escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil
Stylus revista de psicanรกlise
Stylus
Rio de Janeiro
nยบ24
p.1-148
junho 2012
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Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br - revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da Afcl/Epfcl- Brasil Diretora: Ana Laura Prates Pacheco Secretária: Sandra Berta Tesoureira: Beatriz Oliveira Equipe de Publicação de Stylus Silvana Pessoa (coordenadora) Ana Paula Gianesi Andréa Fernandes Andréa Franco Milagres Lia Carneiro Silveira Rosana Baccarini Sonia Borges Indexação Index Psi periódicos (BVS-Psi) www.bvs.psi.org.br Editoração Eletrônica 113dc Design+Comunicação Tiragem 500 exemplares
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FICHA CATALOGRÁFICA
STYLUS: revista de psicanálise, n. 24, junho de 2012
Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195
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sumário 07 editorial: Silvana Pessoa
prelúdio e conferência 15 25
Marc Strauss: Desmitificar a interpretação Colette Soler: Uma interpretação que leve em conta o real
ensaios
43 Luis Guilherme Mola: Interpretação e poesia 49 Silvia Helena Facó Amoedo: Licença poética na lógica da interpretação: “psicanarte” 57 Andréa Hortélio Fernandes: Interpretação: arte poética com alíngua 65 Manoel Baldiz: Contra a sobreinterpretação
trabalho crítico com conceitos
77 85 93 103
Maria Helena Martinho: A interpretação psicanalítica: “um dizer nada” Ronaldo Torres: O que pode ser uma lógica do real? Christian Ingo Lenz Dunker: O dever de dizer e o dever de calar Sonia Alberti: O psicanalista, os limites da interpretabilidade e o passe
direção do tratamento 117
Dominique Fingermann: Da lógica da interpretação à prática da letra
resenha 127
Leandro Alves Rodrigues dos Santos: Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários
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contents 07 editorial: Silvana Pessoa
prelude and conference 15 25
Marc Strauss: Demystifying the interpretation Colette Soler: An interpretation which takes into consideration the real
essays
43 Luis Guilherme Mola: Interpretation and poetry 49 Silvia Helena Facó Amoedo: Poetic license in the logic of interpretation: “psychoart” 57 Andréa Hortélio Fernandes: Interpretation: the poetic art with lalangue 65 Manoel Baldiz: Against the over-interpretation
critical paper with the concepts
77 85 93 103
Maria Helena Martinho: The psychoanalytic interpretation: “a say nothing” Ronaldo Torres: What can be a logic of the real? Christian Ingo Lenz Dunker: The duty to speak and the duty to silence Sonia Alberti: The psychoanalyst, the limits of interpretability, and the pass
the direction of the treatment 117
Dominique Fingermann: From the logic of interpretation to the practice of the letter
reviews 127
Leandro Alves Rodrigues dos Santos: Working with Lacan: in analysis, supervision, and seminars.
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Editorial A lógica da Interpretação, tema do Encontro Nacional da EPCFLBrasil em 2012, ocorrido em Salvador, foi o assunto escolhido para este número e o próximo. Decidimos abrir esta edição com o artigo de Marc Strauss, um dos prelúdios que circularam na rede, pelo argumento que ele sustenta, ou seja, a proposta de desmitificar a interpretação, o que também pretendemos com a publicação nesta revista. Marc Strauss inicia seu texto analisando o termo desmitificar comparando-o com desmistificar, afirmando que Lacan se empenhou em combater certo uso do Édipo, tão vão, em sua dimensão sistemática, quanto em sua utilidade prática em relação à interpretação. Porém, o autor reconhece que, antes de chegar à desmitificação do Édipo, Lacan no início o mitificou; ele procurou fazer dessa tragédia um mito autêntico para mostrar que a estrutura fantasiosa, que determina a realidade da relação ao objeto, tem a estrutura de um mito. Entretanto, não numa estrutura ternária, como postulou Freud, mas quaternária, como enfatizou Lacan, com a morte introduzida como quarto termo. Percebemos com Strauss aproximações e distanciamentos nessas duas estruturas. Destacamos, nesse momento, apenas a diferença crucial entre elas: que a interpretação explicativa do sintoma, suposta ser em si terapêutica, uma interpretação pela iluminação, que teve a sua eficácia até os anos 20, dista da interpretação equívoca de Lacan, que deve jogar contra o sentido. Esse tipo de interpretação, apesar de recebida como tardia em seu ensino, precede as elaborações sobre o inconsciente real e não as supõe necessariamente, afirma Strauss. É interessante acompanhá-lo na construção e justificativa do seu argumento, especialmente quando interroga se o uso do equívoco é ou não suficiente para mostrar uma análise orientada para o real. Com semelhante interrogação encontramos a conferência de Colette Soler proferida no início deste ano no Campo Lacaniano em Paris, ainda inédita no Brasil. Nela, a autora indaga particularmente qual é a especificidade de uma interpretação que incide sobre o real e interroga se o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação. Vejam como ela introduz a questão: De fato, no que diz respeito à interpretação, em nosso Seminário deste ano, a questão está colocada, desde o início, tratando-se de saber qual seria a especificidade de uma interpretação que incidisse sobre o real, como se fosse preciso, para essa nova noção de um inconsciente real, uma prática da interpretação totalmente nova. Eu Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 7-11 junho 2012
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mesma havia colocado essa questão, mas sem respondê-la de fato e, portanto, depois de meus colegas que falaram este ano, perguntei-me até onde seria esse o caso, até onde o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação? (2012).
Vale a pena constatar, por meio dessa conferência, que as ressonâncias da interpretação, que não desconhecem o real, já estão presentes na obra de Lacan desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953), mesmo sem serem desdobradas lá; e também, para verificar que a interpretação visa ao intervalo significante que se anima do objeto, tomado ou como falta ou como mais-de-gozar, é uma tese que se mantém até o fim em Lacan, já que a análise não opera sem o sentido (Posfácio, 1973). Para abordar a questão e tentar respondê-la, Soler escolhe trabalhar com o grafo do desejo – por combinar a estrutura da fala e a da linguagem e por esquematizar, ao mesmo tempo, a estrutura do sujeito e a prática analítica – e com a referência final de Lacan à poesia. E, por causa dessa aproximação final, publicamos os quatro artigos seguintes na seção intitulada Ensaios. O artigo de Luis Guilherme Mola abre essa parte apresentando consistentemente algumas definições de poesia e as suas relações com a concepção lacaniana de interpretação. Concluindo que verdade poética não estaria atrelada a algum conteúdo específico, mas ao princípio que revela sob a lógica dos códigos linguísticos uma outra relação que se caracteriza fundamentalmente pela contingência, que envolve a relação do significante com aquilo que possibilita sua existência: a voz. Esta que faz com que o gozo escoe pela fala, que marca a singularidade daquele que diz algo, e que faz com que as poesias devam ser lidas em voz alta, pois o som das palavras, ponto essencial em sua composição, implica e envolve o corpo do leitor, diz o autor. Em seguida, Silvia Facó Amoedo denomina essa relação entre psicanálise e arte de “psicanarte”, dizendo que a palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista e, quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário, podendo mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade, pois, a vida que o analisando teve não se refaz, o que se modifica mesmo é a maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá. Como ela mesma diz, “o sujeito em análise é o escritor de sua própria história, é ele quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista”. Assim, cabe interrogar o que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise? É o que a autora tenta responder com este ensaio. Andrea Hortélio Fernandes segue a mesma trilha quando afir8
Editorial - Silvana Pessoa
ma que a interpretação na psicanálise convoca certa arte poética, tanto do analisando como do analista, para lidar com o que do inconsciente insiste e não cessa de não se escrever. Pois tanto a poesia quanto a fantasia e o sintoma têm em comum o fato de trançarem, por meio do equívoco, de metáforas e metonímias, o gozo do Um, gozo de alíngua, com o gozo do sentido. Entretanto, ela interroga como a interpretação na psicanálise, ao se servir do equívoco significante, tal qual a poesia, pode intervir simbolicamente no real. Para dar conta dessa questão a autora faz diversas citações de passagens em Freud e Lacan que marcam o “linguageiro necessário” para o manejo clínico. Encerrando esta seção, temos o ensaio de Manoel Baldiz, que dialoga com os textos de Susan Sontag e Umberto Eco. Ele propõe, em forma de aforismos, interrogar vários pontos sobre a interpretação, com base na leitura desses dois autores. Num deles ele propõe não confundir a posição do morto (destacada por Lacan com o jogo do bridge) com a do cadáver, pois o analista mudo e cadaverizado não é um analista; noutro critica o excesso interpretativo do analista asfixiante que não deixa nada por interpretar; no seguinte, diferencia as intervenções válidas numa cura da interpretação propriamente dita, distingue a interpretação que corresponde à ética e à lógica do discurso analítico das intervenções sugestivas e persuasivas e, finalmente, discute o problema da interpretação na supervisão, articula interpretação e tempo, interpretação e transferência, interpretação e après-coup. Na seção Trabalho crítico com conceitos esta revista traz mais quatro trabalhos que merecem ser estudados pelo seu rigor conceitual no que diz respeito à lógica e à interpretação. No primeiro deles, Maria Helena Martinho afirma que a interpretação é o que faz com que o analisante passe do início para o fim da análise e interroga qual a liberdade do analista nesse caso, quais intervenções podem ser consideradas interpretações e no que ela deve incidir. Para responder a tais questões, a autora percorre textos e seminários de Lacan dos anos de 1950 a 1970, nos quais verifica os vários modos de interpretação designados por Lacan: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco. Conclui, com Colette Soler, que diz existir nos modos de interpretação mencionados um traço comum: “um dizer nada”, um “silêncio falante” do analista que obriga o analisante a designar o horizonte do que não é dito. O objetivo do artigo que vem em seguida, de autoria de Ronaldo Torres, é o de acompanhar passagens do ensino de Lacan que apontem para uma lógica da interpretação. No desenvolvimento do seu argumento, ele afirma que logo após formalizar a lógica da fantasia, Lacan demonstrou como o ato psicanalítico implicava, em última instância, um ato para além dessa lógica, concluindo com Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 7-11 junho 2012
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isso, que Lacan chegou ao extremo de uma tensão entre os campos da lógica e da ética, na qual o limite do primeiro se encontrava em uma resposta advinda do segundo. O ato, assim, é uma resposta do real à montagem fantasmática pela qual o sujeito se constituiu na determinação simbólica. Nesse sentido, lógica e real se mostravam excludentes. Todavia, Lacan não tardou em formalizar o tipo de laço que se estrutura como efeito deste ato, o discurso do psicanalista, um laço que pressupõe uma lógica afeita ao real, afirma Ronaldo. Também da lógica da interpretação trata o artigo de Christian Dunker na sua dimensão ética: o dever dizer e o dever calar presentes na condução de uma análise. O autor justifica a sua posição por meio da reunião de alguns argumentos – certas condições suficientes (o desejo do psicanalista e o tempo da transferência) e certos limites do que pode ser interpretado (genéricos, móveis, materiais ou metapsicológicos) – de que o dizer torna-se na análise um ato contingente, porém, baseado numa forma de dever que exclui a dimensão superegoica. Um artigo que deve ser estudado nos três aspectos que estão na origem lacaniana do problema de uma lógica da interpretação: a sensação real, a incorrigibilidade simbólica e o espírito imaginário do sistema. Finalizando esta seção, o artigo de Sonia Alberti faz uma análise das três questões kantianas que dizem respeito às possibilidades éticas do saber, do fazer e do esperar para examinar os limites da interpretabilidade, o passe e a possibilidade de aprender com a sua experiência. Para dar conta do seu intento, a autora rastreia a retomada feita por Lacan na última década de seu ensino, de um pequeno texto de Freud sobre a interpretação para verificar até que ponto a construção do inconsciente Real daquela década poderia ter alguma base nas observações do criador da psicanálise. Lastreia-se nossa visada na identificação nesse texto de Freud, da função do sonho que não é senão a de “evitar a perturbação do sono” e que esta representa o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo, um despertar. Tal despertar é também examinado na relação com as três questões kantianas afirmadas acima e tratadas por Lacan em Televisão (1972): o que posso saber? O que posso fazer? E o que me é permitido esperar? Na parte que trata da Direção do tratamento temos um trabalho solo de Dominique Fingermann. Neste artigo a autora trata, com seu estilo peculiar, a direção de uma análise que se expressa no título do seu trabalho: Da lógica da interpretação e à prática da letra. A formalização expressa no “de... à” indica uma orientação, uma passagem, uma operação. Uma operação lógica que afeta e que tenha efeitos, é o que se espera da direção da psicanálise pelo psicanalista, orientado eticamente pelo Real. Ela diz: “visamos a uma passagem, 10
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que tenha consequências poéticas e políticas, já que apostamos em um novo laço enraizado no radical da letra do sinthoma”. Consequências do ato psicanalítico que podemos notar nos testemunhos dos analisandos de Lacan, relatados no livro Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão e nos seminários, resenhado pelo colega do Fórum São Paulo, Leandro Alves Rodrigues dos Santos, a quem aproveito para agradecer o difícil trabalho de estabelecimento das novas orientações editoriais dessa revista, que entram em vigor a partir desse número, e que estão sempre sujeitas à possibilidade de revisão, por sugestões vindas da nossa comunidade. Encerrando este editorial, fica a promessa de publicação no número 25 da conferência de Marcelo Mazzuca, AE da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, no Encontro Nacional da EPFCL-Brasil; a conferência de Bernard Nominé, proferida na Jornada de Encerramento do Fórum São Paulo no final de 2011 e os artigos de alguns colegas do Campo Lacaniano. Além dessas contribuições, contaremos também com a resenha do novo livro de Antonio Quinet, O Outro em Lacan. Desejo a todos uma boa leitura e até breve, no próximo e derradeiro número desta Equipe de Publicação, a qual tenho enorme satisfação em coordenar! Silvana Pessoa
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prelúdio e conferência
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Desmitificar a interpretação Marc Strauss A injunção de desmitificar a interpretação responde ao fato de que ela, a interpretação, é convocada pelo uso que fazemos do Édipo, sobre o qual incide a minha questão nesse prelúdio.1 Com efeito, a interpretação edipiana é o pedestal, pelo menos histórico, da reflexão psicanalítica. Contudo, sabemos, pelo menos por ter lido o argumento desta jornada, que Lacan criticou, inclusive condenou, essa referência como o que deve decidir a interpretação psicanalítica. Escolhi este termo – interpretação – e depois fiquei com uma dúvida: ele existe ou o inventei com base no desmistificar? Depois de verificar, eu me assegurei de que ele existe. Mas, uma surpresinha, é um termo muito recente em nossa língua, porque foi apresentado pela primeira vez no jornal Le Monde em 15 de maio de 1966 e atestado no Quillet, suplemento de 1971. Cinco anos, portanto, para passar do nascimento à morte, eu não saberia afirmar, mas seja como for, à consagração no dicionário. Eu não sou, infelizmente, arrebatado pela linguística para saber qual é a duração média do trajeto de uma palavra. Assim, como eu tinha ido aos dicionários, naturalmente fui ver também o termo desmistificar, implícito no desmitificar. Aí, a surpresa foi muito maior, pois este termo é bem mais antigo que o outro; ele é atestado em 1948 no Robert e no Larousse, com desmistificador e desmistificadora. Infelizmente, o TLF não dá o lugar nem o momento do aparecimento da palavra, a menos que não tenha sido impressa antes e que não tenha sido usada senão oralmente até então. Não sei também se esse tipo de situação existe, a primeira escrita de uma palavra diretamente no dicionário, mas por que não... Evidentemente, a definição dos dois termos difere sensivelmente ainda que ambos visem desfazer, de preferência, a criar. Desse modo, “livrar (um personagem, uma entidade abstrata) de seus aspectos míticos que velam a realidade subjacente”, definição, é óbvio, de desmitificar, não apela ao mesmo campo semântico que o outro, desmistificar: “Sei de sobre uma coisa, trata-se de despojá-la de seu caráter misterioso ou enganosamente embelezante, mostrando-a tal como é realmente; e se incide sobre uma pessoa, trata-se de desenganá-la mostrando a realidade tal qual, arrebatá-la de sua credulidade causada por um engodo coletivo”. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 15-24 junho 2012
1. Prelúdio para o XII Encontro da EFFCL/AFCL – Brasil que ocorreu em Salvador (BA), em novembro de 2011.
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2. Publicada pela Jorge Zahar Editor, como O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose, em 2008.
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Tanto desmitificar tem, portanto, a dimensão objetiva de uma fria operação científica, como desmistificar comporta em si uma dimensão de mistério certamente, porém enganoso, mentiroso, enfim, condenável. E com essa referência à mentira, somos imediatamente reconduzidos ao nosso campo, a psicanálise, e desde o Esboço, de Freud. Sabemos que nesse texto do Esboço, para explicitar a significação inconsciente do sintoma, dito de outra maneira, sua dimensão sexual e infantil, Freud fala acerca desta mulher que não pode entrar sozinha em uma loja, da “Proton Pseudos”, primeira mentira. Reencontramos esta problemática da mentira explicitamente desenvolvida em um pequeno artigo de Freud. Duas mentiras contadas por crianças, de 1913, artigo que recomendo vivamente para dar a medida do que é ordenar o material de um caso clínico. Os dois pequenos mentirosos dos quais ele fala cometeram sua falta em razão justamente de uma ligação inconsciente muito forte com o pai, edipiana, portanto. Sabemos também que Lacan fez muito caso da mentira. Obviamente, ele começou por valorizar a palavra da verdade, ressaltando que mesmo a mentira não era sem referência a ela; e ele quis mostrar como a mentira da conduta dos pais tem um efeito devastador na criança. Porém, concluiu colocando-a de certa maneira no mesmo plano com sua expressão “verdade mentirosa”, no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (1976, p.569), que comentamos com obstinação, sob a condução de Colette Soler, quatro anos atrás. Para um texto de duas páginas, podemos reconhecer a performance. E não acabou, vocês verão daqui a pouco! Se a verdade é mentira, verdade e mentira então são idênticas? E se torna a mentira, a verdadeira mentira, a do bom mentiroso? Eis aí uma pergunta que apenas gostaria de colocar, pois nosso assunto é outro. Dissemos que Lacan se empenhou em combater certo uso do Édipo, tão vão em sua dimensão sistemática quanto em sua utilidade prática. Porém, antes de chegar à desmitificação do Édipo por Lacan, não é inútil, me parece, observar que ele, no início, o mitificou. Ou, para ser mais exato, ele procurou fazer dessa tragédia um mito autêntico, autêntico no sentido da definição que disso deu aquele que ligou seu nome ao estudo dos mitos, Claude Lévi-Strauss. Era o objetivo de Lacan em 1953, como se pode ler em sua intervenção no Colégio de Filosofia, a convite de Jean Wahl. Uma intervenção da qual não temos o escrito de Lacan, mas apenas transcrições, uma delas publicada em Ornicar? nos 17/18, com o título de O mito individual do neurótico.2 Um título de fato incompleto, porque descobri, graças à internet, que foi anunciado com o título de Mito individual do neurótico, ou Poesia Desmitificar a Interpretação - Marc Strauss
e verdade na neurose. Não deploramos este desaparecimento “ornicariano” da poesia e da verdade, e constatamos, de preferência, no texto de Lacan, que ele critica, explicitamente, não Freud, mas todo o esquema do Édipo. Citá-lo-ei depois de ter lembrado que ele se apoia em dois casos: O homem dos ratos e Goethe, para mostrar que a estrutura fantasiosa que determina a realidade da relação ao objeto possui não três, mas quatro elementos e, assim, tem a estrutura de um mito. A citação é a seguinte: O sistema quaternário, tão fundamental nos impasses, insolubilidades da situação vital das neuroses, é de uma estrutura bastante diferente da que é dada tradicionalmente – o desejo incestuoso da mãe, a interdição do pai, seus efeitos de barragem, e, em torno disso, a proliferação mais ou menos luxuriante dos sintomas. Creio que esta diferença deveria nos levar a discutir a antropologia geral que emerge da doutrina analítica tal qual ela é ensinada até o presente. Em uma palavra, todo o esquema do Édipo deve ser criticado. (p. 304).
Ele prossegue dizendo que não tem tempo de fazê-lo, mas não pode deixar de tentar introduzir o quarto elemento de que se trata. E depois de nos ter mostrado o impossível recobrimento do pai simbólico em toda a sua plenitude com o pai da realidade, sempre de alguma maneira carente, nos diz qual é este quarto termo: a morte. Citação, ainda, do fim do texto: É a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, e é dela que se trata na formação do sintoma do neurótico – e talvez, até certo ponto, em algo que ultrapassa muito a formação do neurótico, ou seja, a atitude existencial característica do homem moderno. (ibid.)
Desse modo, a assunção do ser para a morte, teoria de Lacan do fim da análise nessa época, implícita nesse texto, porém explícita alhures, é a solução dos impasses neuróticos aos quais conduz o Édipo patógeno; a expressão é dele. A finalidade de uma análise se exprime, portanto, diferentemente conforme nos referimos ao romance freudiano ou ao mito lacaniano. Com Freud, podemos dizer que o sujeito deve, graças à análise, suspender o recalcamento e assim se desfazer das fixações edipianas infantis, com o objetivo do que chamarei “atualizar sua vida”. Para Lacan, o sujeito deve-se assumir, reconhecendo-se neste lugar, quarto da morte, para poder se livrar dos efeitos patógenos das identificações narcísicas, impossíveis de conciliar com as que lhe fornece sua constelação familiar e, desse modo, também atuaStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 15-24 junho 2012
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lizar sua vida. Passo, por falta de tempo, à descrição que ele faz de um sujeito isento de neurose. Dito isso, a crítica de Lacan incide, ao que me parece, menos sobre Freud, embora ela exista também, do que sobre o uso do complexo de Édipo na interpretação de seus contemporâneos – e sobre o ensino da psicanálise que teve curso nos anos 50. Com efeito, reconhecemos em Freud que a impossibilidade já tem nele uma função absolutamente determinante: é exatamente porque a satisfação edipiana é faltante, não realizada, que ela tem a importância que Freud lhe dá na constituição e na forma do desejo. Deste ponto de vista, Lacan coloca o mito e o romance no mesmo plano, o de “dar forma a uma impossibilidade”, porém substitui a impossibilidade factual pela impossibilidade de estrutura, fórmula de Televisão em 1974, já presente no texto de 1953: O elemento da dívida está colocado em dois planos ao mesmo tempo – precisamente no plano do símbolo e no da realidade da constelação familiar tal como constituída pelo sujeito, da fantasia portanto – e é exatamente na impossibilidade de reunir os dois planos que se estabelece todo o drama do neurótico. (ibid.).
Indico também pela leitura do que se segue, que o não-neurótico não é aquele que chegou a juntar os dois planos, mas aquele que, graças à assunção do ser para a morte, teria feito ato desta impossibilidade. Desse modo, Édipo triangular ou quaternário, a definição do sintoma se aproxima nos dois, sendo a manifestação de uma verdade que se trata de decifrar para trazer à tona: verdade inconsciente de um laço reprimido para Freud, verdade de um impossível que se manifesta na depreciação do saber para Lacan. Depois de ter acentuado as semelhanças, acentuemos agora uma diferença: a interpretação do excessivo apego infantil posta em destaque é uma explicação do sintoma suposta ser em si terapêutica, o dito sintoma se dissolvendo à luz do dia como o vampiro que ele é. Sabemos que a virada dos anos 20 foi provocada por um sério questionamento pelos pacientes sobre a eficácia desta interpretação pela iluminação que tinha perdido todo o efeito de surpresa. E antes de chegar – porque esperamos todos, suponho –, à interpretação equívoca de Lacan, que deve jogar contra o sentido, recebida como tardia em seu ensino, vamos nos interrogar sobre o que pode ser o funcionamento pela operação analítica da morte nas figuras identificatórias da constelação familiar do sujeito. Não há lá, me parece, muito lugar para o sentido, e duvido que explicar a um sujeito que ele é, fundamental e estruturalmente, um sujeito para a morte, provoque grande efeito, mesmo consciente. Como 18
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então introduzi-la senão pela palavra (mot)... psiu (motus): o silêncio. Onde, sem forçar, já podemos reconhecer uma prática oposta à tagarelice, ainda que explicativa, e mesmo se um lugar para a fala plena ainda é reservado como possível. Dito de outra maneira, a morte, que representa aqui a castração, não é um mito. Da mesma maneira que no percurso de Lacan não podemos manter a oposição sumária entre o sentido e o equívoco, igualmente me parece que não podemos, no outro extremo, reportar inteiramente a interpretação equívoca ao acento posto por Lacan sobre alíngua, em uma palavra, e sobre o inconsciente real. Parece-me que a apresentação do equívoco precede as elaborações sobre o inconsciente real e não as supõe necessariamente. Assim, para me fazer compreender, o cachorro que faz miau e o gato que faz au-au no texto A instância da letra (1957/1998) já é um equívoco, como o destaque que ele coloca em todas as cadeias significantes às quais a palavra árvore se pode prestar. Com efeito, um equívoco é como uma piada. Para interrompê-lo em um momento de sideração, ele não para definitivamente a cadeia do sentido, ele a reorienta, a reordena em outro campo semântico. Para a piada, Freud nos mostrou como esse novo campo prova ser, por acréscimo, rico em satisfações tendenciosas que se tornam de súbito livremente acessíveis. Tendência supõe pulsão, donde podemos facilmente deduzir que o campo ou os campos semânticos abertos por um equívoco introduzido na cadeia do sentido fornecem o acesso ao emaranhado das pulsões e ao giro central do objeto. Dito de outra maneira, a questão é a seguinte: o uso do equívoco é ou não suficiente para mostrar uma análise orientada para o real? E minha resposta é não. A utilização do equívoco pode levar a mais-de-sentido, inclusive a uma multiplicidade de mais-de-sentido. E esses mais-de-sentido podem convergir para um pleno de sentido, um sentido do sentido, um sentido último que se denomina fantasia. E com o destaque da fantasia, o sujeito, sempre elusivo por um lado, seu ser de objeto privilegiado por outro, não estamos ainda no inconsciente real, nem na moterialidade. Dou um exemplo que não ilustrará senão o que acabo de dizer. Trata-se de uma paciente que sonha com o ator Georges Brasseur. Ele está aí, em um contexto familiar bastante vago para que nada se distinga, e, para dizer tudo, sua presença ganha toda densidade a partir de seu nome próprio pronunciado pela paciente no sonho. Ela associa: todo mundo diz que ele parece com seu pai; ele é filho de um pai célebre e provavelmente sentiu o peso disso sobre si; igualmente como com seu pai, sente o peso desta sombra tutelar. Há também a cerveja tomando seu nome próprio como um nome comum. Há, enfim, a mãe, sua relação com atores e outros hoStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 15-24 junho 2012
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mens célebres e sedutores, admitindo-se que não sejam sinônimos absolutos. Mas, enfim, este sonho continua a obsedá-la com tanta presença quanto o ator no próprio sonho. Ela continua, portanto, a pensar nisso durante e entre as sessões, até o momento em que a luz explode nela sem que ela tenha visto isto vindo: “bras-soeur”. A irmã (soeur) e os braços da irmã (“bras de la soeur”). Um sentimento de evidência se impôs a ela, ela sabe, é a chave de seu sonho. Nela, se precipita uma série de lembranças e considerações acerca dessa irmã sobre a qual ela, com frequência e não sem algum mal-estar, surpreendida no divã, não tinha nada a dizer. Animada com sua descoberta, portanto, ela me relata e com efeito fala com abundância dessa irmã, suas opiniões lhe abrindo, para sua surpresa, perspectivas infinitamente mais vastas que antes, sobre sua relação com seus objetos de amor. E seu sonho, assim como a presença permanente do nome do ator, desapareceram de suas preocupações sem que ela notasse. Vemos sentido novo graças ao equívoco, porém, ainda assim, sentido. Que este equívoco seja trazido pela própria paciente, que sabe sobre si tanto quanto os pacientes de Freud sobre o Édipo, não muda nada, porque a surpresa reside nas perspectivas que ela abre, mais do que em seu proferimento. De equívoco em equívoco, portanto, até o pleno de sentido. Um pleno de sentido suposto como a parte mais alta de um edifício ser o último, coloca um término à sua deriva infinita. Um termo, insisto, à sua deriva, mas não ao próprio sentido. E para preencher seja o que for, por mais pleno que ele seja, ele não exprime do sentido sua causa. Ele não faz mais que tentar preenchê-la, sem levantar o véu, véu que faz anteparo à projeção da cena na qual se representa este sentido, como desejo falicamente ordenado. Atrás do que esse véu esconde, há certamente um vazio, uma falta de representação, porém não há nada. Não chegamos ao ponto em que se trata, para Lacan, de levar em conta outros gozos além do fálico, que se referem ao significante apreendido na cadeia, isto é, no sentido, na história, na hystorização, tal como ele neologizou. Há um gozo próprio à língua, fora de sua apreensão na cadeia, fora do sentido e, portanto, fora do mito, que é então alíngua, em uma só palavra. É ao tocá-la que se sabe que se está no inconsciente, e que não há mais nada a dizer dela, pois ela não tem mais nenhuma espécie de sentido. Aqueles que conhecem o Prefácio à edição inglesa do Seminário XI (Op. cit.), todos agora, suponho, compreenderão que mantenho minha promessa do começo, ao solicitar novamente, porque terão reconhecido sua primeira frase: “Quando o esp de um laps... já não tem mais nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consi20
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go” (p.567). Esse não é, portanto, um último sentido, ao contrário, é um puro não-sentido último, porque os sentidos estão esgotados. Uma vez mais, podemos solicitar nossa paciente: quando o enigma Brasseur se apresentou por intermédio do equívoco, perdeu seu valor de enigma, ela simplesmente não pensa mais nisso. Seu sonho reencontrou seu estatuto fundamental de formação do inconsciente e não pode permanecer em sua memória, como a mim, que falo aqui, a não ser como traço, resíduo. Porém, isto é tão verdadeiro? E mesmo no caso do lapso, formação acidental e transitória da língua, é verdade que não tem nenhuma espécie de sentido? Quem decide esta exaustão do sentido e a partir de quê? Parece-me, salvo erro, pois não pretendo ter entendido e retido todos os comentários sobre esta primeira frase, que a dimensão assertiva que Lacan lhe dá, redobrada por seu enunciado “O que se sabe, consigo” (Ibid.), nos obriga a nos interrogar sobre o que a asserção justamente permite. Portanto, recoloco a questão: quem decide a exaustão do sentido e sobre que critério ou argumento? Como se sabe disso? Qual é esse saber que se impõe a priori, antes que seja demonstrado, explicitado? Inclusive, é impossível explicitá-lo porque, como diz a frase imediatamente seguinte: “Basta que se preste atenção para que se saia dele”. Como, com efeito, experimentar este saber em si, sem lhe prestar atenção, articulá-lo em cadeia de significantes para identificá-lo, nomeá-lo. Ainda nossa paciente: certamente, insisto sobre isso, sua atenção a seu sonho e a Brasseur desapareceu, porém é certo que este sonho não tem mais nenhuma espécie de sentido? Dito de outra maneira, eu não poderia, no caso de uma perplexidade da paciente diante de seus ditos, lhe despertar, deixando cair o tom e o ar que me conviria um: “Ah, Pierre Brasseur”. Provavelmente, ela seria levada a reconsiderar este sonho e retomaria para si um valor enigmático. Isto nos mostra que o enigma, um saber reconhecido como tal em um signo, mas cujo sentido escapa, não funciona sem transferência, sem a suposição que uma verdade ainda está aí escondida, suposição que ela fará porque me suporá não tê-la feito sem razão de ser. E, certamente, ela encontrará ainda coisas a dizer, desse brasseur (braço da irmã), seja porque ela o evocou, sem o perseguir desde então, do braço ao nado que lhe evoca certamente sua mãe. Dito de outra maneira, a transferência, a operacionalização do Outro como lugar da verdade e a suposição de um sentido suplementar a descobrir são estritamente homólogos. Como, então, o sujeito pode saber que uma formação do inconsciente não tem mais nenhuma espécie de sentido, se a transferência está ainda no trabalho? Simplesmente, não pode. E a cronologia deve, então, ser situada, de preferência, em outro sentido: quando a Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 15-24 junho 2012
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suposição de saber, isto é, a espera do saber do Outro está exaurida o sujeito se sabe no inconsciente. Daí a resposta a uma questão frequentemente colocada sobre a diferença entre as verdadeiras e as falsas saídas da transferência. Quanto às falsas, elas ocorrem simplesmente quando o analista, sejam quais forem as razões, não está habilitado pelo sujeito a responder como sujeito suposto saber, enquanto não está menos em função para o sujeito – que vai encontrar um outro que saiba ou não; quanto às verdadeiras, quando a própria função do sujeito suposto saber está apagada, exaurida, esvaziada. Dito de outro modo, enquanto a análise não está terminada, enquanto a função do sujeito suposto saber é mobilizável, podemos dizer que uma formação do inconsciente tem sempre ainda um sentido. Não foi isso o que Freud quis dizer a propósito da interpretação de todo o sonho, que sua interpretação exaustiva equivaleria à própria análise considerada em sua totalidade? E, finalmente, essa observação não vale para toda formação do inconsciente, inclusive o lapso, análise completa de cada formação do inconsciente, não encontrando seu termo senão no saber não articulável do fim da suposição de saber? Para concluir, portanto, um lembrete e uma questão. O lembrete: a interpretação desmitificada não é apenas o recurso ao equívoco em oposição ao sentido, edipiano ou pulsional, é uma interpretação que visa ao mito do sujeito suposto saber. A questão: se a atenção ao saber do inconsciente faz sair dele, isso quer dizer que não é possível falar sem colocar em jogo a verdade mentirosa, o mito; dito de outro modo, colocar em operação o Outro da verdade mentirosa e o objeto fantasioso quando se trata de falar a seus parceiros na vida. É diferente quando se presta atenção ao inconsciente, falando dele aos outros do que falando de psicanálise? Parece-me que esta questão está presente no texto de Lacan quando ele se interroga explicitamente sobre o motivo que leva alguém a ser analista, além do fato de ganhar dinheiro – e mais implicitamente sobre o que faz ele mesmo escrever sobre a psicanálise. Tradução: Jairo Gerbase Revisão: Andréa Hortélio Fernandes
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Referências bibliográficas FREUD, S. (1913). Duas mentiras contadas por crianças. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12, p. ). _________. (1938). Esboço de Psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 23, p. ). LACAN, J. (1957). A instância da letra no inconsciente ou razão desde Freud. In: _______. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 496-533. _________. (1974). Televisão. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 508-543. _________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 567-569. _________. (1953). O mito individual do neurótico. In: Ornicar 17/18. Paris, Lyse, 1979, p. 291-307.
