetado pelo non-sense real. Trata-se, então, de ser enganados do necessário, desse saber que não para de se escrever. No inconsciente: isso fala, isso goza (jouis-sens). Essa poderia ser a razão pela qual o traumatismo perdura na neurose. Essa poderia ser também a razão pela qual o traumatismo pode ser deixado cair. Aqui se enfatiza a disjunção entre saber inconsciente e verdade. Quando em 1976 Lacan se pergunta O que é a verdade?, responde que é rastrear o real que não consiste mais que no nó.31 Rastreando esse real o efeito de sentido ilumina o jouis-sens (gozo-sentido). Além disso, ilumina esse furo (trou) que turbinou o trauma e que lhe deu sua razão de ser. “A escrita não é de modo algum do mesmo registro, da mesma cepa se vocês me permitem esta expressão, que o significante.”32 Escrever a letra que cava o furo no campo do Outro [S ( )]. Furo no saber que afeta diretamente a verdade singular, mostrando que a ficção é a falácia necessária para dar conta da insondável leveza do ser [S ( )]. A letra indica o furo no saber, a ruptura do semblante (significante), artefato a não habitar mais que a linguagem, sem poder confundi-la com o significante. Por outro lado, a escrita da letra testemunha sobre o furo no saber. A letra tanto limita o gozo quanto o evoca. Isso que evoca não refere ao furo no saber, mas ao puro exercício de uma fala não-sense que leva ao encontro desse furo no saber, até seu limite. Por essa razão o trauma diferenciado do acontecimento traumático implica considerar que em face do trou (furo) o que resta é ou Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

31

Lacan, El Seminario,

libro XXIII, El sinthome (1975-76/2006, p. 64).

32 Lacan, O Seminário. Livro XX. Mais Ainda (197273/1996, p. 41).

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33 Les nom-dupes errent, op.

a ficção ou o litoral. Justamente porque se a ficção fantasmática é a tela que opaca o real; o furo, em particular, o que Lacan considera como furo verdadeiro, leva à sua litoralização, sabendo que não há a última palavra. A volta dos ditos faz essa litoralização. Passar do litoral ao literal significa elaborar uma resposta na qual se enxergue o avesso da ficção. Para tocar o furo é preciso acariciar a borda. O inconsciente inventa porque não há nada a descobrir onde há um furo. Diz Lacan “No entanto, trata-se do Real, visto que é daí que eu parto, ou seja: que para todo saber é preciso que haja invenção, isso é o que sucede em todo encontro, em todo encontro primeiro com a relação sexual”.33

cit., aula de 19 de fevererio de 1974.

Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Física. Livro II. Tradução e comentários: Guillermo R. de Echandia. España: Ed. Gredos. S. A. Biblioteca Clásica Gredos, 1995. BERTA, Sandra. O objeto a, separador dos gozos. In: Stylus: revista de psicanálise. Rio de Janeiro: Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, n. 20, abril, pp. 119-124, 2010. CARUTH, C. Modalidades do despertar traumático In: NETROVSKI, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000, pp. 111-136. DUNKER, C. I. L. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002. DUNKER, C. I. L. A função terapêutica do real: entre trauma e fantasia. In: RUDGE, A. M. (Org.). Traumas. São Paulo: Escuta, 2006, pp. 39-49. FREUD, S. (1900-1901). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução J. Salomão, v. V. Rio de Janeiro: Imago, 1974. GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e Repetição em Psicanálise (Uma introdução à teoria das pulsões). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. MIKOSZ, D. Introdução à leitura de Aristóteles. In: Letras a Coisa, 11, A Causa. Curitiba: Associação Coisa Freudiana. Transmissão em Psicanálise, 1991, pp. 27-52. MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. Buenos Aires: Sudamericana. Disponível em: www.scribd.com/doc/7238750 LACAN, Jacques. (1953-1954). El Seminario. Libro I. Los escritos técnicos de Freud. Buenos Aires: Paidós, 1992. LACAN, Jacques. (1958-1959). O Seminário. Livro VI. O desejo e sua interpretação. Inédito.

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Do trauma ao troumatismo


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Resumo Abordamos as considerações sobre a passagem do trauma como acidente para o troumatismo, termo acunhado por Jacques Lacan para dizer do furo que afeta a estrutura do parlêtre. Junto a isso diferenciamos a repetição como retorno dos signos – autômaton – e a repetição como encontro faltoso – tiquê – que se vincula ao troumatismo estruturante. Interessa-nos ressaltar a miragem do trauma, fator acidental, quando fazendo colidir o saber e a verdade promove a sutura da pergunta pela causa. A essa cilada se responde com a invenção. Concluímos assinalando o que nos parece ser o roteiro de uma análise: ela opera a passagem do evento traumático para o troumatismo; da realidade para o real, do unívoco para o equívoco.

Palavras-chave Psicanálise, trauma, troumatismo, repetição, invenção

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Abstract We address issues relating to the passage of trauma like an accident to troumatismo, a term coined by Jacques Lacan to say that the hole affects the structure of parlêtre. Along with this we differentiate the repetition as signs’s return – autômaton – and repetition as against defaulting - tiquê - which is linked to structuring troumatismo. We are interested in highlighting the mirage of trauma, as accidental factor, when making knowledge and truth collide promotes the suture of the question by the cause. The answer to that pitfall is the invention. We conclude pointing out what seems to be the script for an analysis: it operates the passage from the traumatic event to troumatismo; from reality to the real, from uniqueness to equivocation.

Keywords Psychoanalysis, trauma, troumatismo, repetition, invention

Recebido 18/11/2010

Aprovado 16/12/2010

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Do trauma ao troumatismo


O corpo no RSI Jairo Gerbase Vou continuar examinando como o sujeito maneja o corpo em função das estruturas clínicas, neurose (histeria, obsessão e fobia) e psicose (paranoia, esquizofrenia e elação), em sua relação com as dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário (RSI). Considero RSI uma ferramenta mais amigável que IES (Id, Ego e Superego), a qual o próprio Freud1 utilizou para discernir neurose e psicose. Lembremos que ele disse que a neurose é resultante de um conflito entre o Ego e o Id, e a psicose um desfecho análogo entre o Ego e o mundo externo. São metáforas de sua época. Consultei o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM) e o Código Internacional de Doenças (CID)2 que nomeiam a histeria de conversão com o termo “transtornos dissociativos ou de conversão”, o que me pareceu interessante porque, em seguida, distinguem este tipo de transtorno dos transtornos somatoformes, entre eles, as somatizações. O critério é tratar a conversão como dissociação, o que destaca, em primeiro lugar, a divisão subjetiva. O corpo experimenta sintomas físicos, mas o sujeito se comporta como se isto nada tivesse a ver com ele, comporta-se com uma bela indiferença em relação ao sintoma. Mais interessante ainda é a definição de conversão: os sintomas traduzem a ideia que o sujeito faz de uma doença física; o exame médico e os exames complementares não permitem colocar em evidência um transtorno físico conhecido, o que quer dizer que eles obedecem a uma anatomia imaginária. Quis chamar esses sintomas de efeitos imaginários (I) do significante (S1) no corpo, efeitos I de S1, exatamente porque não há evidência de sintoma físico. O sujeito sente dor, mas não há evidência de transtorno físico da sensação. O sujeito acusa esquecimento, mas não há evidência de transtorno físico da memória. Por outro lado, continuo chamando de efeitos I de S1 às somatizações em vista do fato de também incidirem no corpo. Corpo e Imaginário são análogos. Se disser que o Ego é a ideia de si como corpo, posso ampliar a analogia. Se afirmar que o Ego é narcísico, que é a imagem do corpo, amplifico ainda mais. Assim, estabeleço uma relação de homologia entre Corpo, Imaginário, Ego e Narcisismo. O sintoma de conversão é dissociativo, na medida em que o sujeito observa o sintoma em seu corpo como se fosse o corpo do Outro. A definição de somatização como repetição de sintomas físicos asStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 Freud, Neurose e na psicose ([1924]/1976, p. 189).

2 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, s/d.

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sociados à busca persistente de assistência médica, em que pese ao fato de não haver base orgânica, difere, de algum modo, da definição de conversão, porém é insuficiente para que se possa dizer que o sintoma de conversão é imaginário, e o sintoma de somatização, simbólico. Entre os transtornos somatoformes, além da somatização, o manual inclui a hipocondria, a que já estamos habituados a tratar como efeitos reais do significante no corpo, efeitos R de S1, fala do órgão. Proponho, inicialmente, designar a somatização de efeito Imaginário do significante no corpo, efeito I de S1, mas pretendo terminar demonstrando que se trata de efeito Simbólico do significante no corpo, efeitos S de S1. Freud induziu-nos a discernir os sintomas físicos na conversão, na somatização e na hipocondria, ou seja, na histeria, na obsessão e na esquizofrenia. Alguém pode dizer que seu queixo não tem boa forma, que é disforme, ou que sua boca é grande demais e que seu nariz é adunco. Trata-se de dismorfofobia, de uma deformação topológica do corpo, que induz o sujeito a pensar que é feio, que devia fazer uma plástica. Por causa de seu nariz, ele foi objeto de bullying, seus colegas o chamavam de periquito. Ou diz que seu rosto está cheio de cravos, de espinhas, que vive a espremê-los constantemente e, por isso, seu rosto está cada vez mais ferido e mais feio. Freud nos ensinou a diferenciar um sintoma histérico de um obsessivo ou de um psicótico ou, em outras palavras, a distinguir conversão, somatização e hipocondria, ou fala do órgão. Não é possível fazer o diagnóstico diferencial sem uma hipótese teórica. Designo de Imaginário o modo histérico de o sujeito do inconsciente tratar o corpo falante, dizendo que, se o sintoma somático for de conversão, trata-se de efeito Imaginário do significante no corpo, efeito I de S1. Se se tratar de somatização, é efeito Simbólico do significante no corpo, efeito S de S1. E, por fim, no caso de hipocondria, trata-se de efeito Real do significante no corpo, efeito R de S1. Sabemos que o obsessivo também apresenta sintomas somáticos e, se prestarmos atenção à definição, notaremos que os sintomas somáticos estão classificados como transtornos somatoformes. Isto quer dizer que parecem, tomam a forma de sintomas somáticos; não são sintomas físicos imaginários, porém sintomas físicos reais, sem base orgânica; são sintomas físicos motivados por uma dimensão simbólica. Alguém sofre de colite porque pensa que contraiu AIDS. Isto ocorre em função de uma fantasia elementar da estrutura obsessiva que é o temor de contaminação. Até meados do século XX, um mesmo sujeito poderia pensar que contraíra sífilis. Um rapaz evita a relação sexual com sua namorada, aparentemente, por causa do tabu da virgindade; adiante, esclarece que sua precaução tem a ver com o temor de contaminação. O fato de ter-se iniciado com uma prostituta justifica sua erotofobia. Ainda que as 72

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lembranças da repressão não fossem verdadeiras, o sujeito inventaria um mito, uma forma épica de dar conta da estrutura. Um sintoma somático pode, portanto, ser interpretado na dimensão imaginária como um sintoma histérico, na dimensão simbólica como um sintoma obsessivo, e na dimensão real como um sintoma psicótico. Teríamos, assim, conversão histérica, efeito I de S1, se o sujeito inventar uma anatomia imaginária: uma apendicite, cuja dor se localiza na fossa ilíaca esquerda; uma somatização obsessiva, efeito S de S1, se o sujeito der forma somática a um pensamento obsessivo: uma colite, cuja base é um temor de contaminação; e, por fim, hipocondria esquizofrênica, ou fala do órgão, efeito R de S1, se o sujeito inventar uma anatomia irreal: os olhos entortados, representando a hipocrisia. Talvez possamos ratificar essa diferenciação dos sintomas físicos em cada dimensão por intermédio dos mecanismos de defesa, das operações significantes em jogo; diríamos que os efeitos I de S1 são resultantes do recalque, da elisão de um significante, que sofre conversão em sintoma somático; poderíamos afirmar ainda que os efeitos S de S1 são decorrentes da holófrase, forma de isolamento, ao impedir que um significante se articule a outro significante (S1S2), forma de congelamento, de coalescência de um significante com outro (S1S2), que sofre transdução em sintoma somático: por exemplo, na esclerodermia, palavra-frase, mot-valise; e, por fim, poderíamos asseverar que os efeitos R de S1 são a consequência da foraclusão, da preclusão de um significante que retorna desde fora, incidindo na cinestesia do corpo, como fala do órgão, hipocondria. É possível dizer que a somatização é uma holófrase, porém não é claro dizer que esse sintoma e mecanismo pertencem à estrutura obsessiva, porque o que chamamos de obsessão são ideias, pensamentos. Isto, contudo, está de acordo com a ideia de dimensão simbólica incidindo no corpo, porque pensamento é corpo. A dimensão imaginária e a dimensão simbólica incidem, igualmente, no corpo. Em um e outro caso há coincidência entre palavra e coisa, o que não acontece na hipocondria. Contudo, o fato de um sintoma somático sustentar-se em uma ideia obsessiva me leva a afirmar que se trata de um sintoma distinto da conversão, e que é efeito simbólico do significante no corpo, portanto um sintoma somático do sujeito obsessivo. Do lado do mecanismo, a distinção entre efeito imaginário e simbólico do significante no corpo também é difícil de ser feita porque, tanto a formação substitutiva ou fobia, quanto a formação reativa ou obsessão, ou ainda a formação sintomática ou histeria são todos modos do recalque. Relembremos o argumento: a dimensão imaginária é o modo Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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histérico de o sujeito do inconsciente tratar o corpo; a dimensão simbólica, modo obsessivo de o sujeito do inconsciente tratar o corpo; e a dimensão real, modo psicótico de o sujeito do inconsciente tratar o corpo. O efeito imaginário da incidência do significante no corpo advém do recalque. O recalque incide sobre uma ideia, um significante e retorna sob a forma de um sintoma somático, sintoma de conversão, cuja principal característica é a divisão subjetiva, tratando o corpo próprio como se fosse de outro; é comportar-se com indiferença em relação ao sintoma. Sofrer de enxaqueca e tratar como sintoma físico, não fazer relação com o significante recalcado. O que chamo de efeito imaginário é o retorno do recalcado; o recalcado retorna simbolizado em um sintoma somático; o sintoma é então uma frase simbólica. A neuralgia facial de Cecília representa uma bofetada no rosto. Certamente, o recalque é o mecanismo comum ao sintoma histérico e ao sintoma obsessivo, mas a diferença está no retorno do recalcado. No primeiro caso, obedece a uma anatomia imaginária, e no segundo, a uma anatomia real, porém sem base orgânica. O recalque é simbólico, mas seu retorno é imaginário. Isto está enodado e apenas desenodamos para podermos enunciar. A pergunta que me interessa é: devemos tratar a conversão, a somatização e a hipocondria como sintomas físicos distintos? Podemos relacioná-los, didática e respectivamente, ao imaginário, ao simbólico e ao real? No modo imaginário, no modo histérico, o recalcado retorna no corpo como conversão; no modo simbólico, no modo obsessivo, retorna no pensamento, que é corpo e, secundariamente, como somatização. O esquema seria mais aceitável se disséssemos que o efeito imaginário do significante no corpo é a conversão, que o efeito simbólico do significante no corpo é a obsessão, e o efeito real do significante no corpo é a hipocondria. Porém, a complexidade do esquema está em dizer que os obsessivos também apresentam sintomas físicos, o que corresponde ao que chamamos somatização. Os sintomas físicos da histeria obedecem a uma anatomia imaginária, isto é, não têm evidência de um sintoma físico conhecido, ao passo que os sintomas físicos da obsessão não estão em desacordo com a fisiopatologia. Por exemplo, a somatização de uma hipertensão implica aumento da pressão sanguínea, embora não haja base orgânica para tal, o que induz à demanda persistente de assistência médica. Procurei diferenciar os sintomas físicos na histeria e na obsessão com base no retorno do recalcado, ideia presente na obra de Freud, que opõe neurose e psicose com um esquema análogo, ao afirmar que ambas começam com a perda da realidade e distinguem-se com relação ao retorno à realidade, por intermédio da fantasia ou do delírio. 74

O corpo no RSI


Procurei, igualmente, distinguir a histeria e a obsessão quanto ao mecanismo do recalque, fazendo-os depender, respectivamente, da formação sintomática e da formação reativa. Numa postulação a mais, propus distinguir o recalque do isolamento, tratando este último sob o termo da holófrase, para justificar a somatização como um sintoma obsessivo. Poderia contentar-me em dizer que há efeitos imaginários e simbólicos no corpo, como a conversão e a somatização, e efeitos reais no corpo, como a hipocondria, e que os primeiros obedecem ao mecanismo do recalque e o segundo ao mecanismo da foraclusão. Entretanto, insistirei adiante no discernimento das modalidades do recalque na conversão e na somatização.

Referências Bibliográficas Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. Décima Revisão. Organização Mundial da Saúde. São Paulo: EDUSP, s/d. FREUD, Sigmund. [1924] Neurose e na psicose. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIX.

