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mostarda: Pantone 606 C ISSN 1676-157X outubro 2015 no 31
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil
“Durante um certo tempo, enchi os ouvidos de vocês com a lacuna,
Laços
agora lacuna se reduz a laço”. LACAN, Jacques (1961-62). O seminário, livro 9: A identificação, lição de 07/03/1962. * “Ainda temos que precisar nesta ocasião o que quer dizer esse laço. O laço (...) é um laço entre aqueles que falam. Vocês logo veem aonde vamos – aqueles que falam, certamente, não são não importa quem, são seres que estamos habituados a qualificar de vivos e, talvez, é muito difícil excluir, daqueles que falam, a dimensão da vida”. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 43. * “Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma”.
ISSN 1676-157X
LACAN, Jacques (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 21.
s t y l u s
epfcl brasil
31 outubro 2015
stylus R E V I S TA
DE PSICANÁLISE
Laços
escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil
Stylus revista de psicanรกlise
Stylus Rio de Janeiro
nยบ31
p.1-256
outubro 2015
© 2015, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus – Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ – Brasil CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da AFCL/EPFCL-Brasil
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FICHA CATALOGRÁFICA STYLUS: revista de psicanálise, n. 31, outubro de 2015 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195
sumário 07 editorial: Dominique Fingermann conferências 11 Jorge Ivan Escobar Gallo: Um amor mais digno direção do tratamento: laços e desenlaces 19 Sol Aparicio: Transferência, laço e discurso analítico 29 Ana Paula Lacorte Gianesi: (Des)enlaces clínicos. Breves apontamentos sobre o caso Hans 41 Beatriz Helena Martins de Almeida: Fazer-se um nome no público: a dimensão do público nas psicoses 53 Ingrid Ventura: Do amor de transferência à escrita de uma carta de amor 63 Michele Roman Faria: Do significante da falta à falta de significante. A dimensão da causa no fundamento do desejo e do objeto na passagem do Seminário 8 ao Seminário 9 71 Dominique Fingermann: Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica 87 Albert Nguyên: O desejo no fim e na(s) sequência(s) ensaios: A Escolha Do Sexo 97 Antonio Quinet: Homensexual e Heteridade 103 Gabriel Lombardi: Escolha do gênero e escolha do sexo 113 Françoise Josselin: A escolha do sexo não vai sem dizer: o mistério do dois trabalho crítico com conceitos: laço social 123 Esther Faye: Sublimação sintomática e identidade em (um caso de) melancolia 133 Clarissa Metzger: Sublimação: laço entre arte e clínica 145 Carlos Eduardo Frazão Meirelles: Sintoma social e a emergência do PCC 159 Gioconda Espina: Relação do sujeito e seu ser frente à ditadura do Um 165 Pricila Pesqueira: Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação 177 Márcia de Assis: Fazer amor é poesia: laço e contingência 187 Míriam Ximenes Pinho: “O amor feliz não tem história”: notas sobre o amor cortês e a impossibilidade
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espaço escola 197 Silvana Pessoa: Efeitos da nomeação na Escola de Lacan 207 Elynes Barros Lima: A provocação do Mais-Um como possibilidade de um laço diferenciado resenhas 215 Geísa Freitas: A morte pode esperar 223 José Luiz Aidar: Mal-estar, sofrimento e sintoma 227 Tatiana Assadi: Escrever o trauma, de Freud a Lacan 233 Marc Strauss: Lacan, leitor de Joyce letras 239 Castro Alves: O laço de fita 241 Fernando Pessoa: Quando é que o cativeiro
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contents 07 editorial: Dominique Fingermann conference 11 Jorge Ivan Escobar Gallo: A more dignified love the direction of the treatment: linkings and unlinkings 19 Sol Aparicio: Transference, link and analytical discourse 29 Ana Paula Lacorte Gianesi: Clinical (Un)linkings. Quick notes on the Hans case. 41 Beatriz Helena Martins de Almeida: Making a name in the public realm: The dimension of the public in psychoses 53 Ingrid Ventura: From transference love to writing a love letter 63 Michele Roman Faria: From the signifier of the lack to the lack of signifier. The dimension of the cause in groundwork of the notions of desire and object in the transition of Lacan’s Seminar 8 to 9 71 Dominique Fingermann: Linkings and unlinkings: overturns in psychoanalytical clinic 87 Albert Nguyên: The desire at the end and in the sequence(s) essays: the choice of sex 97 Antonio Quinet: Homensexual and heterity 103 Gabriel Lombardi: Gender choice and sex choice 113 Françoise Josselin: The choice of sex does go not without saying: the mistery of the two critical paper with the concepts: social links 123 Esther Faye: Sinthomatic sublimation and identity in (a case of) melancholia 133 Clarissa Metzger: Sublimation: link between art and clinic 145 Carlos Eduardo Frazão Meirelles: Social symptom and the emergence of PCC 159 Gioconda Espina: The relationship of the subject and his/her being before the dictatorship of the One 165 Pricila Pesqueira: Concentration camp: a metaphor to the definition of devastation 177 Márcia de Assis: To make love is poetry: links and contingencies 123 Míriam Ximenes Pinho: “Happy love bears no history”: notes about courteous love and impossibility
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school context 197 Silvana Pessoa: The effects of naming in Lacan’s School 207 Elynes Barros Lima: The provocation of the Plus-One as a possibility of a differentiated link. review 215 Geísa Freitas: Death can wait 223 José Luiz Aidar: Malaise, suffering and symptom 227 Tatiana Assadi: Writing the trauma, from Freud to Lacan 233 Marc Strauss: Lacan, Joyce’s reader letters 239 Castro Alves: The ribbon 241 Fernando Pessoa: When will the captivity
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Editorial LAÇOS: amor, sexo ainda!, laços e desenlaces na experiência analítica, avatares pulsionais no laço social, são os temas abordados pelo autores de Stylus 31, Revista de Psicanálise. “...a psicanálise, ao encarar o campo do inconsciente colocou em evidência uma maldição sobre o sexo, a qual produz os infortúnios no amor...”: assim fala Jorge Escobar, AE, Analista de Escola da EPFCL na Colômbia, na Conferência apresentada em Campo Grande no Encontro Nacional da EPFCL-Brasil em 2014, publicada aqui no texto/testemunho “Um amor mais digno”. Fazer laço com o corpo, o outro, o mundo, depende das contingências dos encontros e da responsabilidade de cada um para fazer valer suas marcas singulares em uma história: enodamento. Fortunas e infortúnios do amor e dos laços que os seres humanos tramam nos diversos dramas de suas histórias particulares e coletivas são desdobrados neste número da Revista Stylus, LAÇOS, que oferece 24 textos e ensaios de psicanalistas do Brasil, Austrália, Colômbia, Venezuela e França, distribuídos em cinco rubricas. Direção do tratamento: Laços e Desenlaces É uma oportunidade podermos ler assim explorada e exposta a questão dos laços e desenlaces que a direção da cura analítica proporciona! Sete analistas, diferentemente, com recortes distintos da conceitualização lacaniana, das questões e dos momentos clínicos, expõem “as razões da clínica” a partir da formalização e da ética que possibilita o ensino de Lacan. Da entrada na transferência até o final, e mais além: “as sequências”, dos princípios da lógica do significante, e mais além: o enodamento borromeano, das estruturas clínicas e seu mais além: o sinthoma, percoremos nessa rubrica uma excelente consideração da singularidade da clínica orientada mais além do desejo e da falta a ser em direção ao Y a d’l’Un. Ensaios: A escolha do sexo A questão não é nova, ela provém dos tempos imemorais, desde que o homem é homem, portanto, partido em dois sexos, repartição que o “não há relação sexual” ordena. Novo, entretanto, é o tratamento que os tempos atuais proporcionam para a não proporção! Tirando as consequências lógicas da estrutura, a conceitualização lacaniana da fundamental heteridade do sexo permite uma abordagem ímpar e, doravante, incontornável da questão. Agradecemos aos três autores desta rubrica pelo rigor e a peculiaridade de sua transmissão.
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Trabalho crítico com conceitos: Laço Social Os laços sociais consistem fundamentalmente em maneiras de tratar o gozo. Para discerni-los, Lacan os repartiu segundo quatro modalidades de articulação da estrutura e seu resto, o objeto a, os quatro Discursos, aos quais acrescentaria em uma famosa conferência o Discurso dito “capitalista”: tratamentos do gozo, ou seja, do real tanto impensável quanto emergencial. Temos elencados nos sete textos apresentados nesta rubrica, a variedade dos laços “sociais” que o mundo acolhe, para o melhor e para o pior da condição humana: amor, sublimação, arte, identificação e ...manipulação, devastação etc. Espaço Escola Fazer Escola continua sendo uma aposta para nossa comunidade de trabalho. Por isso, acolhemos quem se arrisca a colocar questões ao nosso fazer Escola: desta vez, o Cartel, o Mais-Um e a nomeação estão na berlinda. Resenhas Os livros recentes de nossos colegas do Campo Lacaniano – Colette Soler, Christian Dunker, Sandra Berta, Soraya Carvalho – estão aqui cuidadosamente apresentados e comentados por Marc Strauss (Lacan, lecteur de Joyce), José Luiz Aidar (Mal-estar, sofrimento e sintoma), Tatiana Assadi (Escrever o trauma, de Freud a Lacan) e Geísa Freitas (A morte pode esperar). Letras Por fim, convidamos ninguém menos que Castro Alves e Fernando Pessoa para encerrar esta revista! Ouvimos Pessoa e prestamos atenção à sua resposta que, mais uma vez, ensina o psicanalista: Quando é que me desato Dos laços que me dei? Quando serei um facto? Quando é que me serei? Agradecendo aos autores, os numerosos pareceristas, a Equipe Editorial de Stylus pela construção do laço que enoda a comunidade de trabalho da IF-EPFCL... e mais além. Bom trabalho e boa leitura! Dominique Fingermann
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conferĂŞncia
Um amor mais digno1 Jorge Ivan Escobar Gallo O drama do amor faz parte da tragicomédia de todos os seres falantes e é quase uma constante na maioria dos pacientes que chegam a um analista, ao qual demandam um saber sobre seu padecimento na espera de uma solução para o infortúnio apresentado de maneira tão frequente dentro dessa gama de situações, emolduradas entre inibição, sintoma ou angústia, e que configuram o espectro do padecer humano. De modo muito constante, aparecem as desgraças do amor, convertendo-o no principal indutor e motivador que leva, homens e mulheres, à análise. Na minha clínica, quase cem por cento dos analisantes decidiram ir à análise motivados pela precariedade e pelos contratempos que o fenômeno do amor lhes ocasiona. Quando recordamos os casos clínicos de Freud, podemos observar que a clínica freudiana não era alheia a mesma realidade. Não podemos esquecer que a psicanálise, ao encarar o campo do inconsciente que colocou em evidência, testemunha, como assinala Lacan em “Televisão”, na Pergunta V, uma maldição sobre o sexo, a qual produz os infortúnios no amor. Está aí a histeria para nos relembrar que suas dificuldades deixam-se ver primeiro no amor. No meu caso, o drama amoroso foi também assunto de primeira ordem. Um fracasso repetido sempre esteve empurrando as retomadas que fiz de análise. Ao final, a análise acabou por conduzir a algo em relação a ele, que hoje posso incluir dentro da lista dos efeitos da cura, colocados no passe, ao lado dos efeitos terapêuticos, que chamamos clínicos e que involucraram algum alcance ético, sem esquecer o efeito didático ou epistêmico, que a Escola pondera quando sanciona um testemunho com a nomeação. A psicanálise não promete o amor e não pode prometê-lo, pois o amor está sujeito, à mercê da contingência, do azar do encontro de dois sujeitos, em seus dois inconscientes. O amor, simples e claramente, pode acontecer ou não. A análise, porém, produz uma cura de amor, ou melhor, a cura que uma análise levada a seu término produz tem consequências sobre o amor. Essa é a tese de Lacan. Não é circunstancial que nos tenha colocado a promessa de um amor mais digno (LACAN, 1973a/2003, p. 315) em um texto, “Nota Italiana”, em que propunha, 1 Trabalho apresentado em Campo Grande, Brasil (novembro de 2014)
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aos psicanalistas italianos, o dispositivo do Passe. Mas como entender a cura de amor? Não é que o amor não sirva mais ou que chegue a carecer de importância ou que, quiçá, o objeto de amor perca seu valor e seu brilho, e que um objeto valha o mesmo que outro. Não é nesse sentido. A análise – assim como em última instância não cura o sintoma, e sim transforma-o até o ponto de endurecê-lo em sua face real – tem para o amor a promessa de dignificá-lo, e não a de erradicá-lo. Se o amor é signo de um sujeito – como o sintoma definitivamente também o é – depende de um efeito da linguagem. É impossível aspirar a curar a estrutura. O que se pode é modificar a posição do sujeito frente a ela. Nesse sentido, a transformação do vínculo amoroso no pós-análise trata-se de uma dignificação. É um fato constatável em minha cura e foi referido manifestamente no passe: a pesquisa sobre o sintoma conduziu-me a retificar a posição frente ao desejo, frente ao real de meu gozo e teve consequências muito gratificantes, a meu ver, na dimensão do amor. Fui ao passe, após várias tentativas e depois de uma modificação substancial, com o entusiasmo obtido por ter terminado uma longa análise e ocorrido em razão da última e definitiva tentativa, em relação as outras saídas, por assim dizer, fracassadas. Desprender-se do inconsciente produz um afeto especial, com matiz de um entusiasmo realmente único, que nunca tinha experimentado na vida. Foi o que pude constatar, associado aos benefícios que da cura pude registrar. Dezoito meses depois de ter passado pelo dispositivo e há quase um ano de ter recebido a nomeação, quando reflito sobre o balanço e as consequências da cura, deduzo que o nomeado tenta responder ao que muitos analisantes, no decorrer de suas curas, perguntam-se sob a forma kantiana: o que é possível esperar? Essa é uma das obrigações adquiridas, implicitamente, pelo AE. É assim que entendo a esperança lacaniana frente ao nomeado, de fazer avançar o discurso, que testemunhe, ante sua comunidade, formada por analistas, analisantes e também pelos que não o são, ante as demais comunidades analíticas e ante outras disciplinas, os efeitos do dispositivo analítico. O passe deve ser pensado, creio que foi a ideia de Lacan, em uma perspectiva epistemológica, tentando assegurar o rigor à psicanálise nos tempos da ciência, rigor a uma experiência relacionada a ela, mas que não responde ao ideal do modelo experimental científico. O passante testemunha o que pôde obter, o alcance efetivo de sua cura. É o saldo do balancete final que o leva à via do testemunho. Esse, ao menos no meu caso, pode-se situá-lo em três níveis. O efeito didático: a análise me empurrou na via de ser analista. Fui realmente surpreendido, no ponto em que assinalei que o era, quando havia feito o trânsito da posição de analisante à de analista. Somente o fato de adverti-lo e a conjuntura de seu advir justificavam testemunhá-lo ante a Escola. O passante está assegurado
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Um amor mais digno
de um saber, e não se trata de um saber qualquer. Saber de seu inconsciente, um saber a que chamamos S2, com o qual o sintoma recobria-se, mas também um saber sobre o objeto pulsional, matéria-prima do fantasma e trama substancial do sintoma, além de uns pedaços de saber, que Lacan chamou de S1, produtos da operação. Constituem todos a armação com a qual cada um confecciona seu destino, mas, em adição e de modo fundamental, o passante assegurou-se do ponto de falha que há no saber, que irrompe, em um momento do final, como certeza. Os efeitos clínicos são variados. Hoje posso assegurar, como fiz diante dos passadores, o efeito terapêutico da cura ante o sintoma. Um sintoma vindo do pensamento, ao qual se impunha um juízo, e não o melhor dos juízos, constituído no que consegui cristalizar como sintoma no início da cura, acabou por ceder, deixando descoberto um gozo pulsional separador do Outro, ao qual terminei por aderir como princípio de distinção que me confere uma impressão digital subjetiva. A angústia cedeu quando se tornou sujeito do desejo e, quatro anos depois, não retornou. Gostaria de insistir, em função da temática de nosso encontro, sobre outro efeito na via do terapêutico e em relação ao amor, que, na conjuntura de meu caso clínico, ressaltei no dispositivo do passe. A possibilidade do encontro amoroso estava dada a partir de um traço exigível no objeto, associado a um elemento de linguagem inconsciente, tomado do pai, que condicionava a possibilidade de desejar e gozar de uma mulher. Não haver consentido com isso, fez-me errar de maneira reincidente nesse campo, com consequências mais do que prejudiciais à pessoa e ao sujeito. Enfrentar a neurose levou-me até lá, não havia escapatória. Admiti-lo e consenti-lo teve necessariamente consequências clínicas terapêuticas que permitem que hoje desfrute da companhia de uma mulher, com os efeitos subjetivos inerentes a isso, com consequências éticas às quais fiz alusão no passe, que hoje posso registrar indubitavelmente. Os efeitos éticos: orientar-se frente ao real traz para o sujeito consequências impensadas, até que se deem, e que posso resumir em uma porção do desejo. Assumir um gozo próprio que incessantemente escapulia e punha do lado do Outro, mas também reconhecer-se na posição sexuada, a partir de um gozo fálico articulado a um objeto pulsional, não qualquer, e evidenciando, mais além do limite da função fálica, esse Outro do sexo inalcançável, o Outro feminino, eterno enigma, ao qual termino por admitir e tolerar na aventura, sempre errática para mim, no encontro com o Outro da diferença, até antes da cura. Assumir a identidade sexual a partir de uma forma de gozar, e mais além do sexo biológico do partenaire, consentir e suportar a Outridade feminina também teve consequências éticas ao definir-me como heterossexual, aspecto importante para quem, no momento da
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ESCOBAR GALLO, Jorge Ivan
demanda de análise, a dúvida angustiante sobre sua condição sexuada o havia levado à busca urgente de seu próprio inconsciente. A promessa analítica no terreno do amor introduz algo novo (LACAN, 1973b/2003, p. 550-556). Na página 555 dos Outros Escritos, na “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan nos esclarece isso de novo. Não é mais que a introdução da transferência. Nessa, trata-se de um amor, precisando-nos que é tão ilusório como qualquer outro, mas, graças ao dispositivo, o vínculo transferencial ganha uma forma nova ao implantar ali uma subversão. Essa consiste em introduzir um partenaire, o analista, que opera enquanto objeto, e não enquanto sujeito, estando ali despojado de seus sentimentos, de seu desejo como sujeito. Com a característica particular que frente a esse amor que ali surge esse objeto, esse partenaire do amor, o analista, tem a possibilidade de responder, o que não se dá em suas outras formas. O amor, essencialmente, não pede resposta. O amor demanda amor, e sempre mais, porque parte dessa falha que a linguagem, o que chamamos de Outro, introduz no sujeito. Por isso, o amor é recíproco, dá-se de sujeito a sujeito, entre inconscientes. O analista, na cura, não entra como tal, não há uma relação intersubjetiva entre analisante e analista. O vínculo transferencial introduz uma disparidade; ali está o sujeito, seu eu, a imagem do analista, o Outro da linguagem e o objeto que causa o desejo, do qual o analista faz semblante. Na transferência, trata-se de um amor que interroga o sujeito. Esse novo partenaire, criado por seu artifício, abre-lhe a possibilidade de resposta, revelando, entre outras coisas, a ineficácia e a impotência do amor para alcançar a unidade, o mito delirante de uma presumida fusão dos dois partenaires do amor que tenderia a alcançar a dita unidade, e ilumina o sujeito sobre a ignorância que comporta o amor, pois como a paixão desconhece e ignora o desejo, a análise o denuncia ao apontar esse pedaço, essa impossibilidade mesma que faz de causa para o desejo. Em outras palavras, o analisante percebe, em carne própria, o desacerto de Eros para fazer Um, a partir do dois do casal no amor, mas é socorrido por um amor que não falsifica, que não ignora que, em essência, no amor trata-se da exaltação de si mesmo e que põe em evidência seu aspecto narcisista. Utilizei-me desta expressão de Lacan, tomada da “Nota Italiana”, de 1973, em que ele precisa que o saber em jogo, para o analista, é que não há relação sexual que possa pôr-se em escrita. É o que assinala o saber inventado por Freud a partir dos feitos do inconsciente, e ali é enfático ao precisar como a análise, ao aumentar os recursos e revelar do amor sua cara real, permite prescindir dessa incômoda relação para fazer que o amor seja mais digno. O termo papear não é um termo qualquer. É um falar indiferente e sem importância, falar muito e sem substância, jogar conversa fora, o que, no seminário Mais, ainda, chama disco “urscourant”, disco sem mais, fazendo referência ao
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Um amor mais digno
que gira e gira sem objetivo, sem consequências. Na Colômbia, dizemos “votar corriente”, um discurso sem consequência para o sujeito por não tocar o real. Um amor mais digno faz ressoar o “das Ding” alemão, que conhecemos como a Coisa, como o real puro. Um amor esclarecido pelo real, um amor menos falador, menos apologético e exaltador do objeto, que reclama menos e que reconhece no partenaire não só um objeto erótico, mas também um sujeito que deseja e, no meu caso, pude, por sua vez, admitir que está habitado pela mais profunda e incompreendida alteridade. Por último, gostaria de assinalar que apesar, como indica Lacan expressamente no seminário A Transferência, de a psicanálise não se ocupar da “organização de palestras para a união sexual, nem de fazer viver o corpo na dimensão da nudez e da captura pelo ventre” (LACAN, 1960-61/1992, p. 253), obter o desinflamento fálico que a travessia do fantasma provê ao sujeito, ao advertir a falta no Outro, o faz mais propenso ao ato, incluindo o ato do amor, dotando-o, ao menos para o obsessivo, de uma genitalidade menos ordinária e de qualidade muito maior. O ato do amor, ao menos para o homem, é a colocação em ato de sua perversão poliforma de macho. A dignidade que a análise provê ao sujeito permite o anodamento, em um mesmo objeto, do imaginário do amor, sustentado na unidade da imagem do partenaire, do simbólico do desejo articulado ao significante e do real do gozo da pulsão. Para gozar do corpo de uma mulher, para poder fazer amor com ela, é obrigatório apropriar-se da castração e, no ponto limite da função fálica, abordá-la como objeto do desejo; ela no lugar do objeto que o causa, como suplência do gozo que falta. Tradução: Maria Claudia Formigoni Revisão da tradução: Ida Freitas
referências bibliográficas LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Versão brasileira de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. . (1973a). Nota Italiana In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. . (1973b). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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ESCOBAR GALLO, Jorge Ivan
resumo
Uma expressão de Lacan: “um amor mais digno”, tomada da “Nota italiana”, serve de título a este artigo. O drama do amor é quase uma constante entre os sujeitos que demandam uma análise, a cura promete para o amor outro estatuto, longe da promessa de Eros de fazer de dois um. Este artigo resulta dos dois efeitos que a passagem por uma análise teve para este sujeito no campo do amor, como um dos efeitos terapêuticos da cura apresentada em seu testemunho diante do dispositivo do passe. Testemunho que deixou como resultado a nomeação de A.E.
palavras-chave
Amor, digno, cura, passe, testemunho, efeitos terapêuticos e éticos
abstract
A more dignified love”, expression by Lacan taken from the Italian Note, serves as the title of this article. Love drama is something common among subjects who demand an analysis; the cure promises to love another statute, far from the Eros’ promise of turning the two into one. This article is the result of both effects that the analytical experience provoked in a subject in the field of love, as one of the therapeutic effects of the cure presented in his testimony before the pass device. A testimony which left as result the naming of A. E.
keywords
Love; dignified; cure; pass; testimony, ethical and therapeutic effects.
recebido 26/02/2015
aprovado 10/08/2015
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direção do tratamento: laços e desenlaces
Transferência, laço e discurso analítico Sol Aparicio No âmbito dos Colegiados da Clínica Psicanalítica do Campo Lacaniano, trabalhamos um ano inteiro sobre “aquilo que faz laço”. É uma questão que o clínico encontra em sua prática cotidiana, no nível do sujeito que se dirige a ele e, claro, essa questão se coloca também hoje, com uma particular acuidade, no nível político.1 É evidente, mas por que não explicitar que, para nós, trata-se de interrogar aquilo que faz laço analiticamente falando, isto é, do ponto de vista da teoria elaborada a partir da experiência psicanalítica. Se colocarmos a questão para Freud, duas respostas se impõem: a libido e a identificação. Os laços entre os seres falantes são inicialmente laços libidinais. É a libido que “faz laço”. A teoria freudiana da libido é, nesse sentido, uma teoria dos laços. O fato de que um laço existe para alguém supõe que o objeto seja libidinalmente investido. Isso apareceu nitidamente para Freud quando ele estudou o fenômeno de retraimento, de ausência de interesse, observável em alguns sujeitos psicóticos e que ele tentou dar conta da fantasia de fim do mundo. Ele explica isso detalhadamente em “Introdução ao narcisismo” (FREUD, 1914/s.d.), e é algo que muitas vezes observamos clinicamente. A outra resposta freudiana à questão de saber o que faz laço entre os falantes é a identificação. O texto de referência a esse respeito é mais tardio, trata-se de “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921. Lembremos bem sumariamente o ponto central. Freud define a identificação como um “querer ser como” o outro. As identificações possíveis são, bem entendido, múltiplas: com o rival, com o semelhante, com o chefe, com o eu ideal, com o ideal do eu, com o objeto de amor perdido etc. Essencialmente, a identificação é um laço libidinal transformado, um modo de laço que substitui o laço libidinal e que, ao mesmo tempo, o perpetua. Contudo, não há no ser falante pulsão social, nada o empuxa a fazer comunidade. É por isso que a existência dos laços sociais é uma verdadeira questão. Do que depende a existência dos laços que, para além da célula familiar, estruturam 1 Este texto, no qual foram feitas ligeiras modificações, foi inicialmente publicado no Mensuel da EPFCL no 76 (fevereiro/2013).
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a sociedade e sobre os quais se edifica uma civilização? Da possibilidade para o sujeito de “fazer passar a libido de seus laços infantis para os laços sociais que são enfim desejados” (FREUD, 1924/s.d.). As “grandes instituições” – a religião, o direito, a ética e “todas as formas de vida cívica” – respondem a essa exigência, elas visam obter essa passagem, essa transformação dos laços estabelecidos na primeira infância. Em Lacan, é inicialmente o desejo, outro nome da libido freudiana, que faz laço. A libido não é nada além da “presença efetiva (...) do desejo” (LACAN, 196465/1988, p. 146). Ao que podemos opor o gozo que, por sua vez, não faz laço, muito pelo contrário. O amor faz laço. Não é o caso do sexo. Não me deterei aqui em relação à retomada por Lacan da doutrina freudiana da identificação, que é muito desenvolvida. Em contrapartida, desejo indicar que sua reflexão sobre os laços sociais prossegue para além dos desenvolvimentos freudianos. Ela assume a forma de uma teoria dos discursos, entendidos como modalidades de laço social, que ele desenvolveu a partir de 1969-1970. Encontramos aí ferramentas preciosas para pensar o presente em que vivemos, em particular suas observações sobre aquilo que caracteriza o discurso capitalista. Esse quinto discurso distingue-se dos outros quatro na medida em que ele, justamente, não faz laço social. Ele promove a relação com objetos de consumo, objetos “mais-de-gozar”.
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Tendo dito isso à guisa de introdução, restringirei a questão ao âmbito propriamente analítico, me perguntando: o que faz laço entre um analista e um analisante? Quais são as particularidades próprias a esse laço, ao mesmo tempo tão importante e transitório, já que está destinado a ser dissolvido? Por pouco que se tenha ouvido falar de psicanálise, uma resposta se impõe. O que faz laço entre o analista e o analisante, desde sua descoberta por Freud, é a transferência. A partir daí, várias outras questões relativas ao que se entende por transferência podem surgir, as quais abrem as portas para as diferentes concepções de transferência que os analistas criaram desde Freud, apoiando-se nas definições freudianas. Partamos do mais simples e comumente admitido: “a transferência é amor”. Que seja um amor manifesto, de forma suficientemente forte para provocar o embaraço ou a fuga,2 ou um amor mais nuançado, menos barulhento, podendo passar quase despercebido, há um consenso sobre esse ponto no mundo psicanalítico. Parece-me, todavia, que essa afirmação diz respeito apenas ao laço do analisante com o analista, e que ela silencia a outra parte. Esta é, sem dúvida, uma das razões pelas quais fomos levados a forjar a noção de “contratransferência”, a 2 Cf. Anna O. e Breuer, analista antes do tempo.