Resumo O autor pretende, com este artigo, desmitificar a interpretação, convocada pelo uso que se faz de Édipo, acentuando as semelhanças e diferenças para Freud e Lacan quanto à definição do sintoma como manifestação da verdade e finalidade de uma análise. Para fundamentar a sua proposta, ele trabalha o conceito de interpretação equívoca de Lacan interrogando se o seu uso é suficiente para mostrar uma análise orientada para o real e também interroga de quem é a decisão do fim da multiplicidade de sentido. Conclui o seu artigo, justificando com um exemplo clínico, que utilização do equívoco pode levar a mais-de-sentido – resposta à primeira indagação –, e que, enquanto a análise não está terminada, enquanto a função do sujeito suposto saber é mobilizável, pode-se dizer que uma formação do inconsciente tem sempre ainda um sentido – sua posição diante da segunda questão.
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Palavras-chave Interpretação, verdade, sujeito suposto saber, final de análise.
Abstract In this article, the author seeks to demystify the interpretation, triggered by the use made of the Oedipus, highlighting the similarities and the differences to Freud and Lacan regarding the definition of the symptom as a manifestation of the truth and the objective of an analysis. In order to support the proposal, the author discusses Lacan’s concept of equivocation, questioning whether its use is enough to show an analysis oriented to the real, and also questions who decides about the end of the multiplicity of meaning. The author concludes the article by justifying with a clinical example, that the use of misunderstanding can lead to ‘more meaning’ – answer to the first question – and that, when an analysis is not over yet, while the function of the subject supposed to know is still mobilized, it can be said that a manifestation of the unconscious still carries a meaning – the author’s position related to the second question.
Keywords Interpretation, truth, subject supposed to know, end of analysis.
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Uma interpretação que leve em conta o real1
1. Conferência proferida em 8 de março de 2012, no Fórum do Campo Lacaniano
Colette Soler Tomei como título a primeira expressão que me veio à cabeça quando escolhemos o título para os trabalhos desse ano.2 Já que cada um fala com base naquilo que o habita, vou, de início, dizer algumas palavras sobre uma das preocupações que me animaram enquanto estava preparando esta conferência. Quando chamei a atenção para a virada implicada pela noção de inconsciente real pensava, claro, que havia ali algo não banalizado, novo, mas não que isso estremecesse todas as perspectivas práticas e, ainda assim, fiquei espantada pela surpresa produzida. Perguntei-me, então, se não havíamos, eu não diria esquecido, mas minimizado certas elaborações anteriores de Lacan. De fato, no que diz respeito à interpretação, em nosso Seminário deste ano, a questão está colocada, desde o início, tratando-se de saber qual seria a especificidade de uma interpretação que incidisse sobre o real, como se fosse preciso, para essa nova noção de um inconsciente real, uma prática da interpretação totalmente nova. Eu mesma havia colocado essa questão, mas sem respondê-la de fato e, portanto, depois de meus colegas, que falaram este ano, perguntei-me até onde seria esse o caso, até onde o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação? E de saída, não consegui me lembrar de que encontramos as ressonâncias da interpretação (à qual damos tanta importância quando falamos da alíngua), assim como a referência à poesia e aos recursos da língua, desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN, 1953/1998). Esse é o título da terceira parte deste texto: “As ressonâncias da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica”(Ibid. p. 290). Encontramos ali todas as expressões do último ensino de Lacan. A equivocidade dos símbolos, a necessidade de uma “assimilação dos recursos de uma língua” (Ibid. p. 296), o apelo à poesia, e mesmo a ideia de que as palavras, a linguagem, são corpo – corpo sutil, mas são corpo. Não estamos longe de uma moterialidade(NT) gozada. Evidentemente, tudo isso não é realmente desdobrado ali; é como se fosse algo à parte, pois seu objetivo é outro, é fazer valer a dimensão própria do sujeito como apenso ao simbólico – isso não é desdobrado, mas já está ali. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
de Paris (Soirée d’École da EPFCL – França).
2. Referência ao Seminário de Escola 2011-2012, cujo título (Une interprétation qui tienne compte du réel) é o mesmo da conferência proferida pela autora.
(NT)
Neologismo de Lacan,
criado com base nos vocábulos mot (palavra) e matérialité (materialidade).
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Primeiro desdobramento para mostrar que Lacan, desde sempre, afirma que a interpretação analítica não pode desconhecer o real. Adquirimos o hábito de distinguir o significante, o Outro, a cadeia do sujeito, de um lado, digamos, o simbólico-imaginário, e depois, do outro lado, o real. Mas em nenhum momento Lacan desconectou um do outro, e ele sempre procurou precisar como eles se ajustavam – e isso começa ainda em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. (Op. cit.). Real: o que isso significa? Com todas as definições que dele conhecemos, vou munir-me de uma primeira definição, bastante ampla. O real é o que não é nem simbólico, nem imaginário; Lacan acabará por dizer que é o que ex-siste a um e outro, antes de escrevê-lo como terceira volta do nó. O que dizer disso? Ex-sistindo, o real é impredicável, já que não se predica nunca, a não ser com significante. Em 1976, ele diz antinômico à verossimilhança – comentei bastante esse ponto; ora, a verossimilhança participa, ao mesmo tempo, da interpretação e do sujeito, e está sempre do lado dos semblantes. Mas Lacan não parou de criar esquemas que respondem à questão do acesso. Isso vai do esquema L ao nó borromeano, passando pelo grafo. O que ele disse muito cedo sobre isso é que ele vem a um lugar, e mesmo que ele volte sempre ao mesmo lugar – o que não prejulga aquilo que ele é. Para que haja um lugar é preciso o simbólico, é verdade, por definição, mas o que é heterogêneo ao S, talvez conectado com ele, mais precisamente alojado no S. Tese constante em Lacan, e ele disse lugar antes de dizer nó, mas era para resolver o mesmo problema. Poderia tomar o esquema L e R para abordar a questão do lugar do real, mas escolho o grafo, que combina a estrutura da fala e a da linguagem e que esquematiza, portanto, ao mesmo tempo, a estrutura do sujeito e a prática analítica. Pois bem, a primeira interpretação que leva em consideração o real, se lermos bem, é dada em A direção da cura, em 1958. Evidentemente, isso se lê melhor, de fato, quando se acrescenta à Direção da cura (1958/1998), Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960/1998), em que Lacan dá seu grafo, ao passo que na Direção da cura (Op. cit.) ele dispõe dele, mas não o dá e fabrica algumas obscuridades. Essa interpretação não é o que uma leitura rápida poderia levar a acreditar, ou seja, que a interpretação neste texto seria uma interpretação que opera com o significante do falo, com minúscula. É verdade que Lacan insiste em dizer a importância deste significante, e que o anseio do neurótico é de ser o falo, o significante da falta do Outro do discurso, mas é a todos, a cada neurótico que poderíamos dizer “seu anseio é de ser o falo”. Ora, a interpretação verdadeira é sempre particular. O falo serve para situar a estrutura da neurose, mais do que para interpretar, em cada caso, sua particularidade. Vocês conhecem a 26
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fórmula da interpretação de que estou falando, ela se encontra na página 648 dos Escritos: “A que silêncio deve obrigar-se o analista para evidenciar acima desse pântano (a literatura analítica), o dedo erguido do São João, de Leonardo, para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que se deve desdobrar sua virtude alusiva?” (LACAN, 1958/1998). Pela expressão “horizonte desabitado do ser” entendam desabitado dos significantes que constituem o lugar do significante, é o que se escreve S( ) no grafo, e cujo dedo apontado designa o lugar. Esse lugar é o do real no inconsciente estruturado como uma linguagem. O comentário de Subversão do sujeito... é mais explícito; ele diz: “O que sou Eu?” Ao escrever Eu com maiúscula, para marcar bem que Eu não é o sujeito suposto ao significante, mas o ser, o referente que o suporta. Resposta: Eu sou no lugar do gozo, esse gozo que falta ao lugar do Outro, já que o significante não é algo vivo. Entretanto, evocar a falta no Outro não deve presidir a nenhuma religião da falta; Lacan diz isso explicitamente, vejam nas páginas 832-833 de Subversão do sujeito.... S( ) não é matema de um simples furo, é um significante que é suposto estofar a cadeia do inconsciente e o furo, ele se escreve . Qual é esse significante? É uma questão complexa, sobre a qual Lacan patinhou um pouco creio eu, mas, em todo caso, há variada. Deixo a coisa em suspenso, mas a escrita do grafo implica que o dedo da interpretação esteja apontado para um significante no lugar do real. Isso não é a mesma coisa que o significante no real, que está fora de cadeia. O único lugar possível para o real na cadeia significante é aquele em que o deslizamento metonímico para, o do ponto de estofo, portanto, e não esqueçamos que a parte esquerda do grafo escreve os pontos de estofo das duas cadeias significantes. Apontar o dedo para este lugar onde o Outro não responde, mas onde o falante está inscrito sob um significante que não é do Outro: qual interpretação seria essa? Um dedo apontado, isso não fala, isso não articula nada; isso mostra, é uma interpretação que não diz nada, silenciosa – dela fiz um título –, alusiva. Esse gesto é uma imagem para designar um dizer que indica sem enunciar, que é como um colofão do lugar do ser de Gozo. É uma interpretação não do Gozo, mas pelo gozo. De fato, no fundo, uma interpretação – e isso levanta sempre a mesma lebre – isso diz sempre: por causa do Gozo. Creio que esta frase de A direção da cura era uma pedra de espera no ensino de Lacan. Com efeito, na sequência ele situou a interpretação de outra forma, no nível do que ele chama de “uma via de confluência” (LACAN, 1958/2003, p. 629) para designar em seu grafo não a cadeia inconsciente do gozo, mas a linha de seu significado em que corre o regato do desejo. Isso é o mais conhecido: interpretamos o desejo. A interpretação do desejo orienta-se não para o lugar do real, ponto de estofo da Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
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cadeia inconsciente, mas para o intervalo significante em que, no grafo, se coloca a linha que vai do x do desejo à fantasia que suporta este desejo. É uma versão bem freudiana da interpretação, que tenta responder à questão “che vuoi?”, que tenta, portanto, dizer o que isso quer dizer e o que isso quer nas falas como nos sintomas do analisante. Em outras palavras, uma interpretação que procure determinar o significado da cadeia inconsciente. Esse significado é depositado numa dupla escrita no grafo, de um lado o x do desejo, e do outro a fantasia.
Via de confluência: d para $ ◊ a Ali se abre a grande questão de saber se essa interpretação que incide sobre o significado é do sentido ou da significação. Lacan pôde afirmar um e outro: a interpretação é uma significação e a interpretação é sentido que vai contra a significação. Com isso, poderíamos acreditar que a preocupação com o real não está aí, e seríamos até mesmo tentados em dizer “ainda não”, se pensarmos em seu último ensino. Mas não é esse o caso. Quer se trate de significação ou de sentido, Lacan sempre colocou e respondeu à questão de saber o que há de real em cada um. Começo pela significação. Ela é gramatical por definição – pon28
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to de estofo, portanto –, e dela Lacan diz que o sujeito como efeito de significação é “resposta do real” em O aturdito (1972/2003). Qual real? Ele precisa: o do significante assemântico sem nenhuma espécie de sentido – é a própria definição do real fora de sentido. Estamos em 1973, página 458 de O aturdito. (Ibid.). Isso esperou tão pouco seu último ensino, que Lacan lembra que essa tese data de abril de 1956 – seminário As psicoses (LACAN, 1955-1956/1988). Evidentemente, condensado assim, eu não diria que é algo “límpido”; mas Lacan explica suficientemente a junção da significação ao significante fora de sentido, e de forma definitiva, creio eu, em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1973), na antepenúltima lição. Cito: A interpretação visa ao significado, “é uma significação que não é qualquer uma... que reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível” (LACAN, 1963-1964/1985, p. 236). Em outras palavras, ela inverte o efeito de metáfora que havia reconduzido um significante no significado. S1
S2 Interpretação significativa
Esta tese é implicada pela concepção de metáfora exposta desde A instância da letra, (1957/1998), ou seja, que o significante desaparecido manifesta-se indiretamente por um mais de significado. Aliás, a propósito de Freud e daquilo que ele lhe atribuía de atrevimento na interpretação, Lacan notava que quando ele denunciava uma pulsão, isso era um advento de significante. Em outras palavras, não há nova significação sem novo significante. Lacan insiste: “o que conta” – diz ele, para o advento do sujeito – “não é o significado em questão, mas que ele veja... para qual significante – não senso, irredutível, traumático, ele está como sujeito assujeitado” (Ibid, p. 237). É, portanto, uma validação da interpretação significativa. E o analista está suposto saber a significação. Essa significação não é sem significante primariamente recalcado, que a interpretação significativa evidencia. Embora significativa, ela ainda assim é “intrusão de significante” (Ibid). O sintoma estava ali definido como metáfora, e habituamo-nos a opô-lo ao sintoma letra, una, fora de sentido, mas Lacan precisou isso desde este momento, esse sintoma é construído sobre um primeiro significante originário, primário, o do traumatismo. O significante do trauma é um S( ), um significante que não é um significante incluso no Outro, que se fixou nas contingências dos encontros de gozo. Ora, em si mesmo ele não tem nenhuma espécie de sentido, ele vai, aliás, renomeá-lo Traço Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
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Unário; e teria sido preciso dizer desde já que ele era do inconsciente real, salvo que Lacan postulava, então, que ele fazia cadeia com os significantes da demanda. Está, portanto, bem certo que mesmo enquanto ele afirmava o inconsciente estruturado como uma cadeia, Lacan postulava sua ancoragem na moterialidade de um significante fora de sentido, aquele mesmo que o dedo apontado da Direção da cura (Op. cit.) designava. Tudo isso é inscritível sobre o grafo na linha em feedback que religa a significação do fantasma e o S( ). Quanto ao sentido, que é o sentido do desejo, ele não é gramatical, incompatível com a fala, dizia a Direção da cura, inarticulável embora articulado, ele foge, Lacan precisa em 1973. A interpretação a que visa, Lacan situou-a inicialmente pelo significante fálico, significante da falta. É o caso na Direção da cura (Op. cit.). E em seguida, com o passar dos anos, ele reformulou o que falta em termos de objeto a, perda de gozo, e ele disse, finalmente: a interpretação “incide sobre a causa do desejo” – essa causa que só é causa porque falta. Esse objeto a causa do desejo, é ele algo de real? Lacan disse a respeito dele, mas disse outra coisa. Digamos, inicialmente, que sua subtração como perda de uma parte de vida é um efeito da linguagem no real, como podemos notar com o lugar do objeto no coração do nó. Em seguida essa causa, como impossível de dizer, impossível de subsumir sob um significante – que, portanto, falta ao saber segundo a fórmula da Proposição de 1967, pois bem – faz “função de real” (voltarei a essa expressão) em relação a tudo o que pode se formular e se imaginar de suas quatro substâncias episódicas que, antes de Lacan, eram colocadas na conta do pré-genital. A interpretação do sentido visa, portanto, àquilo que assombra a metonímia da fala e que Lacan designou inicialmente por (-φ) antes de dizer a e mais-de-gozar (Cf. sua crítica da hermenêutica no Seminário 11, 1964). Ele precisa que o que falta à hermenêutica, particularmente a de Ricœur, não é se ater apenas às significações, é não levar em conta a realidade sexual da linguagem, do inconsciente, que é a realidade da castração e a realidade pulsional (de novo as quatro substâncias). Que a interpretação possa visar ao intervalo significante que se anima do objeto, tomado ou como falta ou como mais-de-gozar; é uma tese que se mantém até o fim em Lacan, já que a análise não opera sem o sentido (Posfácio ao Seminário 11, 1973/2003). O objeto a é o trilho por onde a demanda a ser interpretada advém ao mais-de-gozar, na Introdução à edição alemã dos Escritos...(1973/2003): a análise entrega ao analisante o sentido de seus sintomas, isto é, o desejo irredutível, contudo, determinado, aos quais eles estão enodados e, como podemos ver ainda na última conferência sobre Joyce, a análise desvaloriza o gozo fora de sentido recorrendo ao sentido. 30
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A moterialidade do inconsciente linguagem não está no intervalo significante; ela não é nem no sentido nem significação, mas está sobre as linhas, como eu me expressei. Mas a operação interpretativa do intervalo, que acabei de dizer, simultaneamente inverte a metáfora do trauma e segue a pista da metonímia do objeto – essa interpretação não está separada, e não é separável do que há sobre as linhas. Que vocês tomem o inconsciente como Significação ou como Sentido, ou como cadeia, a interpretação não pode operar senão por meio dos recursos da língua que, aliás, fabrica os três. É o que explica, penso eu, a constância do vocabulário que Lacan aplica à interpretação do começo ao fim de seu ensino: ressonância, efeito poético, corte, equívoco; alusão da Direção da cura é uma guisa disso, sem falar do “cristal linguístico” e outros equivalentes. Notem que na série não coloco costura, embora O aturdito evoque a costura – Michel Bousseyroux deu destaque a isso,3 embora Lacan retome isso com os termos de nó [épissure] e emenda [raboutage], que ele utiliza para o nó borromeano. Mas essa dimensão da remendagem, se vocês me autorizarem este termo, não define a interpretação em si mesma, mas somente o seu resultado, seus efeitos de transformação sobre o dizer analisante da demanda. Portanto, insisto, o destaque sobre a função dos equívocos da alíngua na interpretação está presente desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Op. cit), e nunca foi desmentida. Entretanto, na série dos termos que acabo de mencionar é, ainda assim, o termo equívoco que acabou prevalecendo, por reabsorver os outros, e até mesmo o poético, ao qual Lacan, no entanto, deu mais destaque no final, pois o próprio poético opera pelo equívoco. Então, e por quê? É preciso responder a essa questão para apreender bem que não se trata nem de um gosto nem de uma veneta de Lacan. Por que o equívoco? À questão “por que o equívoco?” pode-se responder de forma geral: porque o inconsciente já procedeu por equívoco. Mas é necessário ser mais preciso. É em O aturdito (Op. cit.) – antes do nó borromeano, portanto – que Lacan deu seu maior desenvolvimento à função do equívoco e àquilo que funda essa função. Esse texto traz muitas outras coisas: inicialmente, a valorização do “que se diga”, que não procede da estrutura linguística S/s, e que até mesmo a condiciona. Em seguida, algo capital, as fórmulas de sexuação construídas com base na função proposicional, Φ(x). É uma função de gozo que inclui a castração como necessária. Essa função estando colocada, então lemos ali o seguinte: “Nada funciona, portanto, senão pelo equívoco significante” (LACAN, 1973/2003, p. 459). Não se trata da operação da interpretação, e o “portanto” dá a razão da prevalência do equívoco, ela não é nada além disso: a função Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
3. Referência à conferência de abertura do Séminaire École 2011-2012, proferida em de 13 de outubro de 2011, no Fórum do Campo Lacaniano de Paris (França).
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fálica não dá acesso, é a sua expressão, ao real simbólico. Seria preciso, portanto, escrever, a partir do momento em que que a função é colocada, o que Lacan chama de “o ponto de suspensão da função”. Φ(x). O que quer dizer que o Um fálico, que o conduzirá a formular em seguida “Há um” [y a d’ l’Un] e nada mais, o Um fálico não tem parceiro propriamente sexual. É esse real da não relação, o real próprio ao simbólico, portanto – o que ele chamava anteriormente de a carência de toda pulsão genital –, que motiva o papel determinante do equívoco para o falante. Ela opera primariamente para instaurar o parceiro... pseudossexual. Não há nenhuma necessidade de evocar uma pulsão poética do falante qualquer, o equívoco é somente, eu cito, “a astúcia por meio da qual o ab-senso da relação se tamponaria ao ponto de suspensão da função” (Ibid.). Em outras palavras, não há outro complemento ao Um do gozo fálico senão aquilo que se elucubra como objeto a ou como sintoma pelos equívocos do inconsciente linguagem. Equívoco Φ(x). (a ou S) Se perguntarmos “por que essa função de equívoco?”, é preciso responder por causa do real, por causa do impossível do real simbólico. E isso não data do último ensino de Lacan, isso não data sequer da psicanálise, embora seu dizer o revele: Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estruturado ‘como uma linguagem’, isto é, a alíngua que ele habita, está sujeito a equívoco pelo qual cada uma delas se distingue. Uma língua, entre outras, não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela. É o veio em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar sua saída, o real de que não existe relação sexual – se depositou ao longo das eras. (LACAN, 1973/2003, p. 492).
E, de fato, cada inconsciente, já desenvolvi isso, faz empréstimo da grande reserva de sua língua e de seus equívocos para fazer suplência à falta de relação. Em 1969, no resumo sobre O ato psicanalítico, Lacan havia postulado que os equívocos significantes do “inconsciente sem sujeito” (LACAN, 1969/2003, p. 372) determinavam não o sujeito, mas o parceiro-objeto, objeto causa do desejo ou mais-de-gozar. Eles não determinam menos o parceiro sexual, sintoma de gozo, introduzido em R.S.I. A razão pela qual os equívocos da alíngua podem funcionar contra o gozo do sintoma é por32
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que ele se fez com base na alíngua. E recordemos a observação de Freud ao dizer que não se pode interpretar o sentido de um sintoma corretamente, quer dizer com efeitos de modificações, sem as associações verbais próprias do paciente. Isso indica que é a própria técnica freudiana com seus resultados que implica a função da alíngua na constituição não somente da significação e do sentido, em outras palavras, da verdade dita pela metade. Lacan acrescenta sua função na constituição das manifestações fora de sentido do inconsciente real, que não é uma cadeia. Dessas manifestações, a que nos interessa antes de tudo, dentre elas está sintoma – embora lapsos, chistes e mesmo o sonho ponham uma lenha bem-vinda na fogueira(NT) da tese. Embora seja preciso não esquecer, ainda, que o equívoco não se reduz à homofonia. Lembro-lhes das três versões das ressonâncias do equívoco em O aturdito (Op. cit.): homofônicas, que jogam com a raiz fônica de todo significante; gramatical, que faz ponto de parada “de um real” (LACAN, 1973/2003, p. 476), e coube a Lacan estender a todas as estruturas clínicas o famoso “eu não o amo”, que Freud reservava à psicose; lógica, aí o equívoco assume a forma do paradoxo, especificamente os dos conjuntos russelianos e do transfinito cantoriano que não deixa de estar em jogo na relação com o sexual e no dizer da demanda. Então, se o psicanalista se utiliza do equívoco em sua interpretação apofântica é porque o equívoco já estava ali, já havia operado para dar a cada um – segundo uma expressão que Lacan empregou – ou igualmente para lhe proibi-la. É como dizer que o parceiro, longe de ser eleito por uma pulsão genital qualquer, só se constitui com base nos traços vindos do inconsciente. Traço de repetição, dizia Freud, mas também traços ditos de perversão, e aí podemos nos lembrar do famoso exemplo do brilho no nariz etc. – este ponto mereceria ser desenvolvido. É com relação ao equívoco homofônico que Lacan disse: “Afirmo que todos os lances são permitidos aí em razão de que, estando qualquer um ao alcance deles, sem poder reconhecer-se nisso, são eles que jogam conosco”. Somos, portanto, jogados pelo equívoco sem saber e sem nada poder fazer. “Exceto quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém. Onde isso for conveniente para o seu fim” (LACAN, 1973/2003, p. 493). Qual é essa finalidade? É sobre esse ponto que o último ensino introduz uma mudança considerável, mas que não muda nada no papel do equívoco na interpretação: ele diz respeito à forma de conceber a relação da verdade, que é subjetiva por definição, com o real fora de sentido, que não é subjetivo – embora seja singular, próprio a cada um. Essa mudança engaja um outro movimento, sem dúvida, não nas modalidades da interpretação analítica, mas em sua própria visada e, portanto, na direção prática da cura. O aturStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
(NT)
Em francês, “apportent
une eau bien venue au moulin de la thèse”, expressão que significa “dar recursos”, “dar involuntariamente argumentos num debate”.