Resumo O autor examina como o sujeito maneja o corpo em função das estruturas clínicas: neurose e psicose. Faz uma segunda relação entre este manejo e as dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário (RSI). Considera RSI uma ferramenta mais amigável que IES (Id, Ego e Superego) para discernir neurose e psicose. Propõe designar o modo histérico de o sujeito inconsciente tratar o corpo falante, de efeito Imaginário do significante no corpo (efeito I de S1); o modo obsessivo de o sujeito do inconsciente manejar o corpo falante, de efeito Simbólico do significante no corpo (efeito S de S1) e, por fim, o modo paranoico de o sujeito do inconsciente operar com o corpo falante, de efeito Real do significante no corpo (efeito R de S1).

Palavras-chave Corpo; estruturas clínicas (histeria, obsessão, paranoia); Real, Simbólico e Imaginário; Id, Ego e Superego.

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Abstract The author examines how the subject handles the body in light of the following clinical structures: neurosis and psychosis. A second connection between this handling and dimensions of the Real, the Symbolic, and the Imaginary is made. The author considers RSI a friendlier tool than IES (Id, Ego, and Superego), in order to differentiate neurosis from psychosis. The work proposes to designate the hysterical mode of the subject of the unconscious used to treat the speaking body, of Imaginary effect from the significant on the body (effect I of S1); the obsessive mode through which the subject of the unconscious handles the speaking body, of Symbolic effect of the signifier on the body (effect S of S1) and, finally, the paranoid way the subject of the unconscious operates the speaking body, the effect Real of the significant on the body (effect R of S1). Â

Keywords Body; clinical structures (hysteria, obsession, paranoia); Real, Symbolic, and Imaginary; Id, Ego, and Superego.

Recebido 15/11/2010

Aprovado 10/12/2010

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O corpo no RSI


Corpo: produto e suporte de representações sociais1 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, ele curava seus doentes porque se tinha tornado um grande feiticeiro2

Natureza e Cultura Na virada do século XIX para o XX, as emergentes psicanálise e antropologia enfrentaram questões que guardavam alguns desafios teóricos comuns. Os principais deles tinham como cerne tensões entre o que se concebia como Natureza e Cultura. Seriam os comportamentos humanos determinados por fatores “naturalmente” dados ou predominariam elementos de ordem social e histórica, conjunturalmente construídos? Como reconhecer e analisar cada um desses fatores e suas eventuais interações? Que alcances teriam sobre o humano, seu corpo físico e suas diversas manifestações comportamentais e culturais? A problemática das origens também constituía um solo comum de preocupações. Quais as origens das neuroses? Seriam “doenças” de ordem física de modo que diagnósticos, percepções de sintomas, definições de tratamentos e conquistas de curas implicariam intervenções clínicas e medicamentosas nos “corpos adoentados”? Ou, para além de fatores biológicos, outros, de ordem simbólica, seriam tão ou mais determinantes do conjunto de manifestações corpóreas, cabendo produzir conhecimentos sobre eles, bem como elaborar ações, de ordem também simbólica, que interagissem com esses corpos mais imateriais do que materiais e compreensíveis somente se pensados em suas relações com outros corpos simbólicos? Qual a origem da humanidade? Formaria um só conjunto ou haveria vários grupos distintos entre si, não passíveis de comporem um todo? E como explicar tais distinções? Seriam indicativas de estágios de um mesmo progresso evolutivo pré-determinado? Resultariam de traços biológicos (étnico-raciais, sexuais, psíquicos) aptos à catalogação e suscetíveis a intervenções? Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 Artigo elaborado a partir da conferência mensal, de mesmo título, proferida em 17 de novembro de 2010 no Fórum do Campo Lacaniano de SP. Agradeço especialmente à Ana Laura Prates Pacheco e a Raul Albino Pacheco Filho o convite para proferir a conferência, cuja mesa de debates compartilhamos.

2 (Lévi-Strauss, O feiticeiro e sua magia 1949/ 1996, p. 208).

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A primeira escola antropológica a reunir estas últimas questões e a sistematizar um conjunto de argumentos com vistas a respondê-las – a Escola Evolucionista Britânica –, abraçou a hipótese da unidade psíquica da Humanidade e afirmou que diferenças entre grupos se explicavam em função de ocuparem distintos degraus de um mesmo progresso civilizatório. Estava posto, de forma inédita no campo científico-acadêmico, que qualquer grupo humano, ainda que em diferentes estágios de “maturidade”, era capaz de simbolizar, abstrair, representar o ausente ou materialmente inexistente, elaborar linguagens, comunicar-se e transmitir conhecimentos, mesmo os que aparentavam certa “animalidade” por desconhecerem a urbanidade, técnicas industriais, o domínio da linguagem escrita, instituições “mono”, tais como famílias monógamas, religiões monoteístas, estado centralizado, monismo jurídico. Os corpos, seus formatos, suas cores e, especialmente, suas distintas expressividades foram, assim, percebidos como sinais que evidenciavam graus do progresso evolutivo, cabendo aos antropólogos catalogá-los, analisá-los e classificá-los, estabelecendo escalas entre a rudeza e a complexidade, de acordo com a presença ou não de certas características. Em decorrência desse empreendimento que, não por acaso, tinha como observadores cientistas das metrópoles europeias e como observados povos exóticos das ex ou ainda colônias da África, Américas, Ásia e Polinésia, colocou-se a questão do que caberia aos civilizados fazerem diante de selvagens e bárbaros, além de se protegerem dos eventuais perigos decorrentes de seu atraso. Seria melhor respeitar seus estágios evolutivos e não interferir em seu ritmo de progresso, adotando estratégias protecionistas, por vezes segregacionistas e de caráter tutelar? E como agir em relação a humanos de um mesmo grupo, porém considerados menos evoluídos que outros, como mulheres, crianças, deficientes, loucos, criminosos? Acreditavam alguns que observar tais segmentos, sem grandes interferências, possibilitaria, em certa medida, verificar empiricamente como se dera o passado da Humanidade. Para outros, cabia acelerar sua evolução, catequizando-os, colonizando-os, educandoos, recuperando-os de estagnações ou mesmo de regressões e degenerações. No limite, o extermínio físico era uma possibilidade. Não por acaso, uma das primeiras frentes da antropologia europeia a ter caráter fortemente intervencionista (com repercussões importantes no Brasil) se deu no campo do direito penal, com o médico italiano Césare Lombroso (1835-1909) se propondo a detectar os determinantes naturais do “caráter” do homo criminalis por meio de métodos “científicos” de medição craniana, de mensuração da massa encefálica e da análise dos mais variados traços físicos de homens e mulheres considerados delinquentes, tais como 78

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a distância entre os olhos, tamanho da testa, formato do queixo, do nariz, da boca, maxilares, compleição física etc.3 A maioria desses temas, tomados pelos primeiros antropólogos como fulcro de seu campo de saber, todavia não era inédita, pois desde os primeiros registros filosóficos sobre contatos entre diferentes grupos humanos temos menções a selvagens, bárbaros e civilizados. No Ocidente, em especial a partir do Renascimento e das grandes navegações, multiplicaram-se tais registros, como bem podemos observar em uma das passagens do texto “dos Canibais”, cap. XXXI dos Ensaios de Montaigne (1533-1592): (...) não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. (...). Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva.4

Nestas passagens, podemos observar o que, tempos depois, tanto embasaria a noção de bom selvagem quanto críticas ao olhar etnocêntrico europeu. No final do século XIX, graças ao legado de filósofos iluministas e contratualistas e do positivismo e cientificismo em plena voga, temos homens de formações variadas, tais como juristas, naturalistas e físicos constituindo o primeiro grupo de cientistas a enfrentar essas seculares questões e alçá-las ao patamar da nova ciência antropológica. Eram homens que mal saíam de suas universidades, antropólogos de gabinete, onde recebiam e reorganizavam informações de comerciantes, administradores coloniais, botânicos e missionários sobre povos distantes e estranhos. Pouco questionando com que filtros tais informações e mesmo objetos de cultura material haviam sido obtidos, eles os colecionavam segundo grandes temas, despojando-os, portanto, de seus contextos específicos, a fim de colocarem em prática o método comparativo, baseado no pressuposto da existência de uma única “história” evolutiva segundo a qual era viável interpretar os mais variados dados.5 Em sintonia com esta lógica, Freud abordou vários temas da antropologia cultural e da arqueologia de seu tempo, sendo exemplares os quatro artigos, redigidos entre 1911 e 1913, que viriam a compor Totem e Tabu. Segundo o próprio Freud, este livro reunia especulações da antropologia, etnografia, biologia, história da religião e da própria psicanálise. Como bem enfatiza Peter Gay, o subtítulo do livro é “revelador”: Várias Concordâncias na Vida Mental Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

3

Darmon, Médicos e

assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime (1991).

4 Montaigne, Dos Canibais (1580/ 2004, p. 195-196).

5 Para acessar uma breve e pertinente introdução às ideias e principais textos de antropólogos evolucionistas, consultar CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

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6

GAY, Freud: uma vida

para nosso tempo (1989, p. 305).

7 Ibid., p. 307.

8 Ibid., p. 304.

9 Clifford, On ethnographic authority (1988).

de Selvagens e Neuróticos.6 Todavia, nas conclusões, Freud aponta que também há discordâncias entre selvagens e neuróticos, uma vez que os últimos tomavam o pensamento pela ação e os primeiros agiam antes de pensar.7 Textos enciclopedistas de importantes antropólogos da Escola Evolucionista Britânica, como os de James Frazer e de Edward Tylor, inspiraram Freud em suas menções às religiões primitivas e exóticas, às relações de parentesco, à centralidade dos ritos na vida social, ao pensamento animista e ao totemismo. Mas tardou pouco para que, no interior da antropologia, uma guinada fundamental se operasse em função da prática de o próprio antropólogo sair de seu gabinete e ir a campo coletar dados durante longos períodos de convivência com aqueles de quem, até então, só fazia ideia por meio de relatos escritos por terceiros. O contato corpo a corpo com esses outros e a consequente percepção de, diante deles, também ser outro, estranho e exótico, imprimiu novos rumos epistemológico-políticos à antropologia, fazendo nascer a observação participante, o caderno e o diário de campo. Mais do que um rol de técnicas de coleta e análise de dados, esse conjunto de princípios metodológico-analíticos fez com que a antropologia evolucionista se visse abalada em seus alicerces e, de produto direto do processo civilizatório europeu, passasse a produtora voraz de críticas a ele. Freud não passou ileso por essa reviravolta antropológica e recebeu duras críticas de antropólogos envolvidos com estas novas frentes, como R. R. Marett que, no começo de 1920, reportou-se à edição inglesa de Totem e Tabu “(...) como ‘pura história’, caracterização que Freud julgou suficientemente espirituosa para recebê-la com certo divertimento”.8 Esta revisão interna pela qual passou a antropologia levou, inevitavelmente, os antropólogos a questionarem seu papel político. O aprendizado de outras línguas, de outros modos de vida, o deslocamento para territórios estranhos com os quais era preciso se familiarizar foram alguns dos ingredientes fundamentais que, todavia, não alteraram a autoridade etnográfica9 do antropólogo perante os “nativos”, pois, de porta-voz dos interesses e valores metropolitanoscolonizadores ele passou a intérprete privilegiado dos “observados”. Somente várias décadas mais tarde, por volta dos anos 1960, esta postura antropológico-iluminista também mudaria e a interpretação do outro se transformaria em interlocução com outro.

Relativizando Um dos primeiros exemplos dessa primeira politização dos antropólogos em favor dos grupos com os quais tinham contato direto e a partir do que produziam suas etnografias se deu logo no início 80

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do século XX, com a Escola Culturalista Norte-Americana e os trabalhos de campo de Franz Boas (1858-1942), alguns dos quais resultaram em textos em que criticou veementemente o conceito de raça, as bases “naturais” e “científicas” de práticas racistas e a noção universal e evolucionista de progresso.10 Enfatizando a relevância dos ambientes culturais e dando, assim, espaço para a percepção da história de cada grupo em detrimento da busca de leis universais, Boas foi um etnógrafo muito atento a detalhes (piadas, culinária, arquitetura, arte), os quais passaram a ser pensados em função de seus contextos, abrindo-se um fértil campo para considerar povos primitivos tão complexos quanto quaisquer outros civilizados, desde que analisados em função de seus ambientes culturais. Poligamia, domínio da linguagem oral, politeísmo, sociedades sem estado, sistemas de justiça entrelaçados a regras de parentesco e de poder político-religioso passaram a pautar os textos antropológicos, não mais como exemplos de atraso, mas como formas outras de a condição humana se manifestar. Por volta dos anos 1920 até aproximadamente 1950, a Escola Funcionalista Britânica e Norte-Americana, incrementando os cuidados metodológicos decorrentes dos cada vez mais comuns trabalhos de campo, investiu no estudo das instituições e de suas funções com vistas a compreender a manutenção de totalidades culturais. A noção de corpo social, dos próprios grupos como organismos vivos cujas partes deveriam funcionar em harmonia para que o conjunto sobrevivesse, deu o tom de uma nova antropologia bastante marcada pelos ganhos acadêmicos e políticos da vizinha-irmã sociologia. Trabalhos de antropólogos sobre conflito e coesão social se tornam centrais e, embora ainda bastante voltados para contextos de sociedades tribais, estimularam o nascimento de uma antropologia urbana que alteraria, mais uma vez, de forma significativa, as configurações do saber antropológico.11 Foi justamente também nessas primeiras décadas do século XX que a Escola Sociológica Francesa, a partir dos estudos de Durkheim (1858-1917) e de seu sobrinho Marcel Mauss (1872- 1950), contribuiu para que a antropologia expandisse seu alcance analítico e ingressasse no campo do simbólico, das relações sociais baseadas minimamente em determinantes naturais e essencialmente em valores culturais.12 Os principais autores dessa Escola, retomando as antigas afirmações filosóficas e as contemporâneas constatações etnográficas relativas à complexidade das chamadas classificações primitivas, como as totêmicas, afirmavam:

10 Um apanhado bem elaborado das ideias-chave de Franz Boas e alguns de seus principais textos se encontram em CASTRO, Celso (org.). Antropologia Cultural. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

11 Alguns dos autores e obras significativos dessa Escola são: EVANS-PRITCHARD, E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande (1937) e Os Nuer (1940); FIRTH, R. Nós, os Tikopia. Um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva (1936) e Elementos de organização social (1951); GLUCKMAN, M. Ordem e rebelião na África tribal (1963); LEACH, E. Sistemas políticos da Alta Birmânia (1954); MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental (1922); RADCLIFFEBROWN, A. Estrutura e função na sociedade primitiva (1952); TURNER, V. Ruptura e continuidade em uma sociedade africana (1957) e O processo ritual (1969).

12 Para acompanhar uma reflexão sobre a nova antropologia que floresceu a partir da obra de Marcel Mauss, consultar BRUMANA, F. G. Antropologia dos sentidos. Introdução às ideias de Mauss.

As classificações primitivas não constituem, pois, singularidades excepcionais, sem analogia com as que estão em uso entre povos mais cultivados; (...), da mesma forma que as classificações dos eruditos, elas Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

Coleção Primeiros Voos, n. 18, São Paulo, Brasiliense, 1983.

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13 Durkheim & Mauss,

são sistemas de noções hierarquizadas. (...), estes sistemas, do mesmo modo que os da ciência, têm um fim especulativo. Seu objeto não é facilitar a ação, mas tornar compreensivas, inteligíveis, as relações existentes entre os seres. (...). Foi porque os homens estavam agrupados e se concebiam a si mesmos sob a forma de grupos, que agruparam idealmente outros seres, (...). Foram, pois, estados coletivos que deram nascimento a esses grupos e, ainda mais, estes estados são manifestamente afetivos. Existem afinidades sentimentais entre as coisas como entre os indivíduos, e elas se classificam segundo tais afinidades.13

Algumas formas primitivas de classificação (1901/1984, p. 197-201).