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fim de nomear aquilo que acontece com o laço do analista com o analisante, seus afetos e sentimentos. A contratransferência corresponde, assim, à transferência em sua definição sentimental ou afetiva. Desse ponto de vista, transferência e contratransferência seriam as duas vertentes do laço analítico. É o que a perspectiva introduzida por Lacan vai contestar. Notemos inicialmente que se é verdade que “a transferência é amor” e que se ela se manifesta como tal na prática, no nível dos fenômenos, se é verdade também que ela constitui o “núcleo de nossa experiência”,3 sua definição implica, no entanto, uma outra dimensão, um registro diferente daquele do amor. Pois a transferência é amor “que se dirige ao saber”. “Aquele a quem suponho o saber, eu o amo” (LACAN, 1972-73/1985, p. 91), resume Lacan. O que, é claro, se verifica fora da análise, mas que foi posto em destaque pela experiência analítica. O amor se dirige ao saber, eis a verdade do amor que a análise revelou. Não há, portanto, apenas amor no laço transferencial, nele também entra em jogo a relação com o saber. O saber em questão na transferência analítica não é qualquer um, é claro, é o inconsciente, o saber inconsciente. Lacan insistiu muito sobre a definição do inconsciente como um saber, elaborando a ideia de um saber insabido pelo próprio sujeito, tal como se encontra em Freud. Nos “Estudos sobre a histeria”, com relação à paciente que ele chama de Lucy R., por exemplo, encontramos isso. Lucy tendo respondido a uma de suas questões nos termos “Não sabia… ou melhor, não queria saber”, Freud (1893-95/s.d.) nota, em uma passagem em que discute o recalque, que há nessas palavras uma perfeita descrição “desse estado singular em que o sujeito sabe tudo sem sabê-lo”. Enquanto saber insabido, o inconsciente é um saber sem sujeito. Coisa difícil de pensar. A maior parte do tempo supõe-se, atribui-se um sujeito a ele, imputa-se a esse sujeito o fato de saber esse saber. É precisamente nisso que consiste o saber transferencial. O sujeito analisante imputa ao analista o fato de saber o que ele mesmo não sabe e que lhe diz respeito. Ele transfere sobre o analista o saber inconsciente. Ele coloca o analista em lugar de sujeito suposto saber (LACAN, 1972/2003, p. 529). Isso dá conta do amor transferencial: “aquele a quem suponho o saber, eu o amo”. É a fórmula da transferência na medida em que ela é suportada pelo sujeito suposto saber, que Lacan escreve S.s.S. (voltarei mais tarde a essa escrita). O sujeito suposto saber é uma função que o analista encarna para o analisante. Mas, ao refletir um pouco a esse respeito, percebe-se facilmente que o analista, no princípio, não sabe nada desse saber que lhe é suposto. Essa ignorância é uma consequência direta daquilo que faz a originalidade da experiência freudiana, que 3 Expressão de Lacan, cf. O seminário, livro 8: A transferência em sua disparidade subjetiva..., p. 12.
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consiste sempre em “tomar um caso em sua singularidade”.4 A cada início de análise, o analista tem, uma nova vez, que se haver com um novo saber inconsciente do qual ele não sabe nada. Se bem que para ele, é evidentemente o analisante, a quem ele dá a palavra, que se encontra em lugar de sujeito suposto saber. Lacan pôs isso em evidência no momento em que formalizava o discurso analítico.5 Evidentemente, isso não quer dizer, no entanto, que no laço psicanalítico há uma reciprocidade qualquer. (A reciprocidade, “noção tão cara à divagação psicológica”, dizia Lacan [1967/2003]...). Por um lado, a transferência sustenta a tarefa analisante, a associação livre, via pela qual o sujeito confia o saber que lhe é próprio. Por outro lado, o analista escuta de uma forma particular que Freud descrevia como uma atenção flutuante, ele lê o inconsciente e interpreta. Vê-se que a suposição de saber não é da mesma ordem, ela não se situa no mesmo nível em um e em outro caso. O laço transferencial entre um analisante e um analista não tem nada de uma relação de reciprocidade, mesmo que seja um laço que permita falar de um “casal”. A análise se pratica “em casal” [en couple], Lacan pôde dizer, é um laço social a dois (LACAN, 1976/2003, p. 567). (Poderíamos, aliás, discutir aquilo que acontece com a reciprocidade no laço de casal). Nas diversas etapas de seu ensino, Lacan trabalhou muito para bem dizer a diferença entre as posições do analisante e do analista. Quando, em seu seminário de 1967-68 sobre “O ato analítico”, ele fala da tarefa analisante, ele situa o ato do lado do analista. Quando, tanto no início quanto em um seminário tardio, ele põe em destaque a fala do lado analisante, ele distingue o dito do lado analista. O analisante fala, o analista diz, e seu dito tem uma função de corte, ele corta. O destaque dado por Lacan a essa dissimetria, que exclui do laço analítico a reciprocidade e vai de encontro a uma concepção desse laço em termos de relação dual, é muito especialmente marcado no seminário consagrado à transferência em 1960-61, cujo título sublinhava isso logo de início, a disparidade: “A transferência em sua disparidade subjetiva”. Não se trata de uma simples dissimetria entre os sujeitos, explicava então Lacan, é preciso poder dizer “aquilo que a transferência contém de essencialmente ímpar”. É por isso que ele escolhe a palavra “disparidade”. Havia nesse título a afirmação de dois fatos. De um lado, a transferência é uma, uma coisa só, já que ela implica o analista. Lacan salientará isso na sequência, a transferência “é um fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito e o psicanalista”. Isso quer dizer que não precisamos da noção de contratransferência para 4 Cf. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud, em que Lacan destaca que é nisso que reside a absoluta originalidade da experiência freudiana, e já critica a concepção dual da relação analítica, assim como o recurso aos sentimentos “sempre recíprocos”. 5 V. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, caps. 2 e 3.
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dizer a parte do analista na experiência. Sabemos hoje, é o “desejo do analista” que vem dizer o que acontece com a implicação do analista na transferência. É justamente no Seminário sobre A transferência que Lacan evoca isso pela primeira vez. Por outro lado, salientar a disparidade subjetiva da transferência era contradizer uma falsa ideia induzida pela noção de intersubjetividade que Lacan havia inicialmente colocado em destaque como dimensão própria à fala. A intersubjetividade não pode “por si só fornecer o quadro no qual se inscreve o fenômeno (de transferência)”, diz ele aqui. Mais tarde, ele colocará em evidência que “a transferência por si só cria uma objeção à intersubjetividade” (LACAN, 1967b/2003, p. 252). Lacan vai aprofundar essa disparidade subjetiva até mostrar que, na verdade, há apenas um sujeito em jogo na experiência analítica, e esse sujeito é “subvertido”. Seu parceiro não é sujeito, ele não intervém na experiência senão como objeto, um objeto “ativo”. A subjetividade do analista está fora de jogo, ela não entra em consideração. Servindo-se da comparação da análise com uma partida de bridge, Lacan dizia que no bridge analítico o único lugar possível para os sentimentos do analista era o do morto, sem o qual “o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz” (LACAN, 1958/1998, p. 595). O analista tem a responsabilidade da direção da cura e, para isso, é preciso que ele tenha uma forma de abnegação. É o termo que Lacan emprega para qualificar a posição do analista nessa época,6 uma posição de abnegação é requerida da parte do analista pela e para a experiência. Paralelamente a essa crítica da intersubjetividade, abre-se, em A transferência, a reflexão sobre o desejo do qual temos, sem dúvida, dificuldade em mensurar a novidade. A transferência nunca havia sido abordada sob esse ângulo, nessa perspectiva. O próprio Lacan realça isso: sua proposta do ano é de “colocar no ponto máximo (...) a função do desejo não apenas no analisado (pois ele já havia dedicado um ano de seminário ao desejo, O desejo e sua interpretação), mas essencialmente no analista” (LACAN, 1960-61/1992, p. 174). Ele inaugura, então, em 1960, uma interrogação sobre aquilo que ocorre com o desejo no analista ou, para dizer melhor, sobre a função do desejo do analista na cura. Daí vem o grande interesse que para ele tem o comentário de O banquete, de Platão, que só trata disso, do eros. Pois a teoria do amor que podemos encontrar nesse diálogo socrático traz, ao mesmo tempo, muitos elementos. Ela distingue nitidamente as posições do amado e do amante, éroménos e érastés. Ela destaca a importância da passagem de uma posição para a outra, o objeto amado torna-se sujeito desejante. E ela revela o lugar central ocupado pela falta: de um lado, pela falta que é a agalma, o objeto 6 Cf. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” e O seminário, livro 8: A transferência.
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supostamente precioso que o amado possui e que o torna desejável, mas que revela não ser nada; e, por outro lado, pela falta de saber com relação a essa falta. O amado não sabe o que tem, assim como o amante não sabe aquilo que lhe falta, e aquilo que falta a um não corresponde àquilo que o outro tem. Disparidade de posições, portanto. Se é um casal, não é, porém, um par. É um casal ímpar! Lacan utiliza, então, o esquema dessa metáfora do amor, que extrai pacientemente no decorrer de dez encontros de comentário, para dar conta desses fenômenos transferenciais por vezes espantosos, que podem se apresentar desde o princípio de uma análise. Pelo simples interesse e atenção que damos, o analisante encontra-se no lugar de éroménos. Mas o objeto que ele demanda, o objeto faltante que ele desconhece encontra-se no Outro – é por isso que o analisante é “virtualmente constituído como érastés”. Aí surge o amor como uma revelação do desejo. E nesse ponto preciso coloca-se para o psicanalista a questão de saber como responder a um amor assim. Lacan formula isso assim: “Ali se coloca a questão do desejo do analista e até um certo ponto de sua responsabilidade”. É preciso que o analista “saiba certas coisas”, que ele saiba certas coisas sobre o desejo. A verdadeira questão em jogo no manejo da transferência não é saber que uso o analista pode fazer ou não de seus eventuais sentimentos, mas de saber qual pode ser a função do desejo no amor, já que há amor na transferência. “Pelo simples fato de que há transferência”, o analista encontra-se “na posição de ser aquele que contém o agalma, o objeto fundamental de que se trata na análise”. Ele está inevitavelmente implicado aí. É um “efeito irredutível da situação de transferência” que não necessita de nenhuma referência ou contratransferência. “O lugar do objeto a, do agalma na relação de desejo” determina, assim, uma topologia graças à qual os fenômenos podem ser situados corretamente. É a mesma topologia que se encontra na referência ao sujeito suposto saber. Lacan se apoia, a cada vez, sobre a estrutura da experiência analítica, ele tira as consequências das particularidades do dispositivo inventado por Freud, no qual analista e analisante ocupam lugares bem distintos. Lacan havia inicialmente falado de abnegação para dizer qual deve ser a posição do analista diante do fenômeno de transferência. Ele volta à questão mais tarde, formalizando-a, na ocasião de algumas observações sobre a contratransferência, talvez as últimas, feitas em seu seminário sobre o ato analítico.7 Ao lembrar-se de Stendhal, ele fala então dos afetos de gosto e de estima, já que “não há apenas narcisismo e amor entre os seres humanos”, em um encontro há também “algo que se chama você me agrada”. É algo inexprimível “que dá suporte à realidade 7 V. O seminário, livro 15: O ato analítico (1967-68), inédito, lição de 07/02/1968.
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do outro”, uma certa dosagem de gosto e de estima que faz com que “isso ressoe” para vocês e se traduza por meio do “você me agrada” – ou seu contrário “você me desagrada”. Isso corresponde ao “suporte que assume o sujeito de a e de i(a)”. Pois bem, o analista se define da extração dessa dimensão, ele é aquele que é capaz de “não se deixar afetar por isso” em sua relação com o analisante. Isso se torna possível por meio da operação analítica, quando a tarefa analisante está acabada. O analista estará então em condições “de ver apenas o ponto em que o sujeito está nessa tarefa”. Pelo contrário, fazer a contratransferência entrar em jogo consiste em fazer lugar ao “você me agrada” ou ao “você me desagrada” – a deixar, portanto, se introduzir no laço analítico aquilo que é da ordem dos sentimentos. É interessante notar que a extração da dimensão do “você me agrada” se aplica não somente àquilo que pode despertar no analista “a realidade do outro” que é o analisante, mas também àquilo que poderíamos chamar de a realidade que o cerca, o estado do discurso presente. Assim, quando faz referência mais tarde à exploração capitalista, Lacan comenta: “é algo que desagrada”. Este é o princípio da agitação revolucionária, “há um ponto em que as coisas desagradam”. E ele insiste, então, naquilo que é a posição do analista: “no campo do fazer que ele inaugura por seu ato, não há lugar para o que quer que seja que lhe desagrade, nem também que lhe agrade. Se ele deu lugar a isso, ele sai da posição.8 Ele sai do ato, ele deixa sua posição de analista. Isso não significa, acrescenta Lacan, que o analista não tenha sua palavra a dizer, aliás. É claro, não? Trata-se daquilo que é exigível do analista ali onde ele opera como tal, no âmbito da análise. Podemos perceber, assim, desde o comentário de O banquete, como Lacan poderá ser conduzido mais tarde, em 1973, a evocar o laço entre o analisante e o analista em termos precisos que têm um valor de definição, sem no entanto falar explicitamente de transferência. Penso em uma frase bem conhecida de Televisão: “O discurso que digo analítico é justamente o laço social determinado pela prática de uma análise”. Desse ponto de vista, o que faz laço entre o analisante e o analista é esse discurso. É claro que a transferência está aí presente, ela sempre constitui o núcleo central da experiência, a prática de uma análise pressupõe isso. Mas considerando-se o laço de transferência tal como Lacan faz nos anos 1970, isto é, levando em conta o fato de que a experiência analítica tem uma estrutura de discurso, a transferência encontra-se em alguma medida reduzida, definida segundo as funções do discurso. A escrita do sujeito suposto saber – “eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência” (LACAN, 1967b/2003, p. 253) – com as três letras 8 Cf. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro, fim da lição XII.
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S.s.S., põe em relevo uma relação entre dois termos, o sujeito e o saber. Pode-se considerar que ela precede a escrita dos matemas dos discursos que escrevem relações entre quatro termos da álgebra lacaniana, cada um deles designando uma das quatro funções do discurso: o sujeito, o significante mestre, o saber e o objeto mais-de-gozar. A elaboração dos discursos como laços sociais fundamentais estende-se por diversos anos de seminário, desde 1969 até 1974. Lacan (1973-74/inédito, lição de 11/12/1973) afirma, então, que entre os seres falantes não há “outro laço senão o laço de discurso”. O laço de discurso “confirma ser tudo aquilo que existe de laço entre os seres falantes”. E acrescenta: “Isso não quer dizer que não se imagina outra coisa”. Há laços que imaginamos e há aquilo que estrutura realmente esses laços.
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A forma adequada de pensar o laço analítico, espero ter conseguido fazê-los perceber, ocupou Lacan em todo o decorrer de seu ensino – desde seu primeiro seminário, no qual ele falava da psicanálise como de uma “relação inter-humana”, salientando que não se trata de uma relação entre dois indivíduos, que não há somente dois corpos em presença já que há sempre entre eles esse terceiro elemento fundamental que é a fala – desde, portanto, esse seminário de 1954 até sua definição do laço analítico como discurso. Ele situa, a partir de então, o lugar do analista e sua posição no discurso do analista, referindo ao objeto causa do desejo: “o analista se coloca em posição de representar, de ser o agente, a causa do desejo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 168). Ora, Lacan havia introduzido, em 1972, uma questão relativa não ao lugar ou à posição do analista no discurso, mas o laço do analista com o analisante. Que laço pode ser esse, tendo-se em conta todo o exposto até aqui? É o ponto sobre o qual desejo terminar. Eis a questão, tal como Lacan a coloca ao terminar seu seminário ... ou pior.9 “O que nos liga àquele com quem embarcamos, ultrapassada a primeira confrontação dos corpos?” – ou seja, depois das entrevistas preliminares. Ele reformula a questão um pouco mais adiante: “O que é que nos liga àquele que se embarca conosco na posição que é a do paciente?” – e corrige na sequência: “aquele a quem inapropriadamente chamamos de nosso paciente”. Embarcar-se não é um verbo qualquer! Uma vez embarcados, é preciso ir adiante, não é possível desembarcar antes de chegar ao porto. É um destino comum partilhado. Qual é, então, a resposta de Lacan? Ela é surpreendente, verdadeiramente nova, sendo ao mesmo tempo coerente com a perspectiva que ele introduziu na consideração do laço analítico: “Somos irmãos de nosso paciente, 9 V. O seminário, livro 19: ... ou pior, última lição (21/06/1972).
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na medida em que, como ele, somos os filhos do discurso”. E há, “no ponto de cultura em que estamos”, apenas o discurso analítico que “dá sua presença” a essa palavra, irmão. O laço analítico seria, assim, uma fraternidade de discurso. Como entender isso? Podemos, claro, dizer que o analista e o analisante são, cada um deles, sujeitos do discurso do Outro que é o inconsciente. Mas não é só isso: a análise vai operar para cada um aquilo que ela já realizou para o outro, o advento do sujeito dividido, dessa “coisa fendida” pelo objeto a. Somos, enquanto tais, filhos do discurso analítico. A expressão faz ressoar aquilo que advém de inédito graças a uma análise. Não é algo glorioso, nem necessariamente feliz, mesmo se puder ser assim. O inédito aqui não é nada além do rastro deixado pela experiência do inconsciente e pelo saber que essa experiência comporta – o que, no fim, faz de cada analisante algo outro, diferente da criança do discurso familiar. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
referências bibliográficas FREUD, S. (1893-95). “Estudos sobre a histeria” In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d. . (1914). “Introdução ao narcisismo” In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d. . (1924). “Uma breve descrição da psicanálise” In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d, v. XIX. LACAN, J. (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 591-652. . (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. . (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. . (1967a). “O engano do sujeito suposto saber” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 329-340. . (1967b). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. . (1967-68). O seminário, livro 15: O ato analítico, inédito. . (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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. (1969-70). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. . (1971-72). Le séminaire, livre 19: ... ou pire. Paris: Seuil, 2011. . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. . (1973-74). O seminário, livro 21: Les non-dupes errent, inédito. . (1976). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 567-569.
resumo
A questão do laço social se coloca hoje na sociedade com uma particular acuidade. Examinamos aqui a luz que a psicanálise traz a isso, ao estudarmos as elaborações sucessivas do conceito de transferência no ensino de Jacques Lacan.
palavras-chave
Laço social, desejo, transferência, contratransferência, sujeito suposto saber, discurso analítico, fraternidade de discurso.
abstract
The question of the social ties arises in todays’s society with particular acuity. We examine here the light that psychoanalysis brings to it, as we study the successive elaborations of the concept of transference in the teaching of Jacques Lacan.
keywords
Social ties, desire, countertransference, subject supposed to know, analytical discourse, “discourse brotherhood”.
recebido 16/07/2015
aprovado 10/08/2015
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(Des)enlaces clínicos. Breves apontamentos sobre o caso Hans Ana Paula Lacorte Gianesi ... Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede... ... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão... ... Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse... ... Na fraqueza em que estava tudo a atingia como um susto; desceu do bonde com as pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite... ... Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio e colado. Como a repulsa que precedesse a entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo e era fascinante... Clarice Lispector O que Clarice nos transmite com seu “Amor”, bate-nos às portas cotidianamente: os ovos quebrados, escorrendo, o mal-estar, a expulsão dos próprios dias, o salto, o susto, o mundo imaginário e o de comer com os dentes, a repulsa, a entrega, o fascínio, o nojo, termos e temas que nos chegam e designam o estranhamento real dos sujeitos que nos falam. Trauma, encontro do real, abertura da angústia, fração/cifra não calculável de gozo, abalo fantasmático, sintomas que vacilam, inflamam, enlaçam e desenlaçam, desencadeamento delirante. Impasses, acting out, passagens ao ato. O que leva alguém a procurar um analista? O que dizem os sintomas (des)enlaçados?, o “sinto mais” ou mesmo o não “sinto mais”, “sinto menos”! que podem fazer girar
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GIANESI, Ana Paula Lacorte
o discurso e enlaçar um sujeito em uma análise? Quais são os momentos cruciais pelos quais se passa? Seus meios, seus fins? Se dizemos que há tantos (des)enlaces possíveis quanto são os sujeitos que levam uma análise ao seu termo, como pensar cada (des)enodamento que se opera? Ali, do passe clínico ao ato analítico: as invenções singulares, seus saberes – “não há relação sexual”. E, ainda, outro passo possível, mas por nada necessário, passo do ato: o passe do passante que pela contingência ressonante pode fazer escrever AE, ou não. Pois bem, os (des)enlaces clínicos abrem espaço às conversas sobre as deformações topológicas, aos dizeres que por vezes se encontram, ao mascar elástico que o material-palavra possibilita e, quiçá, àquilo que se transmite do indizível e da solidão. Com essa materialidade, mostra-se o que desfaz, desenoda, falha, corta, conserta, corrige e cola. O que enlouquece, o que ainda segura, mas também o que faz laço, trança e nó. Assim como aos giros discursivos, enlaces e desenlaces podem se referir ao enodar e ao desenodar que se escrevem, mudam de forma ou mesmo deixam de se escrever ao longo de uma análise. Um enlace pode mesmo ser equivalente a um enodamento, bem como um desenlace ao seu desenodamento. Mais ainda, se entre o modal e o nodal localizamos alguma homologia, um enodamento pode ser lido em sua contingência: um encontro, um acontecimento. Seriam muitos os passos e os momentos de uma análise que poderiam dar-se a ler por seus enlaces e por seus desenlaces. Porém, sobremaneira interessa ao psicanalista certo momento de desencadeamento-enlaçamento-enodamento que é o surgimento do sintoma. Assim sendo, como formalizar, pela via nodal (não sem outros passos de formalização), isto que é da ordem de um desencadeamento? Um sintoma desencadeado pode escrever-se como um nó? Para nos ajudar a pensar sobre esta questão do desencadeamento, podemos seguir duas pistas colocadas em dois momentos distintos da obra de Lacan: Encontramos uma interessante e fundamental articulação em seu Seminário 2. Ali, ele dizia sobre o que se faz necessário para que ocorra uma formação sintomática: “A coalescência de pelo menos duas séries de motivações é necessária para a produção de qualquer formação sintomática. Uma é sexual, a outra é consoante ao nome que lhe damos aqui, simbólica – é o fator da fala tal como é assumido pelo sujeito” (LACAN, 1954-55/1985, p. 176). A outra citação, de 1975, na Conferência em Genebra sobre o sintoma, quando Lacan (inédito) falava sobre certo desembaraçar-se, destino trágico dos falantes, e afirmou como se daria a “coalescência dessa realidade sexual e da linguagem”.
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(Des)enlaces clínicos. Breves apontamentos sobre o caso Hans
Isso é bastante freudiano: para que um desencadeamento ocorra é preciso o fator sexual e o simbólico. Podemos conceber o Simbólico como alteridade, como cadeia significante, como a série automaton da repetição, como o que bordeia e faz vaso etc. Outrossim, como aquilo que se encontra interceptado pela relação imaginária. E ambos, Simbólico e Imaginário, enquanto o que se forma ou se constrói em torno do oco, Real. Um sintoma é assim formado: fração de gozo (sexual opaco) e série significante (não sem a interceptação imaginária). São conhecidos alguns esforços de formalização encampados por Freud. Assim, parece valer abrirmos um breve parêntese que nos ajudará a articular a questão do sintoma e seus enlaces. O sintoma-mensagem, posto na transferência, remeter-nos-ia, em Freud (1980), aos Tipos de desencadeamento da neurose (1912). Ele destacou ali quatro possibilidades de desencadeamento. A primeira delas, mal traduzida por frustração, a Versagung, diria respeito à operação de introversão da libido e sua regressão até um ponto de fixação, o que se revelaria por conta da não disponibilidade do objeto real na realidade. Esse “tipo” de desencadeamento precisaria, entrementes, do fator “quantidade” para se efetivar. Lembremo-nos, igualmente, das séries complementares freudianas (FREUD, 1916-17/1980). Séries propostas para pensar a “causação da neurose”. Estas são formadas por: pulsão (lugar do gozo) e trauma. E fixação da libido (fantasia) e frustração, a Versagung (contingência desencadeante/no adulto).
Causação da neurose =
Disposição devida à fixação da libido
+
Constituição sexual (Experiências pré-históricas)
Experiência casual no adulto (traumática)
Experiência infantil
Diagrama das Séries Complementares
As experiências sexuais infantis (traumáticas) e a constituição sexual (pulsional) formariam uma série suficiente para a montagem fantasmática (fixação da libido). Entre a fantasia e as experiências casuais do adulto (Versagung) haveria outra série. Freud propôs, também, uma notável articulação entre o trauma infantil e os encontros traumáticos (encontros do Real) de outros momentos da vida de um sujeito (esses momentos seriam estruturalmente equivalentes).
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Pensemos, agora, nos enlaces discursivos propostos por Lacan. Parece que a lógica a se extrair das séries complementares nos faria aportar nos discursos enquanto estruturas quaternárias. Pensemos nos pontos de identificação com o Discurso do Mestre. A causação da neurose estaria posta nas articulações possíveis entre S1 e S2 (alienação) e $ e a (separação). Poderíamos colocar o trauma (experiências infantis) em S1, as experiências pré-históricas (gozo-pulsão) em S2 e, abaixo da barra $ punção (e/ou) a (fantasia – fixação da libido). E, assim como Freud, também colocaríamos em homologia as experiências infantis (relativas ao trauma) e a experiência traumática (contingente, portanto) no adulto, a mesma Versagung dos Tipos de desencadeamento. A contingência está posta de entrada. O encontro do Real desencadeia. Entretanto, partindo dessas séries, seria possível verificarmos o giro que possibilita o surgimento do discurso da histérica? Alocaríamos, no lugar do Outro, S1. Por sua relação com o gozo, S2, que bem abarca as experiências pré-históricas (constituição sexual), no lugar da produção. O objeto a, no lugar da verdade, representa satisfatoriamente a fantasia do sujeito neurótico enquanto aparece envelopado por suas versões predicativas e por ser sede de gozo (ainda tornada indistinguível a questão dos sexos). Como sabemos, diante do Che Vuoi vindo do Outro o sujeito responde fazendo o objeto a envelopar-se em uma de suas substâncias episódicas. O sujeito, barrado, coloca-se como agente de discurso. Entre fantasia e abalo contingente, o sujeito surge com sua questão-sintoma. Eis uma entrada possível em análise. Teríamos assim, em um primeiro exercício de formalização, este sujeito dividido entre um enunciado e sua enunciação. Um sujeito que desliza na cadeia conforme os significantes da determinação inconsciente S1, S1, S1 (no lugar do Outro). Esforçando-se por produzir saber. Sujeito evanescente representado por um significante para outro significante. No lugar da produção, S2: produção de saber/ sentido, não sem uma tentativa de alcançar o inalcançável saber sobre o Outro sexo, o saber no real. No lugar da verdade, o objeto a. Uma vez extraída a estrutura quaternária das séries complementares freudianas, podemos mesmo localizá-la nos discursos propostos por Lacan e, a partir daí, fazer girar seus elementos. Uma entrada em análise, a própria histerização do discurso, poderia então articular-se à causação da neurose. Guardemos isso por enquanto. E voltemos à questão do desencadeamento-enodamento. Afirmamos, com Freud e Lacan, que para um desencadeamento ocorrer são necessários o sexual e a cadeia simbólica. Pois bem, como pensar o sexual? Lacan havia escrito que o objeto pequeno a, tíquico, causa real, é (a)sexuado! Podemos
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dizer que ele o é justamente por ser o a sexuado em sua versão de gozo, de maisde-gozar e, igualmente, assexuado, por não ser suficiente para dizer da diferença entre os sexos. Apenas com o objeto a a não identidade entre os sexos não se mostra. Sabemos que o sujeito neurótico procura encampar este objeto (vazio) na fantasia e, mais ainda, procura fazê-lo equivaler aos objetos intercambiáveis. Na fantasia somos todos sujeitos barrados (todo fálico) procurando fazer relação com este a. O significante (campo simbólico) e a fantasia (com seu objeto) seriam, assim, insuficientes para resolver os impasses do gozo. Os impasses da não relação/ proporção sexual entre o todo e o não-todo. Interessante pensarmos que a um só tempo o objeto real que Lacan localiza na nodalidade borromeana como causa de enodamento (por situar-se no ponto nodal entre a figuralidade imaginária [corpo], a cadeia corpsificada simbólica e o real que exclui o sentido) e separador dos modos de gozo (gozo do sentido, gozo fálico e Outro gozo), ainda seja insuficiente para dizer dos sexos.
R
I
S Nó borromeano e objeto a separador de gozos
Muito embora o objeto a ainda não seja suficiente para dizer sobre a sexuação, “todo” ou “não-todo”, a estrutura quaternária que se mostra no enodamento via este ponto de Real, o tetraedro que ali aparece em estrutura (objeto a e os gozos separados), far-nos-ia voltar às afirmações de Lacan segundo as quais a estrutura discursiva e a estrutura borromeana são equivalentes. Não parece irrelevante, entretanto, que Lacan tenha formalizado a sexuação (a partir de lógicas não clássicas) e, consubstancialmente, tenha se deixado “invadir” (como ele mesmo o diz) pela topologia dos nós. Era preciso outra apreensão do espaço e, outrossim, um outro modo de contar e ordenar: “Se o inconsciente existe. Isso parte de uma outra maneira de considerar o espaço; e, ao qualificar essas três dimensões, distinguindo-as com os termos Simbólico, Imaginário e Real” (LACAN, 1973-74/inédito, aula de 13/11/1973).
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Foi justamente entre a contradição, do lado todo fálico, e o indecidível feminino (não-todo fálico) que Lacan escreveu a não relação sexual e ainda nomeou-a Real. Podemos dizer, desde essas assertivas, que o encontro com o impossível da relação sexual, da proporção/razão entre os sexos, enoda e desencadeia. E o que faz com que a relação sexual não possa se escrever, é justamente esse buraco aí que toda linguagem obstrui enquanto tal, o acesso do ser falante à alguma coisa que bem se apresenta, como um certo ponto tocando o real, neste ponto aí se justifica que o Real, eu o defina como impossível, porque aí, justamente ele não acontece jamais – nunca chega a que a relação sexual possa se escrever. (LACAN, 1973-74/inédito, aula de 20/11/1973). Lacan falava, naquele momento, do sexual como sentido sexual e afirmava que este se define por não se escrever. E ainda apresentou outra referência matemática: o sentido sexual, o sentido non-sense que desgasta a relação, do ciframento onde está o gozo, isto necessita da noção de limite de uma função (como limite de um número real). (Ibid., aula de 20/11/1973). Ou seja, não chega a se escrever como zero e tende ao infinito. Um sexual-saber-limite.