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dito definia essa finalidade essencialmente nos mesmos termos e na mesma topologia do toro e da banda que os da Proposição de 1967... (Op. cit.). Ele postulava que a intervenção do analista visa rescindir o sujeito (é o termo que Lacan emprega), a produzir, portanto, o corte – do qual o objeto cai. Com a noção do falasser e o esquematismo do nó borromeano – solidário da ideia de que o inconsciente não é cadeia, mas língua que embreia o corpo de gozo – a problemática se inverte. O nó, e há sempre um nó já feito, faz manter juntos esses três heterogêneos que são R, S e I, ou seja, a moterialidade do verbo, o gozo do corpo vivo e a realidade assexual do corpo imaginário. Nó já feito, eu disse, mas poderia ter dito também poema já feito. Se o falasser é borromeano, a finalidade não pode ser de cortar, mas no máximo de corrigir o nó, de amarrar de outra forma. Não é mais a finalidade de rescindir o sujeito, mas de assegurar a consistência do falasser. Em vez disso, temos a esquizofrenia, o real que vai embora sozinho, ou a doença da mentalidade, o imaginário está à deriva. O nó já está feito, mas quando isso aconteceu? Na hora do traumatismo, sem dúvida, contingência que se inscreveu em necessidade do sintoma, que não cessa de se escrever. Preciso que quando digo sintoma, falo do sintoma tal como definido em R.S.I., como um elemento gozado do inconsciente – esse sintoma é o da moterialidade externalizado no real, portanto. Vocês podem observar que o vocabulário se inflecte paralelamente a esse novo esquematismo e que o parceiro pseudossexual, situado até então como causa do desejo, é pensado, além disso, como parceiro sintoma. Isso é explícito a partir de R.S.I.; a tese culmina na última conferência sobre Joyce, e mais ainda com a fórmula “identificação ao sintoma”, que é fixão – com um “x” de gozo –, algo bem diferente de corte. Lacan hesitou colocar esse sintoma no nó borromeano. Inicialmente, ele pensou-o como uma intrusão do real do gozo no campo da linguagem. Era coerente com a tese nova de Mais, ainda, dizendo que o ser, ao falar, goza e que o saber inconsciente se goza – o que, uma vez dito, não deixa mais margem de dúvida. Em seguida, ele se corrigiu e disse que o sintoma era, antes, intrusão do verbo, efeito do simbólico no campo do real, portanto. O que inscreve ele próprio fora do simbólico.
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Esse ponto tem uma grande importância, pois isso quer dizer que ele está fora da dialética do discurso, ao passo que o gozo de falar não é fora dialético. Vemos bem o que Lacan procurava resolver, e é precisamente o problema da análise: se falar é um gozo, como sair do gozo tomado nesta infinita deriva da fala de verdade? Não basta responder que ela está estivada à constância da significação da fantasia, e ao significante assemântico do traumatismo. Não é que isso seja falso, mas isso não o impede de correr atrás de sua miragem, mesmo que seja em círculos. Lacan, portanto, tratou de produzir uma outra resposta pelo real – a do sintoma. Essa é toda a questão do Prefácio... (Op.cit.) Volto a isso, então, brevemente. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
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Há sobre esse ponto um problema de interpretação. Depois de ter evocado sua invenção do passe, em que não se pode fazer nada melhor senão testemunhar a verdade mentirosa, ele acrescenta: “Eu o fiz por haver produzido a única ideia concebível do objeto, a causa do desejo, isto é, daquilo que falta” (LACAN, 1976/2003, p. 569). Ele prossegue: “A falta da falta constitui o real, que só sai assim, como tampão” (Ibid.). Noto, inicialmente, que não há nessa fórmula nenhum equívoco. Lacan não disse tampão do real, que seria equívoco por causa do “de”; receio, em contrapartida, de ter eu mesma empregado essa expressão por falta de precisão. O real só advém ali; tampão, ele tampona. Onde, então, é esse “ali”? Ali onde havia a falta do objeto que ele acaba de evocar como razão de sua invenção do passe. Ele tampona o que falta. É sua função, a do real, e seu único mérito. Ele tampona e limita, portanto, isso a que aquilo que falta preside, ou seja, a infinita deriva da verdade. Esse tampão pelo real, na medida que tem nó, tem no nó uma função homóloga, que era a função do ponto de estofo na cadeia significante: é um princípio de parada. Segunda observação: o que dizer da expressão “a falta da falta faz o real”? Eu havia notado no início, que ele emprega ali uma expressão que ele havia desgastado a propósito da angústia para designar a causa não do desejo, mas da angústia com relação ao Outro. Não podemos, no entanto, concluir daí que é da angústia que ele fala quando ele diz o real tampão, pela simples razão de que não poderíamos, em nenhum caso, dizer que a angústia “faz” o real. A angústia é um afeto que, como qualquer afeto, é um efeito, um efeito que responde ao real, afeto tipo de qualquer advento de real mesmo. O real feito pela falta da falta, aquele do qual não se pode dizer que é verdadeiro, antinômico a qualquer verossimilhança é somente o sintoma letra, o que os falasseres têm de mais real, diz Lacan, que se inscreve entre S e R, ao passo que a angústia é um efeito do real, claro, no imaginário. A tese é, aliás, freudiana, pois ele situava justamente a angústia no eu. Coloca-se a questão de precisar a relação desse real tampão inverossímil com a Verdade. Antes dessas últimas teses, depois de 1975, Lacan havia articulado Verdade e Real. Em Radiofonia, (1970/2003) resposta à questão IV, , ele diz: “a verdade situa-se por supor o que faz função de real no saber, que se acrescenta a ele (ao real)” (p. 443). O saber que se acrescenta ao real é o do inconsciente, que vocês o tomem como linguagem ou como alíngua. O inconsciente-saber acrescenta-se ao real fora do simbólico. O que é que faz função de real no saber? Não é o sintoma que, por sua vez, está no real, mas não no saber. Lacan respondeu: o impossível. A tal ponto que podemos dizer que é do lado das modalidades lógicas que o dizer da análise estabelece, que procuramos o que faz função de 36
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real no saber inconsciente. Sob uma dupla forma: o que o dizer da análise não pode escrever e o que ele não pode não escrever. É, em primeiro lugar, o impossível da relação, não há relação sexual que valha para algo real e, em segundo lugar, a contingência da “função proposicional” F(x) que a análise estabelece, o há o Um [y a de l’Un] demonstrando indiretamente o não há [y a pas]. A verdade, irmã tanto do gozo como da castração – vocês reconhecem as duas expressões de O avesso da psicanálise (1969-1970/1992) – tinha bem algumas contas a ajustar com essa função proposicional, e Lacan podia até mesmo postular que o real, o do impossível da relação sexual, “comanda a verdade”. E se vocês olharem a Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973/2003) verão que no fim, o “parceiro que tem chance de responder” (p.555) ao amor de transferência, aqui o próprio Lacan, responde em termos de modalidades. Em contrapartida, a tese do Prefácio...(Op. cit.) é, aparentemente, totalmente diferente: nenhuma relação entre verdade e real, a partir do momento em que o real é o fora simbólico. A verdade sempre, em falta de uma última palavra, não pode dizer a verdade desse real, e o real – falta da falta, fora de sentido – é antinômico a qualquer verossimilhança. Não interpretamos, portanto, a fala de verdade com o gozo fora de sentido do sintoma, pois seu real não comanda a verdade, ao passo que a interpretávamos em parte com o que fazia “função de real”, ou seja, as modalidades lógicas e também a pulsão. Ele também não advém daí, contingência do trauma; no máximo ele detém sua mentira, ele a faz se calar, tamponando-a. Neste sentido, o afeto do real é justamente a certeza, o fora de dúvida, e isso é um problema, talvez, para o dispositivo do passe. Não há relação, então, mas há um nó possível no qual o real faz limite à verdade mentirosa. Sua letra é do significante assemântico, sem nenhuma espécie de sentido – vocês reconhecem aí as primeiras expressões de Lacan –, mas é significante que passou ao real, não ao recalque de onde poderíamos desalojá-lo pela interpretação significativa, que passou ao real por um gozo que não é o da verdade. Esta letra, diferentemente dos signos que deciframos, não é substituível. O que pode uma interpretação que leve em conta esse real? Eu havia colocado a questão. Será que seria o dedo apontado para o gozo opaco, esse gozo que se excetua do gozo da fantasia que, por sua vez, não é opaco, mas familiar para cada um? É ele, sem dúvida, essa fixão opaca, que é constituinte daquilo que Lacan chama, na última lição de Mais ainda, para cada um, de “a unidade da copulação com o saber da alíngua” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 196), essa unidade que faz de cada um de nós “unaridades”, 1977. Essa unidade manifesta-se como o Um-nó que nós somos, e ela não vai sem o Um-dizer, que representa o quarto círculo do nó? Ora, a Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 25-40 junho 2012
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análise, inconsciente real ou não, opera por e no nível do dizer. Em outras palavras, nós somos poema, ou seja, sinthoma, o sintoma-letra aí estando incluído, mas não identificável, a não ser a título hipotético. É isso que a referência final à poesia implica. Somente ali onde o poeta faz cálculo do equívoco para produzir um dizer que lhe seja próprio, o dizer de seu poema; pois bem, o analista não pode fazer igual, ele não pode calcular sua interpretação, a verdade sendo tão incalculável quanto o real. Ele vai ali, portanto, a esmo, “todos os lances são permitidos”. Além disso, ele tem que lidar com um poema que não é o seu, e que ele não conhece, mas que lhe pedem, eventualmente, para corrigir. Então, para levar em conta esse poema como real, sinthoma, ele se utiliza, em seu dizer, de um outro real, o da alíngua e de seus equívocos, os quais podem jogar contra o gozar do poema, já que é por eles que o poema se fez. Não obstante, remanejar o poema – isto é, o nó – não é, necessariamente, corrigir o gozo opaco, nem encontrar a palavra do real. A análise é o que faz verdade, mas está excluído que ela faça verdade do real. Então, retificar o poema é amarrar de outra forma, por nó [épissure] – sutura, diz Lacan –, e isso consiste, antes, a mudar não o núcleo opaco ininterpretável, do qual tudo indica que ele permanece opaco, mas a balança entre verdade e real, entre o gozo do sentido e o gozo daquilo que o tampona e que faz ali como que um contrapeso. É por essa razão que Lacan não disse que, no passe, vinha-se testemunhar do real, mas da verdade mentirosa. Não se testemunha do real tão pouco quanto não se interpreta dele, dado que testemunhar dele ou interpretá-lo seria fazê-lo passar à verdade. Aliás, podemos constatar que a partir de 1975-1976, todas as elaborações de Lacan consistem em explorar modificações possíveis do enodamento sob o efeito do dizer analítico, esse dizer que não é o do analista, é o que resulta dos efeitos do equívoco interpretativo sobre o dizer analisante. Sua morte põe ali um termo, sem dúvida, prematuro, em que o momento de concluir que fica em suspenso deixa um certo sentimento de algo inacabado. Tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira Revisão: Dominique Fingermann
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Resumo Nesta conferência a autora investiga a especificidade de uma interpretação que incide sobre o real, interrogando se ela implica uma nova concepção da interpretação. Após longo percurso por várias obras de Lacan, e tomando o grafo do desejo para analisar essa questão, a autora verifica que as ressonâncias da interpretação, que toma por referência a poesia e a alíngua, existem desde Função do campo e da linguagem em psicanálise. Concluindo com Lacan que, se a interpretação analítica não pode desconhecer o real, a análise não opera sem o sentido, tese que Lacan mantém até o fim, pois, a análise, inconsciente real ou não, opera por e no nível do dizer.
Palavras chave Análise, interpretação, inconsciente real, sentido.
Abstract In this conference, the author investigates the specificity of an interpretation which acts upon the real, questioning if this implies a new conception of interpretation. After a long trajectory through several of Lacan’s works, and taking the graph of desire to analyze the question, the author verifies that resonances of interpretation, taken as reference from poetry and lalangue, have existed since The function and the field of speech and language in psychoanalysis. Ending with Lacan, the author affirms that if the analytical interpretation can not ignore the real, the analysis does not operate without the meaning, thesis supported by Lacan until the end, once the analysis, unconscious real or not, operates for and at the level of saying.
Keywords Interpretation, unconscious real, sense, analysis.
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ensaios
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Interpretação e poesia Luis Guilherme Mola A interpretação ocupa um lugar central na teoria e na técnica da psicanálise. Indissociável do conceito de inconsciente é o ofício por excelência do analista. No entanto, não há consenso entre as diversas correntes psicanalíticas sobre o que seria interpretar. Com base no ensino lacaniano, em vez de confortar, explicar, traduzir ou dar consistência ao que o analisante fala, a interpretação deveria intrigar, surpreender, descolar o sujeito da identificação com o saber que ele traz sobre o seu sofrimento. Soler (1991, p. 8) chega, inclusive, a afirmar que: “Quando o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem estar seguros de que isso não é uma interpretação”. A tática do analista, ao interpretar, visa justamente dissolver esses “coágulos” de sentido que fixam o sujeito em seu sintoma, obturando o deslizamento do desejo pela trama de significantes que o representam. O corte, o enigma, a citação, o jogo com as homofonias, com a polissemia, o silêncio são alguns dos recursos utilizados pelo analista, uma vez instaurada a transferência, para desalojar o sujeito do inútil conforto das explicações e justificativas sobre o seu sofrer. O percurso de uma análise passa pelas desconstruções, reconstruções e novas desconstruções desses sentidos. Esse movimento tem como efeito um esgotamento do sentido, e não raro, diante de uma intervenção, ouvimos de nossos pacientes: “Isso é óbvio!” Diferente do “não sei o que dizer” do início do tratamento, parece haver um “não há mais o que dizer” que demanda do analista uma intervenção. No Seminário 24, Lacan (1976-1977) afirma que: “apenas a poesia, eu lhes disse, permite a interpretação...”.1 Qual poderia ser o sentido dessa aproximação entre poesia e interpretação? Estaria considerando a poesia como resultado da interpretação ou afirmando que haveria uma dimensão poética no ato mesmo de interpretar? Se tomarmos essa segunda acepção, o que seria esse ato poético? Um bom ponto de partida pode ser a conhecida distinção aristotélica entre poíesis e práxis. De acordo com Chauí (1994), poíesis é a ação de fabricar, executar, compor, produzir algo que pode ser tanto uma obra manual, como uma estátua ou artefato, quanto uma obra intelectual, como um poema. Sua principal característica é o fato de ser uma prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou são de natureza distinta. Já a práxis é definida como ato, ação, atividade, maneira de agir e ser, ou seja, uma prática na qual Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 43-48 junho 2012
1. No original: “Il n’y a que la poésie, vous ai je dit, qui permette l’ interprétation...”.
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o agente, a ação e o resultado são inseparáveis. A ética, a economia e a política seriam exemplos dessa categoria de ação. Ora, não estaríamos aí diante de uma contradição? O que seria uma “práxis poética”? Segundo Abbagnano (1982), podemos identificar na filosofia três concepções a respeito da poesia: a poesia como estímulo emotivo, a poesia como verdade e a poesia como modo privilegiado de expressão linguística. Neste trabalho trataremos apenas das duas primeiras concepções. A primeira dessas definições é a mais comumente associada à poesia: por meio de imagens e jogos de palavras o poeta procuraria expressar emoções e evocá-las em seus ouvintes. Ora condenada, ora valorizada, tal concepção privilegia a dimensão da significação promovendo algum grau de identificação entre o ouvinte (ou leitor) e o poeta. Embora essa seja uma das características fundamentais da poesia, penso que não seja a ela que a colocação anteriormente citada de Lacan se refira: creio que não caberia ao analista, por mais inspirado que seja, oferecer ao analisante formas de expressão para aquilo que ele não sabe ou não consegue dizer. A segunda das acepções de poesia parece-me mais instigante para discutir a possibilidade de um ato poético na análise. Essa concepção tem início com Aristóteles que afirma que o saber poético seria superior ao saber histórico uma vez que este se refere ao particular, enquanto a poesia, por tratar “das coisas possíveis conforme a verossimilhança e a necessidade”, exprimiria um saber sobre o universal (ABBAGNANO, 1982, p. 737). Dentro desta vertente há uma subdivisão: aqueles que sustentam que a poesia possui uma verdade distinta por grau e natureza da verdade filosófica (o que deu origem à estética moderna) e outra que afirma que se pode perceber na poesia a verdade filosófica absoluta. É dentro dessa concepção mais radical de poesia que há uma referência a Heidegger que merece ser citada: A poesia é a denominação fundadora do ser e da essência de todas as coisas; não é um simples dizer qualquer que seja, mas é aquele pelo qual acha-se revelado inicialmente tudo aquilo que nós debatemos e tratamos em seguida na linguagem de todos os dias. Por conseguinte, a poesia nunca recebe a linguagem como matéria para manejar e que estaria pressuposta a ela, mas pelo contrário, é a poesia que começa a tornar possível a linguagem (ABBAGNANO, Ibid., p. 738).
A verdade poética não estaria atrelada a algum conteúdo específico, mas ao princípio que revela sob a lógica dos códigos linguísticos uma outra relação que se caracteriza fundamentalmente pela contingência. É possível reconhecer certo grau de contingência no caráter 44
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arbitrário do significante, fato, aliás, explorado amplamente pela poesia absurda que recorria a significantes desprovidos de sentido para provocar um estranhamento no leitor. Mas curiosamente o próprio non-sense parece atrair o sentido, podemos sentir algo desse movimento ao escutarmos um trecho da poesia The Jabberwocky, de Lewis Carrol (em tradução de Augusto de Campos): “Era briluz. As lesmolissas touvas roldavam e relviam nos gramílvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, e os momirratos davam grílvos.” (http:// www.insite.com.br/rodrigo/misc/fun/jaguadarte.html). Como comenta Dolar (2007, p. 175), são inúmeras as interpretações e comentários sobre este poema: “o que prova que o absurdo tem mais sentido que o sentido normal e que longe de estar ausente, há muito dele aí”.2 Entretanto, a verdade poética parece apontar para uma contingência de outra ordem, que envolveria a relação do significante com aquilo que possibilita sua existência e, no entanto, não participa de sua lógica: a voz. A voz, que faz com que o gozo escoe pela fala, que marca a singularidade daquele que diz algo. Costuma-se dizer que as poesias devem ser lidas em voz alta, o som das palavras, desnecessário para a compreensão do sentido de um poema, é um aspecto essencial em sua composição, pois implica e envolve o corpo do leitor. Essa brincadeira sonora nos remete ao conceito lacaniano de lalíngua que não se confunde com a linguagem tomada em sua lógica significante, nem com o mero fluir de sons e ruídos emitidos por um corpo, mas com as convergências, deslizamentos, intersecções, cortes e fusões dessas duas séries de elementos. Dirá Lacan (1972, p. 492) em O Aturdito:
2. No original: “... lo que prueba que el absurdo tiene más sentido que el sentido normal y que lejos de estar ausente hay mucho de él”.
Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser “estruturado como uma linguagem”, isto é, como a lalíngua que ele habita, está sujeito a equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela.
Talvez seja nesse sentido que, como queria Heidegger, a poesia seja a condição de possibilidade da linguagem. Equívocos que se encarnam em vozes que nos envolvem e determinam as coordenadas das voltas que tantas vezes repetiremos em nossa vida. Mais uma vez Lacan (Ibid., p. 493): Afirmo que todos os lances são permitidos aí, em razão de que, estando qualquer um ao alcance deles, sem poder reconhecer-se nisso, são eles que jogam conosco. Exceto quando os poetas o calculam e o psicanalista se serve deles onde convém. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 43-48 junho 2012
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Diante do óbvio do sentido, a surpresa causada por uma intervenção incide na materialidade sonora do que é dito. Seja deslizando pela similitude da superfície sonora dos significantes, seja valendo-se daquilo que excede o próprio significante: os sotaques, os tiques, os estalos, suspiros, pausas; sobras sonoras que singularizam aquele que fala: “O signo vem marcado, em toda sua laboriosa gestação pelo escavamento do corpo... O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo”, diz Bosi (1983, p. 42) em O som no signo. Em algum momento essa poesia inconsciente pode ser escutada pelos ouvidos silenciosos do analista, e cabe a ele interromper, marcar e dividir os significantes escutando o que sempre esteve ali e não era escutado. No entanto, como o inconsciente não se esgota, sempre é possível ir de significação em significação, o que tornaria infindável o percurso de uma análise. Há a necessidade de um ato que estanque esse deslizamento, e que ao mesmo tempo deixe o sentido em suspenso. Podemos supor que nesse contexto a interpretação não consistiria, em última instância, na produção de novos significados, nem tampouco no desvelamento da lógica que rege a construção desses significados, mas sim em explicitar a contingência que constitui os significantes que determinam o sujeito. Ou ainda, nas palavras de Lacan (1964, p. 207) no Seminário 11: “A interpretação não visa tanto ao sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito”. No Seminário 24 (op.cit), no qual se pergunta se o analista seria poeta suficiente em sua relação com a interpretação, Lacan faz um jogo de palavras entre ate (ato) e poete (poeta) que resulta no neologismo poâte. Talvez o termo poâte indique a possibilidade ou mesmo a necessidade de um entrelaçamento entre a práxis e a poíesis. Seria o analista poâte suficiente? Saberia, como o artesão, trabalhar com a materialidade do significante até que, em ato, se revele a radical contingência que o constitui? Quem sabe, possamos então falar de um ato poético (ou “poato”) cujo resultado não seria um poema - mesmo porque, embora a poesia se baseie nos mesmos mecanismos que os do inconsciente, o efeito que a psicanálise persegue não é a fascinação estética – mas o saber que permita ao sujeito, em vez de amaldiçoar o “mal soar” de seu sintoma, dar ouvidos ao mais-de-soar que existe em sua fala. Mais-de-soar que permeia as meias-palavras que bastam ao bom entendedor para estancar o ciclo infernal daquilo que não cessa de se escrever; mais-de-soar que permite ao sujeito brincar nas bordas do que cessou de não se escrever. 46
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Referências bibliográficas ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada por Alfredo Bosi. São Paulo, Mestre Jou, 1982. 976p. BOSI, A. O ser e o tempo na poesia. São Paulo, Cultrix, 1983. 220p. CARROL, L. (1871). The Jabberwocky. Tradução de Augusto de Campos. Disponível em: <http://www.insite.com.br/rodrigo/ misc/fun/jaguadarte.html>. Acesso: 25/10/2011. CHAUÍ, M. S. Introdução à História da Filosofia. São Paulo, Editora Brasiliense,1984. 390p. DOLAR, M. Una voz y nada más. Buenos Aires, Manantial, 2007. 227p. LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. 280 p. __________. (1972) O Aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2003, p. 448497. __________. O Seminário, livro 24: L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. (1976-1977). Disponível em <http://gaogoa.free. fr/Seminaires_HTML/24-INSU/INSU17051977.htm>. Acesso: 13/02/2012. SOLER, C. Artigos Clínicos: Transferência, Interpretação e Psicose. Salvador, Editora Fator, 1991. 72p.
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Resumo Partindo do aforismo de Lacan no Seminário 24 em que afirma: “só a poesia permite a interpretação”, este trabalho procura discutir algumas das definições de poesia e suas relações com a concepção lacaniana de interpretação. Sua conclusão é de que a dimensão poética da interpretação não se encontra no conteúdo, mas sim no ato de explicitar o caráter essencialmente contingente dos significantes que determinam o sujeito.
Palavras-chave Interpretação, poesia, sentido, contingência.
Abstract Departing from Lacan’s aphorism in Seminar 24 in which he states that “only poetry allows interpretation”, this work seeks to discuss some definitions of poetry and its connections with the Lacanian conception of interpretation. The conclusion drawn is that the poetic dimension of the interpretation is not found in its content, but within the act of making explicit the essentially contingent character of the signifiers that determine the subject.
Keywords Interpretation, poetry, meaning, contingency.
Recebido 16/02/2012
Aprovado 26/03/2012
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Interpretação e poesia - Luis Guilherme Mola
Licença poética na lógica da interpretação: “psicanarte” Silvia Helena Facó Amoedo Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona. (Clarice Lispector)
A arte e suas manifestações são as entrelinhas do saber psicanalítico, o dizer – significação de ex-sistência – que permite alcançar o real a que a interpretação do analista visa. Para Lacan (1965/2003, p. 200), “a única vantagem que o psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede”. O artista desbrava o caminho, revela, conforme Lacan (Ibid., p. 200), “saber sem mim aquilo que ensino”. Entre a psicanálise e a arte há uma intrínseca relação, que denomino de “psicanarte”. A psicanálise se articula com a arte nas múltiplas expressões desta: escultura, literatura, música, pintura, teatro, poesia... No final de sua obra, Lacan afirma: “a poesia é efeito de sentido, mas também efeito de furo [...] somente a poesia permite a interpretação”. (1977, aula de 17 de maio). A palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista, e quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário. Fragmentos de Procura da Poesia,1 de Drummond (1992, p. 95), desbravam caminhos para a interpretação:
1. “Procura da poesia” é um dos textos de abertura do livro “A rosa do povo”, que
[...] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. [...] Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. [...].
reúne poemas escritos entre 1943 e 1945.
A licença poética, tanto na interpretação como na poesia, subverte as palavras com metáforas e outras figuras de linguagem, produzindo efeitos de furo no significante e, em consequência, novas significações. Palavra, na poesia e na análise, é feita do mesmo barro e esculStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 49-56 junho 2012
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pida com a mesma ferramenta: a escuta. Precede o sujeito: antes de nascer, ele é marcado pela palavra – palavra sedenta, vinda do Outro. Na impossibilidade de saciar a sede do Outro, o sujeito faz dela a fonte e a sede do objeto causa do desejo. O Outro é designado por Lacan (1958/1998, p. 696) como “o próprio lugar evocado pelo recurso à palavra [...] quer o sujeito o ouça ou não com seu ouvido, é porque é ali que o sujeito, por uma anterioridade lógica, a qualquer despertar do significado, encontra seu lugar significante”. É desse lugar que o sujeito escreve sua história e situa seu próprio desejo, para aquém e para além da palavra contida na demanda. É no desejo do Outro que a experiência do desejo é apreendida. A fantasia é uma resposta que o sujeito dá para a pergunta enigmática: “que quer o Outro de mim?” – interrogação fundamental, que aponta a sujeição originária do sujeito ao Outro. A fantasia se constrói e se fixa no ponto denominado “lembrança encobridora”, isto é, no momento em que a cadeia da memória para, tal como se “uma sequência cinematográfica que se desenvolvesse rapidamente fosse parar de repente num ponto, imobilizando todos os personagens” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 121). Essa instantaneidade, ou redução da cena plena, é articulada, segundo Lacan (Ibid., p. 121), “de sujeito a sujeito, ao que se imobiliza na fantasia, a qual fica carregada de todos os valores eróticos incluídos naquilo que ela exprimiu e de que ela é testemunha e o suporte, o último suporte restante”. Ou seja, o sujeito evanescente constata: “já não sei mais a diferença de ti, de mim, da coisa perguntada, do silêncio da coisa irrespondida” (http://www.avozdapoesia.com.br/ceciliameireles). Para Freud (1905/1980, p. 321-327), a finalidade do drama consiste em despertar “terror e piedade”, em produzir uma “purgação dos afetos”, abrir fontes de prazer ou gozo em nossa vida afetiva. Ser espectador participante do jogo dramático é, para o adulto, equivalente ao brincar, para a criança. Nas brincadeiras, as crianças repetem o que lhes causou impacto na realidade. Desbravando caminhos, Antonio Quinet (http://pt-br.facebook. com/teatroepsicanalise) traz para a cena a psicanálise: “O teatro operistérico [...] Esse vínculo tem afetos e estratégias próprias para provocar o desejo e a produção de saber no espectador. Sob os holofotes: a histeria como obra de arte”. Diante de um espetáculo, o espectador pode agir, sentir ou aventurar-se sem enfrentar as dores e os sofrimentos do outro que atua no palco. Trata-se de “modelar o gozo” por meio da fantasia. A experiência de análise visa ao atravessamento da fantasia fundamental que, segundo Freud (1937/1980), em Construções em Análise, é equivalente ao trabalho de um arqueólogo. Este, em sua reconstituição das ruínas de uma civilização antiga, preenche as lacunas abertas pela perda de algumas peças. No sujeito, o que se 50
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perdeu em sua constituição equivale a essas peças faltantes, que insistem em se manifestar na fantasia fundamental, como é denominada por Lacan. O atravessamento da fantasia é imprescindível à experiência de análise, porque é a fantasia que suporta os sintomas e os distintos efeitos decorrentes do próprio processo analítico. Desde os primórdios da psicanálise, Freud (1900/1980) trata da questão da interpretação. Em seu artigo O método de interpretação dos sonhos: análise de um sonho modelo, ele aplica aos sonhos o método de interpretação que fora elaborado para os sintomas, visto que os sonhos realmente têm um sentido. Na época, para Freud, sua tarefa estava cumprida no momento em que ele informava ao paciente o sentido oculto dos seus sintomas. No entanto, Freud não se considerava responsável por ele aceitar ou não a solução, embora disso dependesse o sucesso da interpretação. Com Lacan, o sucesso da interpretação não coincide com a aceitação por parte do sujeito; ao contrário, como observa Soler (1991, p. 80), “quando o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem estar seguros que isto não é uma interpretação”. E o que é uma interpretação? No texto Sobre a psicoterapia, Freud (1905/1980) recorre às formulas de Leonardo da Vinci, relacionadas às artes – per via di porre e per via di levare – para pontuar a antítese entre a técnica sugestiva e a analítica. A técnica sugestiva, assim como a pintura, deposita cores sobre a tela incolor; já a técnica analítica, assim como a escultura, retira, esculpe o material, sem introduzir nada de novo. E quanto aos escritores? Para Freud, os escritores são aliados valiosos. Freud considera o brincar uma atividade afim da criação literária. A criança cria um mundo próprio, onde obtém prazer e que distingue perfeitamente da realidade. Assim como a criança, o escritor também cria um mundo de fantasia, nele investindo uma grande quantidade de emoção; e, ao mesmo tempo, mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade. Freud afirma que, por meio da arte, torna-se possível uma reconciliação entre o princípio do prazer e o da realidade. O artista se afasta da realidade por não concordar com a renúncia à satisfação pulsional e, dessa forma, “concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia” (FREUD, 1911/1980, p. 284). A obra de arte, valorizada pelos homens como reflexo precioso da realidade, é o caminho de volta que o artista faz – da fantasia para a realidade –, sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar alterações reais no mundo externo. Da mesma forma, “a psicanálise pode mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade. A vida que o analisando teve não se refaz. Ao contrário, o que se modifica é a maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá” (SOLER, 1991, p. 56). No fundo, como diz Lispector (1977) em entrevista concedida na TV Cultura a Júlio Lerner, “a gente não Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 49-56 junho 2012
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está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro [...]”. O relato de um devaneio não causa prazer ao interlocutor; ao contrário, tomar conhecimento das fantasias, causa repulsa, ou é indiferente, ao interlocutor. Já as obras literárias são fontes de grande prazer, no entanto, segundo Lacan, “o que a psicanálise chama de prazer, é padecer, sofrer o menos possível”. (Op. cit, aula de 17 de maio de 1977). A verdadeira ars poetica, segundo Freud, está na técnica de superar esse sentimento de repulsa. Ou seja, pela estética é possível ao escritor suavizar os devaneios por meio de alterações e disfarces, oferecendo prazer na apresentação de suas fantasias. A arte do analista em interpretar, para Lacan (1953/1998, p. 253), “deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumam suas últimas miragens”. De que forma a interpretação pode suspender as certezas do sujeito? A interpretação visa equivocar o saber oriundo da certeza da fantasia para fazer emergir algo a partir do abandono do saber, fazer emergir o deserto da palavra – a sede do Outro. O sujeito em análise é o escritor de sua própria história, escrita com a impossibilidade de saber sobre a verdade, que fixa o sujeito em seu ponto de sofrimento. Dessa forma, é o sujeito quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista. O significante representa o sujeito para outro significante, “só que o sujeito que ele representa não é unívoco. Está representado, é claro, mas também não está representado. Nesse nível, alguma coisa fica oculta em relação a esse mesmo significante” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 83). O que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise? O analista intervém no texto do sujeito, pelos meios de interpretação – com pontuação, enigma, equívoco, escansão, corte, silêncio –, para atingir o sujeito representado em sua equivocidade e, assim, provocar o esvaziamento do texto cifrado pelo gozo e chegar a uma a-história feita de palavras desabitadas, palavras vazias de mestria. Assim como em A hora da estrela (LISPECTOR, 1977, p. 23), para tornar o livro do analisante um livro feito sem palavras, uma fotografia muda, um silêncio, enfim uma pergunta..., a qual relançará o sujeito a novas significações, significações de ex-sistência, que lhe possibilitem obter uma modificação em sua relação com a fantasia... que atinjam o dizer sem, no entanto, se satisfazerem com nenhum saber. Tal como a poesia, a interpretação deve tocar o intangível, o “sussurro sem som em que a gente se lembra do que nunca soube” (ROSA, 1956, p. 411), tal como a alíngua – dito singular que não se aprende, mas se apreende por meio da língua materna, dito que escapa à comunicação. Não é “esse o mínimo da intervenção inter52
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pretativa”? (LACAN, 1972/2003, p. 495). A linguagem é o que o discurso científico elabora para dar conta do que Lacan chama de alíngua: “a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalangue, enquanto o inconsciente é um saber-fazer sobre lalangue”, diz Lacan (1972-1973/1982, p. 188). Um sujeito em análise observa que esta atravessa três tempos, tais quais os três momentos culminantes da vida humana descritos pelas deusas do Destino, as Parcas: o momento de tecer o fio, o momento do caminho e o momento de cortar o fio da análise. A interpretação deve incidir no texto do analisante, fazer soar os inconfessos silêncios, deve atravessar á/vida o instante incomensurável do tempo; deve, enfim, romper o cerco das gaiolas... cortar o fio que fixa o sujeito.