14 Ibid., p. 203.

15 Mauss, Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1925/2003, p. 401).

16 Ibid.

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Como Durkheim se propunha a missão acadêmica de fundar a sociologia como ciência e diferenciar seus objeto e método dos das demais “concorrentes”, dentre as quais estava a psicologia, no parágrafo final desse mesmo texto lemos: “Todas estas questões, que metafísicos e psicólogos agitam há tanto tempo, serão enfim libertadas das repetições fastidiosas em que se detêm marcando passo, no dia em que forem colocadas em termos sociológicos.”14 E foi justamente Mauss um dos que mais arriscaram novas investidas interpretativas para “todas estas questões”, mas não opondo sociologia e psicologia. Como considerava os fatos sociais acontecimentos de caráter holístico – fatos sociais totais –, pois congregavam aspectos múltiplos e interligados (econômicos, políticos, jurídicos, psicológicos, fisiológicos, religiosos, morais, artísticos etc.), os quais só se separavam graças às disputas científicas por territórios de saber, Mauss será um admirador dos temas de fronteira e das abordagens interdisciplinares: “É geralmente nesses domínios mal partilhados que jazem os problemas urgentes. (...) é aí que há verdades a descobrir; primeiro porque se sabe que não se sabe, e porque se tem a noção viva da quantidade de fatos.”15 Apresentando conferências justamente para a Sociedade de Psicologia e publicando ensaios no Journal de Psychologie, no Bulletin de la Société Française de Psychologie e no Journal de Psychologie Normale et Pathologique, Mauss desenvolverá temas candentes da época, dentre os quais se tornou um clássico seu ensaio sobre “As técnicas do corpo”: “(...) maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo”.16 Pela primeira vez na antropologia, de modo direto, os corpos humanos, suas conformações e expressões, segundo divisões por sexos e idades, foram analisados como suportes sociais e agentes de técnicas comunicativas fundamentais para a (re)produção de sistemas simbólicos, os quais, por sua vez, foram tidos como responsáveis pela construção da própria materialidade e das técnicas empregadas pelos corpos. Práticas que eram concebidas como frutos de determinantes biológicos, como nascer, amamentar, dormir, usar a mão direita ou esquerda, andar, marchar, correr, nadar ganharam o Corpo: produto e suporte de representações sociais


status de habilidades adquiridas socialmente, de técnicas resultantes de uma educação, de um adestramento das atitudes em função do rendimento que elas podem auferir a seus executores em termos de prestígio, poder e de expressão de pertencimento a determinados segmentos sociais. Segundo Mauss: “(...) há uma sociedade dos homens e uma sociedade das mulheres. (...). Seja como for, o psicólogo sozinho não poderá oferecer senão explicações duvidosas e precisará da colaboração de duas ciências vizinhas: fisiologia, sociologia”.17 Outros autores da Escola Sociológica Francesa também desenvolveram reflexões fundamentais sobre a concepção de corpo material-simbólico, culturalmente esculpido e matizado. Entre os exemplos clássicos temos Robert Hertz, com seu estudo sobre “A proeminência da mão direita”: (...) de acordo com a opinião geral, a predominância da mão direita resulta diretamente do organismo e nada deve à convenção (...). Não existe necessidade de negar a existência de tendências orgânicas para a assimetria, mas (...) O fato é que não se aceita ou se cede à desteridade como uma necessidade natural: ela é um ideal ao qual todos precisam conformar-se e o qual a sociedade nos força a respeitar por meio de sanções positivas. (...). Se a assimetria orgânica não existisse ela teria de ser inventada. (...). A supremacia da mão direita é ao mesmo tempo um efeito e uma condição necessária da ordem que governa e mantém o universo. (...). O mundo externo, com sua luz e sua sombra, enriquece e dá precisão às noções religiosas que surgem das profundezas da consciência coletiva, mas não as cria.18

17

Ibid., p. 409.

18 Hertz, A preeminência da mão direita: um estudo

Ainda às voltas com a polaridade e as tensões entre universalidade e particularidades, bem como com a busca de origens sociais para o que aparentava ser da ordem da natureza, a Escola Sociológica Francesa apontou como universal não um mundo de coisas naturalmente divididas em pares de opostos, mas uma lógica do pensamento humano que assim as dividia, quer as coisas facilitassem tal divisão e oposição (dia e noite), quer a dificultassem por serem coisas semelhantes (mão esquerda e direita). E graças a tal lógica binária, opositiva e fundante do pensamento humano, de origem coletiva, decorriam, segundo os pensadores da Escola Sociológica Francesa, as necessárias troca e reciprocidade entre as partes em oposição, as quais fundavam, por sua vez, a dinâmica da vida social nos diversos sistemas: de parentesco, religiosos, políticos, jurídicos etc.19

sobre as polaridades religiosas (1909/ 1980, p. 100, 103, 109, 122).

19 Mauss, Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1925/ 2003).

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20 Zafiropoulos publicou,

Estruturalismo

em 2001, Lacan e as ciências sociais: o declínio do pai, livro em que analisa o período de 1938 a 1953 da obra lacaniana e, em 2003, lançou Lacan e Lévi-Strauss ou o retorno à Freud, em que estuda o período de 1953 a 1957. Este trabalho, mais do que um outro livro, Zafiropoulos aponta como um segundo volume em relação ao primeiro, sem o qual os dois não podem ser totalmente compreendidos (Zafiropoulos, 2009, p. 4).

21 Zafiropoulos se reporta, especialmente, à obra Les complexes familiaux, publicada em 1938.

22 Zafiropoulos, Nossa arqueologia crítica da obra de Lacan: Lacan e as ciências sociais. Lacan e Lévi-Strauss (2009, p. 4-6).

23 Ibid., p. 8.

24 Ibid., p. 9-10.

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Estavam, assim, lançadas, a partir de 1940, as bases do que viria a ser o estruturalismo na antropologia, que se desenvolverá a partir da obra de Lévi-Strauss, autor que, como Durkheim, exerceu forte influência sobre o pensamento de Lacan (1901-1981). Segundo o sociólogo e psicanalista francês Markos Zafiropoulos, foram concomitantes o distanciamento de Lacan da sociologia de Durkheim e seu encontro com a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss.20 Da obra de Durkheim, Lacan absorveu e trabalhou especialmente um curso proferido em 1892, no qual estava em questão a “lei da contratação familiar” ou uma “teoria sócio-histórica de evolução da família”. Segundo tal tese durkheimniana, uma ampla e harmoniosa família patriarcal originária teria entrado em derrocada no Ocidente do século XIX e se convertido na anômica família conjugal-ocidental do século XX, fonte de suicídios e de um “individualismo mórbido”. Lacan, em trabalhos realizados entre 1938 e 1950,21 denominaria tal família de um “talo conjugal”. Nesses trabalhos, Zafiropoulos analisa como diretamente associados por Lacan: a degradação do valor social do chefe de família, o declínio da imago paterna, o enfraquecimento de sua fecundidade subjetiva no Complexo de Édipo e, finalmente, a evolução das neuroses modernas.22 A partir de trabalhos de historiadores, demógrafos e antropólogos não evolucionistas, os desenvolvimentos clínicos que Lacan propusera com base nessas ideias de Durkheim sofreram um forte baque empírico, pois as novas pesquisas demonstravam ter a família conjugal uma existência muito longa no tempo e ampla no espaço, não sendo, portanto, mera evolução-degenerativa-ocidental da família patriarcal. Os próprios conceitos de patriarcado e matriarcado, tal como Lacan os trabalhara, até então, foram revistos, de modo que, a partir de 1950, acompanhando essas guinadas das ciências sociais, Lacan muda de “(...) galáxia conceitual no que diz respeito mais precisamente à análise da família, à questão do pai e, de um modo mais geral, às leis constitutivas do inconsciente, que ele desloca agora do registro da família para o das leis da fala e da linguagem”.23 São leituras de textos de Lévi-Strauss, como do artigo “A eficácia simbólica” (1949), do livro As estruturas elementares do parentesco (1949) e da “Introdução à obra de Marcel Mauss” (1950) que farão Lacan, em 1953, retomar como determinante a questão psicanalítica do pai, não mais do pai “objeto real”, pertencente a uma família, mas do pai simbólico, significante, autor da Lei, do Nome-do-Pai.24 As leis do simbólico passam a pautar a antropologia estrutural e a psicanálise lacaniana. Vale lembrar, em função das noções de corpo, sofrimento, doenCorpo: produto e suporte de representações sociais


ça, sintoma, tratamento e cura, o famoso texto de Lévi-Strauss, “O feiticeiro e sua magia” (1949), no qual menções diretas são feitas à eficácia das crenças, dos tribunais e da psicanálise: (...) a eficácia da magia implica na crença da magia, (...) sob três aspectos complementares: (...) a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; a crença do doente (...) no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam a cada instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça. (...) a situação mágica é um fenômeno de consensus (...).25

25 Lévi-Strauss, O feiticeiro e sua magia, op. cit., p. 194-

Assumindo que este seu estudo era mais psicológico do que sociológico,26 Lévi-Strauss, ao narrar acontecimentos que levaram um xamã (Quesalid) a julgamento por acusação de feitiçaria, não por acaso também se reporta à justiça criminal como um sistema mágico de crenças que atua sobre os corpos dos envolvidos: (...), antes de reprimir um crime, os juízes procuram (...) atestar a realidade do sistema que o tornou possível. (...). O acusado, preservado como testemunha, traz ao grupo uma satisfação de verdade infinitamente mais densa e mais rica do que a satisfação de justiça que teria proporcionado a sua execução. (...), a escolha não é entre este sistema e outro, mas entre o sistema mágico e nenhum sistema, ou seja, a desordem (...) o acusado participa com sinceridade e – a palavra não é demasiado forte – fervor, do jogo dramático que se organiza entre seus juízes e ele.27

195.

26 Ibid., p. 195, nota de rodapé 4.

27 Ibid., p. 201.

Segundo Lévi-Strauss, daqueles três aspectos complementares e fundamentais em qualquer sistema de crenças, a experiência do “doente” diante do feiticeiro, ou a do acusado perante o sistema de justiça constituem o aspecto que menos importa para esses sistemas, apesar de, em alguma medida, reforçá-los. Afirma Lévi-Strauss que é o “polo coletivo” dos sistemas de crença que exerce neles papel decisivo, daí o tratamento do doente pelo xamã ser um espetáculo oferecido a um auditório no qual é repetido o “chamado” ou crise inicial que forneceu ao xamã a revelação de sua condição. Nesse espetáculo, mais do que reproduzir ou representar acontecimentos, o xamã os revive, intensamente, até retornar a seu “estado normal”. Tomando emprestado da psicanálise o termo ab-reação, LéviStrauss afirma que “o xamã é um ab-reator profissional”, pois revive intensamente a situação inicial que originou sua “perturbação”.28 Retomando, ainda, as noções de pensamento normal e patológico e se valendo da linguística para chegar novamente à psicanálise, Lévi-Strauss sublinha: Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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28 Ibid., p. 209.

29 Ibid., p. 210-211.

30 Ibid., p. 212.

31 Zafiropoulos, A preeminência da mão direita: um estudo sobre as polaridades religiosas, op. cit., p. 12-13.

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(...) que o pensamento normal sofre sempre de uma carência de significado, ao passo que o pensamento dito patológico (ao menos em certas de suas manifestações) dispõe de uma pletora de significante. Pela colaboração coletiva à cura xamanística, um equilíbrio se estabelece entre essas duas situações complementares. (...). Diversamente da explicação científica, não se trata, pois, de ligar estados confusos e inorganizados, emoções ou representações, a uma causa objetiva, mas de articulá-los sob forma de totalidade ou sistema. (...) a magia readapta o grupo a problemas pré-definidos, por intermédio do doente, ao passo que a psicanálise readapta o doente ao grupo, por meio de soluções introduzidas.29

Nas passagens finais deste texto, Lévi-Strauss se dedica diretamente ao que ele denomina “comparação entre a psicanálise e terapêuticas psicológicas mais antigas e mais divulgadas”30 reiterando que o ser humano vive dilacerado entre dois sistemas de referência (o do significante e o do significado), o que lhe exige buscar no pensamento mágico um novo sistema em que dados contraditórios se integrem. Todavia, conclui pelo perigo de que tal integração não se realize “verdadeiramente” e que um “tratamento” se reduza à reorganização do universo do paciente em função das interpretações psicanalíticas. Muitas seriam as possibilidades de prosseguir pontuando esse diálogo que se estabeleceu entre antropologia estrutural e psicanálise a partir do encontro entre Lacan e Lévi-Strauss, mas Zafiropoulos já o fez com maestria, inclusive lembrando que, em 1911, cinco anos antes do Curso de Linguística Geral de Sausurre, Boas enunciara as leis da linguagem funcionando no nível do inconsciente, para além do controle dos sujeitos falantes, constituindo fenômenos objetivos. Em outras palavras, Boas antecipara o “algoritmo saussureano”, porém invertido, ao dar primazia ao significante sobre o significado, às nomeações sobre as coisas, o que muito influenciou Lacan, especialmente a partir da leitura da Introdução à obra de Marcel Mauss, redigida por Lévi-Strauss.31 Psicanálise e antropologia, a partir de então, não falariam mais de corpos sem qualificá-los como necessariamente simbólicos, corpos que só existem após serem concebidas e consensuadas, socialmente, as substâncias que os compõem, os limites que os traçam, as diferenças que os separam e os unem, as purezas e impurezas que produzem.

Corpo: produto e suporte de representações sociais


Uma antropologia interpretativa, simbólica, hermenêutica Embora Zafiropoulos lamente Lévi-Strauss não ter considerado as contribuições de Lacan para a antropologia da mesma forma que Lacan considerou as da antropologia para a psicanálise,32 talvez seja possível afirmar que outros antropólogos e outras antropologias, especialmente a partir de 1960, passaram a considerar cada vez mais centrais questões referentes à produção de sujeitos, de subjetividades, de corporalidades e de incorporações no fazer antropológico.33 O período pós Segunda Guerra Mundial foi, sem dúvida, um marco nessa mudança de postura pela qual passaram muitos antropólogos, pois se tornou comum o engajamento de vários deles em debates politizados que lhes exigiam posicionamentos éticos relativos a suas presenças em campo, seus papéis nas universidades, suas inserções em governos e organizações nacionais e internacionais. Conforme já apontei anteriormente, o papel de antropólogos como intérpretes privilegiados de “seus observados”, a ponto de se arvorarem seus porta-vozes (autoridade etnográfica), começou a ser posto em xeque a partir da segunda metade do século XX. Debates, por exemplo, sobre a tradução de categorias nativas dos grupos pesquisados para as línguas vernáculas dos antropólogos levantaram o tema dos limites e potencialidades de comparações, uma vez que já havia certo consenso em torno das lições de Boas, Mauss e LéviStrauss de que nomes criam coisas, de modo que nomes diferentes criam coisas com alcances distintos. Neste novo e complexo território em que símbolos e linguagens se tornavam centrais, era preciso admitir que se estava não mais no terreno da observação, ainda que participante, mas no da interpretação, em que o intérprete também é criador de categorias e portanto de coisas, pois opera, ele próprio, como filtro, ajustando significantes e significados de acordo com as posições que assume. Será a Antropologia Hermenêutica, Simbólica ou Interpretativa, a partir especialmente dos trabalhos do antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1906-2006), a vertente que mais investirá em um conceito semiótico de cultura: “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.34 Os trabalhos de Geertz tiveram tamanho impacto sobre as gerações por ele formadas, direta ou indiretamente, que alguns de seus “discípulos”, a partir dos anos 1980, levaram ao limite a problemática da relação observador-observado, apontando seu caráter essenStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

32 Ibid., p. 15.

33 Vale de Almeida, O corpo na teoria antropológica (2004)

34 Geertz, A interpretação das culturas (1973/1978, p. 15).

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35 Schritzmeyer, Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatralizado (2002).

36 Balandier, O Poder em cena (1982).

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cialmente politizado, negociado, filtrado pelas posições e interesses envolvidos. Esta constatação levou, rapidamente, à crítica da autoridade etnográfica, ao descrédito da escrita neutra do pesquisador, e à reiteração de que “culturas” são processos polissêmicos, sendo etnografias, portanto, representações que devem respeitar tal polissemia e, consequentemente, se aproximar mais de narrativas ensaísticas do que de relatórios objetivo-científicos. Os próprios antropólogos como corpos simbólicos que interagiam com seus interlocutores estavam em análise e em foco. Deflagradas estas novas frentes metodológico-teóricas da antropologia do final do século XX, aqui meramente pinceladas, poucos antropólogos se furtaram ao questionamento das fronteiras entre a antropologia como “ciência” e como experimentação ou arte da crítica cultural. Nesse território floresceram muitos estudos antropológicos marcados por fronteiras e interdisciplinaridades. É o caso da chamada antropologia do corpo e da saúde, dos estudos de gênero, sexualidade, fases da vida, “ciborgues”, tatuagens, vestuário e estudos de antropologia da performance e do direito, como foi o caso da pesquisa que desenvolvi em meu doutorado. Meu trabalho de campo antropológico se deu nos cinco tribunais do júri da cidade de São Paulo, entre 1997 e 2001, período em que acompanhei, como participante das “plateias” de plenárias, mais de 100 sessões de julgamento envolvendo crimes de homicídio doloso, tentados ou consumados.35 Analisei o júri como um jogo de persuasão, a partir dos próprios depoimentos de seus “atores”, concluindo se tratar de um ritual lúdico e teatralizado em que os corpos dos personagens se comunicam, o tempo todo, simbolizando mais posições socioinstitucionais e crenças coletivas do que identidades individuais e particulares. Ações ordenadas, falas, gestos, expressões corporais de natureza predominantemente simbólica se desenvolvem em momentos apropriados das sessões e inspiram atitudes de lealdade, respeito, reverência a valores que se materializam nos votos dos jurados. Tais ações sempre transcendem o acontecimento específico, narrado nos autos processuais, e alcançam dramas básicos da existência humana, fazendo-nos, portanto, voltar a Lévi-Strauss, com “O feiticeiro e sua magia”, e concluir que os sistemas de justiça e, em seu interior, o Júri, são sistemas de poder que produzem efeitos comparáveis às ilusões criadas pelo teatro, pelos “espetáculos xamânicos”, uma vez que a arte de governar e a arte cênica são inseparáveis.36 Mas além de concluir que as encenações de julgar dramas de vida e morte nos tribunais do júri têm como um de seus resultados mais marcantes a sacralização da instituição “Justiça” e o revigoramento da etiqueta e da estética sociais, também apontei, seguindo os passos de Geertz, que tais encenações podiam ser lidas como Corpo: produto e suporte de representações sociais


textos literários, oral e performaticamente narrados, cujas palavras e principais expressões corporais advinham de um vocabulário de sentimento em constante criação e recriação.