O caso Hans Acompanhemos, brevemente, o pequeno Hans relido por Lacan. Na Conferência em Genebra sobre o sintoma, Lacan (1975/inédito) falava sobre o encontro com o Heteros. Falava do “fazedor de pipi” do pequeno Hans e dizia que sua “ereção”, “esse primeiro gozar”, antes de ser autoerótico, fora absolutamente hétero. Eles se dizem – Mas, o que que é isso? E se dizem tão bem, que o próprio menino Hans só pensa nisso – o encarna em objetos que são francamente externos, isto é, nesse cavalo que relincha, que dá coices, que salta, que cai no chão. Esse cavalo que vai e vem, que tem certo modo de deslizar-se ao longo dos trilhos arrastando sua charrete, é o que há de mais exemplar para ele daquilo que tem que enfrentar e sobre o qual não entende nada […] O gozo que resulta desse Wiwimacher lhe é alheio a ponto de estar no princípio de sua fobia (LACAN, 1975/ inédito). O sentido sexual, como apontou Lacan, é opaco, é non-sense, é heteros em relação ao sujeito – um gozo cifrado no limite de uma função que, como já foi dito, tende ao infinito.
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E o encontro com o Heteros esteve no princípio da fobia de Hans. Recordemos algumas passagens do caso. Conforme Freud, Hans vira um cavalo caindo, ele teria dito a seu pai “uma vez um cavalo do ônibus caiu” (FREUD, 1909/1980, p. 59). Eis a causa imediata do desencadeamento fóbico: “Ocorreu quando o menino viu cair um cavalo grande e pesado” (Ibid., p. 61). Sabemos, entretanto, que o pequeno Hans elegeu esse objeto fóbico (objeto com valor significante), o cavalo, por meio da metonímia que ligava os arreios do equino ao bigode do pai, o que nos seria possível notar na seguinte passagem freudiana: “– Hans para seu pai: ‘tenho mais medo dos cavalos que têm uma coisa preta na boca’, o que é seguido pela resposta do pai: ‘talvez um bigode?’” (Ibid., p. 58). Igualmente, enquanto significante, o cavalo também tinha sua dimensão metafórica, ele “era, ao mesmo tempo, o pai, o falo, a irmãzinha, tudo o que quisermos” (LACAN, 1957-58/1995, p. 196) inclusive, a mãe. Cavalo-imagem (visto)/cavalo-metáfora; cavalo-metonímia/cavalo-gozo-heteros. RSI. Esse objeto teria emergido, Freud nos coloca de modo bastante claro, para assegurar o menino que, às voltas com suas construções fantasmáticas, procurou também assim proteger-se daquilo do que a angústia é sinal. Isso quer dizer que o objeto fóbico vem desempenhar o papel que, em razão de alguma carência, em razão de uma carência real no caso do pequeno Hans, não é preenchido pelo personagem do pai [...] Ele é o elemento em torno do qual vão guiar todos os tipos de significações que formarão, afinal, um elemento de suplência ao que faltou no desenvolvimento do sujeito (LACAN, 1956-57/1995, p. 411) Desta forma, localizamos uma hipótese segundo a qual a fobia e a fantasia (em Hans articuladas posteriormente à neurose) seriam suplências. Isto porque o menino encontrou sua saída justamente graças a essas construções. Para que ele não fosse apenas um assujeito, fizeram-se necessárias a aparição de algo que lhe metesse medo e sua fantasia: Ele precisou, com efeito, de seu cavalo pau-para-toda-obra a fim de suprir tudo o que lhe faltou naquele momento de virada [...] o que ele convocou no lugar do pai foi aquele ser imaginário e onipotente chamado encanador. Esse encanador apareceu, justamente, para des-assujeitar alguma coisa, pois a angústia do Pequeno Hans era, essencialmente, como eu lhes disse, a angústia de um assujeitamento (LACAN, 1957-58/1999, p. 196).
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Freud escreveu sobre a fantasia de preencher a banheira. Primeiro “eu estava no banho, e então veio o bombeiro e desparafusou a banheira. Depois ele pegou uma grande broca e bateu no meu estômago” (FREUD, 1909/1980, p. 74). Ele destacou o medo de Hans tomar banho na banheira grande, ser largado pela mãe e mergulhar com a cabeça. Em relação ao preencher a banheira, ele dizia que na banheira pequena ele cabia. A angústia de um assujeitamento, do preencher a banheira de modo que a falta deixasse de faltar, fora bordeada por uma “grande broca” que “des-assujetou-o”. Podemos ler o desencadeamento fóbico de Hans tendo em mente o “não há relação sexual”. Diante do encontro traumático real, Hans se virou como pôde. Sublinhemos aqui que Lacan, quanto à causa e seu objeto, fora bastante enfático: afirmou que devemos buscar a verdadeira função da causa na direção da abertura da angústia (LACAN, 1962-63/2005). O cavalo, enquanto significante (S1 – experiência infantil), chega a representar esse sujeito para outro significante (S2), fobia? Deixando por efeito um desejo cabreiro, mal efetivado, de um sujeito no lugar da verdade, procurando fazer relação com um objeto não intercambiável, mas assim mesmo causal? Objeto que se substancializa e aparece em sua versão oral, provando a fixação da libido – na fantasia? Um desejo cabreiro e um Outro devorador? Em relação ao giro histericizado de discurso, o sujeito fóbico (fobia como sintoma desencadeado) apareceria como agente (com seu desejo ressabiado). S1, o cavalo de sua experiência traumática infantil, no lugar do Outro (e do Gozo) o faria produzir saber (pulsão/gozo), S2, saber sobre a castração, saber sobre o opaco gozo sempre Heteros, ali ainda respaldado por sua verdade mentirosa, pelo ainda privilegiado objeto oral de sua fixão fantasmática, objeto a. Poderíamos, assim, localizar a partida do caso Hans nos discursos extraídos das séries complementares? E, apostando na equivalência entre as estruturas discursiva e borromeana, perguntarmo-nos se, como suplência em relação à angústia, a fobia de Hans enodou algo? Ou seja, o desencadeamento da fobia de Hans fora, antes, um enodamento? Que tipo de enodamento podemos cogitar neste caso? Suponham o caso de um outro nó, do nó que chamei há pouco de olímpico. Se uma de suas argolas de barbante se parte, vocês estouram, se eu posso dizer, pelo fato de alguma coisa que não concerne a vocês, embora isso, vocês não ficam tão loucos. Isto porque, quer vocês saibam ou não, os dois outros nós se mantêm juntos, e é isso que quer dizer que vocês são neuróticos. É bem o que, sempre eu afirmei isso, que não se sabe o bastante: que os neuróticos são incansáveis [...] Eu sei que alguns entre vocês se lembram, eu fiz alguma coisa, há algum tempo, sobre a
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fobia do pequeno Hans [...] Por que o cavalo, não é? Porque era isso que lhe fazia tanto medo. A explicação que eu encontrei [...] é que o cavalo era o representante – posso mesmo dizer, dos três circuitos [...] tanto que fui procurar um mapa de Viena, para marcá-los bem [...] É na medida em que a fobia do pequeno Hans está muito precisamente neste nó triplo, no qual as três argolas se sustentam juntas: é nisso que ele é neurótico: é que, cortem um, e os dois outros se sustentam sempre” (LACAN, 1973-74/inédito, aula de 11/12/1973). O cavalo, enquanto representante dos três circuitos na fobia, teria possibilitado que o nó olímpico, ordenável, contável em cadeia 1, 2, 3 se sustentasse? Lacan falou sobre a série (seriedade – serial) ordinária, a série que se repete e que se ordena, que se ordena e se repete... a série séria da neurose. Apresenta o nó olímpico como possibilidade de leitura de uma formação neurótica. Ali, na neurose, algo se aguentaria sempre. Entretanto, o cavalo enquanto objeto de encontro poderia ser tomado enquanto separador de gozos. Daí, o enodamento teria outro modo. Se a fobia veio em suplência à leniência paterna, o cavalo-caído (imagem); o cavalo-arreio-pai etc. (simbólico); o cavalo-heteros (real), ou seja, a própria eleição da fobia fez com que ele se aguentasse. Desta feita, Hans não teria feito um nó borromeano com seu cavalo-medo? O nó borromeano, Lacan ponderou, “tem uma função completamente outra que a de fundar essa ordem, a ordem qualquer, na qual vocês poderiam encadear o Simbólico, o Imaginário e o Real [...] é que, arrumá-los em três, enquanto número cardinal – isto, que é o próprio ao três, isto não implica nenhuma ordenação” (LACAN, 1973-74/inédito, aula de 08/01/1974). A não ordem, que é a nodalidade, implica uma concepção de espaço não euclidiano (e o fazer tranças com toros e/ou bandas). Arrumar o nó em três sem ordenação, não foi o que a angústia causou? Encontramos, enfim, a causa-angústia em Hans (a). Do encontro real que se produz entre a contradição e o indecidível, Hans construiu: tenho medo! Isso serviu como suplência. Isso fez nó. O cavalo fora lido como representante dos três circuitos. Pudemos colocá-lo nas três dimensões. Assim, a partir do encontro com o cavalo, enquanto objeto real (e, portanto, separador de gozos), Hans enodou. O cavalo pau-pra-toda-obra (RSI) serviu-lhe ao enodamento borromeano, em sua estrutura tetraédrica.
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referências bibliográficas FREUD, S. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., v. X, 1980. . (1912). Tipos de desencadeamento da neurose. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, v. XII, 1980. . (1916-17). Conferências introdutórias. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, v. XV e XVI, 1980. LACAN, J. (1954-55). O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. . (1956-57). O seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. . (1962-63). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. . (1973-74). O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Inédito. . (1975). Conferência em Genebra sobre o sintoma. Inédito.
resumo
Procurou-se articular as estruturas das Séries Complementares propostas por Freud, com os discursos; e o nó borromeano, formalizado por Lacan. O esforço de formalização voltou-se ao desencadeamento da neurose e, nesta direção, buscou-se pensar o caso clínico do pequeno Hans. A noção de causa esteve presente nas articulações do que Freud denominou “causação da neurose” e Lacan pensou enquanto laço e enodamento.
palavras-chave
Caso Hans, causa, desencadeamento, enodamento.
abstract
The purpose of the work was to articulate the structures of the Complementary Series proposed by Freud with the discourses and the Borromean knot formalized by Lacan. The effort of the formalization turned to the triggering off of neurosis, and in this direction, we sought to think about the clinical case of little Hans. The
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notion of cause was present in the articulations of what Freud called “causation of neurosis” and Lacan thought it as lace and enlancing.
keywords
Hans case, cause, triggering off, enlancing.
recebido 12/07/2015
aprovado 10/08/2015
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Fazer-se um nome no público: a dimensão do público nas psicoses Beatriz Helena Martins de Almeida Vou começar com uma citação de Phillipe Julien (1999), que servirá de argumento para nortear este trabalho: Schreber se curou por uma passagem ao público. Cito Freud: “Contrariamente à apresentação do fantasma de feminilização, o doente não empreendeu nada mais que a publicação de suas memórias, para fazer reconhecer sua missão de redentor”. Isto é capital, é a queda do delírio. “Se fazer reconhecer” pelo público graças às memórias escritas. Freud chama isto uma cura e Lacan chama isto ser o sintoma. Então, em sua prática clínica da psicose, é importante que vocês destruam a fronteira entre o psíquico e o social. Vejam o que a prática analítica da psicose nos ensina: não procurem o êxito na vida privada com o psicótico, vocês fracassarão. Estou de acordo com Lacan neste ponto. É uma falsa separação, o psíquico de um lado e o social de outro. […] É isto a cura. Eu posso dar centenas de exemplos de fim de análise com psicóticos nesta direção que Lacan nos indica: ajudar um psicótico numa participação social e não se preocupar, nem se debruçar sobre a vida privada, quer dizer, sobre o gozo fálico (p. 71). Continuo citando Julien, para explicitar seus argumentos: Enfim, o que está em jogo no delírio não é um negócio privado. Trata-se de testemunhar uma mensagem recebida e de comunicá-la publicamente (Ibid., p. 29). […] É o caso de Joyce. Ele é. Ser uma personalidade: Joyce conseguiu “fazer-se um nome” no público. Pode-se observar que, hoje em dia, muitos psicóticos não deliram porque conseguiram um êxito profissional e social; e é graças a esta compensação, a esta suplência do sintoma que não há delírio – mas o nome-do-pai está foracluído […] Só que o reverso da medalha é a vida privada, a vida não pública (Ibid., p. 51). Sobre [Aimée], dirá Lacan, […]: esta pessoa tinha seu nome nos jornais, em seguida a um gesto que ela havia cometido contra uma atriz, então, célebre. Ela é um sintoma, fala-se dela publicamente. Então três semanas depois, o delírio desaparece, cai. Vinte dias depois, diz Lacan. Definitivamente. Sim, porque ela
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ganhou, tornou-se uma personalidade. E Lacan vai publicar a sua história […], confirmando este ato. […] É por isso que lhes digo: a desqualificação da vida privada, tão impressionante nos psicóticos, não é um déficit, mas um apelo a uma inserção social bem-sucedida, onde o nome próprio jamais seja reduzido a um nome comum (Ibid., p. 56). Julien está dizendo “ajudar um psicótico numa participação social”, mas não está dizendo só isso, e sim algo mais: “não se preocupar, nem se debruçar sobre a vida privada”, “não procurem o êxito na vida privada com psicóticos, vocês fracassarão”. Mas por que os psicóticos fracassam na vida privada? E Julien nos dá a resposta, fazendo uma equivalência entre vida privada e gozo fálico. Para avançarmos com essa questão, proponho retomarmos algo da teorização da constituição do sujeito, no que concerne ao falo. Freud chamou Complexo de Édipo a operação de constituição do sujeito nas neuroses, Lacan chamou-a metáfora paterna. Em poucas palavras, para Lacan o significante Nome-do-Pai viria a significar o enigma do sujeito diante do Desejo da Mãe, enigma em que o infans se vê concernido, devido às ausências e presenças maternas, que lhe indicam desde o campo do Outro materno a sua insuficiência em saturar tal desejo. Aponta-se aí um para além do desejo materno, que divide a mãe e o sujeito pela falta. O falo é o significante que designa o objeto como inexoravelmente perdido e sempre buscado. Isso é o desejo, que desde então marca a vida psíquica do sujeito. Essa operação de constituição do sujeito é instaurada pelo pai, que no segundo tempo do complexo priva a mãe de gozar de sua cria, e no terceiro tempo oferece à mãe aquilo que ela busca: o falo, permitindo, assim, ao infans, identificar-se às insígnias paternas para ter no momento oportuno os seus próprios objetos. Operação que atravessa a dialética do ser ou ter o falo para se resolver em termos de identificação ao pai. A significação fálica ordena os campos simbólico e imaginário do sujeito, articulando o vazio de objeto à falta significante. O que define a estrutura psicótica, para Lacan, é a foraclusão do significante Nome-do-Pai; o efeito disso é que não se inscreve para o sujeito psicótico o significante falo, enquanto significante da falta no campo do Outro. Consequentemente, o psicótico não ordena o seu imaginário em termos da falta a ser, ao contrário, apoia-se na imagem do outro, seu semelhante, para dar conta do enfrentamento do que acredita que deva fazer na administração de sua vida cotidiana. O sujeito psicótico busca responder às demandas do Outro se oferecendo como objeto que o completa, conferindo-lhe assim consistência.
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No texto A significação do falo, Lacan (1958a/1988) diz: […] que o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó: […] numa regulação do desenvolvimento que dá a […] sua razão, ou seja, a instalação, no sujeito de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes [ao desejo] de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher com justeza às [necessidades] da criança daí procriada (p. 692). Essas palavras de Lacan já demonstram os obstáculos com que vão se deparar os sujeitos psicóticos na vida privada, pela carência da significação fálica, em relação à identificação com o tipo ideal do seu sexo. O que isso quer dizer? Quer dizer que independentemente da anatomia, o sujeito, por meio de seu posicionamento em relação ao falo, pode identificar-se com um tipo ideal masculino ou feminino e definir uma consequente escolha de objeto sexual. Esta operação psíquica, de onde o sujeito sai provido de um Ideal de eu, só é possível pelo advento da castração, que institui o feminino como Outro sexo, como alteridade absoluta. Nesse contexto ganham sentido os aforismos lacanianos: a mulher não existe e não há relação sexual, que apontam para o desencontro fundamental, não há relação de complementaridade entre os sexos. Considerando-se a premissa fálica para todo o ser humano, o sexo feminino resta como o que escapa à representação. A mulher não existe, porque seu sexo não pode ser representado. Não há relação sexual entre um homem e uma mulher, porque cada um, no sexo, está em relação com o falo e não com o outro. Estamos todos, neuróticos, remetidos ao falo enquanto significante da falta, mas, muito embora as mulheres sejam não toda fálicas, pois seu sexo não é passível de representação, ainda assim elas participam do ordenamento fálico. Julien equivale vida privada a gozo fálico. Na travessia do complexo edípico pelos sujeitos neuróticos, operação da metáfora paterna como designada por Lacan, os sujeitos saem transformados no que tange à realidade, ao ideal e ao supereu. O sujeito vê sua realidade conformada pela fantasia, identifica-se ao tipo ideal de seu sexo ao preço de uma perda de gozo ao nível do ser, o gozo fica reduzido a um pedaço de corpo, ao que chamamos de gozo fálico. Já as mulheres, essas experimentam o que Lacan designou como gozo do Outro, para além do gozo fálico. Gozo que escapa ao significante, sobre o qual, como indica Lacan (1972-73/1985), não dizem nem uma palavra. O psicótico dá consistência à relação sexual. Em termos de gozo, o psicótico se mantém em posição de objeto de gozo do Outro, gozado pelo Outro, o que se convencionou chamar de gozo do ser. O psicótico dá consistência à relação sexual,
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trata-se de uma consistência imaginária, em uma relação de complementaridade: há relação sexual, porque o psicótico é aquele que faz um com o Outro. É nesse sentido, e a clínica nos revela, que muitas vezes um encontro faltoso com o Outro sexo, não simbolizado, acaba por deflagrar um surto em um sujeito psicótico. Sexo, feminilidade, paternidade, origem e morte são questões universais concernentes à castração, que embaraçam neuróticos e levam psicóticos ao surto, visto que são questões que não prescindem do aparato da significação da falta constitutiva do humano. Na falta da falta, quando não há inscrição da significação fálica, o sujeito precisará inventar, construir saídas para responder a essas questões fundamentais. Na direção da solução psicótica para a carência do significante paterno, abordarei, a partir de agora, duas elaborações lacanianas diferentes: a metáfora delirante pelo ordenamento do significante Ideal e o sinthoma pelo advento de um nome para o pai, um nome próprio. Vou começar pela metáfora delirante, mas para isso, é preciso antes retomar a função do falo. Sigamos com Rabinovich (2005): O falo, então, é situado como regulador do desenvolvimento; função esta que se funda na ideia de uma proporção, de uma medida comum, de uma razão no sentido matemático, que oferece um padrão de medida que lhe permite operar na estruturação dinâmica dos sintomas (p. 11). O significante fálico designa, nomeia o conjunto dos significados (p. 22). No nível fálico, inclusive clinicamente, as coisas são razoáveis, têm uma medida comum que traz consigo a possibilidade de uma razão. As coisas se tornam muito pouco razoáveis quando se trata do objeto a, pois o objeto é solidário do número irracional, do incomensurável […] o falo é a razão – a proporção matemática – das neuroses e das perversões (pp. 48 e 49). Em relação à saída pela metáfora delirante nas psicoses, Lacan (1958b/1998), no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, demonstrou que, especificamente no caso das paranoias, a estabilização de um sujeito psicótico após o surto se dá pela substituição metafórica do significante do Nome-do-Pai foracluído por um significante Ideal. Dito de outro modo, ali onde o Nome-do-Pai não se inscreveu pode funcionar em suplência um significante Ideal que ordene a bateria dos significantes do sujeito, ou seja, que ordene o seu delírio de maneira que o sujeito possa referir-se e fazer-se representar a partir do significante Ideal.
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Rabinovich (2005, p. 35) salienta que: Falo e Ideal são marcas diferentes; Lacan fala da marca do ideal, mas a marca do ideal não é a marca desse significante privilegiado, o falo. Em todo caso, o ideal é outro significante privilegiado que executa outras funções, mas não é o significante fálico, é um significante muito mais submetido às variantes da história de cada sujeito. O significante fálico não depende nem varia com a história de cada sujeito. […] Quando dizemos “falo”, remetemos a algo que tem a ver estritamente com a sexualidade, […] porque o falo é o significante privilegiado da marca pela qual se unem sexualidade e linguagem […]. Nesse sentido, o significado do falo é uma marca universal, é válida para “todo homem”. Os ideais não, podemos dizer que todo sujeito tem que ter um ideal, mas não há um significante que em todas as baterias significantes, qualquer que seja a linguagem que um sujeito use, opere como ideal. As formas que o ideal assume mudam muito mais com as diversas ordens simbólicas e as histórias de cada sujeito do que o referente ao significante fálico. Não existe o universal das psicoses. O delírio, enquanto fabricação de sentido em resposta à perplexidade que invade sujeitos psicóticos em momentos em que uma crise se deflagra, apresenta-se como excessivo, dissonante e fora de medida em relação à norma fálica vigente. A solução elegante das psicoses se dá pela promoção de um significante Ideal no delírio. Significante forjado no particular da história do sujeito, portanto, não universalizável. Significante consistente e não vazio, e sim, tal qual o sujeito possa fazer-se representar. Aqui reside a dificuldade para o psicótico, pois devido à carência da referência fálica, seu delírio comparece no social como não compartilhável desde o referente comum que faz comunidade: o falo. No entanto, essa operação da metáfora delirante não prescinde – tal como no chiste – do reconhecimento advindo do Outro, em sua função de ratificar a mensagem e promover o acesso ao laço social. “Fazer-se um nome no público”. De que se trata nesses testemunhos delirantes? Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro. Se Schreber escreve essa obra enorme é justamente para que ninguém ignore a respeito do que ele sofreu […]. Isso se propõe justamente como um esforço para ser reconhecido. Já que se trata de um discurso publicado, um ponto de interrogação é suscitado pelo que pode bem querer dizer, nessa personagem tão isolada por sua experiência que é o louco, a necessidade de reconhecimento. O louco parece à primeira vista distinguir-se por não ter necessidade de ser reconhecido. Mas essa suficiência que ele tem de seu próprio mundo, sua autocompreensibilidade que parece caracterizá-lo, não deixa de apresentar alguma contradição (LACAN, 1955-56/1988, p. 93).
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Essa citação de Lacan permite entender a contradição observada na clínica com pacientes psicóticos. Se por um lado é possível observar, por parte desses pacientes, reclusões voluntárias que resultam, por vezes, em pedidos de internação como maneira de se defenderem da invasão do Outro – visto que sua posição estrutural é a de objeto de gozo do Outro –, por outro, não à toa, há um fenômeno bastante comum: psicóticos recorrendo aos órgãos públicos para fazerem reivindicações de todo tipo. Todas as manifestações nas psicoses são tentativas de fazer laço social, tentativas de o sujeito incluir sua maneira pouco razoável e excêntrica de forjar efeitos de subjetivação, tentativas essas, que, no entanto, se endereçam ao Outro, como esclarece Quinet (2006, p. 54): A direção do tratamento na esquizofrenia vai no sentido daquilo que não se efetuou para ele e que ele mesmo se esforça em realizar. Daí o clínico não dever a qualquer custo eliminar os sintomas do sujeito […]. O outro passo que devemos dar é considerar todos os fenômenos dos pacientes como tentativas de estabelecimento de algum vínculo com o outro. Nesse sentido, são tentativas de fazer laço social […] deve-se respeitar a singularidade especial desses sujeitos, que por vezes inventam sintomas bem especiais para lidar com esse fora. E esse fora diz respeito tanto ao espaço social quanto à foraclusão. Os sujeitos psicóticos inventam sintomas para lidar com esse fora, introduz-se assim uma outra elaboração de Lacan como solução para as psicoses: o sinthoma. As articulações de Lacan, posteriores ao texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”, permitem avançar a clínica das psicoses: do efeito estabilizador da substituição metafórica do significante do Nome-do -Pai foracluído pelo significante Ideal à suplência pelo sinthoma. No Seminário O Sinthoma, Lacan (1975-76/2007), por meio das elaborações dos nós borromeanos, refaz sua teoria em relação às estruturas subjetivas, falando não mais em metáfora paterna e foraclusão do Nome-do-Pai, mas em nomesdo-pai, no plural, em que cada sujeito tem que forjar sua solução singular para amarrar os registros real, simbólico e imaginário, o que pode ser feito a partir de um quarto nó, que Lacan chamou: sinthoma. Nesse seminário, Lacan aventou que James Joyce, o escritor, teria uma psicose que não se desencadeou pelo artifício de ser o sinthoma. Lacan tomou Joyce como paradigmático para suas elaborações a respeito das pluralizações do nome-do -pai. Joyce, autodesignando-se “O artista”, teria se virado com a carência paterna, forjando ele mesmo, não o nome-do-pai, mas, o pai do nome. No nó de Joyce, Lacan localizou uma falha no enodamento do imaginário, que permitia que este facilmente se desfizesse. A escrita joyceana estaria, então, am-
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parada no cruzamento do simbólico com o real, possibilitando uma invenção fora do sentido. Nesse caso, o ego – ego de artista – seria o quarto nó que amarraria os registros no lugar da falha. Lacan, a respeito de Joyce: Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes: Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo. […] O fato de que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum (Ibid. p. 86). Lacan indicou que, por uma invenção, o sujeito pode fazer-se um nome. Nome próprio, visto que se basta em si mesmo, fora do sentido. E não um nome comum preso ao sentido. Fazer-se um nome em suplência à carência do significante paterno, de maneira a poder arranjar-se com os registros é o efeito de autoria que Lacan chamou ser o sinthoma. O importante dessa elaboração é que Lacan, não se atendo somente à solução pela paranoização, ou seja, pelo advento da metáfora delirante por meio do trabalho sobre o delírio, abre para a pluralização das soluções nas psicoses. Trata-se, portanto, de inventar. É interessante notar como essas duas elaborações diferem em relação ao sentido. Na primeira solução, pela metáfora delirante, faz-se recurso a um acréscimo de sentido, o delírio confere sentido que serve de referência ao sujeito. Já na segunda elaboração, o caminho parece inverso, a solução se dá fora do sentido, pelo nome próprio que prescinde de apoio no sentido. No entanto, ambas as elaborações são articuladas ao público. Ainda acerca da dimensão do público nas psicoses, é importante lembrar que Lacan realizou apresentação de pacientes durante aproximadamente trinta anos. Para ele, a apresentação de pacientes tem um lugar privilegiado na teorização e na transmissão do tratamento das psicoses. Portanto, podemos considerar as elaborações a respeito do tema como paradigmáticas para a clínica das psicoses. Sobre o papel do público nas apresentações de pacientes, acompanhemos Porge (1996, p. 32): O público encarna um terceiro que se interpõe na relação dual: interpõe-se à medida que nenhum dos dois atores [paciente e entrevistador] tem o controle. Se controle deve haver, isso não passará pelo enfrentamento dos dois atores, mas pela tomada pela palavra de algo em que o público será lugar de realização de
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uma intenção (como no Witz segundo Freud) que não é formulado antecipadamente e que não é controlável por nenhum dos dois interlocutores. […] O público não encarna tanto uma função de decifração do dizer, quanto uma função de reconhecimento […]. “O espírito enquanto processo social” serve de título a Freud em seu livro sobre o Witz. Relembremos as palavras de Phillipe Julien: “ajudar um psicótico em uma participação social” a “se fazer reconhecer pelo público”. Nesse sentido, as apresentações de pacientes ressaltam a importância da dimensão do público no tratamento das psicoses, orientado para o laço social. O público, como no chiste, ratifica desde o campo do Outro os efeitos de surpresa que esse encontro inédito pode permitir advir. Não por acaso, as entrevistas terminam em torno do tema dos planos para a saída da internação e para o futuro, isto é, na perspectiva de uma participação social. Seja pelas soluções de ordem prática em relação à família, moradia, trabalho e tratamento, bem como pela valorização dos significantes em torno dos quais pode emergir o significante Ideal que vai lastrear o imaginário, ou mesmo, de maneira mais eficaz, em torno de algo em que o sujeito possa fazer-se nome no campo social. Acompanhemos Soler (2009), em Os nomes da identidade: Gostaria de interrogar em que Lacan se apoia, em 1975, quando desliza do Nome do pai ao Pai do nome, porque não creio que seja apenas o gosto pelos jogos de palavra que o tenha inspirado. O “fazer-se um nome”, que aparentemente deixa todo o peso do nome no próprio sujeito, não deve enganar-nos quanto à inexistência da autonominação, o que quer dizer que um nome próprio, embora sintoma, é sempre solidário a um laço social. Vejam o homem dos ratos. Podemos dizer que rato vem do seu inconsciente como o nome de um gozo alocado em sua relação fantasmática com a dama e o pai, mas foi preciso Freud para designá-lo como homem dos ratos e lhe dar, assim, seu nome de ingresso na análise. Do mesmo modo, Joyce o sintoma é Lacan quem nomeia. Aliás, o mesmo acontece com o nome que ele se deu primeiramente: o artista, que precisou ser confirmado pelo público, digamos, pelo século. Sem este laço, ele teria sido apenas o megalomaníaco que Yeats percebera ao encontrá-lo no início de sua juventude. Em todos os casos, é necessário que aquilo que vou chamar de oferta à nominação para designar a inscrição do sujeito seja recebida por um Outro. É o mesmo que dizer que o nome está à mercê do encontro incalculável. Ele então participa da contingência – exatamente como o amor (p. 174).