Referências bibliográficas ANDRADE, C. D. A rosa do povo. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 95. FREUD, S. (1905 ou 1906). Tipos psicopáticos no palco. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 07, p. 287-294). ________. (1900). O método de interpretação dos sonhos: análise de um sonho modelo. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 04, p. 119140). ________. (1905). Sobre a psicoterapia. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 07, p. 239-251). ________. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12, p. 277-290). ________. (1937). Construções em análise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 23, p. 289-304). LACAN, J. (1953) Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 238-324. _______. O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-1957). Tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 49-56 junho 2012
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Resumo O que é uma interpretação? A arte e suas manifestações são as entrelinhas do saber psicanalítico, o dizer que permite alcançar o real a que a interpretação do analista visa. A palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista, e quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário. A palavra precede o sujeito: antes de nascer, ele é marcado pela palavra – palavra sedenta, vinda do Outro. Na impossibilidade de saciar a sede do Outro, o sujeito faz dela a fonte e a sede do objeto causa do desejo. É desse lugar que o sujeito escreve sua história e situa seu próprio desejo. O sujeito em análise é o escritor de sua própria história. Dessa forma, é o sujeito quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista. O que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise?
Palavras-chave Psicanálise, arte, licença poética, interpretação.
Abstract What is an interpretation? Art and its manifestations are the in between lines of psychoanalytic knowledge, the saying that allows to achieve the real aimed by the analyst’s interpretation. The word serves as raw material for both the poet and the psychoanalyst, and whenever used with poetic license, it permits them a subversion of language and a consequent subversion of the word meaning in its dictionary condition. The word precedes the subject: before birth, it is marked by the word – the thirsty word which comes from the Other. Failing to quench the thirst of the Other, the subject makes it the source and the object’s thirst cause of desire. It is about this place that the subject writes his/her own history. Thus, it is the subject who owns, with his/her sayings, the text to be read and interpreted by the analyst. What can the analyst do in relation to the text of the subject in analysis?
Keywords Psychoanalysis, arts, poetic license, interpretation. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 49-56 junho 2012
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Recebido 07/02/2012
Aprovado 08/03/2012
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Licença poética na lógica da interpretação: “psicanarte” Silvia Helena Facó Amoedo
Interpretação: arte poética com alíngua Andréa Hortélio Fernandes A interpretação na psicanálise convoca certa arte poética, tanto do analisando como do analista, para lidar com o que do inconsciente insiste e não cessa de não se escrever. Em Escritores Criativos e Devaneios (1908), Freud aproxima a literatura, em especial a poesia, ao brincar infantil, à fantasia e ao sintoma que têm em comum o fato de trançarem, por meio de metáforas e metonímias, o gozo do Um, gozo de alíngua, com o gozo do sentido, por meio do equívoco. No Seminário 24, L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1977), Lacan afirma que somente a poesia permite a interpretação. A poesia é comparada às formações do inconsciente por trabalhar com as mesmas figuras de linguagem. Dentre as formações do inconsciente, Lacan deu ênfase para o fato de o sintoma conservar um sentido no real. Assim, a pergunta que norteia este trabalho é: como a interpretação na psicanálise ao se servir do equívoco significante, tal qual a poesia, pode vir a intervir simbolicamente no real? Na primeira lição deste mesmo seminário, Lacan retoma o equívoco ao dizer que Freud se interessou pelas formações do inconsciente – sonhos, atos falhos, chistes e sintomas – por estarem ligadas à aquisição da linguagem. De acordo com Lacan, Freud, no Entwurf, trata disso por meio dos traços mnêmicos, que nada mais são do que a significantização do que é irrepresentável de das Ding. Dentro desta perspectiva, Lacan afirma que, contrariamente aos animais, que usam da memória para guardar as lembranças, o mesmo não acontece com o homem. A razão para isto deve-se à presença do recalque originário, de acordo com Freud; ou ao significante da falta no Outro, segundo Lacan. Em O Aturdito (1973), Lacan retoma a tese já trabalhada, anteriormente em Radiofonia (1970), de que a linguagem é a condição para o inconsciente, o que se conecta com o fato de a psicanálise ter revelado que só no ser humano há inconsciente. Logo, a psicanálise, ao dar uma nova interpretação do inconsciente, mostra que “o falasser é uma forma de exprimir o inconsciente” (LACAN, 1974/2005, p. 72) e que o humano “não se safa de modo algum desse saber [...] que lhe é imposto” (1976-77, aula de 11/01/1977). E como o sujeito se vira com esse saber? Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 57-64 junho 2012
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1. Tema do Encontro Nacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, realizado em Salvador (BA), em novembro de 2011.
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Esta pergunta abrange a lógica da interpretação,1 e busco respondê-la afirmando que a lógica da interpretação na psicanálise está atrelada ao fato de que para o ser falante, de início, não há linguagem, há alíngua. A linguagem seria posterior por ser uma elucubração de saber acerca de alíngua. De fato, a clínica revela que o inconsciente estruturado como uma linguagem é uma elucubração de saber, uma interpretação, acerca de alíngua. Sobre alíngua, Lacan afirma que os seus efeitos já estão lá como saber, e no ser falante vão bem mais longe de tudo o que ele é suscetível de enunciar. Tanto que no Seminário 22, R.S.I. (1974-75), Lacan propõe a interpretação como um dito que repercute mais longe que o dizer ou a fala do sujeito, é nisto que a interpretação demonstra a ex-sistência de alíngua. É por contingência, neste contexto, que para um sujeito em análise, algo pode vir a se escrever (S2) e é o que faz função de real no saber. Aí está, então, a razão de Lacan propor o saber no lugar da verdade (a/S2) como a estrutura da interpretação, no discurso do analista. De início temos alíngua descrita como um enxame de significantes, “um enxame que zumbe” (1972-73/2005, p. 196), que propomos aproximar do significante fora da cadeia, fora sentido, como S2))). O sujeito não advém um todo só, errático, do S1(S1(S1(S1 como saber, ele terminará por se presentificar no campo do gozo, da substância gozante. Zona marcada pelo equívoco significante e pela criação, por um engendrar-se como sujeito e onde a interpretação pode vir a operar. Foi nesta zona que Freud extraiu a experiência do fort-da do seu neto. O retorno a Freud revela que ele já trazia contribuições que caminham na mesma direção do que Lacan vem formular como alíngua. Em A Interpretação dos Sonhos, Freud fala dos “truques linguísticos feitos pelas crianças que inventam novas línguas e novas formas sintáticas artificiais” (O trabalho da condensação, 19001980, p. 323). Nelas, encontram-se tanto a metonímia como a metáfora operando na construção de novas palavras criadas em meio ao equívoco significante. Também, no texto O inconsciente (1915), quando Freud retoma sua antiga monografia sobre as afasias há alusões ao que Lacan propõe como alíngua. Ele diz que na aquisição da fala, as crianças usam uma linguagem que elas mesmas constroem. Elas “associam diversos sons verbais” vindos do Outro “a um único som produzido” (1915/1980, p. 241) por elas. Esta aquisição envolve essa zona de criação, e a interpretação tem um papel importante na clínica com as crianças que estão no processo de aquisição da linguagem. Trago um recorte clínico. Uma criança de três anos pega alguns bonecos dos quais retira as cabeças, e em seguida joga-os atrás do Interpretação: arte poética com alíngua - Andréa Hortélio Fernandes
divã e emite os vocábulos: “cair, cair, cair-se”. A analista intervém sobre os ditos da criança por meio de um equívoco por homofonia. Então, a analista repete: “cai, cai, Clarice”, nome de uma pessoa próxima da criança que ela já havia trazido em sessões anteriores. Ao ouvir “Clarice” a criança olha para a analista e sorri. Esta mesma criança costumava fazer desenhos marcados por um puro gozo do rabisco, passa então a fazer algumas formas, caracóis e as nomeia: “papai, Pepeu e Rafa”. Este exemplo ilustra como a linguagem é a condição do inconsciente e para a manifestação do inconsciente. Contudo, a referência da linguagem para o inconsciente escapa à linguística, ao campo da semântica, da significação. Para Lacan, a linguagem é feita de alíngua e ela não está a serviço da comunicação. O balbucio como expressão primeira de alíngua mostra que ela não se dirige a nada, não há nenhuma forma de demanda ao Outro. Alíngua demarca a ex-sistência do real inapreensível do sujeito e faz com que Lacan proponha que a interpretação ao levar em consideração o inconsciente deverá operar no sentido de “fazer surgir elementos significantes irredutíveis, non-sense, feitos de não-senso” (1964/1985, p. 236). Há aí uma aproximação ao inconsciente real, irredutível. E, também, um convite a pensar a interpretação como fazer poesia com alíngua. Fazer poesia com alíngua retrata a definição de neurose dada por Lacan, no Seminário 24, segundo a qual a neurose “consiste em jogos de palavras” (1976-77, aula de 17/05/76) ou equívocos entre significantes. Isto não passou despercebido a Breuer ao tratar Anna O. Ele percebeu que após ela falar, durante a hipnose, despertava; e já mais calma, dizia: “gehälglich”, um significante novo criado por ela que faz equívoco com “behaglich”, que significa confortável. E ainda, a poesia, ao jogar com o efeito de sentido e o efeito de furo, aproxima-se do uso feito pela metáfora no sintoma. No caso de Fräu Cäcilie M., Freud examina o uso da língua na gênese dos sintomas histéricos. Cäcilie sofria de nevralgia e dores no calcanhar. Ela relata a Freud que durante uma discussão com o marido, uma observação feita por ele foi sentida por ela como um áspero insulto. Nesse momento, ele leva a mão à bochecha, solta um grito de dor e diz ter sido como uma bofetada no rosto. Freud nos diz que a descrição foi tomada em seu sentido literal, que “o histérico não toma liberdade com as palavras” (1892/1980, p. 230), pois restaura o significado original das palavras nas suas conversões, entendidas como uma expressão somática de uma ideia ou de um significante. Para Gerbase, “as conversões histéricas são metáforas, traduções de frases em sintomas físicos, do mesmo modo como se faz na poesia, com a eventual substituição de uma palavra pela outra” (2011, p. 97). Entretanto, há uma singularidade no uso da metáfora pelo sintoma, Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 57-64 junho 2012
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2. Bête – ininteligente.
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pois está em jogo uma substituição de um termo ausente, de um termo elidido por um termo presente. Ainda sobre a metáfora ou a substituição significante, Lacan, no Seminário 24 (1976-77), dirá que o significante, ao representar o sujeito para outro significante, por aí passa toda uma série infinita de sentidos os quais se fecham imediatamente e ficam em impasse, pois o sujeito não advém enquanto saber, S2. Logo, o sentido não resolve o sintoma, pelo contrário, o faz prosperar. Nesta mesma lição Lacan pergunta: o que fazer para que a psicanálise seja, algumas vezes, eficaz? Para tentar responder a esta questão, retomo o Seminário 20 (1973-73), em que Lacan chama a atenção para o fato de que “o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o que podemos dar conta com o título de linguagem” (1972-73, p. 190). Acredito que é neste sentido que Soler vem a defender que “analisar é procurar o analfabeto”, visto que o sintoma é escrito em letras do inconsciente-alíngua, que é sempre analfabeto e, portanto, ignora a escrita ortográfica (2009, p. 40). Ela joga com o equívoco homofônico na língua francesa entre analphabète e analphabête,2 neologismo para situar que o sintoma é um significante sem significação, fora sentido e contingente. Voltando à poesia para tratar o sintoma, no Seminário 24 (Ibid.) Lacan diz que a boa poesia joga com efeito de sentido e o efeito de furo. Manoel de Barros, com o poema Apanhador de desperdícios (2003), serve aqui como ilustração ao declarar: “uso as palavras para compor meus silêncios” (Ibid.). Aí estaria uma poética forma de descrever o real como aquilo que não cessa de não se escrever e retorna no simbólico, na neurose, ou no real, na psicose. Nos anos setenta e mais especificamente em O Aturdito (1973), Lacan diz que a interpretação é do sentido que vai contra a significação. A interpretação promove equívoco por ser um dizer nada, no qual o sentido foge, desliza sobre o que se diz. Logo, a aproximação entre a interpretação e as formações do inconsciente está ligada ao fato de elas fazerem exatamente a mesma coisa: equívocos. Elas são sempre produções de um efeito de sentido que faz corte na significação. Como se sabe, com base em Instância da Letra (1957), Lacan marca a determinação do significado pelo significante. No lugar do significado vem, sem dúvida, a significação – gramatical –, mas nenhuma significação esgota o significado, há sempre um excedente de significado que podemos chamar de sentido. Entre o significado como significação e o significado como sentido há sempre uma lacuna que é irredutível. E como fica o sujeito com relação ao saber irredutível? Lacan, Interpretação: arte poética com alíngua - Andréa Hortélio Fernandes
no Seminário 24 (Ibid.), diz que o sujeito não sabe fazer com o saber, pois o saber em questão é um saber sem-sujeito, o que remete à ex-sistência de alíngua. O saber em questão é sem-sujeito, pois no balbucio o sujeito é suposto pelo Outro e está assujeitado aos significantes do Outro. Logo, o inconsciente só pode ser abordado na análise onde não é questão se lembrar do que se sabe, mas de um “não me lembro mais disso. Não me reencontro nisso” (LACAN, 1967/2003, p. 337). Nesta perspectiva, ao conservar um sentido no real, o sintoma exclui o sentido por ser feito de alíngua. É nisso que o sintoma como “modo como o sujeito goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina” (LACAN, 1975-75, aula de 18/02/1975) interpreta o analisando e faz dele seu intérprete. Contudo, se todos os significantes do falasser são sempre recebidos, o manejo do sintoma na clínica estaria associado a levar o sujeito a inventar um significante novo que, como o real, não teria espécie alguma de sentido? De fato, na análise, o analisando é convidado a saber-fazer com inconsciente-alíngua, para daí decantar o analphabête que pode se manifestar nas formações do inconsciente. Trago um recorte clínico de um lapso para ilustrar e finalizar meu texto. Um sujeito que fica impossibilitado de se apresentar em público, duvidando da sua PROFICIÊNCIA, faz um lapso – PROLEADO. Este significante novo, significante de alíngua, significante sem significação, faz equívoco com PROLETARIADO. PROLEADO substitui PROLETARIADO, mas nesta substituição há um termo que fica ausente, elidido, TARI, que ao ser evocado pela analista como um dizer que diz nada, promove novas associações que levam aos significantes: TRAIR, TARADO que remetem a uma traição. Ao mesmo tempo, quando pensa que não pode ser visto, o sujeito associa que “isso é da ordem do ilegal”, do que é clandestino e não é PRÓ, positivo, conveniente. O sintoma, com a série metonímica do PRO, que é um fonema, “realiza simultaneamente a função metafórica e a função metonímica que fixa o gozo do sintoma” (GERBASE, 2011). No caso em questão, o sintoma revela a presença de dois fora-sentidos que se enodam por meio do equívoco promovido pelo lapso. O do gozo do Um, próprio à substância gozante, aponta para o gozo que exclui o sentido. Aqui cabe lembrar que no que tange à substância gozante, Lacan mostrou que a pulsão tomada como eco no corpo para que ela ressoe é preciso que o sujeito conceda. E de fato, este sujeito esquivava-se da pulsão escópica, considerava não ser APROPRIADO, PRÓ, legal, conveniente ser visto, daí decorre que o seu sintoma é não poder se apresentar em público, logo, obrigava-se a não se PROJETAR, a estar fora da mira do olhar. O outro fora-sentido é do campo de alíngua. O lapso PROStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 57-64 junho 2012
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LEADO traz uma multiplicidade de elementos que não veiculam nenhum sentido em particular, cada um deles pode receber uma pluralidade de sentidos em razão das construções linguageiras. Por exemplo: PROLEADO, o fonema PRO está presente em: PROLETARIADO, PROFICIÊNCIA, PROLE etc., mas nenhum deles representa a condição suficiente de abarcar todo o sentido. Estes dois fora-sentido conjugam o PRO, que ao mesmo tempo é um elemento verbal do inconsciente e elemento da substância gozante. Concluindo, este caso revela que a interpretação ao visar tratar o real do sintoma deve levar em conta o inconsciente-alíngua que fará com que o analisando seja convocado a fazer poesia com alíngua.
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Interpretação: arte poética com alíngua - Andréa Hortélio Fernandes
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Resumo O presente artigo trata da interpretação na psicanálise, tomando como ponto de partida a ex-sistência de alíngua para o ser falante. Mostra que desde Freud, assim como em Lacan, o não-senso presente na aquisição da linguagem convoca certa arte poética do analisando e do analista no que diz respeito à interpretação. Ilustra por meio de dois recortes clínicos como a interpretação por meio do equívoco significante é passível de intervir simbolicamente no real do sintoma para decantar, do inconsciente, o saber-fazer com alíngua.
Palavras-chave: Interpretação, inconsciente, alíngua, equívoco, poesia.
Abstract The article deals with interpretation in psychoanalysis departing from the ex-istence of lalangue to the speaking being. It shows that since Freud, as well as in Lacan, the no-sense present in language acquisition invites a certain poetic art on the side of the analysand and the analyst in terms of interpretation. The article also illustrates through two clinic cases how the interpretation through the signifying equivocation is susceptible to intervene symbolically in the real of the symptom in order to decant, from the unconscious, the know-how-to do with lalangue.
Keywords Interpretation, unconscious, lalangue, equivocation, poetry.
Recebido 08/02/2012
Aprovado 01/04/2012
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Interpretação: arte poética com alíngua - Andréa Hortélio Fernandes
Contra a sobreinterpretação Manoel Baldiz Para o título do meu texto fiz uma combinação com os títulos de dois livros altamente recomendados. O primeiro e mais antigo, de Susan Sontag, Contra a interpretação (1996), é um texto que já se tornou um clássico do século XX. Trata-se de uma compilação de artigos dos anos 60 nos quais Susan Sontag lança dardos envenenados contra a ansiedade por interpretar. Embora suas agudas observações se refiram, acima de tudo, às produções artísticas, algumas de suas declarações podem ser levadas em consideração quando se trata de abordar a complexa questão da interpretação no âmbito estrito da psicanálise. Transcrevo três parágrafos: “Abusar da ideia de conteúdo comporta um projeto, perene e nunca consumado, de interpretação.” (Ibid. p. 27) “Necessitamos, em primeiro plano, uma maior atenção à forma da arte. Se a excessiva atenção ao conteúdo provoca uma arrogância da interpretação, a descrição mais extensa e completa da forma a silenciará.” (Ibid. p. 37) “A função da crítica deveria consistir em mostrar como é o que é, até mesmo que é o que é, e não em mostrar que significa. No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte.” (Ibid. p. 39) Fazendo minha a leitura da autora americana, destaco a sugestiva dualidade entre a arrogância da interpretação hermenêutica versus o silêncio que pode se vincular a uma erótica, a saber, a vertente pulsional que está além do sentido. O segundo livro que tomei como ponto de partida é um pequeno livro intitulado Interpretação e sobreinterpretação (ECO, 1992). Nele, Umberto Eco polemiza com Richard Rorty e outros autores ingleses em torno do controvertido tema dos limites da interpretação literária. Trata-se de um assunto que há muito interessava ao nosso querido semiólogo e novelista piemontês, que não em vão cunhou a conhecida noção de “obra aberta”. Perante uma ideia delirante de uma semiose ilimitada, ao estilo dos que perseguem textos como Finnegans Wake, de James Joyce, Eco sugere pensar quais são os possíveis critérios que nos ajudariam a pôr limites na interpretação, algo que nós, como analistas, devemos estar interessados ao extremo. Se nem sempre contamos com regras que permitam averiguar quais interpretações são as melhores, Eco nos propõe pensar Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 65-72 junho 2012
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ao menos quais são as interpretações ruins. Passando para o cerne do meu artigo, devo dizer que por coerência estrutural com o tema que nos ocupa, optei por um estilo quase aforístico em que eu, deliberadamente, ignoro muitos argumentos intermediários. Às vezes a prática clínica nos demonstra que uma boa interpretação não necessita de longas explicações, dado que tem algo do aforismo, da sentença que aponta de maneira direta ao núcleo do que se está tratando, embora algumas vezes possa nomeá-lo de um modo tão transparente, que poderia confundir-se com a sugestão e/ou com uma possível demanda proveniente daquele que interpreta. 1. Há que transitar entre a Cila do declínio da interpretação e o Caríbdis do excesso interpretativo. Ninguém está livre de ambos os perigos, nem sequer – claro está – aqueles que tratamos de orientar nossa práxis por meio de Freud e de Lacan. 1a. O declínio da interpretação tem seu apogeu no analista completamente mudo, cadaverizado. Implica confundir a posição do morto com a do cadáver. Os mortos podem estar muito ativos e falar de maneira bem clara quando fazem falta, como bem sabem aqueles que costumam ler os clássicos. Lacan se referiu a eles em seu texto sobre a direção da cura, fazendo alusão à função do morto no jogo de bridge (1958/1984 p. 569). Os cadáveres, contudo, acabam podres. Um analista mudo e cadaverizado, na realidade, não é um analista. 1b. O excesso interpretativo tem seu apogeu no analista asfixiante que dirige a cura buscando sentidos por todas as partes, não deixando nada por interpretar. Um analista que interpreta em excesso, na verdade não é um analista. O excesso de sentido leva à religião, ao amor ou à paranoia, ou às três coisas de uma vez. Poucos fatos vêm causando tanto desprestígio à psicanálise como os abusos da interpretação. Podemos ler autores muito diversos que estão dispostos a aceitar as teses fundamentais do inconsciente e da sexualidade infantil, mas que se afastam, horrorizados da psicanálise quando detectam entre muitos de seus praticantes beirando a obscenidade. Uma anedota narrada em primeira pessoa por Emile Cioran é um exemplo extremo mais significativo do que estou dizendo: Conto a um psicanalista norte-americano que, sendo como sou, um podador inveterado, na fazenda de uma amiga, investindo contra os galhos secos de uma sequoia, caí da árvore de uma maneira que poderia ter sido fatal. Se você se enfureceu com ela – me disse – não foi para podá-la, mas para castigá-la por viver mais tempo que você. Você estava ressentido contra ela porque ela vai sobreviver, e seu desejo secreto era vingar-se despojando-a de seus galhos. (1987, p. 138).