Polemizar para concluir Brincando de espiral com o ponto de partida e de chegada deste artigo – a noção de corpo como produto e suporte de representações sociais –, talvez seja possível arriscar a afirmação de que psicanálise e antropologia se emparelham no desafio de interpretar outras interpretações, buscando o que elas significam para os vários sujeitos-interlocutores-inintérpretes. Os motivos que levam psicanalistas e antropólogos a tais buscas e construções interpretativas talvez sejam, em parte, convergentes e, em parte, divergentes. A psicanálise parece assumir, mais diretamente do que a antropologia, o compromisso de colaborar para que sujeitos que expressam sofrimentos (ou que, justamente, não conseguem expressá-los), obtenham meios de elaborar novos significantes e significados para suas vidas. Uma certa antropologia, a meu ver, também assume compromissos ético-políticos de desbancar certezas e naturalizações, socialmente construídas, oferecendo caminhos alternativos para a interpretação de “sofrimentos” relacionados a pré-conceitos, fobias sociais (xeno/ homofobias, por exemplo), processos de marginalização, ostracismo, estigmatização. Talvez, em um primeiro momento, assim como em um trabalho psicanalítico, os desarranjos que as conclusões de certos trabalhos antropológicos produzem impliquem mais dor do que alívio, mais desconforto do que conforto, porque pós-conceituam pré-conceitos, contrariam o “naturalmente correto”, “bom”, “melhor”. Sugiro que psicanálise e antropologia, cada uma a seu modo, elaboram projetos ético-políticos e que esses, embora multifacetados, ao menos em um aspecto são convergentes. Essas duas áreas das humanidades e do simbólico estão empenhadas em investir na capacidade que os seres humanos possuem de, em interlocução, (re) conhecerem e intensificarem seu potencial criativo. Sob um solo democraticamente fértil, propício à semeadura de diferenças, talvez isto represente um projeto comum de investimento na diversidade das culturas humanas, em formas cada vez mais múltiplas de “humanidade”; formas que não lutem para se manter intactas e herméticas a ponto de se confrontarem rumo à destruição, tampouco que abram facilmente mão de suas peculiaridades para sobreviverem (o que não deixa de ser uma forma de destruição; formas que, como diria Lévi-Strauss,37 sejam, justamente no exercício de sua diversidade, “uma contribuição para a maior generosidade das outras”. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

37 Lévi-Strauss Raça e História 1951/ 1993, p. 366

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095427

VALE DE ALMEIDA, M. O corpo na teoria antropológica. In: Revista de Comunicações e Linguagens, 33, p. 49-66, 2004.

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ZAFIROPOULOS, M. Nossa arqueologia crítica da obra de Lacan: Lacan e as ciências sociais. Lacan e Lévi-Strauss. In: Rev. de Estudos. Lacanianos [online], vol.2, n.3, 2009, p. 1-16.

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v2n3/v2n3a04.pdf

Resumo Diante do desafio de apresentar um pouco do muito que a antropologia concebeu e concebe sobre corpo, sofrimento, doença, sintoma, tratamento e cura, proponho um caminho que, certamente, está repleto de filtros e, portanto, de lacunas. Trata-se de uma leitura possível, dentre várias. A intenção, mais do que abordar conceitos e teorias, é pontuar ideias que possam interessar a psicanalistas, uma vez que psicanálise e antropologia, em seus primórdios, no final do séc. XIX, compartilharam dilemas sobre as limitações e potencialidades dos paradigmas das ciências físicas e naturais, os quais as levaram a se instalar nos territórios do simbólico, dimensão que estava e prossegue no limiar do que muitos consideram “ciência”. A proposta é indicar algumas das principais conquistas da antropologia nesses territórios, bem como seu atual engajamento em discussões acadêmico-políticas pertinentes às noções de corpo e corporalidade.

Palavras chave Antropologia e psicanálise; corpo; natureza e cultura; territórios do simbólico.

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Abstract Facing a challenging task, to present a little part of Anthropological achievements on body, suffering, disease, symptom, treatment and cure, I suggest a way which certainly will be full of mediations and, therefore, omissions. This is a possible interpretation among others. The objective, more than discuss concepts and theories, is to arrange ideas that might interest psychoanalysts. In early XIXth Century, Psychoanalysis and Anthropology shared common questions on natural sciences` limits and potentials. Those common grounds took them to the territory of the symbolic, which was and still is in the threshold of what many consider “science”. The purpose is to indicate some of the main achievements of Anthropology in these territories, as well as its current engagement in academic-political debates referring to concepts of body and corporality.

Key words Anthropology and Psychoanalysis; body; nature and culture; territories of symbolic.

Recebido 25/11/2010

Aprovado 10/12/2010

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direção do tratamento

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a- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS4 123

Tatiana Carvalho Assadi Em resposta a Vauthier, Lacan, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), fará uma consideração essencial sobre o doente psicossomático que permite inúmeros desdobramentos na clínica psicanalítica. Sua orientação é a de que acontece algo com estes sujeitos, que é da ordem do escrito, e na maioria dos casos os psicanalistas não sabem lê-lo. “Tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa que se oferece como um enigma...”5

Marcas como escritos na pelLe Glícia6 tem vitiligo na cintura, parte interna dos lábios e pontas dos dedos. Diante de seus treze anos não se questiona sobre esta lesão de pele, não há sequer uma palavra sobre a afecção, ao contrário, negligencia os cuidados necessários com o corpo manchado. Na oposição é este corpo, fonte de seu olhar, dado a ver, que a incomoda a ponto de construir um sintoma anoréxico. Suas palavras recaem sobre o corpo esquálido marcado pela escassez e privação da alimentação. Nada come, todavia sempre come, mesmo que nada. São as palavras que a alimentam. Mulata, nasceu branca de olhos verdes e depois de um mês de vida, após uma grave doença que a deixou roxa, sua tez, olhos e cabelos mudaram de cor e forma. Restou-lhe como um possível traço de identificação o Vitiligo7 que lhe deixa marcas como escritos na pele e revela na carne a presença do pai, branco de olhos claros. — Sou como meu pai, é ... como meu pai. Como, meu pai8 — é uma das primeiras falas da adolescente nas entrevistas preliminares. — Como, meu pai? — este foi um dos manejos interventivos diante de seu dito. Para o espanto, sua resposta veio de pronto: — Sim, como meu pai. Como! Completo: — E você diz não comer nada. — Sim, como meu pai, sou como meu pai. Quando nasci me deram o nome de Glícia por ser muito branca e o apelido de Grilo por gritar muito. Meu pai também é um Grilo. Ele Grilo, eu Grila. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 O título deste artigo faz referência: ao nome pelo qual a analisante se apresenta; ao órgão pele; ao objeto a e ao L – letra que foi suprimida do discurso da menina e retorna na cadeia com o tom de um giro discursivo, causação subjetiva. Estas serão questões construídas ao longo deste texto. 2 Uma primeira versão: ASSADI, T. C. O FPS como escrito pelo corpo e a tática do analista. Trabalho apresentado nas Jornadas de Encerramento do Fórum do Campo Lacaniano-SP 2008, dezembro de 2008: São Paulo, Brasil. O trabalho integral será publicado: ASSADI, T. C. a-peLle. In RAMIREZ, H., ASSADI, T. C. & DUNKER, C. (org). A pele como litoral: psicanálise e medicina. São Paulo, Editora Anna Blumme, no prelo. 3 Este artigo faz parte de minha pesquisa de Pósdoutorado realizada na Universidade de São Paulo – Psicologia Clínica que está sendo subsidiada pela FAPESP-SP, e das pesquisas realizadas pela antiga Rede de Psicossomática do Fórum do Campo Lacaniano e atual Rede de Pesquisa em Sintoma e Corporeidade. 4 Optei em utilizar as siglas FPS em vez de escrever Fenômeno Psicossomático para manter ressonância com o tema da letra presente no artigo. 5 Lacan, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975/ 1998. p. 13-14).

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6 Nome ficcional de uma

analisante, participante do Projeto de Pesquisa: Aspectos Psicológicos do paciente dermatológico – USP-SP, FCL-SP e UMC-MC. Optei em manter uma relação direta com seu nome próprio para que homofonicamente a explicitação e discussão do caso pudessem ocorrer.

7 A opção em manter a grafia da palavra vitiligo em negrito, letra maiúscula e em itálico é, sobretudo, para alinhavar a palavra ao caso clínico. 8 A ausência das aspas ao longo do texto é proposital. Minha opção foi a de manter a fala da analisante sem aspas para produzir maior fluidez na leitura. 9 Menção ao texto Freudiano O Estranho (1919), Unheimlich em alemão, lugar em que o sufixo un nega a familiaridade do heim. Ou seja, algo estranhamente familiar me provocou a escuta.a 10 A impressão que tive neste primeiro tempo é que as estruturas de linguagem, sobretudo a metáfora e a metonímia, estavam postas de fora de sua cadeia associativa.

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Como meu pai. — Qual é o grilo? — insisto. — Ele Grilo, eu Grila. Imediatamente uma sensação de unheimlich9 me flagrou. A intervenção rebatia na escuta de Glícia e retornava como que esvaziada de sentido; era tomada ao pé da letra,10 somente o enunciado sobressaía. Outras tantas supostas intervenções adquiriram o mesmo estatuto, um emudecimento subjetivo ocupava o cenário destas entrevistas. Perguntava-me sobre o tom, a forma e mesmo o tempo do sujeito desaparecido que ali falava. Em uma série de sessões preliminares à análise, em identificações com o pai e recusa identificatória com a mãe, Glícia introduz um nome em determinado ponto de seu enunciado: Elmo. Naquele tempo, ao ouvir esta palavra, me perguntava o que seria Elmo,11 nada sabia sobre isso ou mesmo esse ser. Pedi uma associação, e ela categoricamente explicou que era... — Um moço que tinha cabelos coloridos, meio diferente e muito sentimental. Mais uma vez capturada pela rede imaginária, intervenho: — Cabelos coloridos como os seus? Ela nada escuta. Vale ressaltar que sua mãe é cabeleireira e a toma como cobaia nos tingimentos, penteados e cortes das madeixas. Logo, cada vez que a recebia para as entrevistas seus cabelos estavam com cor e forma diferentes. Repete mais adiante em outra sessão preliminar: — Queria ser o Elmo. Não pude deixar de perguntar: — Elmo? — Sim, Elmo. — Elmo? Sim Elmo — intervenho. Glícia, pela primeira vez, esboça um sorriso maroto e completa: — Elmo é da vila Sésamo, do tempo do meu pai, não quero ser bicho. É Emo, os Emo (suprime a letra s) — ele é gay e sensível. Está sempre com o rosto roxo, diferente. Só usa preto, e branco é seu corpo. Necessariamente faço uma pequena digressão para remeter o leitor a um episódio fundamental surgido por meio do discurso da menina. Ela conta que sua mãe é mulata e o pai, branco, o que gerou preconceito racial por parte da família paterna. Certa data, quando a mãe estava grávida de Glícia, uma tia, irmã do pai, fez um comentário sobre a criança que nasceria, provocando-lhe certo mal-estar. Ela acusou a esposa do irmão de sujar a família com a vinda do bebê, pois preto é cor de sujeira e branco, de paz. Retomemos a série interpretativa no caso de Glícia: — Você disse Elmo quando queria dizer Emo, Glícia — enfatizo a- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS


a letra L que se repete em Elmo, Glícia, Dalton (nome do pai) e em Grila, Vitiligo. Glícia conclui: — Emo sou eu!

Interpertar na pelLe Toda interpretação, segundo Freud, pode produzir modificação no teor do discurso associativo ou modificação no processo de causação do sujeito. Conforme pronunciamento de Ana Paula Gianesi,12 a causação do sujeito pode ocorrer por duas vertentes: pelo significante ou pelo objeto a. Quando ocorre pelo significante, considerado causa material do sujeito, acontece o que se denomina determinação simbólica, o significante propõe-se endereçado ao Automaton, à repetição. Numa outra possibilidade, quando a causação subjetiva é decorrente de tropeços, do objeto a, ou seja, daquilo que não cessa de não se escrever — uma determinação Real —, o endereçamento é inevitavelmente à Tique, ao encontro. Assim, ora o sujeito pode ser causado pela repetição significante, ora pelo encontro com o objeto a. Em A Direção do tratamento e os princípios de seu poder,13 Lacan discutirá o lugar do analista, sua quota de pagamento e seu grau de liberdade, construídos nesta direção. Ele o faz advertindo-nos que a liberdade conquistada será medida por suas ações tática, estratégica e política. Logo, o preço pago pelo analista pelo seu próprio ofício incide em suas palavras, pessoa e ser; em decorrência disso a sustentação da práxis surge em suas manifestações: interpretativas, transferenciais e de falta-a-ser. Todavia, neste mesmo texto as formas de interpretação propostas denotam certa insuficiência ao tratarmos a clínica do FPS14 15. Lacan convida a questionar a tradução como sendo o precioso instrumento tático do analista, funcionando tanto como decifração da diacronia das repetições inconscientes quanto na introdução na sincronia dos significantes. Como a tradução que versa ao sentido, suspenso no FPS,16 pode ocorrer? Glícia não se captura pelo deciframento significante — abertura para o inconsciente, outrora, qual possibilidade haveria como direção do tratamento neste caso? Por certo as categorias apresentadas por Allouch17 e discutidas anteriormente por Assadi e Dunker18 servirão como amplitudes para as condições interpretativas citadas no referido texto. São estas: tradução, quando a interpretação é regulada pelo sentido; transcrição, quando edificada no som; e finalmente transliteração, quando a interpretação é regulada pela letra. Allouch, na introdução de Letra a letra, denunciará a tese: “Toda Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

11 Vale relembrar que

a palavra me causou um certo incômodo, o que me fez perguntar a duas colegas analistas sobre o seu significado: uma delas fez uma referência a Elmo como armadura e ao personagem da vila Sésamo, enquanto a segunda, que tem uma filha adolescente, me disse que era Emo, uma espécie de tribo que tinha como marca as roupas pretas, cabelos idênticos e que eram caracterizados pela tristeza. A partir dessa conversa fiquei mais atenta a esta palavra que veio a se tornar um nome do sujeito.

12 GIANESI, A . A materialidade significante e a causa real na direção do tratamento. Trabalho apresentado na Jornada Interna do Fórum do Campo Lacaniano-SP. 2008, dezembro; São Paulo, Brasil. 13 Lacan, J. A Direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998, p. 593).

14 Utilizo propositadamente as siglas para fazer referência ao fenômeno psicossomático. É um manejo de escrita, visto que existem algumas hipóteses sobre o fenômeno que precisam ser desconstruídas, o recurso de preservar as letras F P S designa sua característica de letras juntas e de impossibilidade de leitura.

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15

Sugiro a leitura de dois artigos em que trabalho a direção do tratamento em casos clínicos com aparição de fenômenos psicossomáticos. Assadi, T. C.; Pereira, M. E. C. (2003) O eclipse da mulher na presença do fenômeno psicossomático. Psychê, São Paulo, p. 81-96. & ASSADI, T. C. e outros. (2003). O menino e o efeito pirilampo. Um estudo em Psicossomática. Ágora, Rio de Janeiro, v. 6, p. 99-114.

16 É absolutamente salutar afirmar que o FPS é um fenômeno, e isto quer dizer que pode estar presente em qualquer uma das estruturas clínicas, a saber: neurose, psicose ou perversão. 17

Allouch, J. Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. (1995).

18 Assadi, T. C. Dunker, C. I. L. Alienação e separação nos processos interpretativos em psicanálise. (2004, p. 85-100). 19

Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. op. cit., p. 12.

20

Nasio, J. D. Psicossomática: as formações do objeto a. (1993).

21 Lacan, J. O lugar da psicanálise na medicina. (1966/ 2001, p. 32). 22

Lacan, J. O seminário: livro 20 Mais, ainda. (197273/1985).

23

Lacan, J. O seminário: livro 23: O sinthoma.(197576/ 2007).