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[…] O dizer de nominação tem função borromeana. Ele enoda as três consistências, e correlativamente prende o real em um nó social, imaginário-simbólico. De um só golpe “ele faz nó e nós”, se posso dizê-lo (p. 175). De um só golpe, ao fazer nó – enodar algo do real ao imaginário e ao simbólico –, se faz nós, laço social. Para finalizar, uma vinheta clínica que o corrobora. Em uma ocasião em que abordei esse tema em uma apresentação do Seminário da Rede Clínica no FCL-SP, um colega, Fernando Silvério Alves1, relatou-me um pequeno fragmento clínico que, além de me permitir avançar com a questão, agora ilustra este trabalho: João é um jovem que passou por uma primeira internação na adolescência quando cursava o ensino médio. Devido à gravidade do quadro e dos transtornos característicos de uma esquizofrenia, interrompeu os estudos. Após um período no hospital psiquiátrico, começou a ser atendido no serviço de saúde mental do município onde mora. Manteve-se relativamente estável por um certo tempo quando numa segunda crise, mais grave dessa vez, mostrou-se violento e foi internado novamente. Ao sair da segunda internação, voltou a participar de algumas atividades do CAPS, porém seu isolamento e seu mutismo tinham se acentuado quando passei a atendê-lo. Com uma expressão facial vazia não respondia ao que lhe era perguntado. Porém, um dia ao dizer-lhe “bom dia”, ouço: “good morning class” saindo de sua boca, ao que respondo imediatamente “good morning”. Continuo a conversa com mais duas ou três perguntas em inglês que o fazem “vir para a conversa”. João pergunta-me se eu falo inglês e se interessa por saber como determinadas expressões são ditas nesse idioma. A partir daí, começa a se interessar por saber o que falavam algumas músicas em inglês que tinha gravadas em seu MP3 e passamos então a procurá-las na internet e ouvi-las. Cabe lembrar que sua mãe trabalhava em casa e que o rádio ficava ligado o dia todo. Assim, além das músicas em inglês, algumas das quais foram baixadas e gravadas em seu MP3, começou a pedir para ouvir as que tocavam durante o dia na programação da rádio local. Seu interesse pelas músicas e pela programação da rádio fez com que fosse proposto um karaokê semanal no CAPS e uma visita à emissora. Um ponto fundamental de todo esse movimento para o João foi descobrir que 1 Fernando Silvério Alves é psicanalista, participante de Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo (FCL-SP). O pequeno fragmento clínico citado me foi enviado por Fernando, a quem muito agradeço.
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podia participar da programação da rádio pedindo para que uma determinada música fosse tocada e oferecida às pessoas que ele quisesse. Seu nome era assim citado, tornando-se público e reconhecido por aqueles que ouviam e comentavam o seu pedido. Foi criada para ele uma conta de acesso ao site da rádio para que os pedidos fossem feitos, além dos pedidos feitos pelo telefone. João conhece atualmente os profissionais que trabalham na emissora com os quais mantém contato. Nota-se ter havido, a partir daí, uma expansão paulatina dos seus laços sociais. João passou a participar de algumas atividades e cursos fora do ambiente institucional. Atualmente movimenta-se sozinho pela cidade ajudando sua mãe nas compras para a casa e para o trabalho dela. Abriu um perfil numa rede social onde mantém contato com amigos de dentro e fora do CAPS. Não houve mais internações. Neste artigo procurei enlaçar duas distintas elaborações lacanianas acerca das psicoses. Argumentei que o sucesso na promoção de um significante Ideal na bateria significante dos delírios ou ainda outras invenções – como pelas artes, e até mesmo pelas passagens ao ato, desde que estas façam passar o nome próprio ao público –, podem funcionar como suplência à carência do significante paterno. E, mais ainda, aproveitando a contribuição de Julien, procurei a partir de citações de Lacan enfatizar a importância da função do reconhecimento. Reconhecimento que, por um efeito retroativo desde o campo do Outro, de um nome que se faz público, permite enodar os registros pelo sinthoma e enlaçar efeitos de sujeito no campo social, o que podemos designar como função de autoria, que só se reconhece desde o público. O público faz o artista e promove laço social. É o que se pôde constatar pela vinheta clínica apresentada: de um só golpe “ele faz nó e nós”.
referências bibliográficas JULIEN, P. As psicoses – um estudo sobre a paranóia comum. RJ: Companhia de Freud, 1999. LACAN, J. (1958a). A significação do falo. In: . Escritos. Tradução Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Editores, 1998. p. 692 a 703. . (1958b). De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses. In: . Escritos. Tradução Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Editores, 1998. p. 537 a 590. . (1955-56). O seminário, livro 3: As psicoses. Tradução de Aluísio Meneses. RJ: Jorge Zahar Editores, 2ª ed., 1988. 366p.
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. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução M. D. Magno. RJ: Jorge Zahar Editores, 1985. 248p. . (1975-76). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Tradução Sérgio Laia. Segunda edição. RJ: Jorge Zahar Editores, 2007. 201p. QUINET, A. A psicose e o laço social – esquizofrenia, paranoia e melancolia. RJ: Jorge Zahar Editores, 2006. PORGE, E. A apresentação de doentes. Pulsional – Boletim de novidades, Apresentação de doentes. São Paulo, n. 87, pp. 19-40, ano IX, 1996. RABINOVICH, D. A Significação do Falo – uma leitura. Tradução André Luis de Oliveira Lopes. RJ: Companhia de Freud, 2005. SOLER, C. Os nomes da identidade. Tradução Vera Pollo e Sônia Borges. Trivium – Estudos Interdisciplinares, Psicanálise e Cultura. Rio de Janeiro, pp. 171-177, ano I, edição I, segundo semestre 2009. Disponível em <http://www.uva.br/ trivium/edicao1/conferencia/os-nomes-da-identidade.pdf>. Acesso em 01 jun. 2015.
resumo
Este artigo procura enlaçar duas distintas elaborações lacanianas acerca das psicoses. Argumenta que o sucesso na promoção de um significante Ideal na bateria significante dos delírios ou ainda outras invenções – como pelas artes, e até mesmo as passagens ao ato, desde que façam passar o nome próprio ao público –, podem funcionar como suplência à carência do significante paterno. E, mais ainda, aproveitando a contribuição de Julien, procura a partir de citações de Lacan, enfatizar a importância da função do reconhecimento. Reconhecimento, que por um efeito retroativo desde o campo do Outro, de um nome que se faz público, permite enodar os registros pelo sinthoma e enlaçar efeitos de sujeito no campo social, o que podemos designar como função de autoria, que só se reconhece desde o público. O público faz o artista e promove laço social.
palavras-chave
Psicose, falo, nome próprio, sinthoma, laço social.
abstract
This article sets to outline two distinct Lacanian approaches to psychoses. It argues that a successful promotion of the Ideal signifier in the signifying chain of delirium or other inventions, such as those through the arts, for example, or even
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the passage to the act, provided they bring the proper name to the public, can function as a replacement for the lack of the paternal signifier. Furthermore, taking advantage of Julienâ&#x20AC;&#x2122;s contribution, and based on Lacanâ&#x20AC;&#x2122;s quotes, it seeks to emphasize the importance of the role of acknowledgement. It is an acknowledgement which, through a retroactive effect from the field of the Other, of a name that is made public, allows the tying up of the registers made by the sinthome, and also the effects of the subject in the social field. We may designate this as the authoring function. An authoring process which is only recognized once it reaches the public sphere. The public makes the artist and promotes the social bond.
keyswords
Psychosis, phallus, proper name, sinthome, social bond.
enviado 12/07/2015
aprovado 10/08/2015
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Do amor de transferência à escrita de uma carta de amor Ingrid de Figueiredo Ventura No começo era o amor, como nos diz Lacan no Seminário A transferência (1960-61/2010). Essa afirmação transmite que o analista deve servir-se de Eros para que a experiência analítica seja possível. Esta relação é bem ilustrada por Lacan quando retoma O Banquete, de Platão. Nesse diálogo, Alcibíades acredita que Sócrates detém um saber sobre o enigma do amor e do seu desejo, situando-o como o detentor do agalma, objeto indefinível e precioso. No entanto, Sócrates se recusa a mostrar a metáfora do amor, afirmando que nada sabe, pois a sua essência é o vazio. A relação entre Alcibíades e Sócrates é análoga ao estabelecimento da relação transferencial em que o analista é convocado a ocupar o lugar de sujeito suposto saber diante da demanda de saber e de amor que lhe é endereçada pelo analisando, ou seja, o analista é situado como o sujeito detentor de um saber sobre o inconsciente. A recusa de Sócrates tem todas as características de uma interpretação analítica, de modo a endereçar Alcibíades ao seu próprio desejo desencadeado. O desejo é sempre desejo do Outro, para o qual se endereça uma demanda de amor por reciprocidade. Porém, o que se encontra é apenas uma suposição, pois em relação ao desejo do Outro nada se pode saber, apenas supor. É quando Sócrates se esquiva da demanda de Alcibíades que se torna possível reenviá-lo ao seu próprio desejo, encarnando o lugar do agalma, objeto precioso, assim como o analista em uma análise, que se situa na posição de semblante desse objeto causa de desejo, de modo a mostrar a própria divisão do sujeito, ou seja, a sua falta-a-ser. O amor de transferência traz consigo uma relação de alienação necessária ao Outro, o qual o analista encarna, mostrando um aspecto de resistência que, paradoxalmente, permite a interpretação. É aí que vemos o enlaçamento entre o desejo do sujeito e o desejo do analista (LACAN, 1964/2008). Assim, para que essa relação transferencial aconteça, é preciso que haja desejo do analista. Esse desejo é também um ponto fundamental, pois se situa na tensão existente entre a identificação idealizante (I) e o mote por onde o sujeito é levado a desejar, isto é, pela via do objeto causa de desejo (a), visto que o analista, ao se colocar no lugar de semblant, provoca o aparecimento de um sujeito barrado. Lacan
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enfatiza que, se a permissão para a identificação no plano do ideal do eu é a noção de sujeito suposto saber, o desejo do analista é justamente o contrário, pois provoca um corte para que o processo de identificação seja ultrapassado em direção ao atravessamento da fantasia. Essa é a mola fundamental da análise: a conservação do distanciamento entre o lugar da identificação idealizante e o lugar de objeto a. É somente em transferência que o sujeito pode elaborar uma questão acerca do seu desejo. É partir da operação pelo desejo do analista, situando-se no lugar de não resposta, que o analista cai da posição de sujeito suposto saber, confrontando o analisando com o saber do inconsciente e com o impossível do seu desejo. No Seminário O saber do psicanalista (1971-72), Lacan abordou o saber em sua relação com a verdade e o gozo, situando a verdade como o não saber. Isso toca na questão do saber que o psicanalista sustenta a partir do lugar que ocupa ao situar o seu discurso entre saber e verdade. Nesse seminário, Lacan coloca em discussão a incompreensão de seu ensino e se a sua fala estaria endereçada aos muros, interrogando a sua repercussão. Não por acaso se vale do significante mur, o qual é homófono a alguns outros dos quais lança mão para construir e transmitir o que propunha. Traz-nos o muro como aquilo que comportaria a própria linguagem. Com tal formulação, acrescenta que nesse muro temos a presença dos discursos e que para além dele haveria a possibilidade de construir um sentido. Além disso, ressalta que o muro (mur) pode tornar-se um muroir, neologismo construído com os significantes mur (muro) e miroir (espelho). No momento dessa construção, recorre a um poema de Antoine Tudal: Entre o homem e a mulher Há o amor. Entre o homem e o amor Há um mundo. Entre o homem e o mundo Há um muro. Lacan ressalta o amor que está entre o homem e a mulher e o situa em um tubo que se revira sobre ele mesmo, fazendo referência às figuras topológicas da garrafa de Klein e da banda de Mœbius, de modo a situar o homem do lado direito desse tubo e a mulher do lado esquerdo. A partir desse ponto, prossegue sua formulação, de modo a articular que o mundo que há entre o homem e o amor seria o próprio mundo no sentido bíblico. Em seguida, recupera o muro existente entre o homem e o mundo como o reviramento na junção entre a verdade e o saber, situando-o no lugar da castração, levando o saber a manter o campo da verdade como inalterado.
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E, finalmente, relaciona o amor (amour) com o muro (mur). Articula que não se pode falar de amor, mas se pode escrever, denotando uma impossibilidade e uma inacessibilidade. Assim, nessa tentativa de escrita do amor, surgiria a carta de amor (lettre d’amour), ou (a)muro ((a)mur). Como já disse no Seminário sobre A carta roubada (1956/1998), esta sempre chega ao seu destino: geralmente chega tarde demais; raras vezes chega a tempo. Assim, parece-nos que para além do amor na relação entre o homem e a mulher, temos a carta/letra de amor, ou seja, para além da própria castração e do gozo fálico, o que toca o Outro gozo, o Heteros. A articulação da possibilidade de escrita de uma carta/letra de amor ao final de uma análise, a partir da transposição do muro de linguagem, considera também a sua função de reverberação. Esse ponto pode ser abordado a partir da lógica. Para tal discussão, é importante analisar o estatuto do dito e do dizer, na passagem do princípio de não contradição aristotélico ao princípio da inexistência da relação sexual, conforme proposta por Lacan. De acordo com o autor, a operação analítica pode ser manejada a partir de um enigma construído, o qual está em relação com o sentido. Essa formulação nos aproxima do texto “O aturdito” (1972/2003), no qual dá um passo a mais e nos aponta uma direção a partir do equívoco ab-senso e da homonímia, propondo a psicanálise como aturdimento e o princípio da não relação sexual em contraposição ao princípio de não contradição de Aristóteles, que sustenta que uma proposição A ou não A é verdadeira. O princípio da inexistência da relação ou proporção sexual para a linguagem, ao qual o sujeito da enunciação está submetido, derroga a não contradição. Essa lógica pode ser sustentada pelos trabalhos de Lupasco (1935, apud NICOLESCU, 2009) sobre a filosofia do terceiro incluído, e entra em um debate com a abordagem transdisciplinar, fundada sobre a noção de níveis de realidade. Não se trata de ser possível afirmar uma coisa e seu contrário, o que, por uma anulação recíproca, acabaria com a possibilidade de uma abordagem científica da realidade. Na lógica do terceiro incluído, trata-se de sustentar que A e não A podem ser verdadeiras e podem dar conta de paradoxos, como o paradoxo do mentiroso. Na medida em que se diz “eu minto”, já se está falando a verdade. Nesse caso, haveria uma unificação não fusional que só pode ser compreendida a partir da noção de níveis de realidade. Há um estado T, de transcendente, em que se trata de reconhecer que, em um mundo de interconexões irredutíveis (como o mundo quântico, por exemplo), executar um experimento ou interpretar os resultados experimentais reverte, fatalmente, em um recorte do real que afeta o próprio real. A entidade real pode, assim, mostrar aspectos contraditórios que são incompreensíveis e absurdos, do ponto de vista de uma lógica que exclui a contradição e se pauta no “ou isso ou aquilo”. Essas contradições deixam de ser absurdas
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em uma lógica estabelecida sobre o postulado “e isso e aquilo”, ou ainda, “nem isso nem aquilo” (NICOLESCU, 2009). Nessa lógica lupasciana, não haveria uma rejeição do princípio de não contradição, pois apenas seria questionada a noção de absolutismo. Como Nicolescu (2009, p. 4) sustenta: Lupasco [...] formula seu “postulado fundamental de uma lógica dinâmica do contraditório”: “A todo fenômeno, ou elemento, ou evento lógico qualquer e, portanto, ao julgamento que o pensa, à proposição que o exprime, ao signo que o simboliza: e, por exemplo, deve sempre estar associado, estrutural e funcionalmente, um antifenômeno, ou antielemento, ou antievento lógico, logo um julgamento, uma proposição, um signo contraditório: não e”. Lupasco especifica que e somente poderá ser potencializado pela atualização de não e, mas não desaparecer. Do mesmo modo, não e somente poderá ser potencializado pela atualização de e, mas não desaparecer. Muitos lógicos e filósofos ficaram chocados com esse novo postulado que coloca em tensão a palavra “proposição”, própria do campo da lógica, com “fenômeno”, “evento”, próprios do campo da física. De acordo com Nicolescu (2009), estaria sendo fundada uma nova lógica de ordem ontológica. O terceiro incluído aparece de forma fundamental, pois “o quantum lógico que faz o índice T intervir está associado à atualização da contradição, enquanto que os outros dois quanta lógicos, fazendo intervir os índices A e P, estão associados à potencialização da contradição” (p. 4). Por exemplo, na lógica binária do princípio de não contradição, o ser é e o não ser não é, portanto as premissas A e não A não podem ser verdadeiras e mutuamente excludentes. Porém, se isto for transferido para um campo de porcentagem, há um grande problema. Supondo que o ser é, seja um organismo vivo, e o não ser não é, seja um organismo morto, como propor que ele está morrendo? Na lógica binária é impossível, porém, na lógica do terceiro incluído não, pois se pode afirmar que ele é vivo e morto. Assim, essa proposição torna-se verdadeira. Transportando para a lógica lacaniana da inexistência da relação sexual, podese sustentar que partindo de uma significação absoluta de uma proposição, que pode ser a proposição da escrita da fantasia fundamental, o dizer equivoca em uma situação analítica, suspendendo o sentido e produzindo um ab-senso na linguagem, colocando em tensão o valor de verdade. Logo, é possível articular com a lógica do terceiro incluído. Sobre a questão do dito e do dizer, Barbara Cassin (2013) faz uma interessante articulação com os sofistas, sustentando que podemos falar somente pelo prazer de falar. Essa afirmação contraria o princípio de não contradição e acentua que o sujeito pode ou não estar implicado no discurso que pronuncia, isto é, pode haver
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uma suspensão do sentido e do valor de verdade. A filosofia aristotélica promoveu o ato de expulsão dos sofistas com o advento de tal princípio, pois na sofística, o dizer e o dito gozavam do mesmo valor, comportando um discurso performativo implicado na base do sujeito. Assim, a performance seria a medida do verdadeiro. Para considerar tal discussão e sua articulação com o saber, a verdade e o gozo, pode-se valer da afirmação de Lacan (1971-72) de que se situava na posição de analisando quando pronunciava o seu ensino, onde também estava em jogo uma performance de fala, de modo a destacar que a sua fala era distinta de seu discurso. Essa formulação remete à questão do dizer. Lacan (1972/2003) nos endereça a um caminho que vai além do enunciado, baseado na presunção da primazia do dizer que se pode acessar pela via do discurso analítico: “Que se diga fica esquecido atrás do que se diz e no que se ouve” (p. 448). Com base nisso, teríamos a língua como integral de uma série de equívocos. Reconhecemos que os equívocos intratáveis, o que remete ao indecidível, não podem ser pensados com base na lógica aristotélica, só podendo ser abordados partindo de uma lógica que derroga a não contradição. Assim, incluindo o terceiro em uma lógica que comporta a contradição, é possível transcender a lógica clássica e binária, e incluir uma terceira possibilidade, de modo que haja uma coexistência de opostos, como no exemplo da física quântica em que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Ao se produzir uma possibilidade nova, torna-se indecidível a verdade. Esses equívocos só podem ser pensados com base na lalíngua, termo cunhado por Lacan em um ato falho: em vez de se referir ao Vocabulário de Psicanálise, refere-se ao Dicionário de Filosofia intitulado Lalande. Nesse momento, cunha o termo lalangue, acentuando que este nada tem a ver com a retórica e a dicção do dicionário, pois se relaciona com uma vertente contrária de modo a romper com o significado das palavras. Lalíngua engendra uma proliferação de sentidos, ou seja, ela expele o sentido. Isso salienta que não há relação sexual para a linguagem, pois ela é dependente do significante, de sua primazia, ou seja, que há um rompimento com a significação do falo [Die Bedeutung des Phallus], que assume um valor de verdade para o sujeito, fixado pelo princípio de não contradição. Assim, é possível que A e não A sejam proposições contraditórias e verdadeiras, de modo que o sujeito pode apresentar uma proposição negativa em seu enunciado de fala e, no nível da enunciação, existir uma proposição afirmativa, no caso do “inconsciente, isso fala” (LACAN, 1973/2003) ou “eu, a verdade, falo” (Ibid., 1956/1998). Baseado no princípio da inexistência da relação sexual, considera-se uma nova relação com o gozo, de modo que não se trata apenas do gozo fálico, mas também do Outro gozo que diz respeito a um inapreensível e a uma inacessibilidade do real do sexo que está fora da linguagem e que remete ao dizer, que Lacan desen-
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volveu como o lado mulher em suas fórmulas da sexuação no Seminário Mais, ainda (1972-73/2008). Haveria uma operação com o gozo fora do regime fálico e com outro sujeito colocado em causa. No entanto, uma questão então é imposta: que relação há entre lalíngua e a fala? Lalíngua parece funcionar com base em um regime de separação vocálica, colocando em questão a letra, baseada na prevalência da função sonora. Esta é diferente do regime discursivo patriarcal que opera por meio da função referencial, em que as consoantes têm primazia. Assim, essa nova relação com o gozo baseada em lalíngua tensiona o valor de verdade. E sobre essa questão, Lacan nos traz em “Televisão” (1973/2003, p. 508): “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real”. Assim, percebemos a articulação entre o dizer e a verdade, pois para sustentar a verdade é preciso dizê-la, mesmo que sempre falte uma palavra, pois há o registro do real que impõe uma impossível no dito. Considerando o novo regime discursivo de lalíngua, onde a função sonora tem prevalência sobre a função referencial, nos indagamos: é possível transpor o muro de linguagem e escrever uma carta/letra de amor ao final de uma análise? Nesse novo regime, onde o equívoco suspende o sentido, e aí nos encontramos em uma fenda do fora do sentido, ou seja, do real, parece ser possível transpor o muro de linguagem em direção à produção de um sentido novo, pois diante do indecidível da verdade que se coloca para o sujeito, é preciso que se decida um sentido pela via da aposta. Além disso, pode-se sustentar que essa operação está em relação com a função poética da linguagem tal como formulada por Jakobson (1960/1969). Tomemos alguns exemplos de função poética retirados de algumas estrofes da música Joana Francesa, de Chico Buarque: Je me dit loucura e de torpor / D’accord / O mar, marée, bateau. Em Je me dit loucura e de torpor, podemos escutar Je me dit, que pode significar Eu disse em francês, e Geme, do verbo gemer, em português. D’accord, em francês, que significa De acordo, e Acorda, do verbo acordar. O mar, marée, bateau, tanto pode ter o sentido de O mar, maré, barco, como O mar me arrebatou. Só há decisão de sentido quando se recorre à escrita dos versos. Lacan nos anuncia que a psicanálise pode se utilizar da homofonia em direção ao equívoco quando lhe convém, o que é calculado pelos poetas, como no caso de Chico Buarque. A topologia pode nos ajudar a pensar sobre tal questão, na tentativa de articular lógica e poética. Em seu estilo ao longo de seu ensino, Lacan fez uso da palavra poética. Talvez por isso, a queixa de muitos de que não se fazia compreender. Em 1929, ele escreveu um poema chamado Hiatus Irrationalis em que há um verso que diz: “Mas, se
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todos os verbos na goela definham / Coisas, vindo do sangue ou da forja tenham, / Natureza – no fluxo elemental vagueio” ou “No cego e surdo mal, no deus de senso findo”. No momento desse escrito, ele parece já estar falando da insuficiência da palavra para dar conta do sentido ou, como nos diz Bousseyroux (2013, p. 4), “que prelúdio, que presságio assim se profere! Hiatus irrationalis, hiato de um sem razão, hiância de um extrassenso, o esp de um laps – é bem isso o inconsciente do qual, bem mais tarde, Lacan reinventará o real”. No mesmo ano em que publica Hiatus irrationalis, há a publicação do seu artigo intitulado O problema do estilo, na revista surrealista e batailleana Minotaure, em que fala de uma possível solução teórica para o problema do estilo, incluindo o do artista. Com este exemplo de articulação, Bousseyroux (2013) assinala que podemos conceber o estilo lacaniano como poético. E este, para Lacan, seria indispensável para a psicanálise, o que é demonstrado pelas várias referências que faz sobre a poesia em sua obra. Além disso, Bousseyroux (2013) nos traz a questão sobre a possibilidade de uma solução teórica por meio da topologia para o estilo poético lacaniano. O próprio Lacan (1976/2003, p. 568) afirma: “Eu nasci poema, mas não poeta”. Isso é diferente de dizer “eu sou próprio à identificação ao sintoma”, como aquilo, de acordo com Bousseyroux (2013), “que tangencia a relação nativa do falasser com ‘lalíngua’” (Ibid., p. 6), que parece ter a ver com o final de análise. Lacan, ao dizer que não é poeta o suficiente, mas sim poema, faz referência a uma questão topológica e não ontológica, afirmando que seu poema assinado como Lá-quand, brincando com a homofonia em relação ao seu nome próprio, indica o significante como indício que responde ao real. Isso pode dar indicações do que em lalíngua é poema, por ser a intercessora do saber inconsciente, visto que não ascende ao S1, o significante-mestre, mas possibilita operar sobre o Um encarnado em lalíngua, indicando que aí se goza. “Lalíngua nos faz nascer poema”, nos fala Bousseyroux (2013). Ao nascermos, somos poema como falasser. No entanto, não há ainda poeta, pois o que se apresenta é o saber sem sujeito do inconsciente-lalíngua. Trata-se de um poema sem sujeito. Destarte, trata-se de um indício de que com base no equívoco ab-senso, promovido pelo princípio da inexistência da relação sexual para a língua (Bousseyroux, 2013), há uma desobediência em relação ao regime de não contradição. No Seminário As formações do inconsciente (1957-58/1999), Lacan indica o chiste como um deslocamento entre a verdade e o sentido, produzindo um efeito de não sentido, o que foi retomado no Seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-77), quando aponta o chiste como uma possibilidade para irmos além do inconsciente, em direção ao ab-senso, produzindo, talvez, um desejo inédito, que é o desejo de analista, a partir da ressonância do desejo.
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resumo
A partir do amor de transferência, o analista é convocado a ocupar a posição de semblante de objeto a como o lugar daquele que contém o agalma, objeto precioso que irá inaugurar o lugar onde o desejo do sujeito é posto em causa. Este lugar só
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é possível de ser ocupado a partir do desejo do analista. No percurso de uma análise, o analisante empreende uma busca por um saber sobre a sua verdade, pois o desejo se revela à medida que nada se sabe. No entanto, entre saber e verdade há uma disjunção em função da barreira do gozo, de modo que o sujeito se depara com o muro de linguagem que representa a própria castração e a inacessibilidade da verdade. O trabalho de análise contém uma aposta de acesso ao real, isto é, de transposição do muro, que só pode ocorrer pela via da fantasia fundamental. Em L’étourdit (1972), Lacan propõe a psicanálise como um aturdimento que endereça o sujeito ao equívoco ab-senso, colocando em questão o regime discursivo de lalíngua que opera para além da função fálica, de modo a tocar o Outro gozo. Essa possibilidade aponta para o que Lacan nos diz quando afirma que devemos ir além do inconsciente pelo equívoco no Seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-77). Este trabalho interroga acerca dessa aposta de transposição do muro de linguagem, em que saber, verdade e gozo estão articulados. Esta questão nos endereça à hipótese de que é possível valer-se do princípio da inexistência da relação sexual para essa travessia, de modo a produzir ou escrever uma carta/letra de amor ao final de uma análise que considere a ressonância do desejo. Talvez essa seja a via para a emergência de um desejo totalmente inédito, que é o desejo do analista.
palavras-chave
Amor, transferência, gozo, princípio da inexistência da relação sexual, desejo do analista.
abstract
From the transference love, the analyst is convened to occupy the position of object a countenance as the place that containing the agalma, a precious object that will open where the desire of the subject is questioned. This place can only be occupied from the analyst’s desire. In the course of analysis, the analysand undertakes a search for a knowledge about its truth, because the desire is revealed as nothing is known. However, between knowledge and truth there is a disjunction depending on the jouissance barrier, so that the subject is facing the language wall that representes its own castration and the inaccessibility of truth. The analysis work contains a real-access bet, that is, the wall transposition, which can only occur by means of fundamental fantasy. In L’Étourdit (1972), Lacan proposes psychoanalysis as a bewilderment that addresses the subject to the misconception of ab-sense, questioning the discursive regime of lalangue that operates beyond the phallic function in order to touch the Other jouissance. This possibility points
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to what Lacan tells us when he says that we must go beyond the unconscious by mistake in the Seminar L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977). This paper questions about this bet of transposition of the language wall where knowledge, truth and jouissance are articulated. This question lead us to the hypothesis that it is possible to rely on the principle of inexistence sexual relationship for this crossing, in order to produce or write a love letter/ letter of love in the end of an analysis that considers the resonance of desire. Maybe this is the way for an emergence of a totally new desire, which is the desire of the analyst.
keywords
Love, transference, jouissance, principle of inexistence sexual relationship, analyst’s desire.
recebido 20/02/2015
aprovado 10/08/2015
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Do significante da falta à falta de significante. A dimensão da causa no fundamento do desejo e do objeto na passagem do Seminário 8 ao Seminário 91 Michele Roman Faria No seminário sobre a transferência, Lacan propõe uma discussão sobre o amor. Segundo ele, “no começo da experiência analítica, vamos lembrar, foi o amor” (LACAN, 1960-61/1992, p. 12). Trata-se, neste seminário, de compreender a relação entre o amor e a transferência, tendo como suporte O Banquete, de Platão. Logo na primeira conferência do seminário, Lacan (Ibid., p. 24) anuncia, sobre o texto platônico: Vou mostrar-lhes o que podemos encontrar aí, o que podemos deduzir daí, como marcos essenciais, até na história deste debate sobre o que realmente ocorreu na primeira transferência analítica. Penso que, quando o tivermos provado, vocês não vão duvidar de que possamos encontrar ali todas as chaves possíveis. Lacan discutirá as concepções de amor que se apresentam em cada um dos discursos de O Banquete, dando ênfase especial ao amor de Alcibíades por Sócrates. Segundo Lacan (Ibid., p. 165): Alcibíades mostra a presença do amor, mas mostra-a apenas na medida em que Sócrates, que sabe, pode enganar-se ali, e só a acompanha enganando-se. O logro é recíproco. Ele é tão verdadeiro para Sócrates, se este é um logro e se é verdade que ele é logrado, quanto é verdadeiro para Alcibíades que ele é tomado por este logro.