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“Semelhantes interpretações” – acaba dizendo Cioran – “nos fazem detestar para sempre toda explicação profunda.” (Ibid.). 2. Na realidade, como deveria ser óbvio (mas muitas vezes não o é), não se trata da quantidade ou se há mais ou menos interpretações por parte do analista, nem tampouco de buscar estas interpretações. A verdadeira questão é a qualidade das interpretações sobre o que respondem, o que interrogam, o que apontam e o que possibilitam. O importante é o estatuto da interpretação. Com base nesse ponto de vista, muitas interpretações não merecem, na realidade, esse nome. Podem ser intervenções perfeitamente válidas e coerentes de acordo com certos modelos teóricos e/ou a determinados momentos da cura, mas não são interpretações psicanalíticas no sentido estrito do termo. 3. Determinar qual é a estrutura que nos permite diferenciar as interpretações propriamente psicanalíticas de outras possíveis intervenções na direção da cura caminha de mãos dadas com o posicionamento teórico, com base no qual o analista orienta sua clínica. Lacan nos proporcionou ferramentas conceituais poderosas para poder diferenciar a interpretação analítica de outros modos de intervir na cura. Uma dessas ferramentas é a teoria dos quatro discursos. Com ela podemos formalizar a diferença básica entre as intervenções sugestivas e persuasivas que se apoiam no discurso do mestre e no discurso universitário, e aquelas interpretações que correspondem ética e logicamente com a estrutura do discurso analítico. No discurso analítico ocorre a produção de significantes mestres (aqueles que têm regido a existência do paciente até então) ao mesmo tempo em que o saber passa a ocupar o lugar da verdade do sujeito, desmentindo a suposição de que o saber não ocupa lugar. Não obstante, a interpretação aponta também para a zona alheia ao saber. 4. O âmbito da supervisão clínica (âmbito que, apesar de sua importância, temos esquecido um pouco em nossas produções teóricas e em nossos debates clínicos) é especialmente adequado para encarar as dificuldades próprias do exercício da interpretação. 4a. É impressionante escutar como muitos supervisionandos recordam em detalhes quase tudo o que lhes diz o analisante e, contudo, têm sérios problemas para lembrar com certa precisão suas intervenções na direção da cura. Nesse sentido, é altamente recomendado o exercício de tentar registrar os próprios dizeres do analista e despreocupar-se um pouco com o registro obsessivo das palavras do paciente. Assim, trata-se de apostar em ter mais presente aquilo que o analisante faz o analista dizer, lembrando-lhe que ele faz parte do quadro que está tentando pintar. O espaço “segundo” da supervisão ajuda a reinstaStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 65-72 junho 2012
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lar o analista no dispositivo. 4b. Nas sessões de supervisão é bastante comum que o supervisionando traga para a supervisão a sensação de que está falando demais na condução da cura de um paciente, intervindo em excesso e nem sempre de uma maneira que sinta que está fazendo progredir o trabalho. Mas, igualmente não é nada raro que o supervisionando tenha a impressão de que na cura que está conduzindo falta algo. Ou seja, existe uma dupla queixa, em ocasiões quase simultâneas: a percepção clara (e às vezes, inclusive dolorosa) de um a mais de palavra vazia e um a menos de palavra plena, palavra que faça ato. Na supervisão é possível tentar uma abordagem ética e com vocação científica das dificuldades reais que surgem quando o analista quer sair desses impasses dos “mais” e dos “menos”. É evidente, de todos os modos, que em uma supervisão nunca (ou muito raramente) poderá construir-se uma interpretação pré-concebida e pronta para que o supervisionando leve-a ao seu novo encontro com o seu analisante. 5. Um livro curioso, de diversos autores (DIDIER-WEILL, 2003), mostra como uma das características mais impactantes da posição de Lacan nos tratamentos que conduzia e/ou supervisionava era sua capacidade de interrogação combinada com uma quase ilimitada predisposição para deixar-se surpreender. Isto é totalmente coerente com a ideia de que o mais específico da posição analítica não é ocupar um lugar determinado pelo saber, mas um lugar determinado pelo desejo. É por isso também que a interpretação vem, frequentemente, depois de uma boa pergunta. Vejamos um brevíssimo exemplo extraído de minha prática clínica. Uma paciente, em um momento de graves dificuldades com seu parceiro, acorda cada noite às três da madrugada e então lhe custa muito voltar a conciliar o sono. O supervisor perguntou ao supervisionando se havia perguntado à sua paciente o que lhe sugere essa hora, às três da madrugada. Não, não havia perguntado. Tinha tentado, pelo contrário, pensar com sua analisante as possíveis preocupações que podem estar incidindo nessa insônia, mas o detalhe concreto da hora não havia sido interrogado. Na supervisão seguinte, o supervisionando explica que perguntou a ela a respeito e que a paciente não sabia o que dizer num primeiro momento, mas na sessão de dois dias mais tarde tinha ido para consulta relatando que assim que havia saído da sessão lhe veio à mente a melodia de uma canção que dizia algo como: “e soaram três horas, e a lua nos surpreendeu nus”. 6. Este é um exemplo paradigmático dessas interpretações que vêm quase completamente sozinhas do próprio analisante. Trata-se, em última análise, do desvelamento de uma interpretação inconsciente prévia. E esse despertar é facilitado por uma pergunta, ou por 68
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uma simples escansão. Nem sempre é assim, nós sabemos, embora essa seja a estrutura mínima da interpretação. Em outras ocasiões o analista deve organizar um dito, uma frase, uma série de palavras que possibilitem esse despertar, mas, a cada vez, sem fechar a cadeia com a cola do sentido e/ou da significação imaginária. Com base nesta outra perspectiva mais clássica de interpretação que surge do analista, embora saibamos que é causada pelo trabalho do analisante, quero propor uma fórmula sobre o que poderíamos considerar como específico da interpretação psicanalítica, aquela que, inclusive, poderíamos chamar – sem demasiado temor – a “verdadeira” interpretação analítica. A interpretação analítica geralmente é aquela que não poderia ser dita de outro modo, com outros significantes. Nesse sentido algumas interpretações analíticas são muito difíceis de traduzir (como as boas poesias), se não são diretamente intraduzíveis. Aproxima-se do matema e da letra escrita. Também podem assemelhar-se ao chiste. No polo oposto estão essas intervenções que poderiam aplicar-se a numerosos casos diferentes e que igualmente se podem formular com enunciados diversos e muito pouco específicos: “você reprime sua agressividade, você queria fazer tal coisa, mas não se atreve etc...”. Provavelmente esta seja uma das diferenças essenciais entre a clínica psicanalítica e o tipo de intervenção mais comum no âmbito das chamadas psicoterapias. A interpretação analítica é homóloga com a trama inconsciente que tenta decifrar, por isso sempre tem algo da particularidade do caso, mais além ou mais próximo da universalidade de certas estruturas. Um paciente que se queixa de ejaculação precoce reitera durante muitas sessões que nos encontros sexuais com sua companheira ele vai tão depressa, que ela “não se inteira de nada”. Por meio da associação livre, irá recordar como, quando adolescente, havia espiado em várias ocasiões sua mãe tomando banho, o que lhe produzia uma intensa excitação, e em alguns casos tinha, inclusive, se masturbado, apesar do grande temor de ser descoberto. À medida que vai explicando os detalhes dessas cenas, e apesar da vergonha que experimenta, os significantes que usa são tão precisos, que o analista tem somente que dizer-lhe: “você tinha que ir depressa para que ela não se inteirasse de nada”. Esta interpretação (que aproveitava certa polissemia do “inteirar-se”, introduzida pelo próprio analisante) teve também a virtude de não coagular um significado unicamente edípico ao seu sintoma, mas que permitiu ao nosso sujeito formular novas perguntas como: “é possível que agora tenha medo de que minha mulher se inteire?”, pergunta que, em lugar de suturar a divisão subjetiva, o relança e o põe a trabalhar, questionando de maneira produtiva seu suposto desejo inicial e consciente de fazer gozar sua consorte. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 65-72 junho 2012
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7. Outro elemento essencial da interpretação é a sua dimensão temporal. Encontrar o momento adequado para interpretar, o kairós como diziam os gregos, é outro modo de se sair da sobreinterpretação. A questão da articulação do tempo com o dizer interpretativo exigiria um desenvolvimento muito extenso que agora não posso abordar, mas pode-se deixar enunciado um par de pontos que devem ser levados em conta. 7a. À margem do clássico dilema sobre interpretar com base na instalação da transferência ou fazê-lo justamente para propiciá-la, está claro que o poliformismo das curas nem sempre permite fazer um cálculo consciente da interpretação. Frequentemente, se produz uma espécie de amalgamento entre o instante de ver e o momento de concluir, como se o tempo de compreender houvesse reduzido a zero e/ou emergisse a posteriori mostrando também os limites da compreensão. 7b. Geralmente é aprés-coup quando o analista está em condições de advertir se sua intervenção discursiva ou seu ato teve um efeito de interpretação. E, às vezes, nem sequer depois, já que em última instância será somente o analisante quem poderá testemunhar a respeito. Os testemunhos dos passes são, e deveriam seguir desse modo no futuro, um bom lugar para seguir trabalhando todas essas questões. Tradução: Elynes Barros Lima Revisão: Luis Guilherme Mola
Referências bibliográficas CIORAN, E. Ese maldito yo, Traducción de Rafael Panizo . Barcelona: Tusquets, 1987. 201 p. DIDIER-WEILL, A. y otros. Quartier Lacan: testimonios sobre Jacques Lacan. Traducción de Horacio Pons Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. 208 p. ECO, U. Interpretación y sobreinterpretación. Traducción de Juan Gabriel López Guix New York: Cambridge University Press, 1995. 164 p. LACAN, J. (1961). La dirección de la cura, In: LACAN, J. Escritos. México D.F. Siglo XXI, duodécima edición en español, 1984. p. 565-626. _________. El seminario, libro 17: El reverso del psicoanálisis. (1969-1970). Buenos Aires: Paidós, 1992. SONTAG, S. Contra la interpretación. Traducción de Horacio Vázquez Rial. Buenos Aires: Alfaguara, 1996. 390 p. 70
Contra a sobreinterpretação - Manoel Baldiz
Resumo Com base em um diálogo nos textos de Susan Sontag sobre a ansiedade de interpretar, e de Umberto Eco, sobre os limites da interpretação literária, o autor propõe que o tema seja de interesse dos analistas. Destaca vários pontos sobre a interpretação: propõe não confundir a posição do morto (destacada por Lacan com o jogo de bridge) com a do cadáver, pois o analista mudo e cadaverizado não é um analista; critica o excesso interpretativo do analista asfixiante que não deixa nada por interpretar; diferencia as intervenções válidas numa cura da interpretação propriamente dita; distingue a interpretação que corresponde à ética e à lógica do discurso analítico das intervenções sugestivas e persuasivas e; finalmente, discute o problema da interpretação na supervisão, articula interpretação e tempo, interpretação e transferência e interpretação e après-coup.
Palavras-chave Interpretação, discurso analítico, intervenções, supervisão.
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Abstract Departing from a dialogue with Susan Sontag’s writings on the anxiety of interpreting and with Umberto Eco’s writings on the limits of literary interpretation, the author proposes the theme to become part of analysts’ interests. Several points about interpretation are highlighted: it proposes not to confuse the deceased’s positions (highlighted by Lacan with the bridge game) with that of the corpse, once the speechless and ‘corpsed’ analyst is not an analyst indeed; the author criticizes the interpretative excess of the suffocating analyst who does not fail to interpret anything; the author also differentiates the valid interventions in a cure of the interpretation itself. Besides, the text distinguishes the interpretation which corresponds to ethics and the logic of the analytical discourse of the suggestive and persuasive interventions, and, finally, it discusses the problem of interpretation in the supervision; it articulates interpretation and transference, interpretation and après-coup.
Keywords Interpretation; discourse of the analyst; interventions; supervision.
Recebido 06/02/2012
Aprovado 08/03/2012
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trabalho crĂtico com conceitos
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A interpretação psicanalítica: “um dizer nada” Maria Helena Martinho “No começo da psicanálise está a transferência”, afirma Lacan (1967/2003, p. 252), na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Freud já havia nos ensinado: a transferência, que está na entrada, é a condição da análise. Lacan verifica que o momento de passe, aquele no qual o analisante passa a analista – correlato ao ato analítico – corresponde ao final da análise. Mas o que está entre o início e o fim da análise? Entre a transferência e o passe? Pode-se dizer que é a interpretação, que faz com que o analisante passe do início para o fim da análise. Mas qual é a liberdade do analista no que se refere à interpretação? No final de seu ensino, em um importante texto intitulado O Aturdito (1973/1998, p. 493), ao referir-se à interpretação, Lacan diz: “todos os lances são permitidos”, reafirmando assim, o que já havia postulado quinze anos antes em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998, p. 594): “o analista é sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de suas intervenções”. Porém, alerta Lacan, esta liberdade encontra-se apenas no nível tático. Como essa liberdade está no nível da tática, isso implica que ela seja dominada pela política da análise, que domina tanto a estratégia quanto a tática. No texto de 1958, Lacan diferencia três níveis de ação analítica: a estratégia, a tática e a política. Vale lembrar que a estratégia e a tática são específicas das artes militares. A estratégia trata da planificação e do movimento de tropas visando alcançar posições e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos. A tática trata da disposição e manobra das forças durante o combate e na iminência deles. No processo analítico, Lacan observa que a transferência é uma estratégia que está do lado do analisante. O analista deve saber em que lugar o analisante o coloca antes de poder operar a sua tática, que é a interpretação. O que estabelece a estratégia e a tática na análise é a política da falta-a-ser – correlata à ética do desejo. A questão política na direção do tratamento é, portanto, a que tem como base a falta no Outro, ou seja, a inclusão da castração no Outro. No que a interpretação – situada como a tática do analista – deve incidir? Em O Seminário, livro 9: a identificação (1961-1962, lição de 06/06/62), Lacan enuncia a seguinte proposição: “a interpreStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 77-84 junho 2012
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1. “O discurso modal é um discurso de não asserção. Trata-se de um discurso para pedir alguma coisa. Ele se expressa gramaticalmente por meio do modo subjuntivo, do condicional e do imperativo. O discurso apofântico designa o assertivo, não oscila entre talvez sim, talvez não, que é próprio do discurso do analisante, tipicamente modal. Há no discurso apofântico um sentido de revelação. O verbo apofaino, em grego, significa fazer conhecer, fazer ver, mostrar; e apofansis é uma declaração que revela categoricamente, assertivamente (SOLER, 1995, p. 28).
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tação deve incidir sobre a causa do desejo”, chamando atenção para o fato de que incidir sobre a causa de desejo não significa responder com um saber sobre o objeto, nomeando-o. Como por exemplo, quando um analista diz a um obsessivo: “você como merda”. Pois, ao nomear o objeto fezes, o analista aponta o objeto a partir do saber, fazendo consolidar a fantasia. Ao chamar atenção para o fato de que “interpretação incide sobre a causa do desejo”, Lacan procura alertar que a interpretação deve se ater ao objeto causa de desejo, na medida em que, certamente, a interpretação concerne ao objeto, mas não para falar dele, mas para esvaziá-lo de evidência. Lacan propõe que a interpretação não deve reassegurar as identificações, mas deve, ao contrário, fazer surgir uma questão: “o que ele quer me dizer com isso?” Ao manejar dessa forma a sua tática, que é a interpretação, o analista obtém o efeito inverso ao de dar uma resposta. Opera no nível da falha do saber suposto. Onze anos depois, em O Aturdito (1973/1998, p. 474), Lacan retoma a proposição: “a interpretação incide sobre a causa do desejo”, e acrescenta: “causa que ela revela, e isso pela demanda, que envelopa com seu modal o conjunto dos ditos”. Para elucidarmos esse enunciado de Lacan faz-se necessário “interrogarmos a relação do dizer com o dito” (Ibid., p. 474). Lacan esclarece que “o dito não vai sem o dizer” (Ibid., p. 451), ou seja, não há dito sem dizer. O dizer está sempre implicado no dito, mas “o dizer fica esquecido por trás do dito” (Ibid., p. 449). Sendo assim, o analista deve fazer uma distinção entre o dito (o enunciado) e o dizer (a enunciação) do analisante. É essencial que o analista questione a posição tomada por quem fala quanto aos seus próprios ditos e, com base nos ditos, localizar o dizer do sujeito, retomar a enunciação, lugar em que está o enunciante perante o enunciado. Lacan verifica que no discurso analítico há dois dizeres: o dizer do analisante e o dizer do analista. O dizer do analisante “se especifica pela demanda, cujo estatuto lógico é da ordem modal” (Ibid., p. 474). O seu estatuto modal tem a ver com o sujeito que se interroga a respeito do que gostaria de ter, de ser, de saber. Colette Soler (1995, p. 37) chama atenção para o fato de que a passagem do discurso modal do analisante para a asserção se dá no sujeito que pode afirmar algo, não se tratando mais do subjuntivo nem do condicional: “a passagem do modal para a asserção é a passagem de um ‘eu gostaria’ para um ‘eu quero’, é o fim do enigma e, ao mesmo tempo, é o fim do trabalho de elaboração”. Quanto ao dizer do analista, Lacan assevera: “O dizer do analista é a interpretação, que por sua vez não é modal, mas apofântica”,1 (O Aturdito, op. cit., p. 474). Lacan define o dizer como “a ex-sistência ao dito (a este dito de que nem tudo se pode dizer)” (Ibid., p. 473). Para Lacan, não há dito da interpretação, justamente A interpretação psicanalítica: “um dizer nada” - Maria Helena Martinho
porque os ditos representam sempre um sujeito; e os enunciados do analista como intérprete, ou seja, o que é dito numa interpretação, não se refere ao analista no lugar de sujeito, mas no lugar de objeto a, causa de desejo. Ao longo de seu ensino, Lacan chama atenção para o fato de que não é qualquer intervenção do analista que pode ser considerada como uma interpretação. Uma intervenção só pode ser considerada como interpretação quando produz efeitos. É então só depois que se sabe se a intervenção do analista foi ou não uma interpretação. Isto quer dizer que uma interpretação é um ato que produz como efeito um levantamento do recalque, algo do inconsciente se torna consciente. O efeito que se espera do levantamento do recalque é produzir sentidos, quando uma intervenção do analista leva o paciente a pensar algo que ele não podia pensar antes, isso foi uma interpretação. Ao longo de seu ensino, Lacan designa vários modos de interpretação: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998, p. 315), Lacan observa que “a ausência de pontuação é uma fonte de ambiguidade; a pontuação colocada fixa o sentido”. Isto quer dizer que ao pontuar um texto, colocando uma vírgula, uma exclamação, uma interrogação, o analista marca um sentido determinado. Quando, por exemplo, o analista pergunta: “Como assim?” ou exclama: “É mesmo!”, ou seja, quando o analista intervém, e a sua intervenção produz um sentido, essa intervenção pode ser considerada como uma interpretação. Mas é preciso que essa pontuação seja feita no lugar certo, não em qualquer lugar. Onze anos depois, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964, p. 237), Lacan alerta: “a interpretação não é aberta a todos os sentidos [...] O essencial é que o sujeito veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está como sujeito, assujeitado”. O corte, outro modo de interpretação, é oposto à pontuação. Ele é o não-sentido, o non-sense. Quando o analista corta o paciente no meio da frase, ele impede a pontuação. Ele faz surgir o intervalo entre os significantes, apontando para o não-sentido e para a falta no Outro. Com isso ele, geralmente, provoca um efeito de perplexidade e desagrado. Outro modo de interpretação é o semidizer. Em O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise (1969-1970, p. 34), Lacan propõe que “a estrutura da interpretação é um saber como verdade”, localizando, de forma implícita, o matema da interpretação na fração do lado esquerdo do discurso do analista a/S2, único discurso em que o saber (S2) está no lugar da verdade. Nesse mesmo seminário, Lacan situa a interpretação entre o enigma e a citação. O enigma, Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 77-84 junho 2012
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diz Lacan, é a enunciação de saber latente, presentifica o ato de enunciação, é um dizer sem dito, sem proposição. A citação consiste em sublinhar algo que foi enunciado no discurso do analisante. É um procedimento que corresponde ao de colocar aspas, “trata-se do sólido apoio que encontram no nome do autor” (Ibid., p. 34). Por um lado, temos o enigma, verdade com o saber latente. Por outro, a citação, um saber com a verdade latente. Em ambos os casos há um semidizer. “Na medida em que participam do semidizer, eis o que dá o meio sob o qual a interpretação intervém” (Ibid., p. 35). Quando “um enunciado é colhido na trama do discurso do analisante” (Ibid., p. 35), esse enunciado, por ser recortado se torna enigma. Assim, faz-se surgir algo que vai além do dito. Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998, p. 648), Lacan se refere a outro modo de interpretação: a alusiva. A alusão é um enunciado que deixa a entender sem formular, que designa algo sem nomeá-lo. Esse modo de interpretação alude a... Lacan ilustra a virtude alusiva da interpretação com base em “o dedo erguido de São João, de Leonardo”. O quadro “São João Batista”, de Leonardo da Vinci, é talvez o mais controvertido. Houve muita polêmica sobre o significado do dedo do santo apontando para cima. O que da Vinci estaria aludindo ao retratar São João dessa forma? Em O Aturdito (1973/1998), Lacan propõe outro modo de interpretação: a interpretação como equívoco. Lacan chegou a dizer que a interpretação fosse exclusivamente um equívoco. Propõe esse modo de interpretação como paradigma das interpretações, mantendo essa tese até o final de seu ensino. A interpretação como equívoco se utiliza da pluralidade dos sentidos, da polissemia, deixa a via aberta para vários sentidos. Lacan considera que a interpretação deve operar por meio do equívoco, na medida em que ele é um instrumento que não sugere, não impõe a maneira de ver do analista, deixando assim, aberta a escolha do sentido que o analisante queira lhe dar. Para Lacan, o equívoco é apofântico da interpretação, pois ele faz passar à asserção. Lacan menciona três tipos de equívoco: o da homofonia, o da gramática e o da lógica. O equívoco por homofonia depende da ortografia da língua, o equívoco aqui é a ambiguidade homofônica. Lacan ilustrou esse modo de interpretação: deux (dois) d’eux (deles), paraître (parecer) e par être (para ser), sembler (ser semblante) e s’y embler (se emblemar). A interpretação equívoca por homofonia faz aparecer um elemento latente na cadeia intencional do sujeito e faz com que ele se dê conta que há muito mais no enunciado do que ele pode perceber. Ela faz aparecer a divisão do sujeito, ou seja, a parte não dita, não percebida. O equívoco gramatical trata-se da intervenção interpretativa mínima: “eu não o faço dizê-lo”. Esse é um equívoco entre “você o disse” e “eu não assumo isso”. Esse tipo de interpretação tem como 80
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alvo o ato de dizer. Convoca a causa do dito, o real, do qual o sujeito como significação é efeito. O equívoco na lógica pode ser formulado do recenseamento das pulsões parciais: oral, anal, escópica e invocante. Esse modo de interpretação não revela o objeto, mas a consistência lógica do objeto que é o impossível de dizer. O apofântico da interpretação é correlativo do não-todo, sempre faz aparecer a consistência lógica e corporal do objeto. Os equívocos da homofonia, da gramática e da lógica “fazem aparecer no nível da língua, da linguagem e da lógica o impossível de saber o que está sendo dito, o impossível de dizer tudo” (Interpretação: as respostas do analista, op. cit., p. 34). Existiria nos modos de interpretação aqui mencionados um traço comum? Colette Soler (Ibid., p. 31) propõe que o traço comum nesses modos de interpretação é um “dizer nada”. Soler esclarece que “o silêncio do analista não designa o ato de que ele se cale, é um silêncio falante, silêncio ao nível do dizer [...] Tal silêncio obriga o analisante a desenvolver sua própria cadeia e, ao mesmo tempo, designar o horizonte do que não é dito”.
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A interpretação psicanalítica: “um dizer nada” - Maria Helena Martinho
Resumo Este artigo vem ressaltar que a interpretação psicanalítica se situa entre a transferência, que marca o início de uma análise, e o momento do passe, que corresponde ao final de análise. A autora interroga: qual é a liberdade do analista no que se refere à interpretação? No que a interpretação – situada como a tática do analista – deve incidir? Qualquer intervenção do analista pode ser considerada como uma interpretação? Para responder a tais questões a autora percorre textos e seminários de Lacan dos anos de 1950 a 1970, nos quais verifica os vários modos de interpretação designados por Lacan: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco. Conclui, com Colette Soler, que existe nos modos de interpretação mencionados um traço comum: “um dizer nada”, um “silêncio falante” do analista que obriga o analisante a designar o horizonte do que não é dito.
Palavras-chave Interpretação, corte, semidizer, alusão, equívoco.
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Abstract This article emphasizes that the psychoanalytic interpretation is placed between the transfer that marks the beginning of an analysis and the moment of the pass, which corresponds to the end of the analysis. The author questions: What is the freedom of the analyst when it comes to interpretation? What must interpretation – situated as the tactics of the analyst – focus on? Can any intervention by analyst be considered an interpretation? To answer these questions, the author goes through some of Lacan’s texts and seminars dated from the 1950 to 1970s, in which she verifies the many ways of interpretation assigned by Lacan: the punctuation, the cut, the semi-saying, the allusion, the equivocation. She concludes, with Colette Soler, that there is a common feature in the mentioned ways of interpretation: “a say nothing”, a “silent speaker” of the analyst who compels the analyzed to designate the horizon of what is not said.
Keywords Interpretation, cut, semi-saying, allusion, equivocation.
Recebido 11/02/2012
Aprovado 16/03/2012
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A interpretação psicanalítica: “um dizer nada” - Maria Helena Martinho
O que pode ser uma lógica do real? Ronaldo Torres O deslocamento de “técnica psicanalítica” para “práxis psicanalítica”, operado por Lacan sobre sua própria maneira de nomear o campo pelo qual o analista entra na experiência clínica, não é sem razão e consequências. Essa passagem pode ser localizada no Seminário da Ética, momento no qual Lacan propõe, com todas as letras, que a direção da cura deve ser orientada pelo real. Logo no início do seminário diz: “iremos, pelo contrário, ao inverso, no sentido de um aprofundamento da noção de real. A questão ética, uma vez que a posição de Freud nos faz progredir nesse domínio, articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real” (LACAN, 1959-60/1997, p. 21). Esse “sentido de um aprofundamento da noção de real” se deve ao fato de Lacan ter verificado a presença do real na clínica para além de sua função exclusiva de limite ao simbólico, posição que vinha orientando suas formalizações até então. O real, dessa forma, passa a ser reintroduzido em seu ensino desde a recuperação da noção das Ding, de Freud, neste mesmo seminário, até sua reformulação do objeto a no Seminário da Angústia, passando pelo agalma e pela ideia de mancha nos seminários e escritos intermediários. Todos eles, maneiras de abordar o real desde a perspectiva não apenas do objeto perdido, mas de um real como núcleo da pulsão, informe, sem representante e em um lugar de extimidade ao sujeito. Aquilo que estando no núcleo do próprio sujeito é o que lhe é de mais estranho e exterior, avesso às suas coordenadas. Bom, isso basta para indicar como uma derivação como esta vem afetar a direção da cura, uma vez que não se tratará mais de dissolver os objetos imaginários da fantasia para que se chegue à realização da subjetividade pura enquanto falta-a-ser, estado puro do desejo. Pelo contrário, o que se coloca a partir desse ponto é a vertente real da fantasia que indica um campo que não pode ser dissolvido, mas, como Lacan o formula, atravessado, e na melhor das hipóteses. Mas levará algum tempo para que Lacan extraia todas as consequências desse reposicionamento do real em seu ensino. Todavia, nos Seminários de 66 a 68 (A Lógica da Fantasia e O Ato Psicanalítico), Lacan já é claro e contundente em relação a essa passagem: não será o objeto destituído, mas sim o sujeito. Destituído Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 85-92 junho 2012
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de sua posição fixa na fantasia (o que retorna sempre ao mesmo lugar) e de sua ficção produzida em sua suposição ao saber, intervalar na cadeia significante. Aqui, já reconhecemos o ponto final no qual a noção de ato em Lacan vai desembocar. Como sabemos, o ato psicanalítico não é senão outro nome dado à travessia da fantasia e à destituição subjetiva de um final de análise. Ocorre que, com isso, Lacan promove um verdadeiro curto-circuito que localiza o final da experiência em seu início. Bom, é exatamente isso que o leva a afirmar “antes de mais nada um princípio: o psicanalista só se autoriza de si mesmo”. Ou seja, essa autorização está única e exclusivamente na própria autoria do ato que fez a passagem de psicanalisante a psicanalista. Este ato será então condição necessária ao início de uma análise, e passa então a compor o que seja a direção da cura. Lacan é bastante claro no Seminário 15 ao posicionar, na experiência, o ato do lado do analista e a tarefa do lado do psicanalisante. Mas ao final, novamente subverte essas posições, pois o analisante deverá largar da tarefa por um ato, um ato de psicanalista que fará cair o psicanalista que o sustentara até aquele momento. É neste vértice que gostaria de me deter, para depois avançar, se possível. Considero que é a partir daí que devemos entender como a interpretação se encontra na dimensão de um ato e como este ato se orienta pelo real. Todavia, para isso, é fundamental se questionar sobre a existência de um estatuto lógico da interpretação nesses termos e, se há algum, qual seria, pois a entrada da noção de ato em Lacan coloca grandes desafios à lógica. Pois se Lacan encontra o registro do ato exatamente no rompimento das coordenadas simbólicas que determinam o sujeito, coordenadas simbólicas estas que compõem uma lógica que vai até a fantasia, como pensar em uma lógica que inclua de alguma maneira o ato em sua dimensão real? Como pensar a lógica para um além da fantasia? Porque acompanhando o ensino de Lacan até o Seminário 15, o que podemos observar é uma espécie de tensão entre o que é do campo da formalização, que poderíamos dizer lógica e simbólica (campo da determinação) contra o campo da ética, que escapa à lógica e ao simbólico (lugar da causa). É a mesma tensão que vem desde o Seminário 11 com as operações de alienação e separação. Para seguir isso, basta observar como a noção de escolha é tratada nessas operações. Muito embora Lacan proponha para a operação de alienação (tanto no Seminário 11 com a lógica dos vels, quanto no grupo de Klein, nos Seminários 14 e 15) essa noção notavelmente subversiva de “escolha forçada”, ainda assim ela não deixa de se alinhar à determinação significante, na medida em que é ela mesma que institui essa determinação. No entanto, o tipo de escolha que encontramos na operação, separação ou no ato analítico é de natu86
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reza distinta: não é forçada e destitui as coordenadas simbólicas. Ou seja, é um ato que não se apoia nem no Outro, nem no sujeito, se imiscuindo como algo decididamente estranho ao sistema e tendo a causa como seu agente. É essa tensão que se presentifica quando Lacan se refere à experiência como uma práxis e não como uma técnica analítica. Trata-se de uma práxis que contempla a possibilidade de que um ato venha pôr fim à sua própria experiência. Mas é dessa forma que se torna complexo pensar a interpretação como algo que reúna lógica e ato. Todavia, parece que é esse desafio que vai orientar o esforço de Lacan a partir de então. É, na verdade, uma questão que se lhe abrirá em algumas frentes, embora todas elas girem em torno do mesmo ponto: o tipo de laço que se forma a partir do passe clínico, a partir deste ato. E isso já se desdobra em pelo menos dois campos: o tipo de laço que se forma ao se derivar deste ato a posição de analista praticante, cuja figura central passa a ser a interpretação; e o laço que se monta em torno do trabalho com os colegas, esses “esparsos disparatados” (LACAN, 1976/2003, p. 569) que formam a Escola (que não devemos esquecer, trata-se do estilo), cuja figura central passa a ser a transmissão. Notamos, então, que interpretação e transmissão se articulam de alguma forma e que, certamente, a questão do estilo é um dos pontos dessa articulação. O estilo, como Lacan já apontava na abertura de seus Escritos, é aquilo que se pode fazer com o objeto a para além da fantasia que sustenta sua alienação ao Outro. É, na verdade, uma asserção muito próxima a uma das maneiras que vai se referir às consequências do ato analítico no Seminário 15: “a operação do ato analítico deve reduzir esse sujeito à função do objeto pequeno a” (LACAN, 1967, sessão 24/01/1968), função essa que se assimila à causa de desejo. São maneiras que Lacan encontra de apontar e falar sobre os laços que se estabelecem com base no passe clínico. Ao falar em “função do objeto a”, Lacan já promove uma estrutura heterogênea para se referir ao laço. Se por um lado o objeto aqui na posição de agente refere-se ao real, fazer dele uma função recupera o campo da relação simbólica de alguma forma, na medida em que qualquer função é, ao final, uma relação, um laço. Aliás, não é de outra maneira que Lacan entrará no seminário seguinte, De um Outro ao outro, afirmando que “a estrutura deve ser tomada no sentido em que é mais real, em que é o próprio real” (LACAN, 1968/2008, p. 30), o que é o mesmo que dizer que há uma lógica que concerne ao real. Mas o que é um dizer como esse? É interessante, porque aquilo que aparece como um impasse, impasse clínico e impasse de formalização, poderá dar lugar a um passe, mas não sem que o impasse seja nele incorporado. Acompanhemos isso clinicamente. A construção da fantasia em análise Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 85-92 junho 2012
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é definida por Lacan como o impasse diante da evidência daquilo que o sujeito montou para fazer existir a relação sexual, uma relação que buscou escrever a proporção entre o homem e a mulher, mas que, neste ponto, se evidencia como apenas a relação entre um sujeito e um objeto. É nesse equívoco que conseguimos discernir como o objeto só pode tamponar a falta de uma escrita, na medida em que não pode se inscrever nessa falta por uma impossibilidade lógica. Ou seja, o que Lacan indica é que, exatamente por se tratar de um impossível lógico (modal), é que isso faculta que algo da ordem de um objeto venha se alojar nessa falta de escrita. Por sua vez, o passe não está em conseguir, de alguma maneira, escrever a relação, mas no giro de lugar do objeto, o que implica uma outra estrutura para tratar o impossível. Pois bem, o mesmo se dá com o impasse de formalização lógica. Lacan indica diversas vezes como o projeto da lógica só faz realizar o impossível de se escrever da relação sexual a cada tentativa que faz em escrevê-la, como o projeto de Frege, por exemplo, de uma conceitografia, uma escrita livre de qualquer ambiguidade. Lacan dirá em O Aturdito: “seria, porventura, descabido dar o passo do real que explica isso, traduzindo-o por uma ausência perfeitamente situável – a da relação sexual em qualquer matematização?” (1973/2003, p. 480). Ora, a estrutura que passa a interessar a Lacan é exatamente aquela que porta seu impasse enquanto tal, mas desde uma outra posição. Não é por acaso que ele trabalha com o par ordenado relacionado com o paradoxo de Russell já no Seminário 16, não com o intuito de resolver o paradoxo por qualquer lógica consistente, mas para que se mantenha o paradoxo no deslocamento do par entre S1 e S2. É exatamente essa ordem do paradoxo que levará Lacan à ideia de um discurso sem fala (parole) e à teoria dos discursos. Pois é na dimensão de uma escrita que se pode constatar o furo, a ausência da relação sexual e ao mesmo tempo, onde se pode localizar sua estrutura. A fala, por sua via, indicará sempre a dimensão do sujeito, seja em seu enunciado ou enunciação. É isso que vai chegar até O Aturdito, escrito no qual Lacan, alinhando o dito à fala, refere o discurso do analista ao dizer. Vemos assim como o real vem com a estrutura, como uma parte da estrutura e não como algo além, aquém ou fora da estrutura. Lacan retoma em O Aturdito: É nisso que os matemas com que se formula em impasses o matematizável, ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina de real, são adequados para se coordenar com essa ausência [relação sexual] tomada do real. Recorrer ao não-todo, (...) isto é, aos impasses da lógica, é, ao mostrar a saída das ficções da Mundanidade, produzir
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uma outra fixão do real, ou seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. É também traçar o caminho pelo qual se encontra, em cada discurso, o real com que ele se enrosca (1973/2003, p. 480).