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formação do inconsciente é um hieróglifo, no sentido inicial em que resiste à compreensão imediata, não é transparente e só se deixa ler mediante um trabalho de deciframento”.19 Partindo desta ideia, retoma Lacan quando ele considera que esta leitura teria uma relação absolutamente particular entre significante e letra. Aliás, para muitos autores, dentre eles, Nasio,20 o FPS não é considerado uma formação de compromisso do inconsciente; sua tese é que ele obedece às regras do objeto a, mantendo-se emparelhado à alucinação, e a passagem ao ato seria tomada como uma formação do objeto a. Mas, esta posição não é unânime entre os psicanalistas lacanianos que estudam os fenômenos da corporeidade. Foi em 1975 que Lacan sugeriu o tema do psicossomático emparelhado à ideia de signatura, de hieróglifo, de traço unário. Sobretudo, me debrucei sobre estas premissas para abordar o elemento tático neste caso clínico apresentado pela lesão de órgão, ou como pronunciado por Lacan em 1966,21 por uma questão epistemo-somática. Minhas indagações estavam postas: se existe um escrito no corpo, dado a não ler, qual a responsabilidade do analista diante desta clínica? A interpretação, como um deciframento, obedeceria a qual lógica no FPS? A existência do hieróglifo pressupõe um deciframento para que o escrito tome o vulto de leitura. Pois bem, ler o escrito tem valor de deciframento. Isto quer dizer que decifrar o escrito seria abrir as trancas do inconsciente. Seria preciso decifrar a lesão de órgão de Glícia para desvelar o inconsciente? Como fazer isto, se justamente ela carece de associação, de sonhos, de chistes e de atos falhos? Até mesmo a anorexia não possui o estatuto de um sintoma analítico. Qual a possibilidade de trabalhar com esta menina que não adere ao seu tratamento de Vitiligo e não abre sua escuta para uma decifração? Incitar um sentido ao seu fenômeno pouco ou nenhum efeito haveria de produzir. De algum modo, seguindo a pista de Lacan sobre o trabalho de decifração dos hieróglifos da pedra Roseta de Champolion, me aproximei de uma brecha de trabalho com esta clínica. O texto aparecia truncado na pedra, sua formação repetia-se em alguns outros lugares, o que denunciou sua característica de cartucho; assim sendo, ali somente poderia estar escrito um nome próprio. Muito bem, Champolion supôs que o nome fosse Ptolomeu, o que se confirmava pelo número de caracteres recorrentes tanto na escrita hieroglífica deste cartucho quanto na escrita grega: eram oito. Lacan22 23 recomenda que decifrar implica pôr em jogo uma outra dimensão (dit- mension24), um saber textual, que dá por si só sua certeza. Champolion, diante de dois cartuchos, num supostamente escrito Ptolomeu e no outro, o Obelisco de Philae contendo, também em suposição, o nome Cleópatra, utilizou como tática colocar o cartucho A, de Ptolomeu acima do cartucho B, de Cleópatra. A a- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS


leitura dos cartuchos obedeceu a dois princípios: o primeiro, que sua condição de leitura somente poderia ser efetuada da esquerda para a direita, enquanto o segundo ponto reverberaria sobre a condição da letra hieroglífica, obtendo um valor pelo lugar que ocuparia na ordenação do cartucho e, deveria, homofonicamente corresponder a alguma letra do alfabeto grego. Caso esta letra fosse encontrada com o mesmo valor em outro lugar ou no mesmo cartucho, inevitavelmente a decifração ocorreria. Tomemos o exemplo: tanto o cartucho A quanto o cartucho B possuem oito caracteres. Há repetições da letra hieroglífica em alguns lugares, assim a primeira letra do cartucho A foi representada por um retângulo, e a quinta letra do cartucho B, também. Por meio do princípio de substituição de uma escrita por outra, Champolion apostou que esta letra seria o equivalente ao P na escrita grega. E assim seguiu a decifração em relação aos demais caracteres. Esta operação pode ser nomeada de transliteração, aquilo “que escreve o escrito é igualmente aquilo mesmo que o define. O transliteral é o próprio literal, sua essência efetiva”.25 Ou melhor, a transliteração é a forma de passagem de uma escrita para outra escrita. Não há tradução, sentido proposto, tampouco som, transcrição necessária. Somente foi possível o enigma da pedra de Roseta ser decifrado a partir da substituição de uma forma de escrita por outra, de uma letra por outra, da hieroglífica pela grega e por tratar-se de nomes próprios impressos em um cartucho. Na proposta de Lacan, o FPS é assemelhado a esta escrita hieroglífica, como uma assinatura. A contento, manejar a interpretação pela via da transliteração talvez pudesse ser o indicativo de abertura do inconsciente diante desse fenômeno, um trabalho de Champolion. Todavia, cabe aqui fazer mais algumas considerações sobre o uso da interpretação na clínica psicanalítica. Um primeiro ponto que deve ser salientado diz respeito aos conceitos que tangenciam a clínica da interpretação, essencialmente ao conceito de inconsciente que envolve a formação do analista. Portanto, discutir aspectos relevantes sobre esta clínica é aviltar os aspectos éticos na psicanálise, necessariamente. Um segundo ponto versa sobre a condução da análise. Cabe ao analista assumir um lugar no discurso que seja sinalizado como retórica, dialética ou axiomática.26 Inclusive ao lugar do analista cabe seu estilo, sua diagnóstica, a transferência e os princípios no cerne do tratamento. Traduzindo em outras palavras, pode-se dizer que o analista se manifesta pela tática, estratégica e política na clínica. Tomemos exclusivamente a vertente da tática e nos debrucemos sobre os aspectos interpretativos. Abordar a interpretação pela via da lógica nos propõe interessantes articulações. Pode-se organizá-la em três subgrupos diretamente ligados à categoria aristotélica de impossível, a saber: significação, sentido e sexuação. Por meio desta pesquisa sobre os modos de intervenção na clínica analítica Dunker Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

24

Lacan ao falar de Joyce, o Sinthoma comenta sobre uma diz-mensão, uma mensão do dito. Ibid, p. 141.

25 Letra a letra. Op. cit., p. 145.

26 Dunker, C. Lacan e a clínica da interpretação. (1996).

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26 Ibid., p. 98.

27 Lacan, J. O aturdito (1973/2003).

28 Lacan e a clínica da interpretação. (1996, p. 116).

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aposta na ideia de que a lógica da interpretação obedeceria a princípios diversos de acordo com seus pressupostos primeiros. Naquilo que a significação se embasaria, sua consequência seria “... definida como efeito temporal do ato de fala”.26 Uma interpretação que teria como objetivo a significação denotaria o aparecimento do sujeito como efeito da própria significação; certamente, desta maneira, apelaria para a noção de estrutura e sua proposta estaria fundamentada na homofonia, na equivocidade como evidenciado por Lacan em O aturdito.27 Neste referido texto Lacan alerta para a evidência de que a intervenção possa estar sujeita a três contingências: homofonia, gramática e lógica. Tratemos de um exemplo clínico de uma destas formas de intervenção. Ao falar dos Elmo, a adolescente diz dos cabelos, momento em que intervenho e digo: — Cabelos coloridos como os seus? Remonto aqui as repetições homofônicas que Glícia pronuncia frequentemente. No entanto, como consequência da intervenção, não houve assentimento nem sequer recusa, o que denotaria seu caráter interpretativo, mas a consequência foi um ensurdecimento a esta fala. Retomando as hipóteses de Dunker. Uma outra possibilidade da lógica da interpretação seria a que diz respeito ao sentido, endereçando, portanto, para a noção de discurso na passagem da condição universal à existência. Estas formas gramaticais de interpretação se referem ao corte, à alusão e à citação. Uma outra mostração deste uso surge no momento em que Glícia traz o tema da identificação com o pai por meio do Vitiligo. Ela se refere às suas similaridades com o pai enfatizando: — Como meu pai — intervenho: — Como? Este tom alusivo entre o dito e o equívoco produz inconsistência ao produto do ato da fala. Neste caso em especial, a menina apresentou-se pelo sintoma da anorexia, marcando o comer como ato revogado de seu cotidiano. A introdução da palavra como poderia oferecer abertura ao tema da anorexia, ao da similaridade e ainda, libidinizando-o, ao ato sexual. Nada foi associado por Glícia, não houve nenhum tipo de surpresa neste sujeito diante do dito. Numa terceira tentativa, verificou-se que a intervenção da analista somente produziu efeito de interpretação ao versar sobre a lógica no que diz respeito à sexuação, no entrecruzamento entre estrutura e discurso. Este modelo seria bem traduzido pela vertente do enigma, que não se reduziria a uma pergunta, mas que seria a própria “?”.28 Minha hipótese é a de que esta “?” surgiu no que nomeei acima como transliteração, a rigor, pelo uso da letra enigmatizável a- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS


L a “?” se impôs. Interpretar na pelLe fez efeito pela supressão da letra, do L.

Tudo por um L- seja de letra ou de lixo Na leitura deste caso clínico fica evidente que ao ocorrer a passagem da palavra Elmo, tomado por Glícia como um nome próprio,29 cifrado, assinado, dado a não ler, para Emo, notoriamente com a supressão da letra L, funcionou, a posteriori, como causação do sujeito. Embora baseada na homofonia, a transliteração tem como princípio a suposição de diferentes sistemas de escrita. Pela introdução da letra L produziu-se uma série, até então não escutada por Glícia — ela somente a escutou pela ausência da letra. Busquemos a série: Elmo, Glícia, Grila, Dalton, Vitiligo — a letra L em sua presença introduz som àqueles que eram somente imagens, borrões na tela do sujeito. L faz encadeamento entre os nomes tomados por Glícia como nomes do sujeito, convocando o seu estatuto. Em sua supressão o L convoca o sujeito, de Elmo para Emo há sua causa. À analista somente foi possível escutar a supressão do L pela sua escrita e seu tom de pronunciamento: Elmo. Alguns psicanalistas, sobretudo baseados nas concepções feitas por Lacan30 sobre o emparelhamento do fenômeno psicossomático à debilidade mental e à psicose, constroem a hipótese de que nesta formação fenomênica não aconteceria uma holófrase total, mas especialmente uma holófrase local, situada no par S1S2, impedindo o deslizamento na cadeia significante.31 Todavia, isto não atestaria a ausência do desejo, sua foraclusão, o desejo estaria presente, contudo, suspenso. Os significantes, pelo mecanismo desta holófrase local, estariam congelados, gelificados, isto quer dizer, passíveis de remontagem à cadeia. Minha crença é a de que a Letra L funcionou como um conector que retorna à cadeia justamente pela sua supressão; assim os significantes podem obedecer às leis da linguagem: metáfora e metonímia. L conecta S1-S2, provocando o sujeito suspenso até outrora. Em decorrência desta conclusão, pode-se precisar a causação deste sujeito, sendo que Glícia a partir deste ponto alterou significativamente sua relação com sua lesão- vitiligo.32 A letra L, outrora não escutada, gelificada, cifrada, pela sua escrita, abre questões para a sexualidade: do gay a recusa sexual. Do desejo pelo corpo magro e esquálido, assexuado, para as primeiras formas femininas. As manchas brancas da cor do pai se fecharam e não seria mais preciso que o vitiligo fosse um nome do sujeito para fazer sua filiação e endereçamento ao Nome-do-Pai. O corpo como Outro ... “O Outro, no fim de tudo se não tiverem ainda adivinhado, Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

29 O nome próprio foi

apresentado por Miller em sua conferência “Ce qui fait insigne” como uma insígnia – insigne-um signe. Isto quer dizer que é aquilo que se distingue, um traço diferencial, e que permite que os elementos possam ser colocados em série. Para ele, o nome serviria às relações que se poderiam distinguir entre o significante e a letra. No primeiro caso o nome versando sobre o significante endereçaria ao efeito de sentido e no segundo caso, como letra, é o efeito do signo de gozo. Estas construções advêm do artigo de Caldas H. A letra em Todos os Nomes (2001, p. 36).

30 Lacan, J. O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964/ 1985).

31 Hipótese defendida especialmente por Nasio (1993).

32 Grafei vitiligo com letra minúscula e sem negrito para mostrar a mudança de seu estatuto. Antes, Vitiligo era um nome possível do sujeito; neste momento é o nome de uma afecção de pele tratável. Glícia se apresentou à psicanálise pelo Vitiligo, pelas manchas brancas, após a causação subjetiva ela pôde tomar seu nome próprio para se dizer. 101


33 Lacan. J. A lógica do

fantasma. (1966-67/ 2008, p. 361).

34 Alusão a James Joyce. Publixo.

o Outro, lá como está escrito, é o Corpo!”,33 pode gozar sem ser lesionado. Não é necessário um escrito no corpo, como no FPS, basta que este corpo seja escrito, ou melhor, inscrito e possibilite um gozo decifrado. O L de letra e também de lixo34 por si só nada diz, não pode ser lido. Em consequência, é pela sua ligação como outra letra que ele oferece um estatuto ao sujeito antes não apropriado. Glícia pode ser um nome próprio sem a iluminação que o Outro demandou.

A – letra 35 Lacan, J. Seminário da identificação. (1961-62/ 2003).

36 Pommier, G. Naissance er renaissance de L’ écriture. (1993).

37 Rego, C. M. Traço, letra, escrita. Freud, Derrida, Lacan. (2003).

38 Lacan, J. A instância da letra no inconsciente. (1957/1998).

39 As identificações. Op. cit.

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Foi justamente mergulhado nas questões relativas à Identificação35 que Lacan propôs retomar sua tese sobre a linguagem que estrutura o inconsciente. Neste feito seu fio diretor foi dado pela origem da escrita. Pommier36 faz uma leitura desta retomada de Lacan recortando a concepção de inconsciente no cerne de seu ensino. Contrariamente a esta posição, outros psicanalistas rebatem esta tese dizendo que a proposta da convocação da história da escrita no cerne deste seminário serviu, especialmente, para evidenciar um limite explicitado na psicanálise e não para demarcar suas teorias sobre a escrita. Todavia, o que não provoca dúvidas nem sequer contradições é o pressuposto de que neste contexto a comunicação de Lacan nos presenteia com um belo debate sobre as vertentes distintas do significante: letra ou escrita. Seguindo esta pista, Rego37 elenca quatro momentos em que Lacan explicita as noções de traço, letra e escrita durante seus seminários e escritos. Para a autora, coube ao primeiro tempo o axioma: o inconsciente é estruturado como uma linguagem; ao segundo tempo a escrita tomou o tom de uma combinação significante e sua axiomática passou a ser lida em duas construções: sendo que a fala não a cria (a escrita), sequer a lê, a esta afirmação se contradiz uma outra: a escrita é uma função latente na linguagem. O texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud38 é o ponto principal de ancoragem da escritura lacaniana sobre uma teoria do significante e de seu funcionamento. É justamente a insistência significante que determina o sujeito. Diga-se de passagem, esta ação do verbo insistir é produzida pela letra que não faz parte do inconsciente, mas que efetua insistência no inconsciente. Numa segunda teorização de Lacan sobre o tema dirijo o leitor ao Seminário da Identificação,39 lugar em que uma imprescindível discussão sobre o nome próprio é evidenciada. Nestas concepções, o nome próprio é tomado como letra ou traço unário, já que os dois conceitos são equiparados. Nas lições 6 e 7, a afirmação é a de que o nome próprio é da ordem da escrita, porque endereça diretamena- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS


te ao significante objeto e, simultaneamente, a função da escrita é função do signo na medida em que este é lido como objeto. Neste mesmo trabalho sua discussão faz borda à ideia da letra como essência do significante e, inversamente, é justamente esta letra que distinguirá significante e signo. No que se depreende desses dois tempos traçados por Rego40 como reveladores da teoria da escrita e da letra na obra de Lacan, algumas consequências podem ser obtidas. Diria que a principal é relativa à clínica da interpretação, afinal, com as axiomáticas fica evidente a mudança de direcionamento teórico e clínico do ensino de Lacan. As concepções relativas ao sentido, ao imaginário, migram para os conceitos de Real e de gozo. Neste giro, outras construções sobre o tema podem ser encontradas no âmago do texto lacaniano. Acrescento aqui o texto Carta Roubada,41 que abre os Escritos de Lacan. Nele, embora confusões surjam em relação à distinção letra e significante, pode-se dizer que o significante Lettre remete à missiva e tende ao automatismo de repetição. Notoriamente surge uma pista a ser seguida na sua introdução a partir da metáfora Caput mortuum. Cabeça de mortos ou cabeça morta. É uma expressão utilizada, especialmente, pelos alquimistas com o intuito de traduzir aquilo que sobra de suas análises, o resto não líquido. Deste feito, é pertinente ler Caput mortuun como um bagaço, um resíduo que fica fora da cadeia, que é proibido de aparecer e que tende à frequente repetição, isto quer dizer que este resíduo pode ser considerado uma letra, como será trabalhada a posteriori. Recuperando as ideias trazidas por Rego, em um tempo três, representado especialmente pelo seminário livro XVIII, o escrito é consequência do discurso e a escrita é impossível tocar no Real do discurso.42 Mais uma consequência pode ser evidenciada. O conceito de letra, traçado por Lacan nos primórdios de sua Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud ou mesmo em sua Carta Roubada, conduz ao que faz instância no inconsciente, ideia basculada pontualmente pelos seminários XVIII e XX com a aparição do tema do Um que não entra na cadeia significante. Uma dessas representações pode ser portada pelas fórmulas quânticas da sexuação, a saber, no que diz respeito às funções: As funções só são determinadas a partir de um certo discurso. É no nível de funções determinadas por um certo discurso que posso estabelecer esta equivalência; o escrito é o gozo.43 Não é à toa que ele dedica posteriormente vários capítulos do seminário XX para dizer da função do escrito na carta de amor, ou melhor, a função da letra, diria, no inconsciente.44 “... Se falávamos da função do escrito enquanto uso a que se destina, falar da função da letra nos evidencia outro uso para o significante função, aquele da topologia, isto é, da função enquanto relaStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

40 Traço, letra, escrita. Freud, Derrida, Lacan. Op. cit.

41 Lacan, J. Carta roubada. (1955/1998).

42 Traço, letra, escrita. Freud, Derrida, Lacan. Op. cit., p. 198.

43 Lacan, J. O seminário: livro 18. De um discurso que não fosse semblante. (1971/2009, p. 120). 44 Ramos, Conrado. Apresentação na Formação Continuada do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo, Capítulo III, do seminário 20, de Lacan, no 1o semestre de 2009. p. 5-6. São Paulo, Brasil.