1 Este artigo é produto de um trabalho de cartel apresentado no Debate com Cartel coordenado por Silvana Pessoa, no Fórum do Campo Lacaniano-SP, em 28 de setembro de 2013.
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No amor, assim como na transferência, o que está em jogo é o logro, o engano da suposição de que aquilo que falta pode ser encontrado naquele que é amado. A metáfora do sileno, cuja função é esconder algo precioso e desejável, é reveladora da essência do amor e da transferência para Lacan: sua estrutura depende menos do objeto que da suposição de sua presença. Trata-se do objeto em sua ausência e da ilusão do que se esconde por trás dessa ausência. A importância da falta como central na noção psicanalítica do objeto já vinha sendo trabalhada por Lacan desde o Seminário 4, ao longo do qual ele insistirá: Um dos pontos mais essenciais da experiência analítica, e isso desde o começo, é a noção da falta de objeto. Jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção da falta de objeto como central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo” (LACAN, 1956-57/1995, p. 35). No Seminário 5, voltará a insistir na importância dessa noção, articulando a falta do objeto à estrutura simbólica do complexo de Édipo para, no Seminário 6, mostrar que o desejo, que pode ser escrito topologicamente em um grafo, é a articulação significante que se estrutura em torno da falta, ele é sua interpretação. Finalmente, no ano seguinte, tomará a ética como tema do seminário em que irá propor que a análise se sustenta na ética do desejo. Qual seria o interesse de Lacan em retornar à questão do desejo em sua relação com a falta no Seminário 8, uma vez mais? Há, evidentemente, um interesse clínico. O destaque dado por Lacan ao papel de Sócrates em O Banquete permite extrair, da resposta a Alcibíades, uma importante lição clínica: o analista, como Sócrates, não deve responder desde o lugar em que é colocado. Cabe a ele mostrar que o que se passa no amor, assim como na transferência, é da ordem do engano, da ilusão. A análise deve caminhar, portanto, no sentido inverso da ilusão do amor, buscando desvelar a verdade que essa ilusão encobre: há falta. Se a castração tem um lugar no final da análise, como indicava Freud, é na medida em que o desejo não pode encontrar na análise outra resposta a não ser a verdade daquilo que o sustenta como tal. É justamente neste ponto que parece estar a indicação de uma novidade na abordagem do tema do desejo por Lacan no Seminário 8. Sua questão parece se deslocar sutilmente da pergunta sobre o que é o desejo – respondida exaustivamente do Seminário 4 até o Seminário 7 com os recursos que lhe permitiram mostrar sua estrutura simbólica – para a localização de sua causa, mais além da falta simbólica que o sustenta. Tal deslocamento indica o ponto de abertura para
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a articulação entre os registros simbólico e real, que começa a se delinear2. Quais seriam estes pontos de abertura? O primeiro é o termo agalma, cujo “valor de enigma” (Ibid., p. 139) é destacado por Lacan do texto de Platão. Objeto desejável a ser supostamente encontrado no interior do sileno, o agalma nomeia a ilusão que sustenta o amor de Alcibíades por Sócrates (cf. Ibid., p. 142). Para Lacan, o que define esse objeto é justamente seu caráter ilusório, a ilusão de que há algo ali, algo misterioso e desejável. Ora, por que não chamar esse objeto de falo, já que esse é o conceito que aparece na teoria para abordar o tema do desejo e da falta desde o Seminário 4? Teria este objeto ilusório, que supostamente seria encontrado no fundo do desejo, um estatuto diferente daquele atribuído ao falo até este momento do ensino de Lacan? Referências ao Che vuoi? (Ibid., p. 142), à fantasia (Ibid., p. 150) e ao próprio a, ainda definido neste seminário como objeto do desejo (Ibid., p. 50), parecem importantes indicações da abertura para a reflexão sobre a função do real como causa ligada ao objeto que, a partir da estrutura do desejo, adquire um estatuto simbólico. A segunda indicação desta abertura, explorada por Lacan também neste seminário, é a distinção entre o que ele até então vinha nomeando significante da falta no Outro e o que ele chamará de falta do significante no Outro. Para abordar essa distinção, Lacan parte de um terreno já bem explorado, o campo da linguagem, retomando ao que vinha afirmando desde seus primeiros seminários: do ponto de vista da bateria significante, nada falta. “Quantas vezes eu já lhes disse que, uma vez dada a bateria do significante [...] nada falta?” (LACAN, 1960-61/1992, p. 236). E ele insiste: “toda bateria significante pode lhes dizer que aquilo que ela não pode dizer, nada significará no lugar do Outro. Ora, tudo o que significa para nós se passa sempre no lugar do Outro” (Ibid., p. 237). É essa a razão pela qual o Outro pode ser definido como o tesouro ou a bateria dos significantes: “para que alguma coisa signifique, é preciso que ela seja traduzível no lugar do Outro” (Ibid., p. 237). Nessa perspectiva, todos os significantes estão lá – e é somente nessa perspectiva que se deve considerar que nada falta ao campo da linguagem. Por outro lado, Lacan lembrará que quando se trata do sujeito, é necessário considerar que há um limite: não há significante capaz de responder pelo ser, de dizer daquilo que se é. Tal é a realidade da condição humana lembrada insistentemente por Lacan desde o Seminário 7: condição humana ligada à angústia, ao desampa-
2 E que terá no Seminário 9 um de seus mais importantes desdobramentos, com a utilização da topologia e da figura do toro para mostrar como desejo e demanda dependem de uma relação com o objeto que articula o registro simbólico ao real (cf. LACAN, 1961-62, lição de 11/04/1962 e lição de 30/05/1962).
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ro [Hilflosigkeit], ao desarvoramento absoluto a ser encontrado no final da análise (cf. LACAN, 1959-60/1991, p. 364). Ou seja: embora tudo o que é significável se encontre do lado do Outro, daí não se pode deduzir que tudo seja significável. Há um limite, este em que o sujeito se depara com a não resposta do lado do significante. É necessário considerar, portanto, na perspectiva do sujeito, a falta do significante. Mas como abordar esse limite da linguagem? É justamente neste ponto que o recurso à linguística revelase limitado e impreciso. É o que fica evidente no Seminário 8, na passagem em que Lacan recorre ao símbolo falo para definir o “significante do ponto onde o significante falta” (LACAN, 1960-61/1992, p. 230), o “símbolo inominável” (Ibid., p. 233), cujo sentido é ser o “símbolo no lugar onde se produz a falta de significante” (Ibid., p. 234). Lacan se encontrará diante do paradoxo de tentar descrever, com um recurso extraído do registro simbólico (o símbolo), justamente o que se encontra fora do alcance do simbólico. Como definir, com recursos da linguística, o que está fora do alcance da linguagem? Será necessário recorrer a expressões como “presença real do desejo” (Ibid., p. 244) para abordar esse limite da linguagem que funciona como causa onde o desejo vem habitar: Esta presença real, trata-se no entanto de situá-la em alguma parte, em um outro registro que não o do imaginário. Digamos que seja na medida em que lhes ensino a situar o lugar do desejo com relação à função do homem enquanto sujeito que fala, que podemos entrever que o desejo vem habitar o lugar da presença real e povoá-lo com seus fantasmas (Ibid., p. 256). O cuidado de Lacan para esclarecer o uso do termo símbolo parece revelador da dificuldade que ele começa a enfrentar, a de encontrar um recurso teórico que permita abordar o que se encontra fora do alcance da própria linguagem. “A introdução do símbolo Φ, o que a justifica, já que o dou como aquilo que vem no lugar do significante faltoso? O que quer dizer que um significante falta?” (Ibid., p. 236). A pergunta que se impõe neste momento é: será o significante faltoso o mesmo que o falo, significante da falta? Ou o que está em questão é o registro em que o significante falta? No Seminário 8, às voltas com esse impasse, Lacan definirá o símbolo falo como “o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (Ibid., p. 234), e isso porque ele remete, diferentemente de outros símbolos, justamente ao que não é representável. Trata-se do esforço de Lacan para situar um limite da linguagem, limite que ele já havia indicado com um
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recurso matemático, a ! (cf. LACAN, 1960/1998, p. 833) e com o matema, S(Ⱥ), um dos mais importantes e enigmáticos elementos do grafo do desejo, construído ao longo do quinto e sexto seminários. Em Subversão do sujeito, Lacan (1960/1998, p. 833) afirmará, sobre S(%): Quanto a nós, partiremos do que a sigla S(%) articula, por ser antes de tudo um significante. Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse significante, todos os demais não representariam nada. Ainda que se trate do significante, deve-se considerá-lo enquanto comportando uma particularidade: S(%) é um significante que não apenas remete, paradoxalmente, ao irrepresentável, como tem uma função diferente dos demais. Sem ele, os outros significantes não representariam nada. Ou seja: esse irrepresentável tem a função essencial de sustentar a própria cadeia significante. Ele é o significante que funda a cadeia, o traço a partir do qual um sujeito pode contar-se. Lacan dá o passo necessário em direção à articulação que passará ao centro de sua preocupação nos anos seguintes, a do registro real como motor, como causa. Se o irrepresentável relativo à falta de um significante no Outro é o nada angustiante a que se reduziria o ser em sua condição de desamparo (destacada por Lacan no Seminário 7), ele é também o real funcionando como causa, produzindo o lugar vazio onde se instala a estrutura simbólica que permite ao neurótico encobrir essa verdade, tratando-a enquanto significante da falta no Outro – é o que dá sustentação ao desejo enquanto sua interpretação (cf. LACAN, 1958-59/1999). No Seminário 9, o recurso à topologia será de grande auxílio para mostrá-lo, especialmente na figura do toro, que permite articular, em um só objeto topológico, a não resposta do Outro à demanda, e o lugar vazio que essa não resposta produz, lugar a partir do qual o desejo adquire sua função significante. Com a figura topológica do toro, Lacan mostrará não apenas que demanda e desejo estão articulados à falta, mas que essa falta só ganha consistência como tal quando a demanda é decepcionada, a partir da não resposta do Outro (cf. LACAN, 1961-62, lição de 30/05/1962). O desejo, como resposta à dimensão simbólica em que a falta do Outro é tratada, pode então ser articulado ao real da não resposta do Outro, desamparo do sujeito diante de um limite do campo da linguagem, S(%). Não apenas Lacan começa a delimitar com mais clareza esse limite no campo da linguagem, como começam a surgir novos recursos teóricos, especialmente a partir do Seminário 9, para mostrar que o próprio sujeito é efeito dessa não resposta do campo da linguagem.
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Ao mencionar, no Seminário 8, o S(Ⱥ) para situar não a falta fálica (onde ele se define enquanto um significante da falta no Outro, falo simbólico, Φ), mas a falta de significante no Outro, limite da linguagem que indicará que nem tudo é linguagem no inconsciente, Lacan abrirá, portanto, um importante caminho para delimitar cada vez mais claramente o lugar do real em sua articulação com os registros simbólico e imaginário. Aliás, Lacan insistirá com frequência, no Seminário 8, na indicação da importância dos três registros – real, simbólico e imaginário – a fim de distinguir o que se deve atribuir de verdade e de ilusão para localizar as questões que envolvem a transferência (cf. LACAN, 1960-61, p. 42). Mais adiante, no Seminário 12, Lacan (1964-65, lição de 12/05/65, [grifos nossos]) esclarecerá que se deve buscar a origem do sujeito não na cadeia significante, mas no irrepresentável que a faz funcionar: Não é enquanto suporte suposto de um conjunto harmonioso de significantes do sistema que o sujeito se funda, mas na medida em que em algum lugar há uma falta que eu articulo para vocês como sendo a falta de um significante, porque é essa articulação que nos permite reunir da maneira mais simples a articulação freudiana para dela desprendermos a força essencial. Concluindo: o lugar dado por Lacan, no Seminário 8, à distinção entre o significante da falta no Outro e a falta de significante no Outro, ainda que sutil, consiste em uma chave importante para a compreensão da função central que o real e o objeto a passarão a ter na articulação dos problemas clínicos e na concepção da constituição do sujeito nos anos seguintes, quando o esforço de Lacan (com o auxílio da lógica e da topologia) passará a se mostrar como a falta de significante no Outro (que possa responder pelo ser) pode ser situada como o real que funciona como causa que funda o sujeito, dando lugar tanto à ilusão da identidade que o registro imaginário oferece para dar consistência ao ser, como à estrutura simbólica enquanto aquela em torno da qual o desejo se sustenta enquanto enigma cuja resposta poderia ser encontrada, se ela existisse, do lado do significante da falta no Outro.
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Do significante da falta à falta de significante.
. (1957-58). O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. . (1958-59). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Inédito. Publicação não comercial para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Março/2002. . (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. . (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. . (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. . (1961-62). O seminário, livro 9: A identificação. Inédito. Publicação não comercial para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. . (1964-65). O seminário, livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise. Inédito. Publicação não comercial para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife, outubro/2006.
resumo
Desde os primeiros seminários, Lacan insiste na importância do simbólico como o registro fundamental para a compreensão do desejo, conceito-chave da teoria freudiana do inconsciente. A proposta deste artigo é lançar luz sobre um giro conceitual que, no Seminário 8, abre caminho para uma abordagem do desejo definido também em sua relação com o registro real. A presença de um novo termo para abordar o objeto, o agalma, e uma modificação na definição de S(Ⱥ), que de significante da falta passa a ser definido como a falta do significante, serão considerados a chave deste caminho de articulação do registro simbólico ao real, que resultará na definição do objeto a como causa do desejo no seminário do ano seguinte.
palavras-chave
Significante da falta, falta do significante, objeto do desejo, objeto causa do desejo, simbólico e real.
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FARIA, Michele Roman
abstract
Since his earliest seminars, Lacan lays stress on the symbolic as the crucial register for the understanding of the notion of desire, which is one of the key concepts of Freud’s theory of the unconscious. This paper aims to shed some light on a conceptual change that opens pathways for a redefinition of the notion of desire in Seminar 8, now taking into account its connection with the register of the real. The link between the registers of the symbolic and the real can be seen in two different theoretical evidences: a new way of naming the object, the agalma, and a new description of S(%), from the signifier of the lack to the lack of signifier, a change that will result in defining object a as object-cause-of-desire in the following year’s seminar.
keywords
Signifier of the lack, lack of signifier, object of desire, object cause-of-desire, simbolic, real.
recebido 24/05/2015
aprovado 10/08/2015
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Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica Dominique Fingermann 1. Atualidade: os laços em questão A questão dos laços e desenlaces é um problema da atualidade, basta constatar à nossa volta os estragos e as novidades que propõem a economia de mercado, o discurso que rege os laços na contemporaneidade. Vale observar que o Discurso Capitalista constitui paradoxalmente um discurso sem laço, já que o circuito insaciável de produção dos objetos “alimenta” e retroalimenta autisticamente os “proletários” desse discurso, em vez de pôr em causa a falta do objeto, no laço com o outro: um laço chamado desejo. A ciência postula, calcula, o mercado vende; a ciência calcula, o mercado vende... e o objeto falta. Não podemos ignorar que os analisantes do século XXI que nós recebemos são dominados, atravessados, atravancados por esse discurso contemporâneo, embora, ao recebê-los, sustentaremos os giros dos quatro discursos que a estrutura condiciona. Podemos elencar algumas das particularidades dos laços na atualidade: – a precariedade dos laços determinados pelo Discurso do Capitalista que sujeita os humanos à condição de proletários isolados e condenados ao gozo desenfreado dos gadgets; – a novidade dos laços oferecidos pelos tempos atuais, quando todas as composições são possíveis e mesmo politicamente corretas (hetero, bi, homo, pansexual, swing, ou simplesmente homoafetivo); – a praticidade das “oportunidades” distribuídas pelo mesmo discurso, acumpliciado ao discurso da ciência “facilitando” os encontros (e os desencontros) com parceiros eróticos, com filho, com o óvulo congelado, com espermatozoide seleto etc., e/ou com os aplicativos permitindo achar seu táxi, seu nerd, sua septuagenária, seu bi, seu trans, seu tetraplégico etc. Lacan alertou de diversas maneiras sobre o futuro da ilusão da ciência em relação aos laços; não esqueçamos a sua advertência quando, no final da “Proposição...”, ele evoca os campos de concentração como paradigma do efeito de segregação do discurso atual:
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[...] Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação (LACAN, 1967/2003, p. 263). A universalização introduzida e produzida pela ciência e os mercados globalizados conduz a remanejamentos dos grupos sociais até os processos de segregação, dos quais os campos de concentração anteciparam o modelo. A ética da psicanálise, que dirige e orienta a clínica que dela procede, esbarra com os efeitos do discurso da contemporaneidade, mas barra o mal-estar específico dessa civilização quando mantém a subversão do sujeito barrado e eleva a sua causa à dignidade de agente de um novo discurso, um novo laço que preserva o “efeito revolucionário” do sintoma (LACAN, 1969/2003, p. 378). A ética própria ao discurso analítico determina e causa os “laços e desenlaces da clínica psicanalítica”. Proponho-me a desdobrar os tratamentos lógico-éticos dos laços na experiência de uma análise e sua relação com os desenlaces que ela proporciona, e o novo enodamento que ela venha eventualmente a acolher.
2. No começo, há desenlace A clínica psicanalítica, ou melhor dizendo, o discurso psicanalítico e a experiência que este proporciona, apresenta uma chance de resposta àquilo que não faz laço e que chega a se manifestar no mundo como inibição, sintoma, angústia, isto é, como avatares de um sujeito, dividido entre corpo e significante, entre gozo e sentido, entre real e semblante. Essa resposta de analista, da qual nós, analistas, temos a responsabilidade (response-abiltity), constitui um laço extraordinário, excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como solidão radical, desenlace fundamental: o sintoma singular da estúpida e inefável existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Há um desenlace fundamental: a marca de gozo, que isola, mas distingue Um que ex-siste como incomparável. Como chegam as pessoas aos consultórios dos analistas antes de se tornarem analisantes? Como falar desse começo, crucial, dessa passagem radical entre um desenlace fundamental e o laço transferencial que não acontece se não entrar, por chance, um psicanalista? Evoquemos o primeiro passo no laço analítico de alguns futuros, eventuais analisantes: – Gabriel, quatorze anos, bom filho, explica com extrema sutileza como as
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coisas não são evidentes assim como deveriam ser. Como o amigo não é amigo, como o pai é demais, como a irmã pequena deveria ficar sempre pequena, como as provas cessaram de ser um desafio para constituir uma tormenta, como o jogo não tem mais graça por configurar uma obsessão, como os devaneios que fazem companhia atrapalham, como a sensação de inadequação e de perda dos aconchegos faz da vida um mistério, um constante desassossego. A adolescência, diz ele, não é tanto um problema quanto uma solução, pois oferece formas reconhecíveis e aceitas pelo discurso ambiente; não, o problema é anterior, desde que me conheço por gente, explica, contando a sensação corporal de desamparo quando de uma entrada em uma escola nova, e era pequeno demais para ler no quadro a sua inscrição e o local de sua classe. A análise, para ele, configura um laço possível para sua estrangeiridade, e sua sensação de desenlace generalizado. – Said, cinquenta e oito anos, industrial abastado. Análise? Para pegar firme! Onde? Não sabe, e queria saber o que falta quando nada falta: dinheiro, poder, beleza, saúde, mulheres... Há um saber que não se sabe, mas procura um lugar, embora não quisesse perder muito e, milionário conhecido, pede um recibo do preço da sessão. As suas falcatruas o condenam a uma solidão sem recursos: análise, lugar possível para seu exílio. – Madalena, vinte e oito anos, psicóloga jovem, bela e promissora, mas... o que fazer com essa ausência que atormenta e se desloca e se aloca em todos os assuntos da vida: profissional, amoroso, financeiro? Fazer análise, de verdade: como se fosse uma última chance para cingir esse real que estorva e se põe atravessado no corpo, na inteligência, nos laços! – Esther, quarenta e nove anos, professora universitária em frangalhos, já sabe tudo, tantos anos de análise! O que não sabe? Ela, que passou a vida achando que “iam” flagrar que não sabe de nada. O que não sabe, pode salvar? A análise pode proporcionar um lugar, um enlaçar novo com o não saber. Desarvorados, desamarrados, desenlaçados e, apesar de suas lamentações e/ou fanfarronadas, o primeiro encontro com o psicanalista não deixa de evidenciar onde, desde quando, como, algo “mais forte do que eu” cessou de fazer laço: com o outro, com os sentidos da vida, ou “simplesmente” no laço com o corpo próprio. Desde os primeiros ditos, declinando desencontros, tédio, falhas e outras faltas de sentido, vislumbra-se o lugar de uma singularidade surpreendente, um lugar de onde emerge um Dizer que ex-siste, algo que se excetua dos ditos e, no entanto, os fomenta. É nesse lugar de desenlace radical que se destaca como um ponto de urgência, que responde “de l’analyste”; algo da função analista, da sua presença, faz laço, engajando esse estranho diálogo, aí mesmo, nesses pontos emergenciais, para que o sintoma de suas vidas ordinárias se torne analisável e possa vir, em um primeiro tempo de engancho, a constituir-se como sintoma analítico.
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Portanto, uma coisa é certa: a “disposição” do analista precede a entrada em análise, isto é, precede a articulação do sintoma analítico com o sujeito suposto saber. É a disposição do analista no seu devido lugar no Discurso Analítico que produz esse laço, “dispositivo pelo qual o real toca no real”. Said, Gabriel e Esther no ponto original de seu ab sens arriscam transformar o pior em dizer (du pire au dire, diz Lacan). Tomaram a palavra. Decisão, coragem, que nessa passagem ao ato não se contenta com o lamento dessa solidão existencial. Vieram, antes de tudo, Dizer, e falar de algo que não tinha cabimento, não fazia mais laço com mais ninguém. No começo era o desenlace que, em vez de se abismar, se arrisca a Dizer. Laço. O que faz laço?
3. O que faz laço? Laços de família, laços afetivos, laços do amor... não é preciso avançar muito na consideração destes exemplos para concluir sobre a ambiguidade da palavra laço: um laço conecta dois ou mais entre si, salva da solidão, conforta, assegura, tranquiliza, mas também o laço amarra, acorrenta, constrange, limita, incomoda: desconfortável. Freud orientou sua escuta da fala dos analisantes em torno dos conceitos fundamentais que sua “práxis da teoria” extraiu, particularmente atento à forma como se aparelhavam, como se enlaçavam: os laços do eu com o outro, os laços com os sentidos da vida e os laços com o corpo próprio. Vejamos como o quadro esquemático da sexualidade no “Rascunho G”, em 1895, é paradigmático da psicanálise enquanto teoria-prática do enlaçamento daquilo que não faz relação. O esquema antecipa os conceitos de pulsão, representação, fantasma, escrevendo nesse quadro sútil, o necessário enlaçamento do corpo, da representação, do outro e da falta de satisfação.
Quadro esquemático da sexualidade
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Os conceitos de sintoma, pulsão, identificação, Ideal do Ego, Ego Ideal, transferência, amor etc. permitiram-lhe não somente rastrear as dificuldades nos laços que apresentavam os seus analisantes, mas proporcionar a sua leitura dos fenômenos coletivos em O Ego e o Id (1923), Mal-estar na civilização (1929), Futuro de uma ilusão (1927) etc. Sem falar de como os mitos que desenvolveu lhe proporcionaram uma abordagem do real em jogo na estrutura: os mitos da pulsão, do Édipo, de Totem e Tabu, diversas versões do enlaçamento do real. Sabemos como a clínica psicanalítica logo forçará o surgimento, no seu arcabouço teórico, daquilo que “não se liga”, a pulsão de morte, de onde se articulam conceitos fundamentais como repetição, resistência, Reação Terapêutica Negativa etc. Lacan dirá que o “Dizer de Freud” pode se enunciar como “não relação sexual”: não há relação, por isso, há laço! Lacan, sabemos, privilegiou a matemática, a topologia e a lógica para sua abordagem do real em jogo na estrutura. Desde os primeiros esquemas e grafos, a questão do laço do Um com o Outro se faz premente. O enlaçar, da fala, da imagem, do desejo, da fantasia, e finalmente do discurso, do semblante, dos gozos, do sintoma, do Dizer etc. constitui a urgência da sua práxis da teoria até os últimos rastros dos quais dispomos. No decorrer de seu ensino, Lacan usou diversos recursos para explicitar as ambiguidades do laço e sua função na psicanálise, o laço do íntimo com o êxtimo, articulando sempre a estrutura do sujeito com o seu devir na experiência da psicanálise. Todos os recursos gráficos e lógicos apresentam a estrutura do sujeito desde os seus laços fundamentais com o Real, o Simbólico e o Imaginário: os esquemas L e R, os espelhos conjugados, o grafo do desejo, os toros da demanda e do desejo, o cross cap, a garrafa de Klein, o grupo de Klein, a escrita dos discursos, os nós borromeanos etc. Desde sempre podemos dizer que ele procurou uma forma de formalizar e articular a “inacessibilidade do dois” e a distinção do Um.
A escrita dos discursos Os laços sociais decorrentes da lógica do significante estão particularmente dedicados a escrever o que em cada um produz desenlace, e a menção dos dois traços paralelos // embaixo, entre o lugar da produção e o lugar da verdade, escreve o desenlace singular em cada discurso, o seu real particular.
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O nó borromeano Parte do princípio do desenlace radical das três diz-mansões do fala-ser, real, simbólico, imaginário, para concluir quanto à função enlaçadora de uma quarta “consistência”, subvertendo o sintoma, fazendo da sua função radicalmente revolucionária de emergência real (por definição fora de laço) uma função excepcional de enodamento. Foi necessário para Lacan um tempo extenso de seu ensino para chegar a esta conclusão e explicitá-la. Quanto tempo, quantas voltas, demoram as análises para produzir essa conclusão, ou melhor, este termo, já que no final das contas se trata mais de uma decisão existencial do que de uma conclusão lógica?
4. As voltas dos discursos A psicanálise é uma experiência à qual se chega pelo sofrimento do desenlace (com o corpo, o outro, a significação fantasmática) e que prossegue pela demanda que faz apelo ao outro – portanto, laço. Uma brecha aberta na homeostase fantasmática aponta emergencialmente para a separação do sujeito e do objeto que lhe serve para suportar e tamponar a sua divisão, na medida do possível. Por algum motivo, fica escancarada a disjunção entre $ e o objeto “a”. Uma emergência, um triz, um cisco desestabiliza. Recordome de uma pessoa que procurou análise por causa de um cisco de camarão que havia se enfiado em seus dentes e tinha causado uma crise de pânico, abalando o equilíbrio deste homem monstruosamente egocêntrico e inabalável! t O Discurso do Mestre escreve essa disjunção entre o objeto e o sujeito; a produção de objetos “mais-de-gozar” não têm comum medida com o sujeito barrado $ que funda a verdade oculta, causa do movimento do significante mestre S1 em direção ao outro significante S2, fundamento da transferência. O real do Discurso do Mestre é esta disjunção flagrada, deflagrada: desenlace. Discurso do Mestre
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t 'B[FOEP DBVTB EFTTF JNQPTTÓWFM P %JTDVSTP EP "OBMJTUB QÜF P iBw DPNP TFNblante e coloca em cena o sujeito $ como seu outro, impossível de alcançar, mas interlocutor. Giro na estrutura: Discurso do Analista
ù¯ // ú A cada mudança de discurso, um “novo amor” (LACAN, 1972-73/1985, p. 26), uma nova promessa de laço. Interpelado, convocado assim pela função analista, o sujeito pode entrar em análise, colocar em funcionamento o discurso analisante, dito Discurso Histérico: no começo de uma análise há transferência, que usa o laço significante para que S1 produza um saber S2 . Discurso da Histérica
÷¯ // ø A transferência parte do desejo, $, que procura no outro o significante mestre S1 de seu gozo oculto “a”; investida que produz um saber S2 como mais-de-gozar. No entanto, este topa com um real, a impossibilidade de fazer com que esse saber toque no corpo, elucide os mistérios do “corpo falante”, que funda a sua verdade recalcada. Diante da sua impotência ressentida, o seu desenlace próprio (a // S2), vemos como o Discurso Histérico pode provocar a resposta do discurso canalha pelo deslize (S2¯$) que curto-circuita a impotência, colocando S2 como agente de um discurso que enlaça o outro com um saber sobre o gozo. Discurso Universitário
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A não ser que o Discurso do Analista, por chance, se apresente e coloque o objeto recalcado em causa. Discurso do Analista
ù¯ // ú “(...) desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro” (LACAN, 1972-73/1985, p. 26). t 0T EJTDVSTPT QBSB -BDBO DPOTJTUFN FN VNB FTDSJUB RVF FTDSFWF UBOUP P MBÎP quanto o desenlace fundamental aos quais a estutura do significante confina; os discursos apresentam os diversos “tratamentos do real” possíveis a partir da estrutura, cada um “fracassando” em um real particular. “Há sempre um dos laços que é rompido” (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 10/05/1977). t " SPEB EPT quatro discursos “ocupa” o espaço transferencial da análise. Como ressalva, o trabalho analítico propriamente dito, trabalho analisante, se sustenta desde o Discurso da Histérica, na medida em que esteja “dirigido” pelo ato do analista que faz laço a partir do objeto que fundamentalmente falta e não faz laço, como desdobra a escrita do Discurso do Analista.