Assim, ao falar em “transmissão integral” no Seminário 20 (1972-73/1985, p. 150), Lacan parece levar ao cúmulo o que a noção de integral pode portar, se referindo a uma estrutura que se transmite não toda e que só dessa forma pode ser integral. Trata-se da transmissão que não vai sem o impossível, cujo nome na estrutura é furo. É exatamente essa relação que Lacan proporá entre o dito e o dizer, afirmando que o dizer ex-siste ao dito. E será à dimensão de um dizer que Lacan buscará localizar a interpretação, em que se pese que um dizer nunca vá sem o dito, consideração importante que condiciona a interpretação à lógica e elimina qualquer aspiração do inefável que venha assediá-la. E isso pode ser muito bem localizado desde Radiofonia, quando Lacan insiste que “esse algo em que o psicanalista, ao interpretar, produz a intrusão do significante, esfalfo-me para que ele não o tome por uma coisa, já que se trata de uma falha, e estrutural” (1970/2003, p. 411). Mas uma falha apreendida na estrutura, como Lacan dirá no Seminário 20, quando fala daquilo que “não para de não se escrever” (1972-73/1985, p. 198). Mas isso também formaliza como a interpretação, que se orienta por um dizer, não visa à verdade. Devemos recuperar que se por um lado Lacan sempre alinhou a interpretação ao não sentido para fazer frente à busca de sentido último que faria com que a linguagem (o Outro) pudesse dar um ser ao sujeito, o ponto visado não deixava de ser uma verdade negativa, a verdade última da falta-a-ser do sujeito. A separação entre dito e dizer faz com que Lacan localize a verdade do lado do dito, mas como uma verdade semidita, uma vez que ela não pode ser dita toda. O que dela não se faz um dito todo é o lugar no qual a relação sexual não se escreve e o lugar onde se monta a fantasia como resposta a essa verdade. É o núcleo do que Lacan chamará, em 76, de a verdade mentirosa. Mas isso só faz mostrar que o que não é dito não é da ordem da verdade, mas sim da ordem do real. Assim, o dizer se orienta pelo real e não pela verdade. Se pudermos reconhecer nisso uma lógica formal, desvencilhá-la da verdade e orientá-la pelo real é um passo e tanto para o que se fez com lógica até então. E é o que podemos encontrar como esforço de Lacan para se pensar uma lógica para além da fantasia ou para além da fantasia da lógica, uma lógica que possa formalizar o laço que Lacan buscou estabelecer pelo discurso do analista.
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Resumo Logo após formalizar a lógica da fantasia, Lacan demonstrou como o ato psicanalítico implicava, em última instância, um ato para além dessa lógica. Com isso Lacan chegou ao extremo de uma tensão entre os campos da lógica e da ética, na qual o limite do primeiro se encontrava em uma resposta advinda do segundo. O ato, assim, é uma resposta do real à montagem fantasmática pela qual o sujeito se constituiu com base na determinação simbólica. Neste sentido, lógica e real se mostravam excludentes. Todavia, Lacan não tardou em formalizar o tipo de laço que se estrutura como efeito deste ato, um laço que pressupõe uma lógica afeita ao real. O objetivo deste texto é acompanhar estas passagens do ensino de Lacan, tendo em conta que o laço do discurso do psicanalista é aquele que possibilita uma lógica à interpretação.
Palavras-chave Lógica, interpretação, ato psicanalítico, discurso do psicanalista.
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Abstract Soon after formalizing the logic of fantasy, Lacan demonstrated how the psychoanalytical act meant, ultimately, an act way beyond that logic. Thus, Lacan got to the extreme of a tension between the fields of logic and ethics, in which the logic finds its limit in an ethical response. In this way, the act is a real response to the fantasy, by which the subject was constituted from the symbolic determination. In this sense, logic and real proved themselves to be mutually excluding. However, it did not take Lacan long to formalize the type of bond that is structured as an effect of this act, that is, a bond that requires logic related to the real. The aim of this paper is to follow these passages in Lacan’s teachings, taking into account the fact that that is the discourse of the analyst that provides logic for interpretation.
Keywords Logic, interpretation, psychoanalytical act, discourse of the psychoanalyst.
Recebido 10/02/2012
Aprovado 01/04/2012
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O Dever de Dizer e o Dever de Calar Christian Dunker
1. Introdução A noção de dever liga-se em Freud à noção de superego. É o dever que origina o caráter insensato e insaciável de nossa exigência moral, de nossa aptidão para a idealização, do circuito de empobrecimento da experiência gerado pela obediência ao supereu. Mas se o supereu trabalha ao modo de um puro dever, como o imperativo categórico, será que todo dever precisa ser reduzido à expressão superegoica? Retomo aqui a antiga questão técnica, legada por Strachey, sobre o superego do psicanalista, cuja tradução lacaniana seria o gozo do analista. No artigo The Nature of the Therapeutic Action of Psychoanalysis, Strachey (1934) introduz a noção de interpretação mutativa, que origina uma torrente de concepções sobre as relações entre supereu e interpretação. A interpretação mutativa envolve uma separação entre fantasia e objeto; ela não é só mutativa porque muda o paciente, mas porque é uma ruptura no dizer do analista. Na esteira dos desenvolvimentos de Ferenczi sobre a espontaneidade e sinceridade que se deveria esperar da relação analítica, os pós-freudianos enfatizaram que o supereu seria o conceito metapsicológico fundamental para entender a interpretação. É neste contexto que se pode entender a emergência de modelos clínicos baseados em “experiências emocionais corretivas”, economia das intervenções baseada na oposição entre “frustração e gratificação” e efeitos avaliados em termos de “regressão e agressão”. É preciso lembrar como Rudolph Lowenstein, analista de Lacan, desenvolvera, uma teoria da interpretação fundada na passagem da superfície para a profundidade, ou seja, uma concepção que aparentemente procurava mitigar o impacto superegoico da interpretação. Uma parte deste problema é resolvida por Lacan por meio de uma retomada dos problemas relativos ao significante e ao sentido e uma releitura dos processos hermenêuticos presentes no sonho, no chiste e na psicopatologia da vida cotidiana. Menos claro, entretanto, é como a crítica lacaniana da interpretação de estrutura superegoica lidará com o problema da decisão interpretativa. De fato há inúmeStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 93-102 junho 2012
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ras indicações que ligam a prática da interpretação com o tempo. No entanto, quando o problema é a forma, a quantidade e a extensão das intervenções, Lacan sempre insistiu na liberdade e no tato do analista. É neste plano que se coloca nosso problema sobre o tipo de dever envolvido na economia de fala e silêncio, em meio a qual a interpretação se desenvolve. Não podemos confundir o dever da interpretação com o poder da interpretação. Ou seja, há certas condições que nos informam quando uma interpretação é possível, mas nem sempre que podemos arriscar uma interpretação, devemos fazê-lo. Consideramos esta afirmação de Freud sobre os momentos e as condições sobre as quais a interpretação é possível: Se comunicamos a um paciente uma representação que ele recalcou em seu próprio tempo e conseguimos recuperar, isso, em princípio, nada modifica seu estado psíquico. (...) Não se conseguirá mais que uma nova desautorização (Ablehnung) da representação recalcada. Mas agora o paciente tem a mesma representação numa dupla forma, em lugares diferentes de seu aparelho psíquico; primeiro possui a recordação consciente do traço auditivo da representação que comunicamos, em segundo lugar, como com certeza sabemos, leva em seu interior a recordação inconsciente do vivenciado. Só quando esta última se torna consciente se alcança êxito (FREUD, 1915, p. 171-172).
Ou seja, a representação comunicada envolve um tempo e um trabalho de reconstrução ou recuperação. Em seguida há o trabalho de passar da recordação do traço auditivo à vivência ou experiência (ducharbeiten). É só no terceiro tempo da interpretação que ela alcança seu êxito ao se “tornar disponível para a consciência”. Ou seja, a interpretação envolve o poder de lembrar, mas também o poder de esquecer. O dever de dizer, mas também o dever de calar. E esta liberdade faz parte do processo em contraste com aquilo que devemos lembrar e o que devemos esquecer. Se o campo das condições de possibilidade da interpretação inspira uma lógica da intervenção psicanalítica, o campo das condições de dever da interpretação nos convida à consideração ética do problema. O fato, talvez mais interessante, é que estas duas condições não se somam nem se completam, elas produzem alguma tensão entre si, como pretendemos mostrar neste trabalho.
2. Ética e Lógica da Interpretação em Lacan Nossa tese pode ser então enunciada da seguinte maneira: se a lógica da interpretação sem ética é vazia, a ética da interpretação sem lógica é cega. Mas mesmo se lógica e ética da interpretação se 94
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reunissem, como condições de possibilidade e condições de necessidade, ainda sim esta seria manca do ponto de vista da liberdade do analista. Vejamos como este movimento aparece em três incidências cruciais no entendimento lacaniano da interpretação. É nesta direção que Lacan insiste que a interpretação deve ser pensada como restituição da verdade, estrutura de ficção, transformação da articulação metafórica ou metonímica, no contexto da crítica da interpretação como reconstrução da realidade factual da lembrança. Sejamos categóricos: não se trata na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes (LACAN, 1953, p. 257).
Aqui, Lacan é hegeliano, no sentido de que liberdade e necessidade, ética e lógica procedem de uma mesma substância comum, a saber, o tempo. O tempo é este conceito no interior do qual a dimensão ontológica da realidade se bascula em dimensão antropológica da verdade, invertendo assim a relação tradicional e intuitiva do passado como campo do necessário e o futuro como campo do contingente. A oposição lógica entre realidade e verdade se redobra na oposição entre contingência e necessidade. Ora, a verdade de corte ontológico realista não pode abrigar o futuro, limitada que está pela estrutura judicativa da inferência. É com este conceito ético antropológico de verdade que Lacan consegue reverter o realismo “anamnésico” da teoria da interpretação convencional. Ou seja, a verdade assim considerada “cria suas próprias condições de efetivação”, condições que não estão dadas. É como efeito ético da interpretação que se recupera a escassa liberdade do sujeito no presente. Um segundo momento da estratégia ético-lógica de Lacan para esta matéria é a consideração da interpretação exata ou inexata, no contexto da discussão com Glover. Aqui, encontramos o caso clínico de Lacan, que se vale da interpretação formulada pelo sonho da esposa de seu paciente (LACAN, 1958, p. 626-637). Diante do convite para que ela trouxesse outro homem, para um encontro sexual a três, a esposa sonha com uma mulher dotada de pênis. Lacan considera que ao contar este sonho ao seu amante, ela teria sido a agente da interpretação. Novamente, é pela estrutura de ficção, representada pela hipótese da tríade e pela resposta na forma do sonho da esposa, que se dá a transformação da articulação metafórica do sintoma-demanda em articulação metonímica do desejo. Remanesce que a interpretação final de uma análise não tenha sido Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 93-102 junho 2012
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feita pelo próprio analista, mas pela esposa do paciente, quiçá em posição de analista. Ótimo exemplo, e raro por referir-se à prática do próprio Lacan, do dever de calar-se e de pagar, com suas palavras, com seu corpo e com o juízo mais íntimo de seu ser (kern unseres wesens). Aqui, Lacan é heideggeriano, no sentido de que a escuta precede a decisão. O terceiro exemplo da abordagem ético-lógica da interpretação vem da polêmica em torno da ideia de que a interpretação seria aberta a todos os sentidos, no contexto do debate com Laplanche. A interpretação isola um kern, um coração de non-sense, mas não é ela mesma non-sensical e aberta, ou flutuante, para todos os sentidos. Ora, por que não? Porque ela não é apenas lógica, mas também ética. “O que funda, com efeito, no senso e no não senso radical do sujeito, a função da liberdade é propriamente esse significante que mata todos os sentidos.” (LACAN, 1963, p. 238). Ou seja, a interpretação toca ou alude ao objeto a em sua estrutura de corte. Ela extrai um efeito ético de liberdade com base em um “significante que mata todos os sentidos”. Aqui, Lacan é decisionista, como Carl Schmitt. É com a suspensão da lei, como lei de linguagem e de sentido, que ética e liberdade reaparecem. O problema que remanesce nestas três incidências temáticas da interpretação é o da sua infinitude, ou seja: se a interpretação abriga em seu interior o não senso, pode ser efetivada por qualquer um em função de analista e condicionar-se em uma verdade que representa a liberdade futura. Qual é a terminabilidade do processo interpretativo?
3. A Interpretação como Corte Depois que temos as condições pelas quais a interpretação se inicia e se mantém, o problema é como fazê-la parar. E mesmo que ela se efetive como silêncio, como fazer para extrair deste silêncio uma função não interpretativa, mas separadora? É aqui que precisamos examinar melhor como a interpretação possui uma estrutura de corte. O corte, contudo, sempre pode ser reabsorvido como uma nova interpretação. É preciso lembrar que este é o início do tema da interpretação em Lacan. Desde a tese de 1932 ele está às voltas com um fenômeno clínico chamado de delírio de interpretação. Descrito por Serieux e Capgras em: (...) um raciocínio falso que tem como ponto de partida uma sensação real, um fato exato, o qual em virtude de associações de ideias ligadas às tendências e à afetividade e através de induções ou deduções erradas, acaba por adquirir para o doente uma significação pessoal, pela
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qual tudo se coloca invencivelmente a ele relacionado (SÉRIEUX, P. & CAPGRAS, 2004, p. 77-83)
A interpretação delirante distingue-se do mero erro de interpretação ou entendimento em dois aspectos: ela não pode ser corrigida ou retificada, e ela não é uma significação isolada, mas algo que se irradia, se dissemina e se organiza em sistema. Mas, examinando o delírio de interpretação, Lacan acaba por concluir que todo delírio é apenas isso, interpretação. O que levanta o problema inverso: qual interpretação estaria imune ao delírio? Há, então, três aspectos que estão na origem lacaniana do problema de uma possível lógica da interpretação psicanalítica: a sensação real, a incorrigibilidade simbólica e o espírito imaginário de sistema. Síntese do real, corrigibilidade simbólica e unificação imaginária definem as perguntas fundamentais que uma lógica da interpretação deve responder. Neste caso, interromper a interpretatividade do inconsciente só pode ser feito pela disjunção entre os registros. Podemos reconhecer aqui como a função superegoica, como voz e observação, como obrigação ao gozo e parceria egoica ao masoquismo, é este elemento que mantém unido o imaginário do sentido, a consistência da significação e a ex-sistência da falta de senso (non-sensical). A nomeação e o silêncio, em sua dimensão superegoica, tornam-se assim o equivalente do quarto nó, o equivalente da suplência, no caso da interpretação. O dever de calar só se coloca como um verdadeiro dizer separador se esta dimensão superegoica puder ser suspendida. O dever de calar é, então, principalmente, o dever de calar a enunciação superegoica que parasita a interpretação. Voltemos ao problema. Como pensar a interpretação sem que ela seja um prolongamento irradiador e disseminador de um sistema delirante – do analisante ou do analista? Como interpretar sem confirmar uma significação isolada, sancionando uma fantasia ao modo de um fetiche? Como interpretar sem expandir indefinidamente o caráter corrigível, modulável e enigmático de toda significação (Bedeutung) baseada na promessa unificadora, representada pelo sintoma, como sentido fálico (Sinn)? É certo que Lacan pensou este problema como a hipótese da dupla volta da interpretação, ou o oito interior da interpretação, desenvolvido em L’Etourdit, mas ao modelo lógico ali presumido não possui correlato ético evidente. Significa dizer que as categorias como desejo do analista, ética da psicanálise e ato psicanalítico são suficientes para apresentar a contrapartida que observamos nos três momentos anteriores da questão? O dizer e o calar têm a ver com a topologia que escolhemos para articular a ética e a lógica da interpretação. O dizer, no entanto, aparece mais como um desenvolvimento da teoria da letra no inStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 93-102 junho 2012
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terior da teoria dos discursos do que propriamente uma renovação conceitual do problema. Mas é preciso que o dizer inclua dentro de si o próprio calar para podermos postular um dever, que vai além da lei analítica da livre associação e da atenção flutuante. Associação ligada, como no quantificador (universal ou existencial) que transforma variável livre em variável ligada e atenção fixa, seriam então as características do dever de dizer. Mesmo que a categoria de dizer em Lacan seja uma espécie de equivalente linguístico-discursivo do que o espaço é para a matemática-topológica, seria preciso articular o dizer com a problemática histórica da imissão do supereu na teoria psicanalítica da interpretação. O dizer é o espaço no qual os ditos acontecem, o espaço que delimita a curvatura dos ditos, a reta contígua da metonímia, a elipse metafórica, a assíntota delirante. Mas onde está a liberdade do dizer? Como tantas vezes insistiu Lacan, nada nos obriga a dizer, nem ao analista nem ao analisante (só o superego obriga). A regra fundamental chama-se associação livre e associação (atenção) flutuante, não associação justa segundo o que se deve dizer ou calar. Mas, e aqui está o ponto que quero trazer para o âmbito da interpretação, sob algumas circunstâncias não muito comuns, até mesmo raras, o dizer e o calar tornam-se um dever. O tema da interpretação pode ser pensado com base nas condições necessárias que limitam ou facultam sua incidência. Há certas condições nas quais a interpretação é possível ou não. São os limites do que pode ser interpretado, sejam eles limites mais genéricos, como os que se impõem pelo diagnóstico; sejam limites móveis, como aqueles que são dados pela transferência; limites materiais, dados pela associação livre e discurso do analista a cada sessão; ou ainda os limites metapsicológicos, relativos à interpretabilidade de uma formação do inconsciente. Resumidamente, a associação livre de um lado e o umbigo dos sonhos do outro, são as fronteiras (die Grenze) da interpretação. Além das condições de possibilidade, há as condições suficientes da interpretação: o desejo do psicanalista e o tempo da transferência. São as condições nas quais uma interpretação é desejável, seja porque ela se articula com a tática ou com a estratégia do tratamento, seja porque ela efetua a política própria que define a psicanálise. Ora, este desejo é sempre uma contingência. É por isso que a tática das intervenções frequentemente trazem gramáticas de aposta, de cálculo, de risco. Propor uma interpretação é, neste contexto, algo análogo a contar um chiste: surpresa, desconcerto e iluminação, uso do tempo, avaliação de qual é a “paróquia transferencial”, a escolha morfológica e sintática dos significantes, as interpretações baseadas na palavra e as interpretações baseadas nos pensamentos, e assim por diante. Nunca sabemos de antemão se vai dar certo. 98
O Dever de Dizer e o Dever de Calar - Christian Dunker
Chistes e sua Relação com o Inconsciente (FREUD, 1901) é o grande tratado psicanalítico sobre a interpretação. Ou seja, a interpretação é um conceito pragmático, que deve ser pensada em relação a seus fins, seus meios, sua eficácia.
4. Conclusão Mas, além das condições necessárias, nas quais a interpretação é logicamente possível ou não; e das condições suficientes, nas quais a interpretação é eticamente desejável ou não, há certas interpretações que se colocam como uma espécie de violação das regras psicanalíticas. Tanto a regra da associação livre, quanto sua recíproca escuta equitativa são regras disposicionais, ou seja, elas fixam a intenção de suspender o juízo, a antecipação do sentido ou a ocultação de pensamentos. É justo que percebamos certos casos como violação de uma regra: o silêncio e a repetição em sua conotação de resistência, por exemplo. Conhecemos muitas situações nas quais a fala do paciente não funciona mais livremente. De acordo com a tese de Lacan, tal movimento equivale à resistência como resistência do discurso e função intrínseca do analista. Mas por que não haveria situações nas quais o desejo do psicanalista se vê tomado pelo dever, pelo puro dever de dizer ou de calar? Há dois bons exemplos deste tipo de interpretação no caso de Margareth Little, que Lacan examina no seminário sobre A Angústia: (1) “A analista, munindo-se da coragem, em nome da ideologia, da vida, do real, de tudo o que vocês quiserem, faz, afinal a mais singular intervenção em relação à perspectiva que chamarei de sentimental. Um belo dia quando o sujeito repisa todas as suas complicações de dinheiro com a mãe, a analista lhe diz em termos claros: olhe, pare com isso, porque literalmente, eu não aguento mais ouvir, você está me dando sono (LACAN, 1963, p. 159). (2) Na segunda vez são as pequenas modificações feitas pela analista no que ela chama de decoração do consultório (...) Margareth Little já fora apoquentada o dia inteiro pelos comentários de seus pacientes: está bonito, está feio, este marrom é horrível, este verde é admirável (...) A analista lhe diz textualmente Escute, estou pouco me importando para o que você possa achar” (LACAN, Ibid, p. 160).
Com estas duas intervenções ela coloca a paciente em trabalho de luto, antes jamais abordado com relação à sua mãe. Note a série invocada pelo exemplo: “em nome da ideologia, da vida, do real, de tudo o que vocês quiserem”. Note como o exemplo contraria quase Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 93-102 junho 2012
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1. Conforme discussão com Ricardo Goldenberg, Dominique Fingermann, Angela Vorcaro e Leda Bernardino.
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tudo o que podemos conceber vagamente como uma deontologia psicanalítica: acolhimento, paciência, benevolência, a pessoa do analista, as convenções etc. Mas, por algum motivo e de algum lugar ela tirou este “dever dizer”. Desconfio que é do mesmo lugar com o qual se extrai o “dever de calar” com o qual aguentamos em silêncio atrocidades e desgraças que ninguém mais suportaria ouvir. O lugar de onde extraímos um efeito discursivo, que a língua comum chama de calar fundo. Do latim calare, baixar a voz, proveniente de cális – fazer baixar, deixar cair – e cálamo, caneta, pena de escrever. De onde procede também a palavra calamidade, desgraça, prejuízo ou dano; e a palavra calado, parte baixa do navio, que fica submersa e em contato com a água. Se isto for correto, abre-se uma pista para pensar a aparição do tema do ato psicanalítico em Lacan como conceito forjado para ocupar a zona limite de indecidibilidade entre o que a interpretação pode e o que a interpretação deve fazer. Com isso reúno alguns argumentos para postular a existência de uma espécie de contrapartida do lado do analista do imperativo freudiano do “Wo es war soll Ich werden”. O verbo sollen quer dizer dever. Mas assim como o verbo ser (war) se desdobra em dois no português de “ali onde isso estava-era”, é uma novidade totalmente radical, se queremos levar a sério o dito freudiano e imergi-lo no dizer brasileiro.1 Por outro lado, o alemão tem duas palavras onde nós só temos uma: konnen e durfen. Ambas querem dizer poder, mas o durfen exprime um poder-dever, enquanto o konnen exprime um poder-intransitivo. Ambos se opõem ao dever (sollen), mas um é superegoico (konnen), o outro não (durfen). E é isso que ocorre no lado B do “Wo es war soll Ich werden”, ou seja, o lado do analista, a saber, “Wo Ich war, soll es werden”. Tradução: onde estava eu, com meu eu, onde eu era, com minha posição de sujeito, deve (no sentido inverso ao poder-dever) aparecer a palavra (ça parle) e o dizer (discurso sem palavras).
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Referências Bibliográficas FREUD, S. (1915) O Inconsciente. Sigmund Freud Obras Completas V-XIV, Buenos Aires, 1988, p. 171-172. ________. (1901) Chistes e suas Relações com o Inconsciente. Sigmund Freud Obras Completas V-XIV, Buenos Aires, 1988. LACAN, J. (1953) Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. p. 238-324. _______. (1958) A Direção da Cura e os princípios de seu poder. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. p. 626-637. _______. O Seminário, Livro 10: A angústia. (1962-1963). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002. 159 p. _______. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988. 238 p. SÉRIEUX, P. & CAPGRAS, J. As loucuras raciocinantes – o delírio de interpretação: introdução. In: DALGALARRONDO, P.; SONENREICH, C. & ODA, A. M. R. História da psicopatologia: textos originais de grandes autores. São Paulo: Lemos, 2004. p. 77-83. STRACHEY, James (1934). The nature of the therapeutic action of psycho-analysis. International Journal of Psycho-Analysis, 15, p.127-159.
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Resumo Este trabalho pretende justificar axiologicamente as condições que tornam o dizer um ato contingente, porém, baseado em uma forma de dever. Discute-se a noção de dever contrapondo sua extração superegoica com sua dimensão ética bem como sua tensão conceitual com a lógica da interpretação.
Palavras-chave Interpretação, clínica, lógica, ética.
Abstract This paper establish some axiological justification to the conditions by witch a “speak” (dire) presents itself as a contingent act, in a form of duty. We discuss the notion of duty, opposing it its superego extraction to its ethical dimension, as well as its conceptual tension with the logic of interpretation.
Keywords Interpretation, clinic, logic, ethics.