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ção entre conjuntos. A pista clara que Lacan nos dá para isso é a da comparação com a teoria dos conjuntos do grupo Bourbaki. Assim, a função do escrito em psicanálise nos remete a uma função que a letra assume neste momento, e que é o escrito da função: a função da letra é escrever a função, e não há nenhuma tautologia nisso. O emprego da letra pode ser o de nomear os conjuntos e subconjuntos (abertos ou fechados) e as relações axiomáticas entre eles. É nesse sentido que as letras levaram Lacan do grupo de Klein aos matemas dos discursos e, no seminário XX, às fórmulas da sexuação.”

45 Lacan, J. Lituraterra

in O seminário: livro 18: de um discurso que não fosse semblante. (197/2009).

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Outro desvio do fio condutor do texto faz-se necessário para que as categorias lógicas de Aristóteles tomem seu lugar. Lacan acrescenta à lógica de Aristóteles mais uma categoria que no classicismo do filósofo grego não foi levada em conta e que para a psicanálise como uma nova litura da logicidade pode incluir o sujeito em seus pressupostos. A introdução é a categoria de contingente, lido como o que para de não se escrever. Ao seu lado temos mais três categorias, ou seja: o impossível: o que não para de não se escrever; o necessário: o que não para de se escrever e o possível: o que para de se escrever. Neste texto me deterei exclusivamente na categoria aristotélica de impossível. O impossível é o que não cessa de não se escrever, como a intuição, o escrito, a mulher, o gozo e a letra. Contudo, dentre eles o escrito é uma tentativa de escrever o impossível, que existe a relação sexual. Seria o FPS uma tentativa de escrever aquilo que não se escreve? Ainda no seminário XVIII, na seção nomeada de Lituraterra,45 a letra assume para Lacan três aspectos distintos: litura (rasura), litoral (borda) e lixo (como trabalhada em Joyce – vide seminário XXIII). Como rasura, diz respeito ao apagamento; como litoral, faz borda; e como lixo, endereça ao resto, ao objeto a, à lituraterra. A letra não se lê. A letra L de Glícia num primeiro tempo de sua aparição, isto é, ao pronunciar a palavra Elmo surge como apagamento do sujeito. O nome próprio havia sido substituído por diversos nomes comuns, recebendo o estatuto de próprios e a letra só apaga quem lhe fala, faz litura. Como litoral a letra bordeia, envolve, desvia o sujeito, diria que aí o vitiligo pode surgir. As marcas espalhamse pelo corpo e fazem borda entre a menina branca e a negra, entre a boa e a má, entre a gorda e a magra. Mas, L pela transliteração, em seu estatuto de lixo, de resto surge pela sua supressão, então, se aproxima do objeto a. Pode-se ler que é pelo objeto a que a letra se encarna em vitiligo – letra L em Vitiligo. Como quarto e último tempo para a noção de escrita, Claudia de Moraes Rego constrói a hipótese de que ao longo do ensino de Lacan a escrita só se fez demonstrar enquanto impossível. Em princípio, sua retórica estava baseada na ideia de traço unário e em sua possibilidade de dizer, e posteriormente esta premissa foi substitua- pelLe: um estudo clínico sobre um caso de FPS


ída pelo tema do traço uniano que objetiva funcionar como marca da não-relacão sexual, do Um do Real. Sendo mais pontual, posso dizer que ao se referir a traço unário, Lacan está no campo das identificações, dos traços emprestados pelo outro, que buscam proporcionar o recobrimento da falta a ser e que ocupariam a função de signo, enquanto que ao introduzir a expressão il y a d’ l’un, ele abre o campo da não-relação que enfatiza o Um do Real, impossível de dizer e sempre encoberto pela fala. Por meio destes pressupostos a letra surge como efeito de discurso.46 A letra L é efeito do discurso de Glícia e o conector que transforma o FPS em fenômeno psicossomático, neste tempo, passível de leitura.

Momento de concluir: Eu sou! Neste texto pretendeu-se discutir a tática do analista em um caso de FPS, e o objetivo maior foi a demonstração clínica, lugar em que as intervenções foram fadadas ao fracasso. O modelo de interpretação proposto por Allouch, a transliteração, funcionou como um favorecedor na causação subjetiva da candidata à análise. Para tanto, foi preciso uma pequena discussão sobre algumas determinações relativas à clínica da interpretação, em especial, em sua vertente lógica e, tão fundamental quanto, uma apresentação sobre o tema da letra proposto por Jacques Lacan. A letra, neste caso clínico, foi a fonte interpretativa, e é de prioridade citar que só pôde ser escutada pela analista pela sua supressão e pela ênfase na palavra, marcando sua escrita. L como lixo, como resto, como objeto a trans-lite(o)ral-mente convocou o sujeito eclipsado no fenômeno. O nome próprio Vitiligo, Grila, Elmo perdeu seu estatuto gelificado e conduziu a apropriação do nome próprio, filial: Glícia. Este nome como letra, como marca de distinção, opera como ressonância, lugar em que seu traço do fonema já é uma escrita.47 Laurent,48 lendo Lituraterra e atribuindo à letra o lugar de litoral, comenta: “Quando o sujeito não pode ser representado no Outro, quando o Outro não é mais o lugar onde ele se aliena, se inscreve, mas torna-se o deserto de acoisa, então o sujeito se agarra ao seu ponto de amarração, o objeto a e a letra, diz Lacan, torna-se litoral.”

Glícia, alienada ao seu fenômeno, ao Vitiligo como aliteração49 no seu corpo, repete sua alienação ao Outro. Separada de seu fenômeno, respondendo em nome próprio50 51 faz da letra, litoral. A pele, fonte escópica e manchada, toma o lugar de resto, de reStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

46 Mais, ainda. Op. cit. (1972-73). 47 Seminário da identificação. Op. cit. 48 Laurent, E. La lettre volée et le vol sur la lettre. 1999.

49 Repetição das mesmas letras, sílabas ou sons numa mesma frase. 50 Agradeço a Silmia Sobreiro a intervenção durante a apresentação de parte deste texto na Jornada interna do Fórum do Campo Lacanaiano, dez de 2008, lugar em que fez algumas considerações sobre o nomepróprio e o traço. Comentou que quando já existe a função do traço unário, só é possível dizer que alguém tem um nome, na medida em que percebe a relação entre emissão nomeante e algo que é da ordem da letra.

51 No seminário 23, na aula IV de 20 de janeiro de 1976, Lacan diz: “É a fonação que transmite a função própria do nome...”. (1976, p. 74). 105


52 Referência ao A (bar-

rado) mulher não existe. Lacan, seminário livro 20.

síduo, de objeto a e pode ser nomeada de pele do sujeito. A (barrado) pele não existe,52 só há a-pele que duplicando a letra L homofonicamente remete ao verbo appeler, forma com que no idioma francês alguém se apresenta: je m’appele. a-pelLe: objeto a, pele como maior órgão do corpo humano, L da letra aliterada no corpo e appelle, eu me chamo. Eis a construção clínica deste caso.

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Resumo Glícia inicia tratamento para o vitiligo sem qualquer tipo de adesão ao trabalho medicamentoso. Ela procurou análise em função das recomendações médicas e da exigência da sua mãe; naquele momento algumas questões relativas ao corpo surgiram para além da lesão de pele. Todas as interpretações foram refratárias à escuta da adolescente, o que convocou a analista ao questionamento do manejo clínico. O objetivo deste artigo é mostrar como a forma interpretativa da transliteração provocou a aparição do sujeito dividido e ainda, qual a função de uma letra não escutada durante as entrevistas preliminares poder ser a marca da entrada em análise e da leitura como tática clínica neste caso de fenômeno psicossomático.

Palavras chave Fenômeno psicossomático, transliteração, interpretação, letra, psicanálise.

Abstract Glícia began treatment for vitiligo without any adherence to medical work. She sought analysis according to medical recommendations and the demands of her mother, at that time questions have arisen concerning the body beyond the skin lesion. All interpretations were refractory to teenager´s listening, who called the analyst to make questions of the clinical management. The aim of this paper is to show how the interpretative form of transliteration caused the split subject, and also, what is the function of one letter that not been heard during the preliminary interviews may be the mark of entry into analysis and show the reading as a tatic clinical in this case of the psychosomatic phenomenon.

Keywords Psychosomatic phenomenon, transliteration, interpretation, letter, psychoanalysis.

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Recebido 26/11/2010

Aprovado 20/12/2010

Stylus Rio de Janeiro nยบ 21 p. 1-140 dezembro 2010

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A relação do neurótico obsessivo com seu corpo Gabriel Lombardi O sintoma, nó e tempo da estrutura subjetiva Em psicanálise, muitos progressos conceituais se desgastam e se esterilizam mais ou menos rapidamente com o uso. Para revitalizálos é conveniente levar em consideração os escotomas e a surdez parcial que induziram. Quero, em primeiro lugar, chamar a atenção sobre os efeitos da concepção que cristaliza uma oposição entre o sintoma clinicamente manifesto e a estrutura oculta. Por um lado, dá à estrutura uma profundidade que somente é produto de uma psicologização da psicanálise – consistente em supor uma espessura sincrônica a algo do qual só temos certeza de que se desdobra na diacronia da cura. O inconsciente é menos profundo do que inacessível para o aprofundamento consciente, assinala Lacan,1 e é lasciate ogni speranza à entrada de A Psicanálise e seu ensino. Em uma análise não se trata tanto de aprofundar, mas de abrir os sentidos do sintoma, os sentidos falsos, os que se apoiam nos ideais e na fantasia, os que podem cair e deixar lugar à raiz do sintoma que alcança o real e que conserva um sentido inclusive aí. Por outro lado, esperando o fundamental no oculto, essa concepção favorece o desconhecimento do sintoma naquilo que tem de mais evidente e define seu tipo clínico. Uma vez cristalizada a oposição entre sintoma manifesto e estrutura oculta, tudo se confunde. Diagnostica-se, por exemplo, uma histeria por meio das fantasias ou dos temas (a outra mulher), e as definições básicas não são consideradas: histeria quer dizer conversão, histeria quer dizer – na leitura de Lacan – que se mente ao parceiro mediante a inscrição do sintoma no corpo; em outras palavras, quando o sintoma se inscreve no corpo encontra-se apto ao laço social. Será necessária uma análise, claro, para conseguir que a Dora de plantão revele sua participação no sintoma por meio de sua cumplicidade com o Outro e com a Outra, de sua concepção oral do polegar e da mulher – se conhece chupando –, de sua apelação, via fricção, à orelha do irmãozinho e logo do analista. Mas o que faz de Dora uma histérica é o lugar onde seu sintoma se inscreve. O corpo, não o pensamento nem a conduta como na neurose obsessiva, não o organismo como no sintoma hoje chamado psicossomático, não o delírio fora de discurso como na hipocondria. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 Lacan, A psicanálise e seu ensino (1957/1998, p. 438).

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Isso não impede sustentar em cada caso a pergunta de Freud, qual é o sintoma?, nem encorajá-lo para que dê manifestações mais claras e explícitas de seu texto e dos sentidos que expressa. A histérica, mesmo que saiba que diz com o corpo, não sabe o que diz com o corpo, não sabe o sentido nem sequer o texto daquilo que se escreveu no corpo, na cercania de outra entidade de superfície que é a borda pulsional. Freud explica que o neurótico obsessivo também desconhece o texto das representações obsessivas que o atormentam, nem Hans, o menino fóbico, sabe o que, exatamente o que, lhe dá tanto medo. Mesmo quando já se diagnosticou o tipo clínico, a pergunta qual é o sintoma? merece ser sustentada ao longo do tratamento. A espessura do sintoma não é sincrônica, é diacrônica. Concebê-la assim permite evitar suposições inúteis, e deve-se conceber a estrutura não na profundidade, mas nos desdobramentos e redobramentos do tempo. Há outro traço essencial do sintoma que somente o tempo permite situar: o que Freud chamava seu “traço conservador”, que faz dele não somente um elemento definitório, mas também definitivo da estruturação do sujeito. No historial de Dora, Freud escreveu:

2 Freud, Fragmentos da

Já constatamos que, com bastante regularidade, um sintoma corresponde simultaneamente a diversos significados; acrescentemos agora que também pode expressar diversos significados sucessivamente. No decorrer dos anos, um sintoma pode alterar um de seus significados ou seu sentido principal, ou então o papel principal pode passar de um significado para outro. Há como que um traço conservador no caráter das neuroses: uma vez formado, se possível, o sintoma é preservado, mesmo que o pensamento inconsciente que nele encontrou expressão tenha perdido seu significado. (...) Muito mais fácil do que criar uma nova conversão parece ser a produção de vínculos associativos entre um novo pensamento carente de descarga e o antigo, que já não precisa dela. Pela via assim facilitada flui a excitação da nova fonte excitante para o antigo ponto de descarga, e o sintoma se assemelha, segundo as palavras do Evangelho, a um odre velho repleto de vinho novo.2

análise de um caso de histeria (1905[1901]/1996, p. 58).

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Isso leva Freud a conjecturar que somente em um sentido prospectivo uma terapia é causal; ela não incide sobre os sintomas já produzidos – ravinas incuráveis – no máximo, previne a formação de outros novos. A vigência desse traço conservador é irrefutável mesmo cem anos depois de sua descoberta, confirma-se hoje a partir dos resultados obtidos no dispositivo do passe. Uma vez vazio das significações que lhe dá a fantasia, o velho odre persiste, boquiaberto e disposto a ser cheio com novos sentidos. Vale dizer que não toda exigência pulsional pode ser tramitada e satisfeita em ato, A relação do neurótico obsessivo com seu corpo


porque resta sempre uma margem de pulsão insatisfeita que sintomatiza uma parte do gozo na vida de qualquer um. Até mesmo o Picasso mais extraordinariamente capaz de sublimação, em algum momento do dia, padece o pulsional – não o atua, o padece. Por que não aconteceria ao ex-neurótico que, mesmo curado em sua análise, mesmo se adquiriu a aptidão de analista, permanece sujeito boa parte de seu dia, não vive permanentemente na destituição subjetiva requerida por seu ato de analista?

O obsessivo e o corpo A definição de gozo proposta por Lacan – o gozo é a relação do ser falante com seu corpo3 – permite vislumbrar por que o histérico é o analisante por excelência. O sintoma histérico reúne duas condições inigualáveis: a primeira é que, desde o início, está inscrito então no lugar do gozo – o corpo –, a segunda é que se trata de um sintoma social capaz de enlaçar-se com o desejo do Outro. O sintoma histérico é, por isso, aberto à interpretação. Muito diferente é o caso da neurose obsessiva, que é “um assunto particular do enfermo”. O sintoma e o lugar do gozo aparecem divorciados, incomunicáveis um a respeito do outro, e, quando um e outro se aproximam nas associações, emerge uma angústia que contrasta com a bela indiferença da histérica. O sintoma obsessivo não enlaça os corpos, na verdade os isola. É excelente a caracterização dessa neurose que Freud faz em Inibição, sintoma e angústia, na qual mostra até que ponto o corpo e o estilo associativo são duas coisas indissociáveis.

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Lacan, Seminário O saber

do psicanalista (inédito, aula do dia 2 de dezembro de 1971). Lacan afirma também que não há outra definição possível do gozo que a anunciada: é a relação do ser falante com seu corpo.

Todos verificamos por experiência que é especialmente difícil para um neurótico obsessivo levar a efeito a regra fundamental da psicanálise. Seu ego é mais atento e faz isolamentos mais acentuados (...) Enquanto o neurótico está empenhado em pensar, seu ego tem de manter muita coisa afastada — a intrusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. Ele não deve relaxar, mas está constantemente preparado para uma luta. Ele fortifica essa compulsão a concentrar e a isolar mediante a ajuda dos atos mágicos de isolamento que, sob a forma de sintomas, se desenvolvem, passando a ser tão dignos de nota e a ter tanta importância prática para o paciente, mas que são, naturalmente, inúteis em si e que têm a natureza de cerimoniais. Mas nesse esforço para impedir associações e ligações de pensamento, o ego está obedecendo a uma das ordens mais antigas e fundamentais da neurose obsessiva, o tabu de tocar. Se perguntarmos a nós mesmos por que a evitação do tocar, do contato ou do contágio deve desempenhar papel Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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4 Freud, Inibição, sintoma e

relevante nessa neurose e deve tornar-se o tema de complicados sistemas, a resposta é que o toque e o contato físico são a finalidade imediata das catexias objetais agressivas e amorosas. Eros deseja o contato porque se esforça por tornar o ego e o objeto amado um só, por abrir todas as barreiras espaciais entre eles. Mas também a destrutividade, que (antes da invenção de armas de longo alcance) só poderia efetivar-se de perto, deve pressupor contato físico, em engalfinhamento. ‘Tocar’ uma mulher tornou-se um eufemismo para utilizá-la como um objeto sexual. Não ‘tocar’ os órgãos genitais é a expressão empregada para proibir a satisfação autoerótica. Visto que a neurose obsessiva começa por perseguir o toque erótico e depois, após ter-se verificado a regressão, passa a perseguir o toque erótico à guisa de agressividade, depreende-se que nada é tão fortemente proscrito nessa doença como o tocar, nem tão bem adequado para tornarse o ponto central de um sistema de proibições. Mas isolar é remover a possibilidade de contato; é um método de evitar que uma coisa seja tocada de qualquer maneira. E quando um neurótico isola uma impressão ou uma atividade interpolando um intervalo, ele está deixando que se compreenda simbolicamente que ele não permitirá que seus pensamentos sobre aquela impressão ou atividade entrem em contato associativo com outros pensamentos.4

ansiedade (1926[1925]/1996, pp. 122-123).