5. No começo há transferência Falar de “Laços e desenlaces na clínica psicanalítica” consiste em falar da transferência e da intervenção sobre a transferência que dá um fim a este laço tão particular. Parece óbvio dizer que a transferência é o paradigma do laço analítico e que suas interrupções se qualificam como desenlaces. É mais intrigante pensar que ela é construída em torno de um laço amoroso, diz Freud, cujo objetivo fundamental, o fim da análise, é o seu próprio desenlace: basta lembrar como Freud, no final de uma análise, aponta para a liquidação da transferência. Propomos colocar isso à prova: a transferência é mesmo um laço e, ao procurar seu fim, se procuraria um desenlace? Partindo da premissa: a transferência é o laço específico que condiciona e configura a experiência analítica, consideramos a questão: o que, na transferência, “faz” laço entre os parceiros?
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– Não se trata de um laço intersubjetivo, entre dois sujeitos, como precisa e retifica Lacan em diversas ocasiões: a escrita dos Discursos, que permite configurar diversos tempos transferenciais, confirma essa “não intersubjetividade” da transferência. – Para Freud, antes de se tornar o laço amoroso autêntico que ele descreve como “motor e obstáculo” ao trabalho, a transferência consiste, antes de tudo, em uma transferência de representação, isto é, de significante; algo, um valor de gozo, desliza ou se condensa, se transfere de um para o outro: metáfora e metonímia. Verificamos essa matriz da transferência na escrita do Discurso do Mestre: S1¯ S2, cuja “histerização” procede da transferência do sujeito $ ao significante articulado na cadeia $ ¯S1¯S2 . – A transferência não é, senão, esse deslizamento significante e sua consequência de produção de um objeto “mais-de-gozar”, que se distingue por não pertencer à cadeia, ou seja, por ser algo que não se encadeia. Lacan formalizará esse laço, oriundo da própria estrutura do significante, como “Sujeito Suposto Saber”, vetor de uma demanda inesgotável. Mais tarde, ele completará dizendo: “aquele a quem suponho um saber, eu o amo”, pois a suposição de saber fomenta uma demanda, que é sempre uma demanda de amor. – O amor – autêntico segundo Freud; amor novo, segundo Lacan – procede da promessa do saber – articulação de significantes – que permitiria enlaçar o objeto que não se articula, nem encadeia, nem enlaça, mas embutido na promessa de saber do inconsciente, confere ao outro suposto um brilho especial agalmático. – A demanda, laço próprio da transferência, é orientada pelo desejo, ou seja, pelo objeto faltante que causa o seu movimento. – O fantasma reveste esse objeto que falta e fixa a sua consistência a partir das substâncias ocasionais dadas pelos objetos pulsionais e suas ocorrências para tal sujeito. – A demanda, por fim, revela a sua armadilha: “eu te peço recusar o que te ofereço porque não é isso” (LACAN, 1971-72/2011, p. 81). – Portanto, a respeito da questão “a transferência é mesmo um laço?”, podemos concluir com as palavras de Colette Soler: “é um falso laço!”; a transferência é um amor verdadeiro, mas é um falso laço (SOLER, 2011-12/2012). Pois tanto a demanda quanto o amor, e o desejo formatado pelo fantasma, se dirigem ao outro para lhe surrupiar o seu bem próprio, as diversas modalidades do objeto, e ainda declama “não é isso!”. A transferência é um falso laço, porque não faz laço entre um e outro parceiro do jogo, mas sim entre o sujeito e o objeto. Desde 1951, Lacan afirmava que não se tratava na transferência de um laço com a pessoa do analista, mas “dos modos permanentes segundo os quais ele constituía seus objetos” (LACAN, 1951/1998, p. 224).
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6. Intervenção sobre a transferência A intervenção sobre a transferência é a interpretação na sua dimensão fundamental de ato. A interpretação por princípio descontinua a transferência: contra a transferência, ela silencia a demanda de amor, de sentido, de complemento da significação fantasmática, desfaz todos os falsos laços. Há um radical Dizer-que-não (LACAN, 1972/2001, p. 453) que fomenta qualquer dito interpretativo. Mais do que denúncia, é silêncio, corte, suspensão. Podemos então inferir que se a transferência faz laço (falso), a interpretação suspende o laço, produz o desenlace? A interpretação intervém sobre a transferência descontinuando, cortando etc. os ditos da demanda; produz um desenlace do falso laço programando a queda do Sujeito Suposto Saber, o desenlace transferencial. No entanto, e isso desde os primeiros passos de uma análise, o analista por chance, responde. Se o Desejo de analista, por princípio não responde aos ditos da demanda, responde sim, ao Dizer da demanda do analisante. O Dizer da interpretação faz laço com o Dizer da demanda do analisante... “Um analista verdadeiro não pretenderia outra coisa, senão fazer que esse dizer sustente o lugar do real, até se provar outro melhor” (Ibid., p. 477). Em face do Um Dizer do Um sozinho: um encontro possível, com “do” analista. “Será que o Um-dizer, por se saber Um-todo-só, fala sozinho? Não há diálogo, disse eu, mas esse não diálogo tem seu limite na interpretação, por meio da qual se garante como no tocante ao número, o real” (LACAN, 1973b/2003, p. 548). Qual é o objetivo dessa operação? A satisfação, diria Lacan no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. A operação analítica, via a não complacência com a demanda de falso laço transferencial (isto é, o manejo da transferência), trata de produzir uma conclusão, uma realização, uma dedução, em primeiro lugar, da inacessibilidade do dois, da comprovação da “não relação sexual”. Essa operação de corte pode produzir uma satisfação (satis-fazer) enquanto interrompe a insatisfação da procura insaciável de um Dois que complete e conforte, a demanda de reduzir o hiato (impossibilidade) entre o S1 e o S2. A “travessia” da fantasia faz parte dessa operação “realizar” que “não há...”, que não há resposta ao Um no Outro: “não há relação sexual”. Em segundo lugar, a conclusão, dedução do “Há Um”, “Ya d’l’Un”, durante tanto tempo fonte do “horror de saber”, pode, sim, pacificar a intranquilidade de Um que procura sua resposta no Dois. Há, sim, algo que o Um-Dizer da demanda localiza sem apreender. Algo singular
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que não faz laço com o Outro, mas permite que as três consistências do fala-ser se contem como Um. O sinthoma faz laço, faz o enodamento dos três, RSI, desde essa marca singular que não se cicatriza. A intervenção sobre a transferência pode produzir e/ou conduzir à báscula do pior no Um do Dizer. Trata-se de um novo laço consigo mesmo, “reconhecimento” do sintoma, que se autoriza “de si mesmo”, em se fazer conhecer e não temer em causar o outro: laço entre sinthomas que o amor e a escrita podem muito bem encenar. O Dizer da interpretação é um “dizer que não” à demanda, mas não é da ordem da negação, ele repercute o dizer do Um sozinho que se infere de todas as demandas, o Dizer da demanda. A interpretação produz um desenlace com a demanda, mas conecta, faz laço com o Dizer da demanda que ele repercute quando fundamentalmente equivoca e faz vacilar, precisamente atordoa qualquer sentido. O disparador do Dizer que fomenta as demandas é o ponto de incidência traumático do Outro (da alteridade, S de A barrado, Outro que não responde), ponto traumático da incisão da ausência de sentido. O Dizer da interpretação proporciona uma ressonância para este lugar traumaticamente singular do encontro de Um com o não sentido. Embora silencioso, ou muito pouco eloquente, o dizer do analista é “uma presença que responde”, diz Soler, faz signo de um real, limite ao não diálogo”, “testemunha de um real que lhe seja próprio” (LACAN, 1973c/2003, p. 556). O desenlace flagrado no início das análises produz uma suposição de saber que torna o sintoma analisável até que da sua insistência irremediável se destaque o seu incurável, e que da intervenção sobre a transferência, pelo Dizer da interpretação, se produza o advento, a identificação da estrutura dupla face: – Não há relação sexual. – Há Um, existente. Para que esse Um se sustente, seja suportável enquanto tal, ele precisa funcionar como Dizer, que embora fora dos laços da demanda dirigida ao Outro, enlace, enode o Inconsciente Real com o inconsciente linguagem e nisso detenha invisivelmente os corpos (LACAN, 1972-73/1985, p. 125).
7. O laço do sintoma “O real que é algo com o qual de uma maneira expressa, digo eu, não temos relação” (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 11/01/1977). O real não faz laço: “seu estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada. Pelo menos é assim que concebo o real” (LACAN, 1975-76/2007, p. 119).
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O sintoma, ou seja, o que temos de mais real, poderia fazer laço? Que aberração! O sintoma, por definição, mas sobretudo por experiência, não tem nada a ver comigo, é mais forte do que eu, não se conecta, não faz sentido, não se enlaça. Embora a neurose e a análise se dediquem a enrolá-lo nos diversos sentidos de uma suposta mensagem dirigida ao Outro (isso não obsoleta o texto de Freud “Os sentidos do sintoma”, que retrata precisamente o sentido neurótico do sintoma), ele permanece irresistivelmente fora de razão, fora do sentido, a não ser seu sentido real. Eis, então, a sua graça irresistível: ele é indicador daquilo que resiste fora do senso comum. Colette Soler (2011-12/2012) disse: “O sentido do sintoma é o real, signo do real, da não relação, mostra uma realidade particular fixada traumaticamente”. No seu Seminário O Sinthoma, Lacan explicita essa dimensão de forma singular do sintoma: “O sintoma central, claro, é sintoma feito da carência própria da relação sexual. Mas é preciso que essa carência tome uma forma. Ela não toma uma forma qualquer” (LACAN, 1975-76/2007, p. 68). Desde seu ponto de origem traumático o sintoma não vai cessar de escrever a forma original com a qual a carência toma forma. O sintoma, acontecimento de corpo, enlaça desde a origem o furo, o signo e a forma corporal. É uma aberração, sim, mas que enlaça o corpo, fazendo das três dimensões Um corpo. O sintoma é laço, “o laço, o laço estreito do sinthoma, é algo que se trata de situar o que o sinthoma tem a ver com o Real, o Real do Inconsciente, se o Inconsciente for real” (Ibid., p. 98). Laço enigmático, diz Lacan, que denota esse enigma, o cúmulo do sentido. “Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma” (Ibid., p. 21). R
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Assim, aquilo que se apresenta como o que se tem de mais real, “acontecimento de corpo”, realidade moterial que por definição não se conecta, não se enlaça, pode vir a “satisfazer”, fazer cessar, a busca incessante da sua razão, no Outro.
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Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica
Uma fixão de real que satisfaça a busca identitária de sentido do fala-ser: identificação do sintoma, ao sintoma. “O saber, de um real do Um-todo-só [Un-tout-seul], todo só onde se diria a relação” (LACAN, 1973b/2003, p. 547). No fim das voltas, então, ocorre o fim do laço transferencial analítico, início do laço sintomático. Por fim, concluímos com Colette Soler: poder-se-ia (contingência) “fazer laço social com aquilo que está separado, disjunto”, e em vez de falar de intersubjetividade, poder-se-ia apostar em uma inter-sintomacidade? No fim: pode ser que a impudência, o Um-dizer sem vergonha, “impudence du dire”, faça laço entre os ímpares díspares. “A partir do dizer que ‘há Um’, fazer disso uso para fazer psicanálise” (LACAN, 1973b/2003, p. 547). Assim, por fim: Não Há relação. Há laço, que leva em conta o real impossível. Há nó, com o real que ex-siste.
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FINGERMANN, Dominique
referências bibliográficas LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. . (1964-65). Le séminaire, livre 12: Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, inédito (aula de 27/01/1965). . (1965-66). Le séminaire, livre 13: L’objet de la psychanalyse, inédito (aula de 02/02/1966). . (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 263. . (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. . (1969). Relatório do Seminário XV – O ato analítico In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1972). L’Étourdit In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. . (1971-72). Le séminaire, livre 19: ...ou pire. Paris: Seuil, 2011. . (1972-73). Le seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. . (1973a). Televisão In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1973b). Relatório do Seminário 1971-72 – ...ou pior In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1973c). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1974-75). Le séminaire, livre 22: R.S.I., inédito (aula de 19/11/1974). . (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. . (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário XI In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. , op. cit., p. 567. . (1976-77). Le séminaire, livre 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre, inédito (aula de 10/05/1977). SOLER, C. (2011-12). Qu’est-ce qui fait lien? Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2012.
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Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica
resumo
O texto propõe um recorrido da questão dos laços e desenlaces e suas diversas reviravoltas ao longo da experiência analítica. A resposta de analista constitui uma ocasião excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como desenlace fundamental: o sintoma singular da existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Se a transferência constitui um falso laço necessário à exploração do sintoma, a “intervenção sobre a transferência” configura um radical Dizer-que-não aos ditos da demanda, mas permite uma ressonância do Um-Dizer do sinthoma, possibilidade única de enodamento com a estrutura RSI.
palavras-chave
Laço, discurso, transferência, sinthoma, Dizer.
abstract
The text proposes a recurrence of the question on related to linkings and unlinkings and their various overturns along the psychoanalytical experience. The answer of the analyst becomes an exceptional occasion for creating a bond with what presents itself as a fundamental outcome: the singular symptom of existence of each individual particularly touched and entwined by the law of the significant. If transference is a false link necessary to the exploration of the symptom, the “intervention over transference” configures a radical Say-not to the sayings of the demand, while it allows for a resonance of One-Saying of the sinthoma, a unique possibility of enoding with the RSI structure
keywords
Link, discourse, transference, sinthoma, Saying.
recebido 12/07/2015
aprovado 10/08/2015
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O desejo no fim e na(s) sequência(s)1 Albert Nguyên Há, no ensino de Lacan, um deslocamento com relação ao desejo que vai do reconhecimento à causa, e, a partir daí, o desejo é um efeito, efeito de significante tomado nas redes da metonímia. É o tempo dos desenvolvimentos sobre o ser, que Freud havia apontado com o “Kern unseres Wesen”, ser que se deve fazer advir por meio da interpretação que libera do sentido. A consequência do deslocamento é marcada: passa-se do desejo ao gozo, e aí a interpretação muda de direção e não visa mais ao sentido e ao desejo, mas à causa do desejo – em outras palavras, ela trata o desejo como uma defesa, defesa contra algo que ex-siste e que é o gozo. Se por algum lado a psicanálise funciona pela falta e diz respeito ao ser e à falta a ser, Lacan, nos anos 1970, rompe com essa concepção ontológica da experiência, introduzindo – devido ao gozo – seu Yadl’Un [Há Um] (LACAN, 1971-72/2012): primado do Um que obriga a repensar a questão do desejo devido à deflação do desejo, e o gozo vem para o centro. Esse momento, que é também o da colocação em prática do passe, libera ao sujeito a solução de seu desejo, ao qual a partir de então ele não atribui mais a mesma importância, ocupado que está então com o Yadl’Un, que traduz aquilo que permaneceu fixado, aqueles famosos restos sintomáticos de Freud, o gozo irredutível. Esse Il y a de l’Un [Há Um] responde àquilo a que o sujeito foi confrontado no momento da travessia do fantasma, ao Não há relação sexual. Com Yadl’Un, o sujeito se sabe só, se sabe falando sozinho, sem o Outro que fez seu tormento, mas também condicionou seu desejo: é a solução, a deflação do desejo que havia se constituído a partir das contingências da vida, dos acidentes de sua história. O que muda para o sujeito – que doravante afasta-se da questão do ser que carregava o fantasma – é que ali onde ele não tem mais que se defrontar com o Outro do qual ele sustentava o gozo, ele vai ter que se defrontar com o Um. O problema consiste no status de falasser do sujeito: se ele se desfez do Outro do fantasma, ele encontra, no entanto, o Outro enquanto Outro, em particular quando para um homem esse Outro é uma mulher de que ele fez seu sintoma. Aí está todo o debate em torno do Fx e da identificação a uma posição sexuada. O problema com o gozo é que ele é autista e que o desejo, por sua vez, tem que lidar com o parceiro, com o Outro. 1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris (França).
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NGUYÊN, Albert
Mas Lacan consegue lograr esse feito considerável de conjuntar a falta a ser (o desejo) e a questão da existência (o gozo), o existe ou não existe. Não há desejo que não encontre o gozo pulsional, e a raiz do Outro é o Um. O que muda no que diz respeito ao desejo e em particular para o desejo do analista, é que por levar em conta o sinthoma que se trata de usar logicamente, uma vez que sua natureza de gozo é localizada, para atingir seu real ao fim do qual não há mais sede (LACAN, 1975-76/2005, p. 15), a prática da análise não é mais orientada para o sentido, a verdade e o desejo, mas para o real e o gozo do sinthoma. Ela se torna uma prática do cingir o real do sinthoma, vai para além do Ideal para atingir o objeto a como causa: a travessia do fantasma abre a janela sobre o real (LACAN, 1967a/2001), sobre o saber real que é o inconsciente. É possível deduzir daí a fórmula de destino do fantasma e a perspectiva que ela abre:
"¯ $ & % Ao final de um tratamento, a questão é precisamente a do desejo do analista. No “Discurso na Escola Freudiana de Paris”, Lacan questiona: “A que tem que responder o desejo do psicanalista? A uma necessidade que só podemos teorizar como tendo que produzir o desejo do sujeito como desejo do Outro, ou seja, fazer-se causa desse desejo. Mas, para satisfazer essa necessidade, o psicanalista tem que ser tomado tal como é na demanda” (LACAN, 1967b/2001, p. 271). Por esse motivo não há correção do desejo devido ao analista, mas Lacan propõe o passe “onde o ato poderia ser apreendido no momento em que se produz” (Ibid.). O que o passe registra é que “o desejo (desidero, desideration) [...] sofre aqui a deflação que o reconduz a seu desser” (LACAN, 1967c/2001, p. 336). O analista, ocupando o lugar do semblante de objeto, prestou-se em-corpo (en-corps) à operação analítica que traz à tona o fato de que o inconsciente só joga com efeitos de linguagem. É algo que se diz sem que o sujeito ali seja representado, nem que ele ali se diga, nem mesmo que ele saiba o que ele diz, mas na saída o desejo é marcado por essa deflação que Lacan nota. Ele vai, aliás, mais longe, dando ainda um passo a mais, e temos: “Um dizer que se diz sem que se saiba quem o diz, é a isso que o pensamento se furta” (Ibid., p. 335). É isso que o passe registra, mas é preciso, então, entrar no “After”, o pós-passe, a “Nachpass” em que justamente o desejo do analista que conduziu o tratamento, consequência da queda do sujeito suposto saber que traz à luz seu inessencial, encontra-se transformado.
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O desejo no fim e na(s) sequência(s)
Podemos, então, até mesmo nos questionar como, a partir daí, vai se encontrar modificada essa posição do analista, pois se o passe foi dado,2 o analista encontrase colocado em um outro lugar, implicado em uma outra função para o tempo que vai do passe ao fim, justificativa evidente de que o passe não é o fim da análise. Como formular essa “segunda” função do analista, que deve ser deduzida do campo que Lacan abriu com o gozo e o sinthoma, mas também com a evolução da doutrina do pai? Esquematicamente, levando em conta o lado redutor de qualquer esquema, poderíamos dizer que a função primeira do analista diz respeito ao fantasma e ao desejo até a travessia, ao passo que a segunda função diz respeito essencialmente ao sinthoma e ao gozo. Então, qual posição para o analista? Diria que me parece poder seguir a indicação que Lacan dá na conclusão da terceira resposta de “Radiofonia”: “Desloco-me com o deslocamento do Real no simbólico, e condenso-me para dar peso a meus símbolos no real, como convém para seguir o inconsciente em sua pista” (LACAN, 1970/2001, p. 418), esse inconsciente, como ele precisa, feito de depósitos e de aluviões, homogêneo àquilo que ele dirá da alíngua em “A Terceira”. Incluí em meu título, “o depois”, as sequências [les suites]. Elas estavam previstas por Lacan desde a “Proposição”: ele (o passe) “permitia um controle não inconcepto de suas sequências” (LACAN, 1967a/2003, p. 281). Para situar essas sequências, entre o passe e o fim, e, sem dúvida, para além do fim quando se trata de ocupar o lugar de analista, diria que as sequências consistem no tratamento das consequências da não relação sexual, da relação com o Um e da relação com a existência e a inexistência. A que tipo de prática essas sequências respondem? Elas se sustentam essencialmente por uma prática da contingência, ou seja, o não-todo, e por uma prática da diferença. Precisemos o contexto para ambos os casos: – que haja inúmeras contingências que tenham feito e esmaltado a vida do sujeito não impede que uma contingência, e apenas uma, tenha permitido denodar a neurose: cada qual com sua contingência. Entrada no registro do não-todo. – A diferença: lembro aqui a definição de Lacan em ...Ou pior: “É o Um como um sozinho, o Um tal qual, qualquer que seja a diferença que exista, todas as diferenças que existam, todas as diferenças se equivalem, não há senão uma, é a diferença” (LACAN 1971-72b/2011, p. 165). Definição que ele completa ao distinguir o Um de diferença e o Um de atributo: “Esse Um de diferença tem que ser contado como tal naquilo que se enuncia daquilo que ele funda, que é conjunto e que tem 2 Em francês si la passe est franchie, equívoco com a expressão “franchir le pas”, “dar um passo” em português.
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partes. O Um de diferença não apenas é contável, mas deve ser contado nas partes do conjunto”. É o eco deste Um que se encontrava no texto de “Subversão do sujeito e dialética do desejo”: o Um que se conta sem ser. É desse Um (a mais) que está em relação com o “ele existe” das fórmulas da sexuação que Lacan situa o Real: “où il est-là” (wiléla) [onde ele está-aí] como se expressa Lacan em “O aturdito” (LACAN, 1972/2001, p. 454). Exemplifico esse “Onde ele está-aí”: Fazer de uma mulher seu sintoma não promete, contudo, a paz e a harmonia, a tranquilidade. Muito pelo contrário, uma intranquilidade inquietante e estranha pode, com uma acuidade particular, fazer justamente surgir o seguinte: a diferença absoluta não é uma palavra vã. E tal contingência certamente faz brilhar a dobra do sujeito, a falta, interroga o amor, reativa o malogro que o sucesso mascarava, confirma o heteros com o qual o sujeito topa: é não-todo. E é também a interrogação renovada sobre o desejo: o que quer o sujeito a partir desse vislumbre perturbador? Saber se ele quer aquilo que deseja em resposta é crucial... e, além disso, não definitivo, pois ele tem até mesmo a certeza de ali estar confrontado novamente no momento do surgimento de uma próxima contingência. Confrontado com essa diferença índex da não relação e confrontado com esse “ele está-aí” do real, o sujeito tem a escolha de enfrentar isso e assumir sua consequência: 1) o saber; 2) pour-suivre [para-seguir/pro-seguir] a partir desse ponto de real; 3) assumir a barra de divisão. Confrontado, não com aquilo que não há, mas com o que há, o que ex-siste, ele pode ver interesse em responder a isso. No final das contas resolve-se aqui a questão do consentimento àquilo que exsiste. A resposta dada indica o alcance do “ele existe” das fórmulas de Lacan sobre a sexuação que aí se verificam: é a escolha da existência mais do que do ser, e é isso que mobiliza no sujeito a coragem de que ele poderá, ou não, testemunhar nas sequências. Terminar sua análise claramente não protege da contingência e do não-todo, muito pelo contrário. Assim sendo, a consequência ética implicada é facilmente dedutível – é uma ética do desejo suplementada pelo consentimento ao Real, ao impossível: apoiar-se naquilo que existe vale mais do que naquilo que existiu ou existirá. Uma ética que integra o que Lacan indica (LACAN 1971-72b/2011, p. 206) no que tange à posição feminina, entre centro (»x …x) e ausência, ou des-senso (¸x †x), entre inexistência e suplemento, integrando a oposição, a diferença entre o Há Um [Yadl’Un] e a não relação a partir do questionamento radical do sentido. Não há dúvida de que a direção do tratamento sofre efeitos disso a partir do momento em que o analista se regula sobre o nó que forma esse ternário: Há Um [Yadl’Un], não há relação sexual e “o corpo se goza”, gozo fechado, sem Outro:
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prioridade ao Real, mas não sem o simbólico para alcançá-lo. Para concluir, gostaria de tentar fazer sentir aquilo em que toca essa mudança, mudança “fina como um fio de cabelo” e, no entanto, decisiva na prática da análise e na vida, essa “segunda” função do analista. Que se prescinda do pai utilizando-se disso, no RSI e o Sinthoma, Lacan mostrou que a experiência, na verdade, desvela um para além do Édipo, do Nome do Pai e, até a père-version [pai-versão/perversão]. Essa père-version faz valer, no caso de Joyce, uma transmissão que opera a partir da função de fonação, em outras palavras, uma transmissão que põe em jogo o objeto voz como causa. Lembremos o caso relatado por Lacan na “Proposição...”, em que o analista se vê tornar-se uma voz, e também o caso de Gide, cujo desejo permanece fixado à clandestinidade devido a um defeito de humanização: um desejo não humanizado. Humanizado é um termo forte, que remete a um registro diferente do simbólico. É por isso que proporei que a análise levada depois do passe é o vislumbre, a experiência dessa humanização. E gostaria de fazer sentir aquilo que toca essa mudança, que chamarei de traço de humanidade, traço que toca a condição humana, ao humano como tal, aliás, sem dúvida, aquilo a que Lacan chamou de “as amarras do ser”. Falo, portanto, de traço de humanidade, esse traço provavelmente carregado por cada um e próprio a cada um, efeito do Um e da alíngua, mas que deve ser distinguido do traço comum apontado por Freud e destacado por Lacan, que diz respeito ao ódio e à crueldade que a covardia recobre, e que a análise reverte em coragem em certas condições, isto é, com a condição de que esse traço de humanidade tenha podido ser extraído. Traço singular, que responde de um gozo singular. Como apreendê-lo, senão fazendo-o equivaler a esse ponto de fragilidade do sujeito, a “dobra do sujeito”, para retomar o termo de Lacan, esse traço de divisão onde ele se encontra sem apoio. Para acessá-lo ainda é preciso ter podido desarranjar a defesa contra o gozo. Extrair esse traço procede, diz que o analista pode responder em termos de saber a questão, mas não diz o que o sujeito vai ou pode fazer com ele, tanto que, diante do real, esse saber deve ser inventado a cada vez... sem garantia. A análise, de saber, entrega uma resposta diferente daquela da neurose. E o analista faz sua parte: se “se sabe consigo” [“on le sait soi”], deve-se fazer emergir essa resposta do lado do analisante, para o qual ela está em espera [en souffrance]... e pode, portanto, ser ouvida. Se esse for o caso, a análise encontra-se então expandida, especialmente em seu fim. Portanto, é com esta resposta que é possível ouvir no fim do Seminário XI em que é justamente o Um que Lacan aí aponta, com sua sequência: a significação de um amor sem limite, porque ele não está fora dos limites da lei, um amor que po-
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demos dizer humildemente vivo, e onde somente ele pode viver, pois, com efeito, a vida se encontra mudada por isso: viver o que ex-siste, viver a partir daquilo que ex-siste. Para o analista, o que está em função na conduta dos tratamentos é uma relação nova com o inconsciente, uma relação transformada com a psicanálise que constitui a resposta do fim da experiência e uma outra relação com a vida, digamos, para ser mais específicos, a relação com o real da vida. O saber do psicanalista é saber sobre o sinthoma e procede do saber sem sujeito (Ibid., p. 79), isto é, do poema que ele é. Para concluir, direi que esse traço de humanidade é, na realidade, aquilo que protege da dor de existir, é aquilo que dá essa saída para o sujeito não se precipitar no furo (saída melancólica) ou de permanecer ali fascinado (tratamento interminável), mas, pelo contrário, de ir ao encontro dos inesperados. É fazer viver “la volée de l’humanité” [o voo/roubo da humanidade] para retomar o termo de Hélène Cixoux, aquilo de que cada um tem propensão a se desviar. Que ele perceba que o voo [volée] volta em espiral, e o traço de humanidade pode então viver no centro do sujeito que ele divide. Em outras palavras, para viver, o tratamento do real da vida é requerido: ela ex-siste, a vida causa problema, o gozo do ser vivo também, mas podemos aplicar-lhe a fórmula que Lacan deu para o real: onde ela está-aí. Acontece o mesmo para o psicanalista: é de repente [au vol] que ele pode ouvir e soltar sua interpretação. Nas sequências que disso resultam poderá, então, concluir-se que há (ainda um “Há” [Y a]) que houve [il y a eu] ato e que houve psicanalista [il y a eu du psychanalyste]. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
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O desejo no fim e na(s) sequência(s)
referências bibliográficas LACAN, Jacques (1967a). “Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1967b). “Discurso na Escola Freudiana de Paris” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1967c). “O engano do sujeito suposto saber” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1970). “Radiofonia” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1971-72a). Le séminaire, livre 19: ... ou pire. Paris: Seuil, 2011. . (1971-72b). Le savoir du psycanalyste, inédito, Leçon du 4 mai, 1972. . (1972). “O aturdito” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1975-76). Le séminaire, livre 23 : Le sinthome. Paris: Seuil, 2005.
resumo
Nos anos 1970, Lacan rompe com uma concepção ontológica da experiência e promove o “Yadl’un” [Há um] que obriga a repensar o desejo, o gozo vindo para o centro dos debates. “Yadl’un” responde a “não há relação sexual”, o que não acontece sem promover a questão da existência (conferir as fórmulas da sexuação). Correlativamente, a doutrina do pai e a do sintoma sofrem uma profunda transformação, que vai até fazer do próprio pai um sinthoma. Os efeitos sobre a psicanálise, em particular sobre a conduta dos tratamentos, são importantes e giram em torno de três termos: gozo singular, traço de singularidade e traço de humanidade. Uma nova clínica e um inconsciente que convém chamar real se deduzem disso: é o tempo do falasser.
palavras-chave
Yadl’un, sinthoma, traço de humanidade.
abstract
In the 1970s Lacan breaks up with an ontological conception of the experience and promotes the “Yad’lun”, which obliges to reconsider the desire, the jouissance moving to the heart of the debates. “Yad’lun” answers to “There’s no sexual relationship”, which does not take place without promoting the question of the existence (check the formulae of sexuation). At the same time, the doctrine of the father
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and that of the symptom undergo a deep transformation which will make the father himself a sinthome. The effects on psychoanalysis, particularly on the way of the treatment is conducted, are important and center around three terms: singular jouissance, a singularity trace, and humanity trace. A new clinic and an unconscious which suit to be called real are deduced from this: it’s time for the parlêtre.
keywords
Yadl’un, sinthome, stroke of humanity.
recebido 12/01/2015
aprovado 20/04/2015
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ensaios: a escolha do sexo
Homensexual e heteridade Antonio Quinet Lacan usa o termo hommosexuel, com dois “emes”, e não com um “eme” só da grafia correta de homosexuel, para mostrar que essa palavra é derivada de homme, homem, fazendo a equivalência entre o hommosexuel e o semblable, o semelhante do estádio do espelho, ou seja, o pequeno outro. Dessa forma, a tradução correta de hommosexuel é homensexual ou Homo sexualis como se diz Homo sapiens.1 Assim, o amor do homem pelo homem (seja mulher ou homem) é homossexual. Esse deslocamento muda a perspectiva de abordagem da homossexualidade e a generaliza como o amor pelo semelhante. Homensexual é o amor do mesmo.