Recebido 06/02/2012
Aprovado 08/03/2012
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O psicanalista, os limites da interpretabilidade e o passe Sonia Alberti Com base em uma pergunta, Lacan retoma em Televisão as três questões kantianas que deram origem ao que se instituiu chamar de “período crítico” de Kant, ou seja, aquele em que o filósofo desenvolveu A crítica da razão pura (1781), A crítica da razão prática (1788) e A crítica da razão jurídica (1790). Chamar esse período de “crítico” já não é sem equívoco... Escolhi introduzir o tema baseado nessa referência de Lacan, porque ela nos serve para retomar um pouco o que normalmente se discute sobre a psicanálise, na tensão do que nós, analistas e analisantes – porque sempre somos também analisantes na nossa relação com a psicanálise –, questionamos quanto ao que responde o psicanalista partindo de nossa experiência. Já é superconhecida a fórmula segundo a qual é necessário um tempo – as entrevistas preliminares, ou, como Freud (1913/1999, p. 455) as chamava: o tratamento de ensaio – para que surja uma demanda de análise daquele que veio procurar um psicanalista em razão de seu mal-estar – outra expressão de Freud (1930/1969). Esse tempo é necessário porque a demanda de análise dependerá, para se fazer valer, do que responde o analista. Se aquele a quem o sujeito endereça suas queixas não responder do lugar de quem sabe, ou seja, se ele não se identificar com aquele que saberia qual a resposta para as queixas do sujeito e, ao contrário, se calar para poder fazer emergir o sujeito suposto saber que é o sujeito do inconsciente, visado na transferência, então sim, há uma chance de se poder apostar no surgimento de uma demanda de análise. Poderíamos já aqui retomar a fórmula de Lacan em A Terceira: uma análise é uma relação do analisante com o par analisante-analista, o par que surge com a transferência. Aliás, Lacan já observou muito cedo em seu ensino que uma demanda de análise é a única demanda a que devemos, enquanto analistas, responder. De resto, via de regra, não respondemos a demandas. Então a primeira resposta de um analista é a não resposta e, se isso produz uma demanda de análise, ou seja, coloca em cena o sujeito suposto saber, então a segunda resposta de um analista é “deite-se: eu faço uma aposta na sua análise”. Tal aposta não é da ordem do saber, pelo contrário. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 103-113 junho 2012
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Para introduzir essa diferença, inicio retomando uma observação de Lacan (1973-74), sobre o oculto.
Os limites da interpretabilidade É possível em psicanálise estabelecer os limites da interpretabilidade. A dificuldade na interpretação desse pequeno texto foi encontrada até mesmo por Lacan, que a ele se referia na lição de 20 de novembro de 1973 de seu Seminário: Os limites da interpretabilidade (Freud, 1925/1999). Ele responde ao que poderia ser identificado como a errância de Freud. Lacan a nomeia: foi a tentativa de tornar o discurso psicanalítico adequado ao discurso científico. Lacan (1973-1974) observa que tal errância também impedia Freud de valer-se da matemática – o que não quer dizer que não fizesse matemática ao Imaginar o Real do Simbólico (sic). Freud só não pode valer-se da matemática porque, apesar de fazer matemática, não pode inscrevê-la na psicanálise, ou seja, dar um segundo passo. Se Freud imaginou o Real do Simbólico – o primeiro passo –, faltava o segundo passo, que é “ao que nos conduz considerar o inconsciente, de onde se trilha o linguístico” (idem, Lição de 13 de novembro de 1973). Foi por ter se dado conta de que há o Real no Simbólico, que nos abriu a via para uma nova passagem, pois se o inconsciente existe, conforme Freud o conceituou, então habitamos um outro espaço, já não mais o do more geometrico e sim aquele que se define pelo nó. A realidade psíquica é criada em função desse novo espaço. Lacan então observa que no final da Interpretação dos sonhos, em função daquela sua errância, Freud (1900/1969) procura distinguir a realidade psíquica da realidade material, e vacila. É no texto de 1925/1999 que podemos rever a vacilação, pois esse texto testemunha que o primeiro passo efetivamente havia sido dado! Retomemos o texto de Freud: Os limites da interpretabilidade, que não podem ser tratados de forma abstrata, mas em relação às Verhältnisse (Lacan traduz essa palavra como “as relações que se escrevem”) sob as quais se interpreta um sonho, quais são? Eles são dados pelo fato de o sonho ser produção inconsciente. Este, como desde sempre fora teorizado por Freud, funciona conforme o processo primário. Em função disso, é enganoso supor que sonhamos para tentar resolver as principais tarefas da vida ou para terminar de resolver os problemas que trabalhamos durante o dia. Tal visada útil é realizada somente pelo pré-consciente... de resto, “Somente uma única visada útil, uma função corresponde ao sonho: a de evitar a perturbação do sono”, ratifica Freud (1925/1999, p. 562). Por esta razão, os sonhos que melhor realizam tal visada 104
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são aqueles dos quais nada se sabe dizer após o despertar. Em A Terceira, Lacan (1974) observa que, ao contrário de Freud, seus sonhos são feitos para despertar. São sonhos inúteis, então, porque não evitam a perturbação do sono, muito ao contrário... É em A Terceira também que Lacan introduz a interpretação em psicanálise via lalangue, que não tem qualquer sentido – é o sem sentido que acorda em função de sua estranheza. Segundo Freud, se é tão frequente que nos lembramos de sonhos, às vezes por longos anos ou décadas, isso sempre significa que houve uma irrupção do inconsciente recalcado.1 Única razão que justificaria arriscarmos o fracasso da função do sonho: a de velar o sono. Mas se essa irrupção é o que dá ao sonho a sua significação para a psicopatologia (sic), ou seja, faz do sonho a via régia para o inconsciente recalcado, Freud observa que isso ainda não quer dizer que baseado nisso o sonho é todo passível de interpretação. Na realidade, escreve, se logramos desfazer a deformação onírica, temos acesso não somente ao conteúdo recalcado inesperado, mas também “entreouvimos o pensamento pré-consciente nos estados em que verifica sua própria situação interna e que não foram conscientizados durante o dia” (FREUD, 1925/1999, p. 562). E com base nisso, no exercício da interpretação como parte do trabalho analítico, orientamos nosso interesse ora para o conteúdo pré-consciente do sonho, ora para a contribuição inconsciente à formação do sonho, e muitas vezes negligenciamos um elemento em prol do outro. No item c) dessa pequena sequência de textos, A significação oculta do sonho, Freud (1925/1999a) cita um exemplo: a simbolização. Observa que a simbolização não é, de forma alguma, uma questão onírica, mas um tema do pensamento arcaico, de nossa “língua fundamental”, como o expressara acertadamente o paranoico Schreber (sic). Ele acrescenta que o sonho não tem a exclusividade de ocultar de forma privilegiada conteúdos significativamente sexuais, estes também são ocultados nos mitos e nos rituais religiosos, por exemplo – temas, portanto, do pensamento arcaico que Freud aqui distingue claramente do inconsciente! Assim, observa Lacan em O Seminário, livro 21: Os não tolos erram, que aqui tomo como diretriz, “não há nada de comum entre o inconsciente e o oculto” (lição de 20 de novembro de 1973). Freud continua: O sucesso da interpretação é totalmente dependente da tensão da resistência entre o eu desperto e o inconsciente recalcado. Em análise, por longo tempo trata-se de fortes resistências, eis porque só é possível traduzir e utilizar uma certa parte e, mesmo esta, de forma incompleta. Com base no fato constatável de que os sonhos com sentidos mais permeáveis à interpretação são os sonhos infantis, Freud deStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 103-113 junho 2012
1. Freud completa, “no eu”. Mas ao lê-lo, é preciso lembrar que esse texto é de 1925, portanto, escrito na segunda tópica que explicita que a maior parte do eu é inconsciente.
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preende “que o sonho é uma entidade psíquica interpretável de maneira geral, mas nem sempre a situação permite a interpretação” (FREUD, 1925/1999, p. 564) e que às vezes não dá para verificar se a interpretação inclui ou não pensamentos pré-conscientes que podem ter se expressado pelo mesmo sonho. Então o sentido demonstrado, corroborado, é aquele sustentado pelas associações do sonhador e da avaliação da situação; o que não implica que outro sentido deva ser sempre descartado. Ele continua possível, apesar de não demonstrado (unerwiesen); é preciso familiarizar-se com o fato de tal pluralidade (Vieldeutlichkeit) na interpretação dos sonhos. A pluralidade nem sempre deve ser tomada como responsável pela incompletude do trabalho da interpretação, pois essa responsabilidade pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes. Quanto ao fato de ficarmos inseguros sobre se uma expressão que escutamos, uma informação que recebemos, deve ter esta ou aquela interpretação (Auslegung), sobre a possibilidade de além de seu sentido evidente ainda se indicar (andeuten) alguma outra coisa, isso também vivemos em vigília e, portanto, externamente à situação da interpretação do sonho. Não é a primeira vez que Freud se utiliza do termo Auslegung para a interpretação, normalmente expressada pela palavra Deutung. Já na Interpretação dos sonhos se valera, algumas vezes, desse artifício. Em que ele nos serve senão a pluralizar a interpretação? Se é verdade, como Freud estabelece em 1925/1999, que a análise de um sonho, orientada com base nas associações do sujeito em análise, pode privilegiar os pensamentos pré-conscientes que não foram conscientizados durante o dia, e se é verdade que a incompletude do trabalho da interpretação pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes, então esse texto de Freud já leva em conta um inconsciente que não sabe – cuja falta de representabilidade é substituída, no material onírico, pelos pensamentos pré-conscientes –, pergunto: podemos associá-lo ao inconsciente Real? Este, por sua vez, não visa senão “evitar a perturbação do sono”, mas com o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo. Ele desperta! É o modelo do pesadelo tal como estudado em A interpretação dos sonhos... Eis onde, em Freud, já se pode identificar a disjunção entre inconsciente e interpretação, explicitada por Lacan em 1976: “Quando [...] o esp[aço] de um laps[o] já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente” (LACAN, 1976/2001, p. 567). O sonho é ciframento, operação de ciframento feita para o gozo, para que nesse ciframento se ganhe essa coisa que é essencial do processo primário, a saber, o ganho de prazer. Eis onde Freud faz matemática e onde ele é lacaniano. Lá, onde o ciframento se 106
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basta, nada atrapalha a função do sonho: a de ser o guardião do sono. Se inicialmente o desejo é indestrutível, fundamentalmente porque ele é sempre o mesmo (LACAN, 1973-1974, lição de 13 de novembro de 1973), e que é isso que resulta na estrutura – coisa que foi dada de cara pelo primeiro passo feito por Freud –, quando nos instrumentalizamos do inconsciente, o que temos? Os limites do ciframento possível, porque o sentido é sempre sexual e o sonho se depara com a inexistência da relação sexual, ele não dá conta do recado... os limites da interpretabilidade são assinalados pela chegada do sentido que não dá conta do recado. Para concluí-lo, Lacan (1973-1974) dá o segundo passo: sublinha que a palavra “limite”, aqui, é aquela que vale para a matemática, como em “limite de uma função, como limite de um número real” e que quer dizer, em matemática, “que independentemente do aumento da variável – ela pode aumentar o quanto quiser –, a função não passará de certos limites” (lição de 20 de novembro de 1973). Com efeito, em matemática, limite é o valor para onde vai uma assíntota, e uma função é assintótica quando gradativamente vai dependendo menos de sua variável: o sentido, no nosso caso. O sentido, que é sexual, fracassa porque sempre fracassa a Verhältnis (relação sexual) enquanto escrita, razão que impede seu ciframento – por isso acordamos. Bem, em 1974 Lacan faz um chiste com isso quando, como vimos, observa que não sonha para dormir e sim para acordar. A meu ver é um chiste, porque, se por um lado, com isso critica um pouco o Freud burguês (LACAN, 1969-1970/1991) mais afeito ao princípio do prazer do que ao seu, mais além, por outro lado visa, com essa observação, à sua releitura de Freud que desperta para a verdade da causa freudiana, sem dúvida. E é somente no âmago de sua Escola que procura renová-la, com o passe justamente, enquanto despertar.
O que posso saber e o passe Em 1964/2001, Lacan fundou sua Escola. O Ato de fundação propõe uma Escola com três sessões: a da psicanálise pura, a da psicanálise aplicada e a das conexões da psicanálise. Com base em minha experiência, parece-me necessária a primeira para haver as outras duas, e é na primeira – a da psicanálise pura – que se criam possíveis respostas nas diferentes sessões da Escola. Conforme os textos estatutários da EPFCL,2 uma Escola, “no contexto das necessidades do nosso tempo”, responde ao lugar do psicanalista, o que não é sem as respostas do psicanalista no tempo que é o nosso. Como não será possível desenvolver tudo isso nas três sessões da Escola, e como advogo que é a primeira sessão, a da psicanálise pura, Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 103-113 junho 2012
2. Carta da IF-EPFCL.<http://www. champlacanien.net/ public/4/ifCharte. php?language=4&menu=1>.
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a que além de sustentar-se, sustenta as outras duas sessões da Escola, trago apenas tentativas de desenvolver a primeira sessão da Escola. Na sessão da psicanálise pura, a Escola não cansa de buscar respostas para o que é uma psicanálise. No aludido texto estatutário lê-se que nossa Escola visa: “1) sustentar ‘a experiência original’ em que consiste uma psicanálise e permitir a formação dos analistas; 2) outorgar a garantia dessa formação pelo dispositivo do passe e pela habilitação dos analistas ‘que deram suas provas’; 3) sustentar ‘a ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria’ (Jacques Lacan)”, o que implica também poder avançar com a teoria a partir do que se deposita da experiência no tempo e no contexto que eventualmente coloca novas questões para a psicanálise. O dispositivo do passe dá respostas cardinais à pergunta sobre o que responde o psicanalista advindo de sua própria análise, ou seja, é uma resposta, mais uma resposta, mais uma resposta, cada uma advinda daquelas testemunhadas, no dispositivo do passe, de cada passe. O que posso saber sobre o que é o final da análise para além de minha própria experiência senão aquilo o que desse final se deposita de saber em minha Escola? O que posso saber? “Nada que não tenha a estrutura da linguagem.” “Do que resulta que até onde irei nesse limite, é uma questão de lógica” (LACAN, 1973/1974, p. 58-59). Talvez a lógica possa nos servir de maneira diferente do que serve à ciência, pois para nós, o limite que a lógica impõe, ao contrário da ciência, abre para a singularidade de nosso campo que se ocupa com o que a ciência foraclui. O que escapa a esse âmbito, e que os passes também testemunham, reforça hoje a sustentação da sessão da psicanálise pura numa direção que, levando em conta as necessidades de nosso tempo, já não é somente a da linguagem, mas a de lalangue. E que Pascale Leray, em Wunsch 10 (2010), identifica como “examinar o potencial do real no tempo do fim”. E que leva “a uma relação nova com o inconsciente, com este real produzido pela experiência do passe”. Tal frase de Pascale Leray não deixa de identificar a relação nova com o inconsciente do final de uma análise com um inconsciente real produzido pela experiência do passe, um inconsciente Real então efeito do passe. Cabe a pergunta: esse passe de que fala Leray é o passe do final da análise ou é o passe da Escola, aquele que nomina o AE? Se for este último, então há algo de Real que o passe da Escola provoca para além do saber que se pode ter, na Escola, do que é um final de análise, e isso então não se pode saber na Escola porque não tem a estrutura da linguagem? – se é verdade que só é possível saber o que tem estrutura de linguagem... Com base no que desenvolve Colette Soler (2011), Leray propõe que poderia ser algo que se exprime como afeto, e que ela asso108
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cia com o afeto novo ao qual Lacan faz referência no prefácio de 1976/2001 (à versão inglesa do Seminário 11), o afeto da satisfação. Segundo Pascale Leray, essa satisfação diz respeito ao novo ser de desejo, o de analista, e ela marca a separação de outras satisfações tidas durante os muitos anos de fala no dispositivo analítico. Então, no âmbito da psicanálise pura, a resposta do psicanalista é o novo ser de desejo, o de analista? Correlato a um afeto de satisfação? Mas o afeto já não havia sido identificado, desde sempre, em psicanálise, como o que pode ser independente da estrutura significante? Então a resposta de Lacan (1973/1974), em Televisão, O que posso saber? “Nada que não tenha a estrutura da linguagem”, leva a uma nova questão: No nível da psicanálise pura – a primeira sessão da Escola –, a resposta que se descortina é: só posso saber o que tem a estrutura da linguagem, mesmo no campo do que se deposita da experiência do passe. É, aliás, o nome da revista que Lacan fundou um ano depois de ter proposto o passe em sua Escola: “Scilicet: você pode saber”, você, que não é psicanalista. Mas não posso saber o que dessa mesma experiência não tem essa estrutura! Para entrevê-lo, é necessário o psicanalista, o Analista da Escola que, na primeira versão da Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan situou em S( A/ ) – justamente o lugar em que falta o significante. E isso porque, como Lacan também já observava em Televisão, o discurso do psicanalista “não admite a questão do que se pode saber”, “porque ele parte por supor o saber como sujeito do inconsciente”. Não é o que se poderá saber, o saber já está lá, apenas inacessível à consciência, e o que se pode saber já se coloca, de saída, como impossível de saber porque o próprio saber é o sujeito do inconsciente, é suposto. Bem, desde Freud, no seu início, já sabemos que esse sujeito do inconsciente tem um umbigo... Foram necessários muitos anos, décadas de psicanálise para perceber que esse umbigo dá entrada num outro campo, muito maior do que aquele do saber, o campo do não saber, o qual, portanto, não é possível atingir pelo saber, o campo que Lacan diz, quando postula o campo lacaniano em 1969-1970/1991, como sendo tão grande, que ele não teria nem mesmo tempo para construir suas bases, como também se lê na Carta que funda a IF-EPFCL: “... se há algo a ser feito na análise é a instituição desse outro campo energético, que necessitaria outras estruturas que não as da física, que é o campo do gozo. No que diz respeito ao campo do gozo – é pena, jamais será chamado de campo lacaniano, pois certamente não vou ter tempo sequer para esboçar as suas bases, mas almejei isto –, há algumas observações a fazer”. Em Televisão, Lacan identifica o sujeito inconsciente como o que engata (embraye) sobre o corpo que, no contexto, ele associa com Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 103-113 junho 2012
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o Real (1973/1974, p. 60). No ano seguinte, em A Terceira, Lacan articulará o corpo como o Imaginário e, na interseção com o Real, indicará o gozo do Outro. Se a ciência se inscreve no lugar do gozo do Outro (SOLER, 2006), a ciência não está do lado do simbólico, mas do lado da letra, onde o simbólico é “real-lizado” (Ibid.). Eis porque Lacan nos diz nesse texto que a ciência é a única aproximação possível que nós podemos verdadeiramente ter do real da vida, como também ressalta Colette Soler em seu Seminário de Leitura (Ibid.) Poderíamos então responder a esse “Que posso saber?” que do ponto de vista do psicanalista, do ponto de vista do que a Escola pode saber da passagem do psicanalisante a psicanalista, ou seja, do passe, e que é da ordem do não-saber, seria possível situá-lo a partir de um real-izado, do campo matêmico, composto de letras? O que posso fazer? O que posso fazer diante disso? Diante da impossibilidade de identificar a estrutura, por que o não-saber é fora da estrutura? E aqui acho muito interessante a resposta que Lacan dá em Televisão: Não posso fazer nada que não diga respeito à ética, que é sempre relativa a um discurso! No discurso psicanalítico, a ética é a do bem dizer, relativa a esse discurso! É por isso que não se pode ler os matemas de Lacan fora do discurso psicanalítico, único campo em que eles bem dizem, com as letras, o transmissível em psicanálise. Mas o não saber não é transmissível, ele reinstaura o buraco (de estrutura)... e é da ordem do dito. Sustentá-lo é função da Escola como já dito, e que nossos textos estatutários retomam de Lacan: sustentar “a ética da psicanálise que é a práxis de sua teoria”. Eis porque a forma de tratar as letras não é a mesma que na ciência. É porque há algo que posso fazer diante do fato de que há o campo do não saber que eu, como psicanalista, ponho em relevo como campo lacaniano, o campo do gozo, e tento escrevê-lo como sintoma, “isso que vem do real via ciência” (SOLER, 2009, p. 149). Somos todos homens e mulheres de nosso tempo, e este é efeito da ciência. O sintoma não é senão consequência disso: Colette Soler o relembra do dito de Lacan em Roma: “creio que o gadget é, na realidade, um sintoma”, não objetos a e sim, sintomas, os gadgets-efeitos do encontro da ciência testemunham que o que vem do real em nosso campo é efeito da ciência. O que não quer dizer que posso fazer ciência, mesmo se o sujeito da psicanálise é o mesmo que o sujeito da ciência, como ensinou Lacan, mas quer dizer, por exemplo, que talvez, o que posso fazer diante do não saber que o campo lacaniano descortina é servir-me das letras. Daí a importância hoje, em nossa Escola, para trabalhar a relação entre letra, escrita e lalangue. Se os efeitos de lalangue ultrapassam tudo que o sujeito pode apreender (SOLER, 2009), já que os efeitos de lalangue não são da ordem do que posso saber, “o 110
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inconsciente lalangue faz obstáculo a que se identifique o sintoma de outra forma que não a hipotética” (Ibid., p. 121), e o que é da ordem de uma hipótese, para nós, psicanalistas, é somente um instrumento com o qual posso fazer avançar nossa relação com a causa freudiana. Daí que também O que me é permitido esperar? só pode ser isso: avançar no trilhamento (frayage) disso, com meus pares, em minha Escola. Na articulação com as duas outras sessões da Escola, isso que me é permitido esperar se sustenta na questão “O que posso fazer, baseada no discurso do psicanalista no contexto do nosso tempo”? Nesse discurso, não há respostas standard, mas a possibilidade de aprender cada vez com a experiência!
Referências Bibliográficas CARTA DA IF-EPFCL. Disponível em: < h t t p : // w w w. c h a m p l a c a n i e n . n e t /p u b l i c /4 / i f C h a r t e . php?language=4>. Acesso em: 04 de fevereiro de 2012. FREUD, S. (1900/1069) Die Traumdeutung. Em: Studienausgabe. Frankfurt a.M., S. Fisher. Vol. III. __________. (1913/1999) Zur Einleitung der Behandlung. Em: Gesammelte Werke. Frankfurt a.M., S. Fischer Taschenbuch. vol. VIII. p. 453-478. __________. (1925/1999). a) Die Grenzen der Deutbarkeit. Em: Einige Nachträge zum ganzen der Traumdeutung. Gesammelte Werke, Frankfurt a.M., Fischer Taschenbuch Verlag. Vol. I. p. 561-564. __________. (1925/1999a). c) Die okkulte Bedeutung des Traumes. Em: Einige Nachträge zum ganzen der Traumdeutung. Gesammelte Werke. Frankfurt a.M., Fischer Taschenbuch Verlag. Vol. I. p. 569-575. __________. (1930/1969). Das Unbehagen in der Kultur. Em: Studienausgabe. Frankfurt a.M., S. Fischer. Vol. IX. pp. 191270. LACAN, J. (1964). Acte de fondation. In: LACAN, J. Autres écrits. Paris, Seuil, 2001. p. 229-242. __________. (1967) Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École, 1ère version. Disponível em: <http://espace.freud.pagesperso-orange.fr/topos/psycha/psysem/ propass1.htm>. Acesso em: 04 de fevereiro de 2012. __________. (1969-70). Le Séminaire, livre XVII, L’envers de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1991. __________. Télévision. Paris, Seuil, 1974. __________. Le Séminaire livre XXI, Les non-dupes errent. (1973Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 103-113 junho 2012
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Resumo Rastreamos a retomada feita por Lacan na última década de seu ensino, ao estudar um pequeno texto de Freud sobre a interpretação para verificar até que ponto a construção do inconsciente Real daquela década poderia ter alguma base nas observações do criador da psicanálise. Lastreia-se nossa visada na identificação nesse texto de Freud, da função do sonho que não é senão a de “evitar a perturbação do sono” e que esta representa o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo, um despertar. Tal despertar é também examinado na relação com as três questões kantianas tratadas por Lacan (1972) em Televisão, que dizem respeito às possibilidades éticas do saber, fazer e esperar. Com base nisso, examinamos o passe e a possibilidade de aprender com a sua experiência.
Palavras-chave Ética, interpretação, inconsciente Real, passe, sonho.
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O psicanalista, os limites da interpretabilidade e o passe - Sonia Alberti
Abstract We track Lacan’s reassessment of his teaching in the last decade, departing from a short text by Freud on the interpretation, in order to determine to what extent the construction of the unconscious Real from that decade could have some basis on the observations by the creator of psychoanalysis. In this text, our endeavor holds itself on the identification of the function of the dream, which is nothing but that of “avoiding sleep disturbance” and that it represents the gain of pleasure, a Mehrlust (a plus of pleasure), the jouissance, an awakening. Such an awakening is also examined in relation to the three Kantian questions developed by Lacan (1972) in Television, which relate to the ethical possibilities of knowing, doing, and hoping. From this, we examine the pass and the possibility to learn from it’s experience.
Keywords Ethics, interpretation, Real unconscious, pass, dream.
Recebido 06/02/2012
Aprovado 08/03/2012
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direção do tratamento
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Da lógica da interpretação à prática da letra Dominique Fingermann O título “Da lógica da interpretação à prática da letra” formaliza um percurso: “de” ... “à” e, portanto, anuncia, indica, promete, uma orientação, uma passagem, uma operação. Uma operação lógica que afete, que tenha efeitos. É isso mesmo que esperamos da direção da psicanálise pelo psicanalista. Orientados eticamente pelo Real, visamos a uma passagem, “uma mutação”, diz Lacan, que tenha consequências poéticas e políticas, já que apostamos em um novo laço enraizado no radical da letra do sinthoma. A letra do sinthoma dispara o jogo do parlêtre (falasser-faletra). Tempo lógico (ver-compreender-concluir) da estrutura quando o significante do Outro toma corpo e proporciona a identificação do Um. Um significante faz furo, incisão primordial no corpo, e decide a consistência de Um e a ex-sistência. Decisão primordial que divide o corpo pulsional (ligado ao Outro e sua demanda) e o corpo – en-corps – que não se liga, nem articula, mas fomenta o eco da repetição (encore!). A hystória pode começar: a partir desse tempo lógico da identificação, isto é, a “transformação operada quando se assume...” (LACAN, 1949/1998, p. 97) um furo como marca do Um, primeiro enodamento RSI entre o furo, a ex-sistência e a consistência. Dessa letra – enodamento RSI – nomeia-se “alguma coisa” que se transforma em “alguém”: Y a quelqu’un! (Aí tem gente!). Lacan explicita no Seminário RSI o enlaçamento entre a letra, a fala e o sentido: Portanto, escrevo R.S.I. esse ano, como título. São apenas letras, e como tais, que supõem uma equivalência. O que resulta do fato de eu estar falando essas letras, utilizando-as como iniciais, e se estou falando-as como Real, Simbólico e Imaginário? Isso toma sentido, e essa questão do sentido, nada mais é, precisamente, do que isso que estou tentando situar este ano. Isso toma sentido, mas o próprio do sentido é que aí se nomeia alguma coisa. E isso faz surgir a dit-mansion, a dit-mansion justamente dessa coisa vaga que chamamos as coisas, e que só tomam seu Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 117-124 junho 2012
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1. Jacques Lacan. R.S.I., inédito (Aula de 11/03/1975).
assento do Real, isto é, de um dos três termos dos quais já fiz algo que poderíamos chamar de a emergência do sentido (LACAN, 1974-75).1
No original: “[...] Donc, R.S.I. j’écris, cette année, en titre. Ce ne sont que des lettres, et comme telles, supposant une équivalence. Qu’est-ce qui résulte de ce que je les parle, ces lettres, à m’en servir comme initiales, et si je les parle comme Réel, Symbolique et Imaginaire? Ça prend du sens, et cette question du sens, c’est bien ce que, rien de moins, j’essaie de situer cette année. Ça prend du sens, mais le propre du sens, c’est qu’on y nomme quelque chose. Et ceci fait surgir la dit-mansion, la dit-mansion justement de cette chose vague qu’on appelle les choses, et qui ne prennent leur assise que du Réel, c’est-à-dire d’un des trois termes dont j’ai fait quelque chose qu’on pourrait appeler l’émergence du sens [...]”. Tradução nossa.
Da letra inicia-se o parlêtre, o ser que ao falar procura o sentido S2): equívoco da ex-sistência (Real) no outro significante (S1 fundamental. A análise proporciona um caminho ao avesso do momento inaugural do parlêtre: da prática do blábláblá à prática da letra. Sabemos, por experiência, que a lógica do significante – desdobrada e evidenciada pela interpretação psicanalítica – leva a um impasse: o necessário impasse do sujeito suposto saber, que conduz à constatação, ao discernimento do irremediável, ininterpretável, incurável, indecidível. Topar essa parada não se acumplicia com a impotência, mas com o ato. Apenas um ato, de-cisivo, decidindo o passo fora da lógica do significante, ex-cisão, extravagância oriunda do saber sem sujeito, permite o passe. Passe fora de série que possibilita um acesso à soltura, desenvoltura, atrevimento, impudência, diz mesmo Lacan falando de Marguerite Duras e da sua “prática da letra” (1965/2003, p. 200). Prática da letra, na qual o literato, litter-rasuror, precede o psicanalista, “chegando diretamente onde a psicanálise pode chegar de melhor no fim” (LACAN, 1971/2003, p. 15), ou mais precisamente, na sequência do fim, como continuação, repercussão do fim, dada a lógica inesgotável do significante. De fato, o fim de uma análise inclui as suas sequências na temporalidade do ato que a decide. “O ato se julga na sua lógica pelas suas consequências” (LACAN, 1967). É a prática da letra do sinthoma, em alguma medida, que valida a decisão do fim. Portanto, há enodamento da lógica, da ética e da poética, em consequência do ato que condiciona a direção da cura psicanalítica. Isto se produz desde o seu início, desde a evidência de uma falha, perda, que susta o sentido lógico, ético, poético da vida. Uma falha que na fala se enuncia como falta, traduzindo, transferindo-se em queixa que pode ter a boa hora de encontrar um analista que “tenha chance de responder” (LACAN, 1973/2003, p. 555) a essa letra (carta) em sofrimento, em instância, em suspenso. Pas de sens: notícia da letra do sintoma.