5

Para o ser falante,

justamente por ser falante, a pulsão invocante é a pulsão fundamental. No campo libidinal, o significante é uma torção de voz, e a pulsão é “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (Lacan, Seminário 23, 1975-76/2005, p. 18).

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A regra fundamental da psicanálise ordena ao obsessivo associar livremente, mas ele somente pode relatar, atar semanticamente os significantes, isolá-lo do contato genuíno que se encontra camuflado pelos procedimentos de significação. A ação do analista consiste em impulsioná-lo, mediante o corte e a interpretação, a associar mais livremente, incitá-lo à histerização. No laço social analítico, o sintoma é convocado a apresentar-se na dimensão do corpo a corpo, do corpo falado. “Pude abraçá-lo, mas não dizer-lhe que o quero”, diz uma paciente obsessiva. Explicar assim que sua retenção, seu isolamento, não é tanto do contato físico, do contato exterior, mas do contato significante, que é pulsional e íntimo – por ele os corpos se tocam desde o interior.5 O contato de que fala Freud é, ao mesmo tempo, contato associativo e contato dos corpos afetados pelo pulsional da linguagem. Incitar o obsessivo à histerização é incitá-lo, ao mesmo tempo, a uma mudança em relação a seu corpo. Enquanto o obsessivo traz somente um relato, seu corpo fica isolado, não é associação que libera as possibilidades simbólicas do corpo. E o sintoma continua intacto, literalmente. Seja que o cultive ou que o esqueça, que o exiba ou o que oculte, o corpo do obsessivo permanece então no imaginário, a distância da junção entre simbólico e real em que se desenrola a verdadeira dialética analítica, a qual pode incidir efetivamente no sintoma. E ali permanece até quando se revele esse núcleo de histeria que Freud indicou no sinA relação do neurótico obsessivo com seu corpo


toma obsessivo. Esse núcleo não é profundo, é exterior; e somente pode ser percebido a partir de uma mudança no estatuto do corpo, mudança que se produz ao falar de outra forma. É essa Outra forma de falar, a da associação livre, que pode produzir a passagem do corpo imagem – i(a) minúsculo – do obsessivo ao corpo como lugar de inscrição – A maiúsculo – como funciona na histeria. A análise deve produzir essa passagem do corpo completo – completamente esquecido no imaginário – ao corpo funcionalmente fragmentado, mas capaz então de chegar, pela senda propriamente analítica, à junção do simbólico com o real, de mostrar o sulco conversivo que reconduz o significante à borda pulsional do corpo. Quando se revela a raiz somática do sintoma, o obsessivo não o vivencia com indiferença nem beleza, senão como entregando o pior de si e brincando de tudo ou nada com sua conhecida ambivalência: o que havia de beleza no corpo transforma-se em merda, o que havia nele de boa forma transforma-se em um abominável buraco. Essa passagem é imprescindível, porém, para que a tortura mental e a conduta do obsessivo passem de uma questão alheia à análise – a de que o analista só assiste a um relato exterior – a algo que se joga efetivamente no laço analítico. Não são pouco frequentes os sintomas digestivos ou intestinais no obsessivo, mas a forma mais peculiar de histerização nessa neurose é a que Lacan chama “angústia anal”, um sintoma que, por afetar diretamente uma borda pulsional, presentifica da maneira mais patente a causa angustiante do desejo. Leio um comentário de Lacan a respeito: Essas tentativas, por mais audaciosas, complicadas, requintadas, exuberantes e perversas que sejam para atingir seu objetivo, são sempre marcadas por uma condição original. Ele sempre precisa fazer com que elas sejam autorizadas. É preciso que o Outro lhe peça isso. Aí está a mola do que se produz num certo momento de virada em toda análise de obsessivos. Na medida em que a análise sustenta uma dimensão análoga à da demanda, persiste alguma coisa, até um ponto muito avançado – será que ele é ultrapassável? – dessa forma de fuga do obsessivo. Pois bem, vejam quais são as consequências disso. Na medida em que a evitação do obsessivo é o encobrimento do desejo no Outro pela demanda no Outro, o a, objeto de sua causa, vem situar-se onde a demanda é predominante, ou seja, no estágio anal, no qual o a não é, pura e simplesmente, o excremento, porque é o excremento enquanto demandado. Ora, nunca se analisou nada da relação do objeto anal dentro destas coordenadas, que são as verdadeiras.6

A angústia anal, essa conversão imperfeita, está no meio do caminho entre o sintoma histérico e a angústia pura e simples, que é o sentimento de reduzirmo-nos ao corpo.7 Lacan explica que a análise Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

6 Lacan, (1962/63). O Seminário, Livro 10: A angústia (1962-63/2004, p. 319).

7 Lacan, J. La tercera (1974/2007).

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8 O Seminário, Livro 10: A angústia, op. cit., p. 319.

de um obsessivo levada até a emergência dessa angústia delimitada no somático não ocorre quase nunca, mas, quando ocorre, “num ponto que deve ser situado como um ponto-limite, a angústia aparece com um caráter de dominação, como um núcleo irredutível, e é quase impossível controlá-la em alguns casos”.8 A distinção entre demanda e desejo é nesse ponto tão decisiva quanto difícil de se produzir, mostra o abismo existente entre a histeria e a obsessão histerizada. Nesse ponto da análise, trata-se de sustentar a distinção entre a demanda falsamente alojada no Outro, por regressão da dominância do orifício anal, e o desejo que vem do Outro, o qual angustia o neurótico, mas é o único que lhe pode permitir ir além desse ponto de fixação. Isso supõe um “atravessamento” do emprego fundamental da fantasia ($<>a), se permite reconduzir a demanda (enquanto exigência pulsional) desde o Outro às cercanias topológicas do corpo ($<>D). Não posso desenvolvê-lo aqui, mas pode-se mostrar que isso implica que o objeto a seja extraído do Outro e se situe de um modo não neurótico: como causa do desejo do Outro. A esse ponto não se chega sem uma “histerização” tal que permita aproximar a matéria do pensamento à borda pulsional do corpo. Será possível vislumbrar incidentalmente até que ponto é questionável a metáfora vulgar segundo a qual o obsessivo pensa com a cabeça – que, estranhamente ocorre, opõe ao corpo, como se a cabeça não fizesse parte dele. A neurose obsessiva mostra, ademais, que o sintoma é o nó da estrutura subjetiva e que, longe de se opor ao pulsional, é sua continuação e seu pathos. A raiz pulsional do sintoma faz parte do sintoma, mesmo que esse não se reduza a ela. Em sua expressão mínima – aquela que aponta a análise – o sintoma é a pulsão, mais o sujeito que dela padece. Em síntese, a revelação da inserção pulsional do sintoma é um momento decisivo da análise do obsessivo, marca um antes e um depois. Esse depois é, geralmente, mais aberto ao desejo, menos inibido e, em alguns casos, abre a possibilidade do verdadeiro efeito terapêutico da psicanálise, não sugestivo e pós-didático: a destituição subjetiva considerada em sua salubridade. Colette Soler observou, porém, que algumas análises podem chegar a essas coordenadas de histerização do obsessivo e não avançar mais além. Refere haver encontrado em seu trabalho nos cartéis do passe o que chama de histerias de saída de análise em casos de neurose obsessiva: Uma quase-histeria final, no lugar da destituição subjetiva, quer dizer que, ao invés de renunciar, o sujeito absolutiza sua diferença subjetiva, manifestamente a título de última defesa. É que nada obriga o sujeito a consentir com a destituição. Ele pode, ao contrário, tentar anulá-la, seja coagulando-se como emblema do Outro, seja eternizando o grito de sua verdadeira dor não renunciada; qualquer

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que seja o modo, pelo gesto ou pela vociferação, tratar-se-á sempre de gozar de ser sujeito.9

9 Soler, Trois fins (1990, p. 494).

As pulsões são nossos mitos, dizia Freud. Porém, desde que podemos entender, com Lacan, que a exigência significante toma corpo nos orifícios do corpo, elas não nos parecem tão míticas. O que permanece mítico, mas não por isso menos real, é a referência ao pai, ineliminável do sintoma neurótico, presente nesse elemento tabu do sintoma que afeta o contato com o corpo próprio e com o corpo do Outro. Tradução: Maria Cláudia Formigoni

Referências bibliográficas FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 7). FREUD, S. (1907). Atos obsessivos e práticas religiosas. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 9). FREUD, S. (1908). Caráter e erotismo anal. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 9). FREUD, S. (1909). O homem dos ratos. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 10). FREUD, S. (1913). Predisposição à neurose obsessiva. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12). FREUD, S. (1913). Totem e tabu. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 13). FREUD, S. (1925). Inibição, sintoma e ansiedade. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 20). LACAN, J. (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LACAN, J. (1962/63). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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Resumo Neste trabalho busco extrair algumas consequências da oposição entre a conversão como sintoma com o qual o histérico chega a se vincular socialmente, e o sintoma do neurótico obsessivo que, nos dizeres de Freud, é “um assunto particular do enfermo”. Enfatizo algumas dificuldades específicas que o obsessivo encontra para o cumprimento da regra fundamental, indagando sobre os fundamentos estruturais de tais dificuldades e sua coerência com o isolamento entre o sintoma e o corpo do obsessivo. O sintoma obsessivo – em princípio uma série de transtornos no pensamento ou na conduta – pode encontrar em uma análise uma elucidação de sua raiz somática e, com isso, uma chave para discernir sua inserção na estrutura subjetiva. O tabu do contato, além do elemento contato (com corpo próprio, com o corpo do Outro), inclui o tabu que, por meio do sintoma, sustenta a dominância de um real mítico, acaso nunca totalmente eliminável da realidade do ser falante, mas especialmente prevalente nessa neurose.

Palavras-chave Neurose obsessiva, sintoma, corpo, histerização, pulsão.

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A relação do neurótico obsessivo com seu corpo


Abstract The objective of the present study is to extract some consequences from the opposition between conversion as symptom to which the hysterical person clings socially, and the symptom of the obsessive neurotic that, for Freud, “is the patient’s private matter [M1]”. Specific difficulties which the obsessed uses to carry out the fundamental rule are highlighted, questioning the structural fundaments related to such difficulties and its coherence with the isolation between the symptom and the body of the obsessed. The obsessive symptom – at first, a series of disruptions in thought and behavior – can, in an analysis, come across an elucidation of his/her symptomatic root. With this, a key to discern his/her insertion in the subjective structure. The contact taboo, besides the element contact (with his/her own body, with the Other’s body), includes the taboo which, through the symptom, sustains the dominance of a mythical real, never completely able to be eliminated from the reality of the speaking being, but especially prevailing in such a neurosis.

Key words Obsessive neurosis, symptom, body, hysteria, pulsing.

Recebido 20/11/2010

Aprovado 17/12/2010

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Corpsificação: circuito pulsional e sintoma Rosane Melo O “corpo falante”1 porta os mistérios do encontro das palavras com o gozo, o mistério da incidência do encontro com o Outro e se revela nas estruturas clínicas. Ao opor carne e corpo, Lacan2 adverte que nem toda carne é marcada pelo significante, de tal modo que um corpo é aquele que, habitado pela fala, foi corpsificado pela linguagem. O corpo simbólico faz o segundo — o corpo do falasser —, por se incorporar nele. O que implica admitir que quando o significante afeta o corpo, fragmenta seu gozo, o recorta pelas palavras e produz quedas daquilo que Lacan cunhou de objeto pequeno a ou abjeto.3 Como dejeto real, o objeto a cai necessariamente dos orifícios corporais e é signatário do corpo-furo. A sua extração corresponde à produção de um Outro barrado, furado, e simultaneamente a de um sujeito de desejo, falta-a-ser. O corpo tomado como superfície, ora pode ser tomado como referência ao corpo-tabuleiro do jogo,4 no qual se inscrevem traços que permitirão distingui-lo, “quer seja para contá-lo, quer seja para erotizá-lo”,5 ou ainda corpo-leito “para o advento do Outro pela operação do significante”,6 operação de separação lá onde o desejo fez seu “leito no corte significante”7 e se inscreve como “contingência corporal”.8 A entrada do sujeito na linguagem é correlata à intrusão significante e, por consequência, à extrusão do gozo no corpo.9 A operação é a de subtração e reduz o corpo a um “deserto do gozo”.10 O significante faz penetrar na dialética do sujeito o sentido da morte, pois a letra mata e o organismo é apreendido nesta dialética. A atividade da pulsão visa revolver esses objetos para neles resgatar, para restaurar em si, essa perda original. Do lado do vivente, o esvaziamento é necessário para advir uma satisfação fora das fronteiras do corpo, condição estrutural da libido e da busca fora do corpo próprio de objetos substitutos do objeto a que participarão da montagem da pulsão: do seu trajeto em três tempos e o retorno ao corpo próprio. São esses os objetos que permitem contabilizar o gozo, sempre na fronteira do desejo e da angústia. Para Freud,11 o corpo inteiro é uma zona erógena, e cada parte do corpo ou mesmo o corpo todo pode ser investido de libido. Eis o corpo pulsional da fusão e desfusão das pulsões. Todavia, se em Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

1 Lacan, 1972-73/1982, p. 163.

2

Lacan, 1970/2003, p.

406-7.

3

Lacan, 1972/2003, p.

547-8.

4 Radiofonia, op. cit., loc. cit.

5 Soler, 1983/2010, p. 75. 6

Lacan, 1967/2003, p. 357.

7 Lacan, 1964/1998, p. 849. 8 O Seminário, livro 20: Mais, ainda, op. cit., p. 126.

9 Lacan, 1970/2003, p. 407. 10

Da psicanálise em suas

relações com a realidade, op. cit., p. 357.

11

Freud, 1940

[1938]/1980.

121


12 Freud, 1930 [1929]/1980. 13

Lacan, 1969-70/1986.

14

Freud, 1923/1980.

15

O negativismo é um dos

sintomas do comportamento catatônico típico das psicoses esquizofrênicas, os quais começam com a rejeição de um aperto de mão, evitação de contato, e progridem para as crises de mutismo, fugas, enclausuramento, e mais adiante a recusa de alimentos que pode levar a uma mumificação da existência.

16

Freud, 1925/1980.

17

O Seminário, livro 20:

Mais, ainda, op. cit., p. 178.

18

Lacan, 1975/2003, p.

565.

19

Freud, 1888/1980.

20

O Seminário, livro 20:

Mais, ainda, op. cit., p. 156.

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cada exteriorização pulsional participa a libido, nem tudo nesta exteriorização é libido,12 isto é, há momentos nos quais atravessamos a fronteira entre prazer e dor e entramos no campo em que a satisfação se liga à pulsão de morte, o que denominamos com Lacan de campo do gozo.13 A vida é amarração, compromisso entre pulsões de vida e de morte, mas em alguns incidentes da vida o compromisso é rompido, acarretando a desfusão pulsional que, ao liberar maior quantidade da pulsão de morte que se voltará para o próprio interior do sujeito, produzirá quadros patológicos ou neuroses graves.14 Freud colocou em série o ataque histeroepiléptico, os casos de suicídio, a fúria obsessiva e o negativismo,15 que encontramos nas psicoses, como indícios da desfusão pulsional.16 A desfusão corresponde à queda do objeto a do circuito pulsional, liberando a angústia que é sempre índice do real. “O real é mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”.17 Por ser incorporada, a estrutura faz o afeto ser dito de algum lugar. O gozo retorna ao corpo nos sintomas e o recalque condiciona a variedade dos sintomas como acontecimento de corpo,18 aqueles que emergem nas associações do sujeito em análise, e permitem descobrir o inconsciente no corpo. São os acontecimentos de corpo que Freud privilegia quando nos ensina sobre a formação dos sintomas, seja pela referência à sintomatologia conversiva histérica que não leva em conta o edifício anatômico nos ataques, nas zonas histerógenas, nas perturbações das atividades sensoriais, nas anestesias e hiperestesias, e nas paralisias;19 seja pela referência aos rituais obsessivos que, tal como uma religião particular, faz o corpo ritualizar os atos mágicos que protegem o sujeito das tentações e dos pensamentos ruins. Corpos falantes de um desejo proibido, incestuoso ou de um desejo mortífero. “Aonde isso fala, isso goza.”20 Um paciente entra no tratamento queixando-se de sua mulher, que para ele tem um desejo “vagalume”, acende e apaga, e isso o consome. Ele vai para a rua, sai com outras mulheres, traz o cheiro delas em suas roupas, quer provocar ciúmes, mas ela não responde às suas provocações como ele anseia e por isso vive insatisfeito por não conseguir ser causa do desejo dela. “Dois dias bom e no outro ela some com os carinhos.” O sintoma corporal que o incomoda, e que já o levou a vários especialistas, é um tremor nas mãos que compromete suas atividades de trabalho, mas, sobretudo, sua imagem diante do Outro. Pergunta-se se o Outro vai pensar nele como um desequilibrado, um homem que não está nada bem. Militar, alta patente das forças armadas, médico responsável pela produção e controle de qualidade de medicamentos, quando seu laboratório passa por um processo de avaliação, ele treme diante dos avaliadores, principalmente quando precisa assinar seu nome diante de um Corpsificação: circuito pulsional e sintoma