Monólogo de almor, de Marie Caroline Amo a alma. Acho que todos devem amar a alma. Almemos! Aliás, cada um que faça o que quiser! Eu, eu almo a alma. Minha alma alma a alma. Não é essa alminha desencarnada que Platão inventou e que a Igreja Católica se apropriou para fazer comércio de indulgências. Não! Essa é a alma que vocês acham que podem salvar em troca de algumas orações e de algumas boas ações. Essa alma, queridos, não existe! É pura alegoria da rejeição do corpo! A alma que eu almo é a forma de matéria feita corpo. É a alma que eu encontro no meu parceiro, na minha parceira. É a alma que não tem sexo, mas não deixa de ter corpo. É a alma que quando encontro no outro me faz amar, me faz almar. Ai essa alma! Ai meu almor! Quando eu a encontro eu almo. Quando a encontro me encontro. Eu mesma! Moi-même! Eu mesmo! Je même! Eu me mesmo! Je m’aime! Minha alma é meu amor! Me amo na sua minh’alma! E saio, saio, saio de mim mesmando, em si mesmada e me amo, te amo, me amo, me mesmo, ti mesmo. 1 Atenção para a tradução errada na edição brasileira de Outros Escritos (LACAN, 1973/2003, p. 450), assim como de O Seminário, livro 20: Mais, ainda... (LACAN, 1972-73/1982, pp. 113-4), perdendo-se toda a importância desse termo em Lacan. “(...) Tanto que, com efeito, a alma alma a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta neste caso. A elaboração de que essa transa resulta é homossexual (homensexual), como é perfeitamente legível na história” (p. 113). E, em seguida: “(...) a histeria, ou seja, bancar o homem, como eu disse, por serem por isso, hommosexuelles ou homo sexualis ou fora-do-sexo (...)” (p. 114).
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QUINET, Antonio
Lacan (1973/2003, p. 450) utiliza em “O Aturdito” também o hommo (com dois emes) na palavra homologar: “(...) se homenloga que todos os homens são mortais”. Lacan redefine que o homo é o próprio do humano que tem amor erótico pelo semelhante – seu igual, o outro especular. Lacan, ao equivaler o homo a homem, aponta o equívoco entre o semblante (semblant, o faz-de-conta) e o semelhante (semblable, parecido): estatuto do homem é justamente o do (hommosexué) – homensexuado ou homo sexualis, aquele que ama a quem se parece. O Heteros “(...) erige o homem em seu estatuto, que é o de Homo sexualis (hommosexuel)” (LACAN, 1973/2003, p. 468). Longe de contradizer ou de opor hétero e homo, Lacan os articula e faz do Heteros a condição da sexualidade humana. Com essa nova significação das palavras relativas à escolha do parceiro de sexo, Lacan indica que para haver o real do sexo, enquanto tal, é preciso de Heteros, enquanto que o amor narcísico é homemsexual. Em outros termos, todo ato sexual – seja homem com homem, mulher com mulher ou homem com mulher – ocorre devido à Heteridade. Homo Heteridade
Amor pelo semelhante gozo do diferente
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Com essa acepção, Lacan põe por terra tanto a concepção da mulher como um “segundo sexo”, quanto as teorias sobre a homossexualidade como uma esquiva da confrontação com o Outro sexo. Como situar as homossexualidades a partir das fórmulas da sexuação? Nada impede que um homem, se inscrevendo do lado do todo fálico (dito homem), tenha uma escolha de objeto homossexual ou heterossexual, assim como também se inscrevem desse lado, diz Lacan, as mulheres histéricas, que também podem ser hetero ou homossexuais ou ainda bissexuais. Um homem inscrevendo-se do lado do não-todo (dito mulher), na posição de La barrado F, pode escolher seu parceiro do lado do todo fálico a partir do significante fálico (…) encontrado no corpo desse outro ou em posição social, ou em qualquer outro atributo fálico. Essa relação (La barrado F → …) pode fazê-lo feminizar-se, como aparece na caricatura do afeminado. Ele pode também, ao se inscrever do lado do todo fálico como sujeito desejante ($), e portanto viril, escolher seu parceiro reduzindo-o ao objeto a localizado no Outro lado. A cultura gay acabou tipificando e caricaturando essa posição na exageração dos caracteres viris até os chamados barbies. A feminização e a virilização estruturais é devida às posições na partilha do sexo. Há também um tipo de prática homossexual que, longe de constituir um casal ou uma parceria erótica, é feita de encontros fortuitos e anônimos em que o sujeito só se interessa pelo pênis, não importa de quem,
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Homensexual e heteridade
situando assim essa situação inteiramente do lado do todo fálico ($¯…). Da mesma forma o homossexualismo feminino. Uma mulher pode situar-se no lado do todo fálico e eleger sua companheira como objeto sexual ($¯a). A caricatura dessa posição é o sapatão, a mulher virilizada. Essa posição reproduz o par mãe-filha, na medida em que essa falta pode representar o objeto a para a mãe. Ela pode também situar-se do lado do não-todo La barrado F e buscar o falo (…) do lado do todo fálico – são as mulheres que procuram a proteção de outra mulher como se busca um pai ou a mãe fálica – figuras do Outro que tem o falo. São as mulheres que, como a jovem homossexual, diz Freud, condensam nessa escolha as tendências homossexuais e heterossexuais. Há mulheres que procuram na outra mulher o Outro gozo (La barrado F → S (%)) dentro de uma relação que não é propriamente sexual no sentido do encontro erótico de corpos, pois o falo não se encontra presente. É aí uma relação fora-do-sexo. Muitos casais femininos se formam em uma relação sem sexo e de autêntico amor. A partir das fórmulas da sexuação podemos depreender duas lógicas distintas: a lógica do Um e a lógica da Heteridade (QUINET, 2012). A primeira é a lógica fálica do Um que constitui um universo a partir da exceção, formando, portanto, um conjunto fechado, uma totalidade, um todo. Articula assim o UM com o todo do batalhão fálico dos homens. Eis a lógica da razão fálica. A segunda lógica, a que Lacan propõe para se pensar o sexo feminino, é uma lógica distinta da lógica do Um e do todo. O não-todo do lado feminino caracteriza o Heteros – outro em grego. A lógica do não-todo é a lógica da Heteridade. Por não ter o quantificador lógico da exceção que contraria a função fálica, a lógica do Heteros não constitui um Universo, não se fecha em uma Heteridade, ou seja, não faz grupo nem massa organizada. Não é uma lógica da “medida por medida”, da competição, da luta para saber quem tem o maior, quem tem mais. Heteros é o âmbito do incomensurável. E do um a um, um mais um mais um que não se fecha em um todo. A lógica do gozo Outro nos abre para as declinações do Heteros como heteronomia, heterodoxia, heterogeneidade e até mesmo heterossexual, o qual Lacan (1973/2003, p. 467) define como “(...) aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio”. Essa frase de Lacan em “O aturdito” é suficientemente ambígua para não se fechar nenhuma porta da diversidade sexual. Assim, “aquele” pode ser tanto um homem, biologicamente falando, ou uma mulher, sejam eles homo ou heterossexuais no sentido da escolha objetal. Assim como pode ser de qualquer sexo quem está no lugar de “mulheres” desta frase. A frase aponta, portanto, que o amador pode ser XX ou XY e que “mulheres” também podem ser XX ou XY sendo esta posição definida por aquele que é amado, independentemente do sexo. Pois é o Heteros que suporta o sexo, seja ele como for. Para haver sexo é necessário a diferença do outro – não se faz sexo com o mesmo.
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QUINET, Antonio
Heteros se opõe ao poder instituído da lei e das normas, ditado pelo Um do significante-mestre da lógica fálica. O Outro, em relação ao instituído, é sempre o Diferente. Eis o que caracteriza a Heteridade. E a Homensexualidade é o amor narcísico, o amor pelo Mesmo e não pelo Diferente. Por outro lado, a relação de objeto própria do sujeito desejante, independentemente do sexo, está sempre no lado do todo fálico, ou seja, só se deseja um objeto como homem. O que é outra forma de reafirmar com Freud que a libido é masculina. Como vemos, em todos esses casos, para haver sexualidade entre homem e mulher, ou entre dois homens ou entre duas mulheres, é preciso haver esse elemento hetero que é a relação entre um elemento do todo fálico com um elemento do não-todo fálico. A conclusão: A homossexualidade não existe. Para haver sexo, precisa de ambos os sexos. Estamos falando aqui de posição sexuada. A sexualidade do ser falante é sempre da ordem do Heteros, para além da diferença anatômica dos sexos. A Heteridade comanda a sexualidade e coloca em circulação o “heterotismo”. Sempre serão necessários dois sexos para que o sexo exista. Mais além da escolha sexual, a experiência analítica nos leva a questionar: será que existe uma fixidez em uma posição ou outra das fórmulas da sexuação? O que a clínica nos mostra é que o ser-para-o-sexo pode circular entre as posições como o faz nos discursos que constituem os laços sociais. Eis por que o analista, seja XX ou XY, ocupa uma posição que tem suas afinidades com o lado não-todo das fórmulas da sexuação.
referências bibliográficas
LACAN, J. (1973). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 448-97. . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. QUINET. A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.
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Homensexual e heteridade
resumo
Este artigo pretende demonstrar, com Lacan, que A homossexualidade não existe, pois para haver sexo, precisa de ambos os sexos. Tomando os textos “O Aturdito” e o Seminário Mais, ainda, de Lacan, ambos do início dos anos 1970, demonstra-se, por meio da fórmula da sexuação, que não importa de que lado se está na partilha dos sexos, a sexualidade do ser falante é sempre da ordem do Heteros, para além da diferença anatômica dos sexos. Para haver sexualidade entre homem e mulher, ou entre dois homens ou entre duas mulheres, é preciso haver o elemento hetero que é a relação entre um elemento do todo fálico com um elemento do não-todo fálico.
palavras-chave
Heteros, semblante, homossexual, sexo.
abstract
Based on Lacan, this article seeks to demonstrate that homosexuality does not exist, as for sex to take place, both sexes are needed. Taking the texts “L’Étourdit” and in the “Seminar Encore”, both by Lacan, from the early 1970s, it is demonstrated through the formulae of sexuation that it does not matter on which side in division of the of the sexes one is, the sexuality of the parlêtre is always of the order of Heteros, beyond the anatomical difference of the sexes. In order for sexuality between man and woman, two men, or two women to exist, the presence of the hetero element is crucial, which is the relation between a fully phallic element and a non-fully phallic one.
keywords
Heteros, semblant, homosexual, sex.
keywords 05/06/2015
keywords 10/08/2015
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Escolha do gênero e escolha do sexo1 A lógica do fantasma em 2014 Gabriel Lombardi É somente no sexual que a síntese se coloca como contradição. Søren Kierkegaard, Begrebet Angest [Tratado da angústia, 1844. É por aí que ele começa sua crítica à ficção do tudo-saber hegeliano, em que todas as mediações (Aufhebungen) seriam possíveis]. A religião, a filosofia, a ciência e a teoria sociológica dos gêneros mostram uma surpreendente convergência em um ponto preciso: a rejeição da abordagem lógica do sexo. A religião monoteísta suprimiu o sexo das considerações teológicas, o laço entre os filhos e o pai não dizendo respeito à mulher, que foi substituída por um Espírito dito “Santo”, como podemos constatar desde o tratado agostiniano sobre o laço pai-filho, De Trinitate. A filosofia não leva em conta a diferença entre os sexos, e mesmo os filósofos de formação lacaniana escamoteiam isso reduzindo a abordagem lógica de Freud e de Lacan a uma ontologia precária dos termos compatíveis com o fantasma masculino. Zizek, por exemplo, reduz a mulher a um paraser [parêtre] que envolve um vazio, e que quer ser amado por aquilo que ela não é, por oposição ao homem, que seria alguém que quer ser amado por aquilo que é (ZIZEK, 1995). Temos também as teorias dos gêneros, de Judith Butler e Eve Kosofsky, cuja ascensão extraordinária nas últimas décadas sintetiza a bem dizer a resposta dos outros discursos à conclusão lacaniana de que não há relação [rapport] sexual inscritível na estrutura. Com efeito, tudo o que os outros discursos – o sociológico, o universitário, o discurso médico, e até mesmo o discurso de contestação histérico de fim de século ou novo milênio – produziram nas últimas décadas vai no sentido de tamponar essa descoberta das considerações lexicais, morais e políticas que camuflam o impasse sexual em que Freud e Lacan situam o mal-estar da civilização e também todas as possibilidades sublimatórias que a linguagem abre ao 1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris (França).
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falasser. Essa reação massiva se produz, é claro, no âmbito da escalada do discurso capitalista neoliberal que rejeita a castração oferecendo a todos os problemas a solução – supondo que se tem dinheiro suficiente para pagá-la, como diria Turing. Essas soluções não são analíticas, claro, mas identificatórias, ideológicas, morais, legislativas, cirúrgicas, farmacológicas. Os discursos sobre o gênero, assim, colocaram-se a serviço do empuxo-ao-gozo do capitalismo, que incita tanto aquilo que Colette Soler chamou de narcinismo, quanto aquilo que Freud e Lacan nomearam como perversão, agora globalmente permitida. De fato, quase todas as condutas outrora consideradas perversões foram desmedicalizadas e admitidas no âmbito legal dos estados ocidentais. Por isso, o mal-estar com relação ao sexo assume a forma de sintoma social, que, em defesa paradoxal dos direitos a uma normatividade nova, nutre em feedback o discurso do capitalismo (suas cirurgias, seus tratamentos hormonais, farmacológicos e “cosméticos”, suas políticas de venda que reúnem consumidores em redes sociais virtuais compatíveis com o anonimato). O Facebook, por exemplo, acaba de anunciar que daqui por diante vai permitir que seus usuários nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Espanha e também na Argentina escolham seu gênero. Daqui por diante se se quiser personalizar seu perfil, não haverá mais duas opções como antes (homem/mulher), mas cinquenta e quatro, dentre as quais temos, em espanhol, “trava”, “torta”, “puto”, “transgênero”, “poliamorista”, “gay”, “andrógino”, “cissexual”, “pansexual homem”, “pansexual mulher”. Essas expressões, que antes eram injuriosas, hoje são os termos escolhidos como particularidades identitárias. Essa lista surgiu de um consenso entre o Facebook Argentina e as duas principais organizações que trabalham para “a diversidade sexual” no país, a CHA (Comunidade Homossexual Argentina) e a FALGBT (Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales y Trans), que, por sua vez, apresenta-se precisamente nos seguintes termos: “é uma rede de organizações que trabalhamos em todo o país para a igualdade plena para o coletivo da diversidade sexual”. Passa-se da terceira pessoa (“é uma rede) para a primeira pessoa de um plural bem particular (“nós trabalhamos”). O CEO do Facebook, cujo valor de mercado recentemente atingiu um nível recorde que conduziu a empresa ao valor de quase 200 bilhões de dólares, nega categoricamente que essa nova ferramenta seja uma melhor plataforma de publicidade-alvo. Ele diz que isso está ligado, antes, ao seu engajamento em “conectar as pessoas com suas verdadeiras identidades” – identidades digitalizadas. É o sonho de Turing realizado! Há, no entanto, duas condutas com relação ao sexo que felizmente permanecem interditadas para a maioria dos discursos, dois casos de que a psicanálise também tem algo a dizer: a pedofilia, enquanto ataque extremo às condições mínimas de
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uma subjetivação digna, e a não incidência entre os dados identitários com relação ao sexo e o juizo íntimo daquele que os porta, que os porta e não os suporta. Mesmo o DSM 5 dedica um capítulo inteiro aos Gender dysphoria nas crianças, os adolescentes e os adultos, disforia considerada patologia se, e somente se, ela persistir ao menos por seis meses. A máxima lacaniana não há relação sexual produz reações adversas e também mal-entendidos dentre os próprios analistas lacanianos. Acredita-se, por exemplo, ser possível reduzir a escolha do sexo a três etapas “lógicas, não cronológicas”. Quando os psicanalistas falam dessa forma é, para mim, o indício certo de que eles estão introduzindo uma temporalidade reversível e, portanto, imaginária. O que caracteriza o tempo real, o real do tempo, é, ao contrário, sua irreversibilidade. Geneviève Morel, por exemplo, ordena a sexuação nos três tempos a seguir: 1) A constatação do sexo anatômico; 2) O discurso sexual do Outro que opõe o sexo anatômico àquilo que é percebido, e até mesmo determinado pelo entorno; 3) O verdadeiro processo da sexuação, que deixaria esperanças, por exemplo, aos analisantes homens que querem se beneficiar do não-toda como efeito da análise. Não somente há neste tipo de elaboração concessões ao Chronos que não procedem da lógica, mas também desconhecimento das coordenadas freudianas intransponíveis da entrada de uma menina nas questões do sexo. A anatomia é determinante, e a diferença não é pequena: em um só ato, ela viu, ela compreendeu, ela julgou e decidiu. “Ela viu isso, sabe que ela não tem e quer tê-lo”, resume Freud (1925/s.d.) em seu texto “Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica”. E isso não se reduz a uma questão de anatomia imaginária ou natural. O corte em questão é outro, o de uma tomada precoce de posição com relação ao falo como consequência (senão da ex-sistência do pai) da castração linguageira. Essa posição diferenciada com relação ao órgão, tornado organon por efeitos do discurso já presente na infância, tem como consequência que o acesso ao Édipo e à castração, no caso de uma menina, coincidam. Não há, portanto, o tempo intermediário da perversão que caracteriza a defasagem entre a entrada e a saída do Édipo no macho – saída que, se houver, caso neurótico, se produz por identificação aos traços ideais faltosos, sintomáticos, do pai. O “não ter” do engage anatômico protege a menina de um outro corte, dito fisio-lógico, isto é, de lógica daquilo que se manifesta, que é simbolicamente real no homem. Falo do orgasmo do macho na medida em que, de todas as angústias, é a única a se completar (LACAN em seu Seminário A angústia, 15/05/1963), de realizar a castração pela externalização [mise au dehors] do instrumento do gozo no momento preciso do acesso ao gozo, que permanece, então, fora do corpo.
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E aí está também, como sempre, a confusão que faz suplência à relação sexual. A clínica nos diz desde Freud que um orgasmo muito prolongado pode ser muito angustiante para o homem, que um orgasmo prematuro também, e que um orgasmo justo, que é satisfatório nos tempos peremptórios do macho, produz o corte que dá uma resolução transitória para ele, mas, ainda assim... os tempos de uma mulher não coincidem necessariamente com os de seu parceiro. Seja porque os tempos requeridos para a satisfação não são os mesmos para ela, seja porque a brevidade dos ciclos coiterativos o obriga em média a uma frequência maior do que a sua parceira mulher. Não há relação sexual temporariamente garantida compassada, bem ritmada, como bem sugeriu Martim Amis em sua breve-longa narrativa “Quero calcular quantas vezes” (AMIS, 1998/2001). Ou seja, que a anatomia em questão não é somente imaginária nem de autópsia, mas de irreversibilidade das escolhas e de fisiologia que implicam uma heteridade definitiva. É por isso que: – no macho há outra lógica do corte que se constata o mais tardar na juventude, quando o emprego do organon castra-lhe o acesso ao gozo do corpo-Outro; – o nãotoda suposto no macho é sempre suspeito de père-version [pai-versão/ perversão], isto é, uma forma de desdobramento quanto mais enquadrado na lógica fálica; – em uma mulher, pelo contrário, é sempre a frigidez que é suspeita; – tudo isso deixa pouca esperança para a viragem trans analiticamente orientada, salvo que o analista não desconhece que a liberdade de escolher uma mudança de sexo é reservada à psicose; – as elucubrações quadriculadas sobre o não-toda elidem, portanto, a vocação prematura que cada um experiencia para seu sexo (LACAN, Seminário ...Ou pior, 08/12/1971). O senso comum foi alterado desde a descoberta freudiana; ela teve consequências que ressoaram no campo lacaniano enquanto campo do gozo. A abordagem dita lógica de Lacan e suas conclusões sobre a sexuação não se distanciam das intuições de Freud, mas, pelo contrário, apoiam-se nelas. É verdade que o discurso capitalista mudou as coisas, que a foraclusão da castração atrai respostas em que a singularidade se resolve em agrupamentos anônimos de autogenerados que encontram uma defesa em sua “luta para a igualdade plena” no “coletivo da diversidade sexual”, isto é, na terceira de sempre, a terceira imaginária do sexo, hoje assistida pela medicina, pela psicologia, pela sociologia, pela análise do discurso etc., e que substitui a terceira lacaniana do real. Ora, se o analista quer receber àquele que chama a si mesmo de queer, ou gay, ou trans, lésbico ou lésbica, não deveria esquecer as coordenadas em que seu discurso analítico se assegura. Se a escolha de gênero é um direito de cidadão, a escolha de sexo
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tem, por outro lado, limitações impostas por escolhas já feitas, em que o falasser autorizou-se a si mesmo, sim, mas mais frequentemente não sozinho, não sem o apelo de amor ou de respeito a alguém que lhe transmitiu algo com relação à função falo/castração: seja de ter encarnado a exceção para seu filho, seja de ter admitido que sua filha possa não tomá-lo completamente como exceção. O que quer dizer que a distinção neurose-perversão-psicose se sustenta para o homem, e que a distinção neurose-psicose na mulher se sustenta firmemente na clínica das consequências da não relação sexual. A père-version em uma mulher sendo, antes, a ser reconduzida a seu lado mãe, e não mais a práticas das quais ela não faz senão inscrever sua heterossexualidade, de amar mulheres, por exemplo, seja para desafiar o pai (caso histeria), seja para atualizar a foraclusão de seu nome em outros tipos de reação às coordenadas da estrutura.
O feminino: as quatro vias da procura em Lacan Quero voltar às vias que Lacan experimentou para responder às questões que o feminino coloca ao psicanalista. 1. A primeira é bem conhecida, trata-se da questão histérica, e sua exploração já foi iniciada por Freud no início da psicanálise. O que é ser uma mulher? é a questão a que Dora se coloca, coloca ao casal formado por seu pai e a Sra. K, e coloca também a Freud segundo Lacan, e a resposta é procurada do lado do desejo, do lado daquilo que se passa entre o parceiro e a mulher sobre essa vertente do desejo. Nessa questão do desejo feminino, Freud se deixou guiar por suas analisantes histéricas, ainda assim, porém, sem chegar a uma resposta “satisfatória”. Was Will das Weib?, teria perguntado Freud a Marie Bonaparte,2 questão que Jones, seu biógrafo, traduziu piamente para o inglês sob a forma de “What does a woman want?”, O que quer uma mulher? Lacan retoma essa questão várias vezes em seu seminário, até concluir que era preciso tomá-la como ela havia sido traduzida por Jones, porque nada indica que se possa fazer de A mulher, das Weib, algo universalizável. 2. A segunda via é a da abordagem perversa do gozo feminino. Ela foi explorada por Lacan particularmente em seu Seminário A lógica do fantasma, em que ele enuncia categoricamente que se colocar a questão do gozo feminino já é abrir a porta de todos os atos perversos. Esse ato, na medida em que diverge do genital, tem, no entanto, algo a ver com o ato sexual. O que caracteriza essa abordagem 2 “The great question that has never been answered, and which I have not yet been able to answer, despite my thirty years of research into the feminine soul, is ‘What does a woman want?’”. Sigmund Freud: Life and Work (Hogarth Press, 1953) by Ernest Jones, Vol. 2, Pt. 3, Ch. 16. In a footnote Jones gives the original German, “Was will das Weib?”.
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é o da “negativação da função de um órgão, este órgão por onde a natureza, pela oferta de um prazer, assegura a função copulante” (LACAN, Seminário A lógica do fantasma, 07/06/1967). É por essa via que o “valor”, isto é, o fictício, o mais-degozar em que se coloca assim a questão do gozo, que esse gozo entra em jogo sob a forma de questão. Se essa interrogação, “legitimamente dita perversa” para Lacan, diz respeito ao ato sexual, é somente porque a tomada, o modelo que ela nos dá, é o das tentativas de solução que fazem suplência àquilo que possa se passar no nível inatingível do corpo da mulher, pela instauração de um valor de gozo. E essa instauração se apoia, é claro, pela colocação em valor de outros órgãos prelevados do corpo ($ ¯ a). O organon da copulação, assim negativado, confunde-se com a cópula gramatical por meio da qual o falasser macho resulta interessado não somente em tê-lo, mas também em sê-lo. Essa abordagem [abord] do gozo feminino, no fim das contas, não é nada além de um a-borda, manter-se à borda sem a ele se misturar, na heterofobia radical que caracteriza toda perversão, não somente a homossexualidade masculina, mas também todas as perversões em que o objeto a erige o falo como função negativada, castrativa, fetiche que barra o acesso ao sexo Outro, o sexo perigoso de um corpo cujo gozo feminino se apoia, portanto, em respostas em curto-circuito, que substituem o gozo Outro por um valor de gozo. É nesse quadro que o falasser, por ser macho [d’être mâle], chega ao ser, e até mesmo ao mauchoser [mâlêtre]: por ser afetado por uma função castração que o leva [mène], e até mesmo o noúmena [noumène],3(NT) a ser a pura metonímia do verbo que faz função de cópula na gramática. 3. A via mística. Em seu Seminário Mais, ainda, Lacan assinala inicialmente que gozar do corpo participa da ambiguidade significante que é inerente ao corpo, enquanto substância cuja corporeidade está fundada no significante. Com efeito, o sintagma “gozar do corpo”, que pode ser lido como um genitivo objetivo em uma leitura sadeana (gozar do corpo como um objeto), pode, pelo contrário, despertar uma nota extática, de genitivo subjetivo, em que seria o corpo-Outro aquele que goza. No primeiro caso, trata-se de um gozo gramaticalmente restrito a um valor de gozo (gozar de...); em um outro, trata-se de um gozo que se destaca do objeto, é o gozo de um corpo que goza intransitivamente. Esse gozo extático, na verdade, é subjetivo apenas por atribuição linguística. O gozo feminino tem esse elemento em comum com o gozo místico, etimológico e praticamente fechado ao reconhecimento do sujeito: é possível experimentá-lo sem admiti-lo. Nesse ponto, podemos ainda ler nesse seminário parágrafos 3(NT) Referência ao númeno ou noúmeno, conceito filosófico que corresponde à realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva necessariamente parcial em que se dá todo o conhecimento humano.