Pas-de-sens – Não há sentido Pas-de-sens, meu casamento, meu trabalho, meu filho, minha vida. Perdi: o sentido, o sentir da vida. Perdi. Desde quando? Desde que me conheço por gente. Pas-de-sens: inibição, sintoma, angústia. Inibição que embaça, 118
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sintoma que estorva, angústia que ofusca, o sentido da vida. Uma análise poderia renomear essas “nomeações”, manifestações, índex, instâncias do “ser” preso no “falso self ” (LACAN, 1967-1968) verdadeiro da significação fantasmática? De uma análise, de seu pas-de-sens, o passo de sentido almejado, isto é, de sua interpretação, é esperada uma nomeação. Pas de sens: passo de sentido, transformar esse susto em queixa já é uma resposta corajosa, ética, já é um lance do dizer: produzir “do nada”, da dor de existir, um passo de sentido que a psicanálise, desde sempre (ou seja, há mais de 120 anos) acolhe: Traumdeutung, disse Freud, Trauma-deutung. Lógica da interpretação: o que está em jogo é uma prática do logos (dia-logos). Desde a origem, por ser marcado (furado) no corpo pelo significante do Outro que não tem sentido (letra), o parlêtre toma a palavra, VOZ ÚNICA, e de falado torna-se falante. A experiência da psicanálise oferece uma boa ocasião para reabrir esse passo inaugural, do pas-de-sens (não sentido) ao pas-de-sens (passo de sentido). A nossa prática do blablablar orienta-se, portanto, como uma prática do sentido: lógica do significante. A fala trilha seus descaminhos, se procura no sulco da letra em direção a uma suposta verdade, que o Outro e seu “poder discricionário” (LACAN, 1955/1998, p. 333) alojaria. S1 S2 lança mão da fuga do sentido que alcançaria a verdade no caminho da transferência. É a estrutura interpretativa do próprio ato de fala que o dispositivo analítico encena. A escrita do matema dos “Discursos” evidencia como o Outro da relação de fala é convocado naturalmente (ou, antes, estruturalmente) num certo lugar: o endereço do suposto saber. Ao falar, o analisante interpreta. A sua fala é vetorizada pelo suposto intérprete do endereço da cadeia associativa, ou seja, é com uma mensagem invertida de seu próprio enigma que o analisante dirige-se ao analista. A fala, desenrolada na associação livre, desdobra aí a estrutura, como “mostra” a escrita do “Grafo”, que escancara as três diz-mensões de qualquer ato de fala: o enunciador (o dizer), o enunciado, a enunciação. A entrada do analista (e não do “suposto”) na lógica da interpretação, a tática de sua presença na estrutura precisa levar sempre em consideração essas três diz-mensões, como lembrado por Lacan na famosa declaração de O Aturdito: “Que se diga permanece esquecido atrás do que se diz no que se ouve” (1972/2003, p. 448). Colocado pela estrutura da fala como complemento do inconsciente, o psicanalista vai se fazer “responsável” do inconsciente: resStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 117-124 junho 2012
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pondendo a partir de sua alteridade radical, respondendo por sua ex-sistência real.
A escrita dos “Discursos” formaliza essa operação possível na estrutura, ou seja, evidencia como a posição do psicanalista permite uma interpretação “outra” da estrutura. a/ S2. Inter-prestando o que perdura de perda pura (LACAN, 1973/2003, p. 543), e garantindo, salvaguardando a posição do
1. No original: “[...] Il
inconsciente como referência ininterpretável, saber sem sujeito, ponto da partida. Ao calar, o analista interpreta. Emprestando-se como objeto – ou seja, como o que não dá sequência à suposição do sujeito – com o “dizer que não” do ato, ele põe o analisante para trabalhar, a $ (expondo assim o que era enunciação suposta do Discurso do Mestre). O Discurso Histérico é resposta do analisante ao ato do analista, desdobramentos do desejo e da sua interpretação pelo fantasma. Quando o analisante interpreta, a sua interpretação tem efeitos de verdade. Hystoricisação. Hystória sem fim da verdade mentirosa da conjunção do gozo com o sentido: jouis-sens (gozo-sentido). Cale-se o analista – a sua interpretação não valida essa “verdade”, e nisso mesmo denuncia seu “semblant” apontando para o real que ela encobre. Quando o analista interpreta, ele interpresta (como um ator ou um músico) a pura perda, e a sua interpretação (para o traumatizado que só aposta do pai ao pior) tem efeito real: trou-matismo. A interpretação “faz ressoar aí outra coisa do que o sentido”. “Ela reverbera mais longe do que a fala”, “ela força aí outra coisa”, ela toca “a ek-sistência de alíngua” (LACAN, 1974-1975).1
est certain qu’elle porte, l’interprétation analytique porte d’une façon qui va
Pas-de-dialogue?
plus loin que la parole [...]”. Tradução nossa.
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– Lacan, no entanto, precisa que a interpretação limita o “pas de dialogue” (não há diálogo), ou seja, constitui certo tipo “interlocução”. Interlocução entre a interpretação do analisante e a interpretação do analista, que operam em sentidos opostos (sentido de verdade X sentido real): lógica da interpretação. – Vale notar, contudo, que Lacan, até o final de seu ensino, menciona um certo tipo de intervenção do analista que ele chama “ajuda”, “colaboração”, “contribuição” na construção interpretativa do analisante vetorizada pela verdade (“a interpretação tem efeitos de verdade”, dizia Lacan até o Seminário XIV, o que corresponde a essa vertente “verdadeira” da fala do analisante). Da lógica da interpretação à prática da letra - Dominique Fingermann
– Precisamos igualmente que se a interpretação analisante constrói sua interpretação do desejo pelo fantasma, a interpretação do analista, quando visa à incógnita do desejo, é para esvaziar o seu sentido constrangedor, constrangido pelo fantasma e flagrar o absens que o causa. – Ao longo da análise o corte tem efeito paradoxal de propiciar os passos de sentido (pas de sens) até que, ao cingir o impasse ao qual conduzem necessariamente os passos, o analisante consinta em topar com o ab-sens, a falha original de sentido. Convocado nesse dia-logo na estrutura de fala, o analista responde desde o seu devido lugar no Discurso Analítico.
Corte no jouis-sens “É nosso dever interpretar” (LACAN, 1973/2003, p. 504), diz Lacan; Soler precisa: “a interpretação deve cortar o sens joui [sentido gozado]”. Sabemos que Lacan deu diferentes formulações da interpretação, que acompanharam as mudanças de sua apreensão do real da clínica. No entanto, persiste, e insiste ao longo do ensino lacaniano o seu valor fundamental de corte. Fundamentalmente é corte em relação à esperança transferencial, “o lugar de onde o psicanalista fala, não é o mesmo que aquele de onde está suposto falar na transferência” (LACAN, 1965-1966). Que seja pontuação, escansão da cadeia significante que revela a produção de significação do sujeito suposto, que seja intrusão, imisção, alusão, suplemento de significante, “ligar (ler) de um outro jeito”, (LACAN, 1967-1968) que seja surpresa, equívoco, citação, enigma, poesia, todas as variantes da interpretação produzem um corte no sentido e na verdade, todas suspendem o Sujeito suposto Saber, e o sentido gozado (Jouis-sens) a ele atribuído. Em geral, o analisante demora um certo tempo antes de perceber que a intervenção do analista não completa a sua verdade, mas responde à verdade com o saber: a posição do inconsciente é resposta e responsabilidade do analista.
3. No original: “[...] La place d’où le psychanalyste parle n’est pas la même que celle d’où, dans le transfert, il est supposé parler”.
Pas sans dire Todavia, vale notar que o corte interpretativo (equívoco, citação etc.) não tem apenas valor de “dizer que não” da negativização dos ditos, e de invalidação da verdade mentirosa. Pelo contrário, o corte interpretativo, na lógica do significante, é dizer silencioso (“Silêncio dele é tão alto” [BARROS, 1993, p. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 117-124 junho 2012
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99]), ele silencia o sentido que sutura o inter-dito, para produzir, atualizar no intervalo, o oco que permite que ressoe o eco do dizer “silencional” (ROSA, 1969, p. 100): Y a d’ l’Un. Nesse sentido Lacan valorizou em algum momento a intervenção “tu l’as dit!” (“Você o diz”, ou “o dito foi seu!”) como uma das melhores interpretações, pois ela corta a suposição de saber no outro (foi você que diz) e aponta que o dito não vai sem o dizer: o dito permite localizar e autentificar o lugar do dizer (“Ça ne va pas sans dire”). O corte da sessão produz igualmente esse mesmo efeito de esvaziamento do sentido e de ressonância do dizer: “Tu l’as dit!”. A interpretação é fundamentalmente apofântica: Y a d’ l’Un! Limite ao pas de dialogue, pois aponta para a emergência por meio do logos – da presença viva e única do parlêtre. A interpretação atualiza o interdito, encena, mostra, apofântica, “discurso sem palavra” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 11). Destacando o inter-dito, a interpretação solta alíngua presa na palavra e no sentido. A lógica da interpretação, em seu termo, propicia a prática da letra que podemos chamar, com Lévinas, de “A Responsabilidade do dizer” (1978, p. 16-17); com François Cheng, de “o sopro do vazio mediano”, terceira diz-mensão sem a qual não há via (voix/ voie); com Paul Valéry, “o movimento pendular entre o som e o sentido” (1924-1944/1957, p. 1332-1333); e com Manoel de Barros, “os deslimites da palavra” (1993, p. 31).
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Resumo O título Da lógica da interpretação à prática da letra formaliza um percurso: “de”...“à” e, portanto, indica uma orientação, uma passagem, uma operação. Uma operação lógica que afete, que tenha efeitos. É isso mesmo que esperamos da direção da psicanálise pelo psicanalista. Orientados eticamente pelo Real, visamos a uma passagem que tenha consequências poéticas e políticas, já que apostamos em um novo laço enraizado no radical da letra do sinthoma.
Palavras-chave Interpretação, letra, sinthoma.
Abstract From the logic of interpretation to the practice of the letter: This title formalizes a trajectory: “from”… “to”, and, consequently, indicates an orientation, a passage, an operation. A logic operation which affects, which produces effects: and this is exactly what we expect from the direction of psychoanalysis by the psychoanalyst, critically oriented by the Real, as we envision a passage which brings out poetic and political consequences, once we trust in a new bond rooted in the radical of the letter of the sinthoma..
Keywords Interpretation, letter, sinthoma.
Recebido 16/02/2012
Aprovado 28/03/2012
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resenha
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Resenha do livro Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários Organizado por DIDIER-WEIL, Alain e SAFOUAN, Moustapha; tradução de Claudia Berliner; revisão técnica de Leila Longo. Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, 159 p.
Leandro Alves Rodrigues dos Santos Trabalhar com Lacan, em seu divã como analisando, na poltrona sendo por ele supervisionado ou na instituição, como um par, convenhamos, não é pouca coisa, especialmente quando levamos em consideração o peso e a importância desse personagem singular no cenário psicanalítico. Sendo assim, um livro que compile testemunhos de quem trabalhou com Lacan durante os efervescentes anos de desenvolvimento da psicanálise na França parece ser, no mínimo, interessante, para além de uma evidente importância histórica. Jacques Lacan encarnou e sustentou por toda a vida uma prática ousada, extrapolou os limites de Paris, mobilizou pessoas, tornou-se cada vez mais comentado e também valorizado, não apenas por repor nos trilhos a psicanálise fiel aos pressupostos freudianos, inovando e subvertendo certos pressupostos teórico-técnicos, mas principalmente porque também ampliou e sofisticou os horizontes da criação freudiana, chamando-a de causa e, como disse certa vez, fazendo disso a missão de sua vida. É razoável supor então que os efeitos da convivência com Lacan possam ser perceptíveis e, de alguma forma, transmitidos. Aliás, esse talvez seja o maior mérito desse livro, projeto bem cuidado pelos organizadores Alain Didier-Weill e Moustapha Safouan, que entrevistaram onze psicanalistas que puderam testemunhar sobre a experiência particular com Jacques Lacan. Naturalmente, devemos estar advertidos quanto ao risco de tomar essa amostra como uma representatividade genérica e totalizante de um mito e seu estilo, mas Jean-Pierre Winter, por exemplo, destaca que o que mais chaStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 127-131 junho 2012
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ma sua atenção “nesse burburinho em torno das tiradas de Lacan é o fato de envolver, com frequência, tiradas relatadas fora de contexto e apresentadas como se se bastassem a si próprias, independentemente da transferência daquele que relata as frases e, sobretudo, dos eventuais efeitos que elas poderiam ter tido no tratamento. Efeitos que faziam com que não fossem simplesmente ‘tiradas’, mas interpretações! Como sabemos, para verificar em análise se uma interpretação é uma interpretação, precisa-se do material que a ela se segue e do testemunho dos efeitos subjetivamente ou não que ela pode ter favorecido”. (p. 134) Dessa forma, a caminhada fica um pouco mais segura, sem os riscos de uma passagem por demais hagiográfica das narrativas de cada um dos entrevistados, cada qual com “seu” Lacan particular, como se pudesse haver um Lacan “verdadeiro” ou original, até mesmo porque, especialmente após sua morte, começou a ocorrer uma consistente distorção em suas apostas, como, por exemplo, nos tópicos do corte da sessão e do manejo com o dinheiro numa análise, como se Lacan sempre fizesse sessões relâmpago e o trato com o dinheiro fosse sempre espetacular. Não é bem o que encontramos em alguns depoimentos, como é o caso de Colette Soler, quando declara que “não só não tinha previsto, como não entendia os fundamentos daquela prática. Seus motivos, suas razões, sua legitimidade me escapavam. No entanto, posso dar meu testemunho de que, nessa perplexidade, nada havia de reivindicação que tantas vezes ouvi sendo expressa por outros. E, de fato, posso dizer que, durante tantos anos de análise, nem uma única vez tive a sensação de ter me faltado nem tempo, nem a atenção especial que o analisando exige em geral. Questão de demanda, evidentemente!”. (p. 114) Ou mesmo no depoimento de Patrick Valas, comentando o resultado de algumas ausências de Lacan nas sessões, no começo de 1980: “– Quanto lhe devo? – disse-lhe eu. – Porque, afinal, o senhor me deixou na mão durante um mês. Resposta: – O senhor mesmo pode calcular. Estimei que, no fundo, a ausência era responsabilidade sobretudo minha, bastava eu ter telefonado mais cedo. Calculei: um mês = tantas sessões + tantas supervisões = 5 mil francos. – Não tenho essa quantia comigo, posso lhe deixar um cheque caução, amanhã trago em dinheiro? – Isso mesmo. Preenchi o cheque e lhe perguntei: – Ponho em nome de quem? 128
Resenha: “Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários” Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Berros de Lacan: – Glória, Glória! Ela irrompe imediatamente. – Ensine Patrick a fazer um cheque. Ele, batendo os pés sem sair do lugar, eu, voltando-me para ela: – Em nome de quem? Sem hesitar, ela disse: – Em nome do Outro, com o O maiúsculo – e arrancou o cheque de mim nas barbas de Lacan.” (p. 131) Afinal, se Lacan ousava sair dos padrões oficializados pela IPA, tal postura que lhe custou caro, estava a serviço das análises ou supervisões, manejos sutis que ajudavam o sujeito a avançar na tarefa de se confrontar com o próprio inconsciente ou dos pacientes que o procuravam, como podemos depreender da fala de Adnan Houbballah, então um jovem analista, que ao procurá-lo para uma supervisão, nos conta que Lacan “perguntou o objetivo de minha visita e me explicou que começaríamos a supervisão da próxima vez. ‘No começo’, disse ele, ‘serei pedagogo. Depois, será outra coisa’. Vinte minutos após o início dessa primeira entrevista, evoquei a questão do dinheiro. Expressei-lhe claramente minha situação: ‘Só posso pagar 100 francos’. Lacan concorda. Soube depois que Lacan avaliava o preço de uma sessão em função de seus efeitos no tratamento. Por exemplo, na minha volta do Líbano – de onde vim arruinado, em 1975 –, só podia pagar 50 francos por minha supervisão. Ele aceitou, com a condição de voltar à antiga tarifa quando a situação se normalizasse. A supervisão durou 12 anos.” (p. 46) Ou mesmo, em um contato supostamente informal, antes mesmo do que se convenciona chamar de entrevistas preliminares, como descreve a brasileira Marie-Christine Laznik, recém-chegada de um Brasil tomado pela ditadura militar, com o nome de Lacan no bolso, supondo que pudesse ajudá-la com alguma indicação, para o início de uma análise em solo francês. Lacan não fornece nenhum nome, mas ao contrário, interroga-a de outro lugar e perspectiva. Ouçamo-la: “Ocorre-me agora que, na nossa primeira entrevista, Lacan me perguntou o que eu tinha feito no Brasil em termos profissionais. Depois de me escutar, decidiu que eu devia fazer uma tese sobre ‘os ritos de possessão no Brasil e sua eficácia’. Dito e feito, pegou o telefone e ligou para seu amigo Balandier. Sem ter pedido, vi-me catapultada ao encontro desse professor para fazer um mestrado sobre os ritos de possessão. E, às voltas com esse trabalho, volto a encontrar os ritos de possessão que estavam no princípio de minha relação com ele. Não fiz essa tese, mas, anos depois, incentivei outra pessoa a fazê-la. Acabo de entender as raízes do interesse de Lacan Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 127-131 junho 2012
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por essas questões.” (p. 71) Esse era Lacan, um psicanalista apaixonado que mantinha coerência entre o que dizia e o que fazia, mesmo em momentos nos quais os mecanismos da psicologia das massas predominam, quando o grupo sobrepõe o bom-senso que deveria imperar, como, por exemplo, nas instituições psicanalíticas fundadas por Lacan. Claude Dumezil pode explicar melhor: “Suas palavras equivaliam, me parece, a dizer: ‘Sobretudo, não se tome por um grande Outro, você está simplesmente sendo aceito como AE da EFP’. Gostaria de dizer ainda uma palavra sobre o modo como Lacan tratava o analítico na instituição. É sobre a montagem dos títulos na Escola. Havia os analistas praticantes (AP), os analistas membros da Escola (AME) e os analistas da Escola (AE). Isso remetia à clássica diferenciação entre estagiário, associado e titular. Claro, não era nada disso. A estrita definição dessas diferentes categorias de membros subvertia completamente a ideia de gradus. Era feita para isso. Não havia ordem preestabelecida para se ter acesso a esses títulos. Ser AE não implicava, em absoluto, portar este ou aquele outro título. Declarar-se psicanalista era a razão do título de analista praticante; o de AME dependia de uma competência; o de AE dependia de uma performance. É fácil perceber que se, por algum descuido, esses três títulos tentassem aqueles que estivessem buscando honrarias, eles perderiam a viagem – de fato, bem decepcionados: como ser incauto em relação a um título que você mesmo se concedeu (AP), ou em relação a um título que só vale competência (AME), quando há os que voam nas altas esferas da performance (AE)? Quanto a estes, os AE, que se aventuraram nessa esquiva da análise didática, sua qualificação de analista da experiência da Escola não valia a habilitação de praticante. Cada sigla – AP, AME, AE – remetia o portador a ficcionalizar a própria noção de título. Tratava-se apenas de colocar em perspectiva as três categorias de membro, e cada um podia sentir, como analisando, o sentido ético da impossibilidade estrutural de uma habilitação totalizadora.” (p. 41) Lacan ousava, não hesitava em criar, inovar e subverter os padrões, aliás, decididamente não tomava as recomendações de Freud como um tabu. Certa vez, disse que discordava muito do psicanalista inglês Donald Winnicott, mas que respeitava sua flama de psicanalista. É disso que se trata, de uma flama que impulsiona o psicanalista, em intrínseca conexão com o desejo de analista, como nos mostra Alain Didier-Weill: “Quero trazer alguns exemplos concretos que evidenciem de que modo Lacan podia não resistir. Podia, no caso, aceitar certas propostas que fui levado a lhe fazer de inovar em alguns pontos do tratamento: aceitou, por exemplo, o pedido que formulei num mo130
Resenha: “Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários” Leandro Alves Rodrigues dos Santos
mento dado de fazer, dentre as nossas sessões, ao menos uma semanal, por escrito. Assim, durante dois anos, enviei pelo correio sessões escritas, junto com uma nota de 500 francos. Outro exemplo. Quando concluí minha análise com ele e me propôs prosseguirmos nosso trabalho com uma supervisão, fiz a seguinte contraproposta, que ele aceitou: será que poderíamos tomar ‘em supervisão’ tanto o analista Lacan que me analisou durante dez anos quanto o analista que eu tinha me tornado naquele tratamento? No caso, será que seria possível, só depois, formular questões teóricas a partir do saber inconsciente revelado aos dois pela experiência compartilhada? Mais particularmente, questões às quais as teorias de Freud e de Lacan parecia não responder? Foi com esse procedimento, possibilitado por Lacan, que aprendi tudo o que sei do inconsciente. Por outro lado, aquela foi a oportunidade de compreender o que para ele era o passe, esse tempo mediante o qual um devido analista tinha não de inventar a psicanálise – isto já estava feito –, mas de fazer passar sua forma de reinventá-la.” (p. 33) À guisa de conclusão, ler este livro, deixando-se tocar pelas narrativas, fazendo comparações, estabelecendo analogias, refletindo cuidadosamente, pode ser um bom exercício de pensar o passado e vislumbrar um pedaço da história da psicanálise. Afinal, saber do passado nos faz reformular o presente, mas fundamentalmente, nos ajudar a inventar um futuro diferente. É disso que a psicanálise precisa para continuar existindo no mundo.
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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO - BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacional do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a lingüística, a música, a literatura, etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos a apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.
Fluxo de avaliação dos artigos: 1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-afcl@yahoogrupos.com.br e na if-epfcl@champlacanien.net 2. Distribuição para parecer. 3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 1-148 junho 2012
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6. Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7. Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.
Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, entrevista e resenhas; cabendo a EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.
Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig.1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. 134
Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chaves (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chaves e keywords.
Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a não o encaminhar para outro(s) veículo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via Internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com . Alternativamente, podem ser enviadas em mídia digital, acompanhadas de três cópias impressas, para o seguinte endereço: Fórum do Campo Lacaniano –São Paulo Revista Stylus: Revista de Psicanálise da Associação de Fóruns do Campo Lacaniano Brasil Rua Lisboa, 1163. CEP 05413-001 – Pinheiros (São Paulo – SP) Os artigos devem conter os seguintes elementos:
Normas para publicação: • Primeira lauda contendo apenas o título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais, em 10 linhas, no máximo] e endereço completo (com e-mail). • Demais laudas, numeradas consecutivamente a partir de 1 (um), repetindo o título, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. • No caso de investigações/desenvolvimentos teóricos, relatos de pesquisas, debates e entrevistas, deve ser incluído um resumo de no máximo trezentas palavras, ao final, na mesma língua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mínimo três e no máximo sete). Após esse resumo, deve-se incluir também uma tradução do mesmo, em inglês (abstract), acompanhada da tradução do título e das palavras-chave. • No caso de entrevista, devem ser incluídos, ao final, os seguintes dados: data da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profisStylus Rio de Janeiro nº 24 p. 1-148 junho 2012
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sionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. • No caso de resenhas, deve-se incluir, ao final, a referência completa da obra resenhada. As ilustrações devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas também em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um título sugestivo do seu conteúdo.
Sobre citações e referências bibliográficas: Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf ) Referências bibliográficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/ stories/manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf )
Citações no texto: As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.” Já as citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em conseqüência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma auto-análise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja 136
realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer idéia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. 1. As citações indiretas devem contar as idéias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideais originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). 2. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). 3. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (Alberti e Elia, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Alberti, et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. 4. Quando houver repetição da obra citada na seqüência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). 5. Quando houver citação da obra já citada, porém fora da seqüência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781-783). 6. Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parentêses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).
Notas de rodapé: 1. As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.
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Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. 1. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955) A coisa freudiana. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 402437 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, p. 17-88). 1.3 LACAN, J. O seminário, livro 8: A transferência. (19601961). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. 2. Capítulo de Livro: Foucault, M. Du bon usage de la liberté. In: ______. Histoire de la folie à l’ âge classique (p.440-482). Paris: Gallimard, 1972. 3. Artigo em periódico científico ou revista: PACHECO, A. L. P. O livro de cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra. In: Stylus. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, n.23, p. 37-43, 2011. 4. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, D. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). 138
5. Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. 6. Relatório técnico: Barros de Oliveira, M. H. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq., 1992. 7. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: FINGERMANN, D. Os tempos do sujeito do inconsciente. In: V ENCONTRO INTERNACIONAL DA IF/EPFCL. OS TEMPOS DO SUJEITO DO INCONSCIENTE. A PSICANÁLISE NO SEU TEMPO E O TEMPO DA PSICANÁLISE, julho, 2008, São Paulo, Brasil. Anais... São Paulo, Brasil, 2008.p.33-35. 8. Obra no prelo : No lugar da data deverá constar (No prelo). 9. Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. 10. CD ROM: Lacan, J. Le Séminaire de Caracas. In: X ENCUENTRO INTERNACIONAL DEL CAMPO FREUDIANO. 1998. Barcelona: Edicions Albert Moraleda, julho, 1998. CD-ROM. 11. Home Page: LACAN, J. L’ insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-1977). In: BIBLIOTECA DO CAMPO PSICANALÍTICO. Disponivel em: < www.campopsicanalitico.com. br >. Acesso em: 04 de fev. 2012. 12. Fontes eletrônicas: LERAY, P. (2011). Le reel après la passe. In: Wunsch 10. Disponível em: <http://www.champlacanien.net/ public/docu/4/wunsch10.pdf>. Acesso em: 05 de abril de 2012 Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br
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Sobre os autores Andréa Hortélio Fernandes
Psicanalista. Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris 7), Pós-doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB), Professora Adjunta da Graduação e da Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil/ Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico - Salvador. E-mail: ahfernandes03@gmail.com
Christian Ingo Lenz Dunker
Psicólogo. Pós-Doutor pela Universidade Metropolitana de Manchester. Mestre e Doutor Psicologia pela Universidade de São Paulo. Livre-docente da Universidade de São Paulo. AME da EPFCL - Brasil/ Fórum São Paulo. Autor dos livros Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker, 1996), O Cálculo Neurótico do Gozo (2002), Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Annablume, 2011), tendo este último sido publicado também em inglês (2010). Email: chrisdunker@uol.com.br
Cícero Alberto de Andrade Oliveira
Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com
Colette Soler
Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais Psicanálise na civilização (Contracapa), O que Lacan dizia das mulheres (JZE), O inconsciente a céu aberto na psicose (JZE) e a recém-lançada edição bilíngue do caderno Stylus 1: O corpo falante. E-mail: solc@wanadoo.fr
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Dominique Fingermann
Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum São Paulo. Representando do CIG (Colégio Internacional de Garantia) e do CAOE (Colegiado de Animação e de Orientação da Escola). Co-autora de Por causa do pior (Iluminuras) E-mail: dfingermann@terra.com.br
Elynes Barros Lima
Psicóloga. Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fortaleza. E-mail: elynesbl@gmail.com
Jairo Gerbase
Médico. Psiquiatra. Psicanalista. AME da EPFCL - Brasil/ Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Autor de Comédias familiares, Os paradigmas da psicanálise e A hipótese lacaniana. E-mail: gerbase@campopsicanalitico.com.br
Luis Guilherme Coelho Mola
Psicanalista, doutor em Psicologia pelo IPUSP e pesquisador do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo Email: lgcoelho@uol.com.br
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano –Brasil. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. E-mail: leandroarsantos@uol.com.br
Manoel Baldiz
Médico. Especialista em Psiquiatria. Ensinante na FCCL. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Barcelona / Espanha. E-mail: 9567mbf@comb.cat
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Marc Strauss
Psiquiatra. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- França. Ensinante do Collège Clinique de Paris. E-mail: strauss.m@wanadoo.fr
Maria Helena Martinho
Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Professora dos Cursos de Mestrado e Especialização em Psicanálise da UVA. Coordenadora e Supervisora Clínica do SPA/UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Psicanalista membro do colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro. E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br
Ronaldo Torres
Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Doutourando pela mesma instituição. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Autor do livro Dimensões do ato em psicanálise (Annablume, 2010) E-mail: ronaldotorres@gmail.com
Silvia Helena Facó Amoedo
Psicanalista, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Natal. E-mail: silviafacoamoedo@gmail.com
Sonia Alberti
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise e Procientista da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/ Fórum Rio de Janeiro. E-mail: sonialberti@gmail.com
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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se estetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.
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Pareceristas do número 23 Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL - São Paulo) Ana Paula Gianesi (EPFCL - São Paulo) Andréa Hortélio Fernandes (UFBA / EPFCL – Salvador) Andréa Franco Milagres (PUC Minas / EPFCL- Belo Horizonte) Ângela Diniz Costa (EPFCL- Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva / EPFCL- Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA / EPFCL – Salvador) Christian Ingo Lentz Dunker (USP / EPFCL - São Paulo) Conrado Ramos (PUC-SP / EPFCL - São Paulo) Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB / EPFCL – Brasilia) Henry Krutzen (Psicanalista Natal) Lia Carneiro Silveira (UECE / EPFCL - Fortaleza) Paulo Rona (EPFCL - São Paulo) Sonia Borges (EPFCL - Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC–RJ / UVA / EPFCL- Rio de Janeiro) Zilda Machado (EPFCL- Belo Horizonte)
Stylus Rio de Janeiro nº 24 p. 1-148 junho 2012
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