Outro. As associações conduzem às lembranças da sua infância: a mãe dele tentou suicídio ao cortar os pulsos por duas ocasiões e ele e os irmãos foram proibidos pelo pai de falar sobre tal fato. A partir desta recordação surgem outras, por exemplo, as de que por várias vezes a mãe desaparecia por estar internada, mas tais desaparecimentos jamais foram falados entre ele e os irmãos. Na histeria, o corpo palco do sofrimento encena uma fantasia histérica e o corpo falante expressa relações simbólicas, funciona como lugar da enunciação inconsciente, do que o sujeito não pode lembrar. É o inconsciente incorporado em um corpo que cede ao deciframento, pois os sintomas, mensagens cifradas em sua estrutura linguageira, são articuláveis e decifráveis. A perda de gozo deixa vestígios, erogeniza certas partes do corpo que a sintomatologia histérica remonta em episódios de despedaçamento imaginário do corpo. Se a regra do corpo é o esvaziamento de gozo, existem as exceções:21 os avatares da incorporação significante. A ausência de uma marca significante resulta na dificuldade de ter um corpo, e na esquizofrenia, o significante não faz barreira ao gozo e o corpo se torna lugar de gozo sem qualquer mediação. Encontramos relatos de um corpo não disjunto do gozo, sofredor dos pedaços que permanecem da ordem da carne e que testemunham um despedaçamento do corpo recortado pelas pulsões. O sujeito faz da pele o palco do complexo de castração,22 e expressa a não simbolização da castração nos fenômenos hipocondríacos, fenômenos relativos à elisão do falo, forma de retorno do real que se manisfesta no corpo. “Eu sou um prato cheio para um neurologista.” Após dizer estas palavras em voz alta, um paciente procura um neurologista para tratar dos tremores. Médico, 42 anos à época, ele nem sequer conseguia assinar as receitas que prescrevia. Pelos tremores e outros sintomas, ele mesmo já diagnosticava: “Doença de Parkinson”. O diagnóstico admitido como precoce foi defendido por dois especialistas na área. Durante seis anos ele toma um medicamento que apazigua os tremores, mas como eles não cedem e ele solicita doses cada vez maiores, desiste da médica que o acompanha quando ela se recusa a aumentar o remédio, que já estava na dose máxima. O segundo neurologista sugere um processo de desintoxicação da medicação anterior. Ele é internado durante um mês, e na clínica decidem por um medicamento neuroléptico, o qual acaba por promover uma contratura muscular na cervical, descrito como movimentos de torção do corpo por efeitos parkinsonianos extrapiramidais distônicos, um dos efeitos colaterais desses medicamentos. Sem conseguir trabalhar, ele consulta um psiquiatra que enuncia o diagnóstico de esquizofrenia para a família e prescreve outros medicamentos. Ele frequenta instituições religiosas, e diz ter escutado nessas instituições que o que ele tem é um encosto23 nas Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

21 A psicanálise e o corpo no ensino de Jacques Lacan, op. cit.

22 Quinet, 2006, p. 143.

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23 Em português pode significar obsessor, espírito perturbador, no campo da religião; mas também lugar a que alguém ou algo se encosta, costas, tal como encosto de cadeira.

24 Freud, 1893/1980. 25 Freud, 1914/1980.

26 Freud, 1924 [1923]/1980.

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costas, por isso não consegue se mexer. “Minhã irmã e minha mãe dizem que meu filho mais velho é um encostado, não faz nada e ganha pouco. Minha irmã faz tudo pra mim. Temos uma relação muito próxima, de outras vidas, ela ficou no lugar da minha mãe.” Em sua fala, o distúrbio mais frequente é o do fluxo do pensamento, e ela conta sua saga de modo entrecortado, com diversos momentos de abolição de ideias. “Tropeço na língua”, para utilizar uma expressão sua. São múltiplas as referências hipocondríacas pelo uso da “língua do órgão”. “Estou passando mal, é como se tivessem me manipulando, aqui e aqui”, apontando para as costas e a barriga. “Tenho problemas dos pés à cabeça. No pé, tenho glândulas; no joelho, derrame; na barriga, angiomas; e na cabeça, essa confusão.” Modalidade da angústia referida ao corpo, para Freud a hipocondria se exterioriza em sensações corporais penosas e dolorosas, tal como a doença orgânica, com efeitos sobre a distribuição da libido.24 O hipocondríaco retira interesse e libido dos objetos do mundo exterior e os concentra sobre o órgão.25 Nesse sentido, a hipocondria pode ser uma forma inicial da esquizofrenia ligada a uma estase da libido do eu, o que a meu ver se aplica à construção deste caso, bem como tentativa de aparelhar o gozo. O paciente localiza o primeiro tremor impeditivo no ato de sua matrícula na universidade, e foi um amigo quem lhe socorreu assinando por ele. Quando começa seus atendimentos em consultório particular, os tremores aumentam a cada ano, e se acentuam toda vez que um pai de seus clientes vai à consulta. Mas é após o nascimento de seu filho que os tremores se acentuam mais. A incapacidade de trabalhar como médico fura o que na sua história deduzimos funcionar como uma compensação imaginária até o momento do desencadeamento. A tese freudiana para a esquizofrenia, em 1923,26 diz respeito às perturbações nos investimentos de objeto desembocando na apatia afetiva, ou seja, a perda de toda participação no mundo exterior. O paciente diz que perdeu a vontade de fazer qualquer coisa, pois só queria e sabia ser médico. Com seu tropeço na língua, o esquizofrênico testemunha o que da língua pode estar no corpo sem os recursos da metaforização, e nos ensina sobre os mistérios destes corpos falantes que estão na língua como carne trêmula e suas tentativas de ter um corpo.

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Referências bibliográficas FREUD, Sigmund. (1888) Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras completas psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. I. ______. (1893) Rascunho B: A etiologia das neuroses. In: ESB. Op. cit., vol. I. ______. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ESB. Op. cit., vol. XIV. ______. (1923) O Eu e o Isso. In: ESB. Op. cit., vol. XIX. ______. (1924 [1923]) Neurose e Psicose. In: ESB. Op. cit., vol. XIX. ______. (1925) A negativa. In: ESB. Op. cit., vol. XIX. ______. (1930 [1929]) O Mal-estar na civilização. In: ESB. Op. cit., vol. XXI. ______. (1940 [1938]) Esboço de Psicanálise. In: ESB. Op. cit., vol. XXIII. LACAN, Jacques. (1964) Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 843-64. ______. (1967) Da psicanálise em suas relações com a realidade. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 350-8. ______. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. ______. (1970) Radiofonia. In: Outros Escritos. Op. cit., p. 400-47. ______. (1972) ... ou pior. In: Outros Escritos. Op. cit., p. 544-9. ______. (1972–73) O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982. ______. (1975) Joyce, o Sintoma. In: Outros escritos. Op. cit., p. 560-6. QUINET, Antonio. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. SOLER, Colette. (1983) A psicanálise e o corpo no ensino de Jacques Lacan. Caderno de Stylus: O “corpo falante”. Rio de Janeiro: Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano / Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, n.1, p. 64-91, 2010. ______. (1983) A psicanálise e o corpo no ensino de Jacques Lacan. Caderno de Stylus: O “corpo falante”. Op. cit.

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Resumo O presente trabalho tem como objetivo discutir a relação entre a incorporação significante, tanto nos sintomas corporais da histeria, quanto nos fenômenos corporais da esquizofrenia. A entrada do sujeito na linguagem é correlata à intrusão significante e, por consequência, à extrusão do gozo no corpo. Quando o significante afeta o corpo, fragmenta seu gozo, o recorta pelas palavras e produz quedas daquilo que Lacan cunhou de objeto pequeno a ou abjeto. A regra do corpo é o esvaziamento de gozo: os avatares da incorporação significante. Através de dois fragmentos clínicos, o trabalho enseja contribuir para desvelar como o corpo falante traz os mistérios do encontro das palavras com o gozo.

Palavras chave Corpo; gozo; histeria; esquizofrenia.

Abstract This article aims to discuss the relationship between the incorporation of the significant, both in the body symptoms of hysteria, as in the body phenomena of schizophrenia. The entry of the subject in the language corresponds to the intrusion of the significant and, consequently, the extrusion of the jouissance in the body. When the significant affects the body it also fragments the jouissance, cuts out the words and, at the same time, makes the object little a fall. The rule of the body aims at emptying the jouissance: the avatars of the incorporation of the significant. Taking two clinical fragments as examples we intend to contribute to point out how the body marked by the language shows to us how it is possible to figure out the mysterious meeting of the words with jouissance.

Keywords Body; jouissance; hysteria; schizophrenia.

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Recebido 26/11/2010

Aprovado 18/12/2010

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Orientações editoriais STYLUS é uma revista semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO - BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileira e internacional do CAMPO LACANIANO, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Serão aceitos artigos provenientes de outros campos de saber (arte, ciência, matemática, filosofia, topologia, linguística, música, literatura etc.) que tomem a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as orientações editoriais que se seguem. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos a, no mínimo, dois pareceristas, membros do CONSELHO EDITORIAL DE STYLUS (CES). A EQUIPE DE PUBLICAÇÃO DE STYLUS (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto aceito para publicação o será na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade dos textos que irão compor cada número de STYLUS, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

O fluxo de avaliação dos artigos será o seguinte: 1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na home page da AFCL (http:// afcl.campolacaniano.com.br/publica-es/). 2. Distribuição para parecer. 3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de 20 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis uma cópia de seu texto em CD e outra em papel. Stylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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A revista não se responsabiliza pela conversão do arquivo. O endereço para o envio do original será fornecido nessa ocasião pela EPS. 6. Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7. Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

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endereço(s) completo(s). As demais páginas (contendo título e texto) devem ser numeradas, consecutivamente, a partir de 2. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir em separado e devidamente nomeadas como Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local específico dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo delas um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. As imagens precisam ser enviadas em alta resolução. Gráficos e tabelas devem estar em formato PDF. No caso de fotos ou imagens digitalizadas, deve ser enviado o arquivo JPG original. Resumo/Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, em um parágrafo único e contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e key-words (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e key-words. Citações no texto: as citações de outros autores que excederem quatro linhas devem vir em parágrafo separado, margem de 2 cm à esquerda (além do parágrafo de 1,25 cm) e 1 cm à direita, tamanho e letra igual ao texto. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud).

Citações do texto nas notas: 1. As notas não bibliográficas devem ser reduzidas a um mínimo, ordenadas por algarismos arábicos e arrumadas como nota de rodapé ou notas de fim de texto antes das referências bibliográficas (citadas no corpo do texto); 2. As citações de autores devem ser feitas por meio do último sobrenome, da obra citada e do ano de publicação do trabalho. No caso de transcrição na íntegra de um texto, a citação deve ser acrescida da página citada; 3. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999); 4. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, usando e ou &, conStylus Rio de Janeiro nº 21 p. 1-140 dezembro 2010

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forme exemplo (Pollo & Rossi & Martielo, 1997). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Pollo et al., 1997, p. 120). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados; 5 Quando houver repetição da obra citada na sequência da nota deve vir indicado Ibid., p. (página citada.); 6. Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Fetischismus, op. cit., p. 317).

Referências bibliográficas

(outras informações: consultar a NBR 6023 da ABNT-2002): Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta. 1. Livros, livro de coleção: 1.1. LACAN, J. Autres Ecrits. Paris: Editions Seuil, 2001. 1.2. FREUD, S. (1905) Die Traumdeutung. In: Studienausgabe. Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1994. Band II. 1.3. FREUD, S. (1905) A interpretação dos sonhos. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1994. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. II). 1.3. LACAN, J. O seminário – livro 8: A Transferência (19601961). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1992. 1. 4. LACAN, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5. LACAN, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira sem fins comerciais). 1.6. LACAN, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). 2. Capítulo de livro: FOUCAULT, Michel. Du bon usage de la liberté. In: FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l’ âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. 3. Artigo em periódico científico ou revista: QUINET, A. A his132


teria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, p. 29-33, 1987. 4. Obras antigas com reedição em data posterior: ALIGHIERI, D. (1321). Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. 5. Teses e dissertações: TEIXEIRA, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001, 250f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2001. 6. Relatório técnico: BARROS DE OLIVEIRA, M. H. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. 7. Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado: PAMPLONA, G. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 – Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. 8. Obra no prelo: no lugar da data deverá constar (No prelo). 9. Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSMIII-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: 1998. 10. CD ROM – GATTO, C. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. 11. Home page – GERBASE, J. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: <htttp://www.campopsicanalitico.com.br>. Acesso em: 10 de julho de 2002. Outras dúvidas poderão ser encaminhadas através do e-mail do(a) diretor(a) da AFCL: afcl@campolacaniano.com.br que se encarregará de transmitir à Equipe de Publicação de Stylus.

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Sobre os autores Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

Bacharel em Ciências Sociais (USP, 1986) e em Direito (USP, 1988). Mestre e Doutora em Antropologia Social (USP, 1994 e 2002, respectivamente). Docente do Departamento de Antropologia (USP), no qual coordena o NADIR – Núcleo de Antropologia do Direito. Presidente da ANDHEP – Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação. Membro da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância do Instituto de Estudos Avançados da USP e da Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia – ABA. Linha de Pesquisa: Antropologia do Direito (rituais judiciários e de justiça; operadores do direito e direitos humanos). E-mail: alps@usp.br

Ana Paula Gianesi

Psicóloga, Psicanalista, Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum São Paulo. E-mail: anapaulagianesi@yahoo.com.br

Ana Paula Pires

Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica na USP e Membro do Fórum do Campo Lacaniano São Paulo. E-mail: appsilva@uol.com.br

Antonio Quinet

Psicanalista, Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VII (Vincennes), Professor do Mestrado de Psicanálise (UVA). AME da Escola de Psicanálise Fóruns do Campo Lacaniano / Fórum Rio de Janeiro. Dramaturgo e Diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ). E-mail: quinet@openlink.com.br

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Bárbara Maria Brandão Guatimosim

Psicanalista, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Organizadora do livro Em torno do cartel – Edição da AFCL, 2004. Artigos publicados em várias revistas e coletâneas de psicanálise. E-mail: bguatimosim@bol.com.br

Diego Mautino

Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Roma, Ensinante no Collegio di Clinica Psicoanalitica Onlus (Roma), Ex-Ensinante na all’Università, Responsável clínico do Centro di Consultazione Psicoanalítica. E-mail: studio@diegomautino.191.it

Gabriel Lombardi

Médico pela Universidad de Buenos Aires, Professor de Clínica Psicanalítica na Universidade de Buenos Aires e no Colégio Clínico de Rio de la Plata. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Argentina. Autor de vários livros, entre os quais Clínica y lógica de la autorreferencia. E-mail: glombard@fibertel.com.ar

Jairo Gerbase

Médico, Psiquiatra e Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Autor de Comédias familiares: Rei Édipo, Príncipe Hamlet e Irmãos Karamazov. Salvador: Campo Psicanalítico, 2007 e Os Paradigmas da Psicanálise. Salvador: Campo Psicanalítico, 2008. E-mail: gerbase@campopsicanalitico.com.br

Maria Cláudia Formigoni

Psicóloga pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica e Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. Mestranda do Núcleo Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/SP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br

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Maria Helena Martinho

Psicóloga. Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Coordenadora e Supervisora Clínica do SPA/UVA. Professora dos Cursos de Graduação em Psicologia e de Especialização em Psicanálise da UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Rio de Janeiro. Psicanalista membro do colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro. E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br

Raul Albino Pacheco Filho

Psicólogo com graduação pela PUC-SP, Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP. Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade (inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq). Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo lacaniano – Brasil/ Fórum São Paulo e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Rosane Melo

Mestre e Doutora em Psicologia. Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Rio de Janeiro e Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano (FCCL-Rio). E-mail: rosanebm@yahoo.com.br

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Sandra Leticia Berta

Psicanalista, Mestre pela Universidade de São Paulo “Exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983)” e Doutoranda pela Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica com o tema de pesquisa “O trauma e suas consequências na clínica psicanalítica, de Freud a Lacan”. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum São Paulo. Coordenadora da Rede de Pesquisa sobre As psicoses do FCL-SP. Professora das Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Brasil / São Paulo. Membro da CG da EPFCL- Brasil 2011-2012. E-mail: bertas@uol.com.br

Tatiana Carvalho Assadi

Psicanalista e Pós-doutoranda em Psicologia Clínica – USP-FAPESP. Doutora em Ciências Médicas pela Unicamp. Membro do Fórum do Campo Lacaniano-SP. Coordenadora, juntamente com Christian Dunker e Heloísa Ramirez, da Rede de Pesquisa em Sintoma e Corporeidade – FCL-SP. Participante fundadora do Circuito Ponto de Estofo – MC-SP. E-mail: tatiassadi@uol.com.br

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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se estetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.


Pareceristas do nĂşmero 20 Leandro Santos (EPFCL-Brasil/FCL-SP) Lia Carneiro Silveira (UECE, EPFCL-Brasil/FCL-Fortaleza) Maria Helena Martinho (UVA, EPFCL-Brasil/FCL-RJ) Paulo Rona (EPFCL-Brasil - FCL-SP) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP, EPFCl-Brasil/FCL-SP) Zilda Machado (EPFCL-Brasil/FCL-BH)

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