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memoráveis: “Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas” (LACAN, 1972-1973, p. 100). “Louvado seja o Senhor, que me libertou de mim mesma”, escreve Teresa d’Ávila. Esse desdobramento entre gozo místico e mim mesma não tem nada a ver com o tratamento da divisão subjetiva $ na passagem ao ato perverso, que resolve essa divisão transferindo-a ao parceiro (a ¯ $). 4. A quarta via é a abordagem lógica. Gostaria somente de indicar que a leitura lógica de Lacan permite uma localização não idealizada da sexualidade feminina, não reduzida a um valor, isto é, que não pretende apreendê-la como objeto de um conhecimento ao qual ela se subtrai, muitas vezes facilmente, por acomodação ao fantasma do macho ou do teórico. O estilo da abertura do Seminário Mais, ainda é coerente com isso e não desprovido de método. “Penso em vocês”, diz Lacan, “isto não quer dizer que penso vocês” (Ibid., p. 142). Convite aos analistas a desobstruírem as orelhas do objeto a: para que seu desejo seja advertido por aquilo que uma mulher no enigma do gozo e do desejo que ele coloca não possa se apreender do ponto de vista do discurso do inconsciente enquanto variante atual do discurso do mestre – laço social que induz e determina a castração. Parece-me, portanto, decisivo enquanto analista saber respeitar a heteridade em jogo no gozo feminino, que difere radicalmente daquilo que se maquina na polimorfia aparente do valor perverso do gozo, que oculta, mas também mantém sempre seus limites e sua fixidez. O lado freudiano não castrável das mulheres permite-lhe uma outra liberdade com relação ao gozo. É o que justifica que a satisfação de aparência mística, fechada, de que uma mulher pode gozar, seja elaborada por Lacan a partir de uma intersecção de conjuntos abertos. Esta lógica não é menos válida para as possibilidades epistêmicas de uma mulher, que, enquanto tal, é “Outro para si mesma”. É o caso em que mais radicalmente do que em qualquer outro, a diferença em jogo na análise não é relativa, mas absoluta. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
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referências bibliográficas AMIS, M. (1998). “Quero calcular quantas vezes” In: Água pesada e outros contos. São Paulo: Cia das Letras, 2001. FREUD, S. (1925). “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” In: Obras completas de Sigmund Freud – versão digital. Rio de Janeiro: Imago, s/d. LACAN, J. (1962-63). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. . (1966-67). O seminário, livro 14: A Lógica do fantasma, inédito. . (1971-72). O seminário, livro 19: ...Ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. ZIZEK, S. (1995). “La voix dans la différence sexuelle” In: Revue de La Cause Freudienne. 31. Paris, 1995, pp. 82-92.
resumo
Este trabalho trata da divergência entre a perspectiva da escolha de gênero de que se fala nos estudos sociológicos há algumas décadas e a perspectiva já clássica da escolha de sexo na psicanálise. Essas duas vias de pesquisa e de engajamento ético são contrastadas. A escolha do gênero é um direito do cidadão ali onde o espírito e os dispositivos sociais do capitalismo o levam. Em contrapartida, na análise freudiana e lacaniana, que leva em conta diferenças anatômicas e psicológicas, a escolha de sexo não é plural, mas binária, para dar seu lugar lógico e fundamental à não relação sexual. Mais particularmente, quatro vias de pesquisa sobre o feminino no ensino de Lacan são esboçadas: a questão histérica, a interrogação perversa, a via mística e a exploração lógica.
palavras-chave
Gênero, sexuação, igualdade, diferença, Lacan.
abstract
This work focuses on the divergence between the perspective of gender choice introduced by sociological studies in recent decades and the already classical perspective of sex choice from a psychoanalytical point of view. We consider and contrast these different ways of research and ethical engagement. The gender choice is a citizen’s right where the spirit and social devices of capitalism will take him. By contrast, in Freudian and Lacanian analysis, which takes into account anatomical and physiological
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Escolha do gĂŞnero e escolha do sexo
differences, sex choice is not plural, but binary, in order to give its logical and fundamental place to the non-sexual relationship. In a more detailed perspective, four research pathways on the feminine in Lacanian teaching are outlined: the hysterical question, the perverse interrogation, the mystical path, and the logical exploration.
keywords
Gender, sexual differentiation, parity, difference, Lacan.
recebido 13/04/2015
aprovado 20/04/2015
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A escolha do sexo não vai sem dizer1 O mistério do dois Françoise Josselin “O que determina a escolha do sexo não é, sequer, um saber, é um dizer” (LACAN, 1973-1974/inédito, p. 129). Lacan acrescenta, em seu Seminário Les non-dupes errent, que “neste mundo, feito de qualquer jeito, nada permite, em um ou-ou insustentável logicamente, que tudo aquilo que não é homem seja mulher, e vice-versa, que aquilo que decide não é nada além do que esse dizer que se lança no furo da carência entre os dois sexos” (Ibid., p. 130). O que fazer, então, para fazer suplência a esse “mistério do dois” (Ibid., p. 143), senão inventar mesmo esse saber inconsciente em todo encontro primeiro com a relação sexual, autorizar-se a inventá-lo. Se Lacan aproxima o ser sexuado e o psicanalista no “autorizar-se”, é porque ele estabelece um elo entre o gozo fálico e a alíngua. Já que a diferença sexual não está inscrita no inconsciente, que não há, portanto, essência do masculino e do feminino, que o falo é um semblante, os sujeitos têm a escolha de fazer argumento à função fálica, de se acomodar do lado todo ou não-todo da sexuação. Mas todos eles têm escolha? Será que o drama de Adélaïde Herculine, dita Alexina – depois Camille, e por fim, Abel Barbin – é o de ter sido registrada no cartório e, ao mesmo tempo, ter sido educada como menina em um meio exclusivamente feminino e fortemente religioso até a idade de vinte e dois anos, e que a medicina e em seguida a justiça retificarão sua identidade sexual, ou o drama se deduz da lógica do não-todo? Nascida em 1838, depois de uma infância e de uma adolescência protegidas, ele se suicida aos vinte e nove anos em um estado de grande miséria, deixando escrita uma autobiografia intitulada “Mes souvenirs” [Minhas memórias]. Esse testemunho faria muito barulho no século XIX e influenciaria o olhar, tanto médico quanto jurídico, sobre o problema bem antigo da identidade sexual e do hermafroditismo. 1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris (França).
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Em 1950, Robert Stoller introduziu o conceito de “gênero” diferente de sexo anatômico, conceito do qual se apropriaram as feministas antes que hermafroditas e transexuais fossem rebatizados como “intersexuais”. Lacan aconselha a leitura de Stoller, menos pelo “gênero”, o seu achado que, diz ele, não é nada além do que os termos homem e mulher, e mais pela interessante coleta de informações de casos de transexualistas, mesmo que Stoller dela eluda a questão da psicose (LACAN, 1970-1971/2006, p. 31). Escolhi, para falar dessa garota, filha de Hermes e Afrodite, o prenome de Camille, dado de forma intuitiva por Mme P., a diretora da escola em que, depois de uma infância e uma adolescência em um meio discreto, monossexuado, de diversos conventos, Camille exerceria uma função de diretora de estudos. Michel Foucault descobre nos Annales médico-légales [Anais médico-legais] as Memórias conservadas em parte por um eminente médico-legal, o doutor Ambroise Tardieu. Michel Foucault fica fascinado por esse testemunho, único em seu gênero, do estranho destino de uma mudança de identidade e suas consequências dramáticas. Ele faria o prefácio da publicação de Herculine Barbin, dite Alexina (FOUCAULT, 1978/2014), com um texto que pronunciaria no Collège de France, “O verdadeiro sexo”, defesa de um mundo sem as amarras da identidade sexual. As Memórias escritas por Camille descrevem longamente a imensa dor de um paraíso perdido, o do gineceu em que ela havia crescido na ignorância da diferença entre os sexos. “A calma deliciosa das casas religiosas... a pureza dos corações” lhe apareceriam posteriormente como “visões celestes” no horror de sua curta vida como homem. A puberdade vai proporcionar um mau encontro. “Essa imensa dor que me tomou ao sair da infância, nessa idade em que tudo é belo... essa idade não existiu para mim. Desde essa idade eu tinha um distanciamento instintivo do mundo (do todo fálico) como se já tivesse podido compreender o que teria que viver ali como um estranho.” Ela se descreve como tímida, sem graça, com ares “bruscos”, isto é, masculinos, isolando-se em seus livros e tendo, contrariamente aos outros, pouco gosto pelos trabalhos com a agulha. Mas curiosamente, ela suscitava tanto da parte de suas educadoras como de suas famílias adotivas muito amor, e até mesmo fascinação, talvez por sua inteligência, mas pode-se supor que também pela estranheza de sua diferença. Ela percebia justamente uma certa interrogação do entorno, mas fora a amenorreia e uma pilosidade normal, ninguém – nem ela mesma – parecia preocupar-se com isso. Ela, por sua vez, repete uma série de amores apaixonados por algumas de suas colegas, sem contar uma adoração (sic) por uma ou outra religiosa ou por Mme P., a diretora da escola que a acolheu como se fosse uma de suas filhas. Muito rapida-
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mente no pensionato onde residem a diretora, viúva, e suas três filhas, nasce um idílio apaixonado entre Camille e a mais jovem das meninas, Sara. Em todo caso, em seus ditos, a diferença anatômica dos sexos não parece dividi-la, algo que um dos peritos médicos notará sobre o aparente desinteresse de Camille por seu corpo sexuado. Para Camille, a báscula foi desencadeada pelo encontro de uma experiência de gozo em sua primeira relação sexual com Sara. “Finalmente”, diz ela, “Sara me pertencia de agora em diante, ela era minha.” Se em suas Memórias ela fala abundantemente de sua necessidade literalmente compulsiva de tocar, de beijar Sara assim que ela a visse, ela é tão alusiva quando evoca suas relações “de alegrias incompletas” na penumbra do dormitório, que podemos nos perguntar se não se trata de relações mais sáficas do que heterossexuais. Segue-se um ano de relações ocultas, em que os dois amantes sonham com o laço social do casamento e da família. O que ela encontrou nessa primeira relação, que seria seguida de imediato em suas Memórias pela curva gramatical dos adjetivos que se referiam a ela, senão a hiância introduzida pela diferença sexual, pois o ponto de enigma vai ser sua brusca decisão unilateral de romper o segredo pondo fim a seu sonho, ao passo que, diz ela, aquilo que na ordem natural das coisas deveria uni-los, no mundo os separou. Ponto de báscula, ponto sem volta: ele dá início aos procedimentos para fazer reconhecer sua nova identidade junto a dois abades que se fazem de surdos, um deles até mesmo aconselhando-o a guardar segredo e entrar no convento. Ele acaba consultando um bispo, reconhecido pela inteligência de seu humanismo, que lhe encaminhará a um médico para uma perícia. A perícia aprofundada nota que os elementos masculinos predominam sobre os femininos. Trata-se, na verdade, de uma hipospádia, de um pênis reduzido não fechado, associado a alguns órgãos femininos (vagina, uretra). A perícia iniciaria o reconhecimento jurídico de seu novo estado civil. Ela passará a se chamar Abel Barbin. E, de uma forma que pareceu incompreensível em suas hagiografias, ele deixa rapidamente a escola “sem arrependimentos” e, a despeito de sua paixão, lágrimas de Sara e da tristeza de sua mãe. Ele perdeu tudo: amor, família, carreira. “Ela”, tão brilhante (recebida em primeiro lugar na Escola Normal); “ele” se vê como escriturário em uma administração em um posto temporário e depois desempregado, para acabar se suicidando, intoxicando-se com seu aquecedor a carvão. Não se sabe qual foi sua vida de homem, a parte de suas Memórias relativas a esse curto período tendo sido perdida, mas o que se sabe por seus escritos é a devastação, pressentida desde a adolescência, de sua diferença.
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A diferença sexual só existe por ser nomeada, diz Lacan. O que faz drama? E sua busca dizia respeito à procura de uma verdade sobre seu sexo ou de um dizer? Não é para a revelação que ela apela com todo ensejo, ressentindo-se da fraqueza de seu entorno, aliada em manter o segredo: a diretora, o primeiro médico consultado em virtude da descida de um testículo, os abades a quem ela se confessa. Também não é a culpa pela transgressão nem a vergonha, mas o primeiro encontro com o gozo na copulação, “copulação que”, diz Lacan, “é, sem dúvida, sexual em sua função, mas que encontra seu status de elemento particular de identidade” (LACAN, 1970-1971/2006, p. 32). O encontro com sua identidade de gozo levou-a a apelar para um dizer de nominação, um dizer que ex-siste aos ditos da verdade, a nominação como ato. O apelo aos pais, aos padres da Igreja ou mestres-peritos da medicina permaneceu letra morta por trás desse nome de hermafrodita. É que, se nos colocarmos do lado do todo ou não-todo, diz Lacan, podemos ser ditos homem ou mulher, mas não o contrário. Mas é preciso se colocar de um lado ou de outro, aí não se tem a escolha da indiferença, sublinha Colette Soler. Para Camille, a única solução é o Outro da lei que deve acomodá-lo, pois ele mesmo se pergunta por que não conseguiu ter acesso a essa identidade de homem que não é nem cívica nem na imagem, mas deve ser significante, identidade de homem que lhe teria permitido entrar no laço social tão sonhado: “Se tivesse sabido como fazer, meu porvir teria sido mudado... eu poderia ter sido o genro de Madame P.”. A escolha não tem nada a ver com o biológico nem com o estado civil. O erro nele não foi tanto sobre a pequena diferença anatômica nem sobre seu físico que não o interessava, mas sobre o falo, sempre solidário do semblante (Ibid., p. 34), que lhe teria permitido “se fazer-homem” (Ibid., p. 32), semblante veiculado no discurso da parada sexual. Mais tarde, os semblantes que animam os casais lhe serão repugnantes. Tirésias moderno, seu saber sobre o gozo feminino não faz, contudo, relação sexual, mas posição de exceção. “Por uma exceção da qual não me glorifico, foime dado com o título de homem o conhecimento íntimo, profundo, de todas as aptidões, todos os segredos da personalidade íntima da mulher... Essa ciência da mulher que nenhum homem jamais possuirá me coloca bem acima de certos críticos célebres”, cita Dumas Filho. Mas, acrescenta ele, é melhor assim, esse conhecimento teria tido efeitos desastrosos, fazendo de mim um execrável marido. Camille, como Schreber, não está foracluída do pênis, mas um pênis não elevado ao semblante fálico que somente permite a relação entre os sexos. A castração não tem a ver com seu sexo malformado, mas com a estrutura da linguagem. O deslumbramento do empuxo ao amor, do lado do não-todo, é rompido, o fim de suas Memórias tem toques shakespearianos sobre o horror da castração
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materna. Suas imprecações visam “ao medonho acoplamento” dessas “mulheres aviltadas”, “com chagas infectadas” com “homens degradados... desprezados por essas criaturas corrompidas” chafurdando na lama..., ele próprio tendo renunciado a qualquer sexualidade, sua “natureza imaterial e virginal participando da natureza dos anjos” (e, portanto, assexuada). Os homens não são seus irmãos, “a doce e íntima confraternidade com minhas irmãs bastava para minha vida”. Assim como Antígona, os laços do casal e da família sendo-lhe recusados para fazer suplência à carência da relação sexual, ele “se enterra vivo em uma solidão eterna”. Suas Memórias, escritas pouco antes de seu suicídio programado, são um momento de enunciação, uma tentativa de um dizer endereçado ao mundo sobre seu lugar de exceção? Esse “proscrito”, esse “ser sem nome”, esse “infeliz exilado do mundo”, que só encontra repouso na morte, este dia chegado, diz ele, os médicos se amontoarão sobre os meus despojos fora do comum para analisar seus “motivos extintos”. “Ó príncipes da ciência, químicos esclarecidos cujos nomes ecoam pelo mundo!... então alguém dedicará um pensamento infeliz a quem se recusou até mesmo o direito de viver.” Camille escolheu a morte real, não conseguindo, como Schreber, ressuscitar encarnando o significante mulher, não conseguindo inventar um saber identitário, construir seu sinthoma de suplência. Se Camille tivesse vivido no século XXI, ele teria tido um destino melhor? Fora as normas dos discursos de seu tempo, esse abúlico sem laço teria conseguido escapar de uma lógica do não-todo sem a função fálica? Sim – estou me referindo ao curso de Colette Soler (SOLER, 2013-2014) –, com a condição de que ele tenha conseguido encontrar o ato de enunciação do dizer gerador da análise para ser re-nomeado. O pai, como princípio de humanização, é uma exceção lógica existencial sem normas que permite que o discurso analítico se aplique à psicose. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
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referências bibliográficas FOUCAULT, M. (1978). Herculine Barbin, dite Alexina. Paris: Gallimard, 2014. LACAN, J. (1973-1974). Le séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. Paris: Éditions de l’AFI. . (1970-1971). Le séminaire, livre 18: D’un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Seuil, 2006. SOLER, C. (2013-2014). Humanisation? (Cours 2013-2014). Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2014.
resumo
“O que determina a escolha do sexo não é, sequer, um saber, é um dizer”. Lacan acrescenta em seu Seminário Les non-dupes errent, que aquilo que decide não é nada além de um outro dizer, que se lança no furo da carência entre os dois sexos. O que fazer, então, para fazer suplência a esse “mistério do dois”, senão inventar esse saber inconsciente em todo encontro primeiro com a relação sexual, autorizar-se a inventá-lo. Herculine Barbin, um caso de hermafroditismo no século XIX, de quem Michel Foucault descobriu as Memórias nos Anais médico-legais, permite verificar que não há essência do masculino e do feminino inscrita no inconsciente, que o falo é um semblante. Os sujeitos, inclusive os psicóticos, têm a escolha (forçada ou não) de fazer argumento à função fálica, a escolha de se colocar do lado todo ou não-todo da sexuação.
palavras-chave
O dizer e o sexo, o falo e o semblante, a suplência na psicose, o enodamento pelo dizer.
resumo
“What determines the sex choice is not even a knowing, it is a saying”. Lacan adds in his Seminar Les non-dupes errent that what decides is nothing more than another saying, that throws itself in the hole of what is missing between the two sexes. What to do, then, in order to fill up for this “mystery of the two”, but invent this unconscious knowledge in every first encounter with the sexual intercourse, authorize and invent it. Herculine Barbin, a case of hermaphroditism in the XIX century, from whom Michel Foucault discovered the Memoirs in the legal-medical Annals, allows us to verify that there is no essence of both the masculine and feminine inscribed in
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the unconscious that the phallus is a countenance. The subjects, including psychotics, have the choice (whether forced or not) of posing an argument to the phallic function, the choice of being at an all side or non side of the sexuation.
keywords
The saying and sex; phallus and countenance; substituting in psychosis; the enoding of the saying.
recebido 19/01/2015
aprovado 20/04/2015
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trabalho crĂtico com conceitos: laço social
Sublimação sintomática e identidade em (um caso de) melancolia Esther Faye Parte I: O trabalho criativo de um sujeito melancólico Uma jovem se deu ao trabalho de entender como alcançar um certo efeito em um trabalho de arte. Na época, ela acreditava que tinha fracassado. Mas anos depois, e durante o curso de sua análise, ela revisitou o trabalho e viu nele algo que não tinha visto antes. Ela havia tentado encontrar uma maneira de derreter um pedaço de alumínio e capturar em filme o momento que ele se despedaça, em que ele se quebra. Dessa vez ela viu o que ela não tinha visto antes: não só os fragmentos da folha de alumínio em pedaços voando no ar, mas agora outra coisa também – um fragmento caindo no chão, mas suspenso pela extremidade da mesa – parecia pele – isso é o que ela capturou com sua a câmera. Começo meu ensaio com o trabalho artístico de minha analisanda, sobre a qual falarei um pouco mais adiante, para abrir o tópico de sublimação, principalmente em termos de sua função como escabeau. Escabeau [escabelo] é a palavra francesa para “escada”, um termo usado por Lacan na sua palestra “Joyce o sintoma II” (LACAN, 1975/2003, p. 561), e que quero usar aqui em sua função de sinthoma (sintoma), que concede ao sujeito, principalmente ao sujeito que poderíamos chamar de melancólico, uma identidade como indivíduo. Sinthoma, a última formulação de Lacan sobre a questão do sintoma, é, nas palavras de uma colega analista, Rithée Cevasco, o escabeau singular de cada sujeito (CEVASCO, 2008, p. 43-53). Por meio da amarração de três consistências independentes – a Real, a Simbólica e a Imaginária – o escabeau, como sinthoma, é o que permite o sujeito viver sem cair no buraco do Real, para dentro do vazio da Coisa, das Ding, que é o ponto central de cada sujeito, melancólico em sua estrutura ou não. O que é um escabeau? E por que ligá-lo ao conceito de sinthoma? O escabeau, para Lacan, é o que o parlêtre, o ser falante, usa para se erguer para fazer-se parecer “beau” [bonito], ou, ao contrário, como esses equívocos destacam – “est-ce cas beau? [esse caso é bonito?]; est-ce cabot? [é um vira-lata?].” Mas o escabeau
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não é meramente o envelope narcisista, a superfície da imagem do corpo como a referência a esse objeto banal pode inicialmente sugerir. O escabeau trata, como afirma Colette Soler, de um “sujeito real”, não só o sujeito que vai sumindo debaixo do significante que ele representa para um outro significante, mas o sujeito que afirma a si mesmo no seu desejo (simbólico) e no seu ser (real) de gozo (SOLER, 2014, p. 63-64). O escabeau como sinthoma é o que dá ao sujeito sua verdadeira identidade, a sua identidade singular “como um indivíduo ligado a outros” (SOLER, 2004, p. 112) – A volta de Lacan à palavra “indivíduo”, que ele havia subvertido em um trabalho anterior. O escabeau como sinthoma, podemos dizer, é a identidade do sujeito, uma identidade que também inclui o nome próprio do sujeito, como a continuação do jogo de palavras revelados na moterialité das letras na palavra escabeau: S. K. … beau (LACAN, 1975/2003, p. 561). O escabeau é o pedestal do sujeito, um pedestal que pode permitir ao sujeito erguer-se à dignidade da Coisa (MILLER, 2015, p.127). Com essa formulação sabemos que com o escabeau estamos precisamente no campo da sublimação, no campo da pulsão, pois ele evoca a conhecida fórmula da sublimação que Lacan apresentou no seu estudo sobre a ética da psicanálise, sua primeira elaboração planejada e extensa sobre o real na psicanálise. “Sublimação”, Lacan disse, “eleva um objeto (…) à dignidade da Coisa.” (LACAN, 1959-60/2008, p.137). Se o escabeau pode ser considerado como a tradução de uma noção freudiana de sublimação, “mas na sua intersecção com o narcisismo”, como Miller alega ser, beleza como a última defesa contra o horror do real, assim é possível também pensar em sublimação, em escabeau, como executando essa função de maneira sintomática. Isto é, o escabeau como uma maneira de manter junto, de amarrar os três registros – o Imaginário, o Simbólico e o Real – e desse ponto em diante a constituição do indivíduo vivente.
Parte II: Sublimação no campo das Ding A questão na próxima seção de meu ensaio é sobre o tipo de objeto que está envolvido na sublimação. Esse objeto, que Lacan chamou, no Seminário 7, de das Ding, usando o termo de Freud para isso, é o nome para a Coisa que resta do Outro pré-histórico, absoluto e inesquecível, aquele Outro em relação ao qual as formas primárias e arcaicas de libido foram despertadas no sujeito. A Coisa é, dessa maneira, um remanescente do qual fala Lacan, como sendo além do sistema de Vorstellungsrepräsentanzen, os elementos significantes da psique, em outras palavras, além do inconsciente como simbólico. Em uma formulação que prenunciava sua definição do real, Lacan aqui estabelece a significância crítica
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do objeto para o ser falante: “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, diremos, padece do significante” (Ibid., p. 144). Êxtimo – o estado de algo que está tanto dentro como fora do sujeito – é o neologismo de Lacan para esse remanescente do real primordial que virá a constituir o buraco do real, o vazio do real na sua essência de ser falante, o vazio em relação ao que cada ser falante tem de encontrar sua noção de realidade. Esse vazio em relação ao qual “o primeiro assento da orientação subjetiva acontece” (p. 54) está, no entanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente cheio. Voltando à questão da Coisa no Seminário 16, De um Outro ao outro (1968-69), Lacan falará da “iminência intolerável do gozo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219) que habita no vacúolo no centro do sujeito. E dará, como um exemplo poderoso disso, o grito silencioso da pintura de Edvard Munch – O grito – o grito que representa das Ding no silêncio absoluto que ejacula de uma boca torta de uma mulher na pintura. Ainda assim, se essa Coisa está fora da cadeia significante, Lacan pergunta, “como é que a relação do homem com o significante... pode colocá-lo em relação com o objeto que representa a Coisa?” Para essa pergunta Lacan dá a seguinte resposta: “um objeto pode preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas representá-la na medida em que esse objeto é criado” (LACAN, 1959-60/2008, p. 146). Desse modo, sua definição de sublimação no Seminário 7: elevando um objeto à dignidade da Coisa, leva esse objeto ao valor imensurável de perda primordial, o Outro arcaico e absoluto, o do buraco vazio que é a coisa mais interna e externa do ser falante. É esse vazio que é determinante, disse Lacan, em toda forma de sublimação: “uma vez que, de uma certa maneira, em uma obra de arte, trata-se sempre de cingir a Coisa” (Ibid., p. 171), “para presentificar e para ausentificar” (Ibid., p. 172). Ainda assim, como sabemos, a própria atividade de cingir, de dar voltas, caracteriza a pulsão em si. Como a arte então satisfaz a pulsão sem satisfazer sexualmente, sem, em outras palavras, produzir gozo sexual? A relação de sublimação ao gozo só pode ser explicada, diz Lacan no Seminário 16, pela anatomia do vacúolo. Lacan, que nessa época já havia inventado o objeto que ele chama de objeto a, ele coloca o objeto a no centro do vazio de das Ding, e diz: “O objeto a desempenha esse papel em relação ao vacúolo. Em outras palavras, é o que faz cócegas por dentro em das Ding. Pronto. É isso que constitui o mérito essencial de tudo o que chamamos de obra de arte” (LACAN, 1968-69/2008, p. 227). Uma obra de arte, desse modo, recebe seu valor pela sua função de fazer cócegas [ce qui chatouille] no real do gozo, a forma reflexiva da palavra, [se chatouiller] nos alertando para o gozo que é o alvo da função de fazer cócegas. Qual é o real do gozo? Em um nível
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podemos dizer que é o real do gozo evacuado do campo do Outro, o Outro como simbólico, o gozo que então vem a ser representado ao sujeito em várias formas de objeto a – oral, anal, olhar e voz – o objeto a como o local de captura de um pouco do mais real do gozo (Ibid., p. 252)
Parte III: Da ansiedade e insônia à sublimação como sinthoma O objeto a, diz Lacan por volta do fim de seu Seminário 8, A transferência, a que ele se referirá aqui como o objeto mascarado por trás do véu dos semblantes que constituem a realidade de seres falantes. Esse objeto só começa a ficar sério na melancolia, onde a sua dita perda é experienciada como o “suicídio” do objeto (LACAN, 1960-61/1992, p. 380). Essa palavra “suicídio” dá um significado especial à referência evocativa de Freud às sombras do objeto que caem sobre o ego – somente a sombra do objeto que cometeu suicídio permanece; é só um fantasma do seu antigo eu. O objeto é foracluído, Lacan dirá no Seminário 10, Angústia. Por não ter sido subtraído do campo do Outro, o tempo, uma função de corte deste objeto que o ativa, o objeto, para funcionar como causa de desejo, o tempo é deslocado.1 Então, quando o ego se encontra sob peso do objeto como real, o vazio que o objeto deveria representar é exposto, e o sujeito tem de encontrar outra maneira de encobrir sua relação com a Coisa. Nos casos mais extremos, o sujeito melancólico é mandado de volta aos efeitos devastadores da castração primária, aos efeitos mortificantes do significante, sem a ajuda da solução sintomática para a dor de existir e o problema do gozo que a entrada na linguagem traz à tona (SOLER, 2009, aula de 1 de abril). Nos casos mais extremos o sujeito tentará se reencontrar com esse objeto com o qual está agora identificado, em um ato de suicídio, na tentativa de reestabelecer a ligação com a parte mais vivente de si, o seu gozo perdido de estar além do véu. Minha analisanda, com cuja obra de arte comecei meu ensaio, pode ou não ser melancólica, no sentido da estrutura – esta não é a apresentação do caso e seu tratamento –, mas da maneira como ela tem falado de sua obra de arte, e como as outras características significativas do material que ela tem trazido para sua análise, levam-me a considerá-la sob o prisma do que Lacan afirmou em seu seminá-
1 O comentário de Lacan no Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54) é pertinente nesse quesito. Ao referir-se à noção de Hegel, Lacan afirma: “o conceito é o tempo da coisa. Certo, o conceito não é a coisa no que ela é, pela simples razão de que o conceito está sempre onde a coisa não está, ele chega para substituir a coisa (…) o conceito é que faz com que a coisa esteja aí, não estando” (ênfase acrescentada, pp. 275-276).
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rio De um Outro ao outro (p. 353). Nele, ele diz que a sublimação é a característica daqueles que sabem como contornar [faire le tour], contornar o ponto irredutível do sujeito suposto saber. Qualquer criação artística, ele continua dizendo, é situada nesse contornar o irredutível gozo remanescente no saber. Isso é porque o neurótico, ele também diz, é incapaz de sublimar. Por quê? Porque o neurótico confunde saber com gozo; ele não só acredita que saber é gozo do Outro, o Outro simbólico, mas ele também acredita que esse Outro tem a resposta para a questão do seu próprio gozo. Nessa confusão ele acredita na possibilidade do objeto real se juntar a esses semblantes, os semblantes que vêm desse Outro. Em contraste, aquele que sabe como sublimar, aquele que sabe como contornar o irredutível ponto no saber, é aquele que, não sendo absorvido pelos semblantes do Outro, não confunde saber com o ponto irredutível do objeto a que virá a representar, na melhor das circunstâncias.2 No Seminário 11, Lacan fala da obra de arte como uma armadilha do olhar, o olhar como uma das quatro modalidades do objeto a. Tendo “surgido (...) de alguma automutilação induzida pela aproximação mesma do real” (LACAN, 1964/1988, p. 83), o olhar, como objeto a, faz cócegas no das Ding, por dentro. E isso é o que mostra a obra de arte de minha analisanda sobre a qual falei no início desse ensaio: um pedaço de papel laminado representando um corpo que não consegue manter sua consistência face à imensa força do real do lança chamas. Um corpo, cuja representação como folha de papel alumínio partindo em pedaços e se desintegrando demonstra o efeito do suicídio do objeto no ego – exceto por esse remanescente: um único fragmento de pele mutilada suspensa na sua queda e pendurada na extremidade da mesa. A obra de arte de minha analisanda, em geral, reflete essa fascinação por corpos em estado de fluxo, uma vez que seu objetivo foi capturar de alguma forma o momento em câmera lenta em que algo estava caindo, mas ainda não havia caído. O trabalho dela, em outras palavras, brinca com o tempo – com o tempo da Coisa, e com a morte, em outras palavras. Quando Lacan fala no Seminário 11 sobre as pinceladas de Cézanne, das quais as cores “chovem do pincel do pintor” (LACAN, 1964/1988, p. 107), para colocar sua opinião sobre o gesto artístico que captura o olhar, um gesto semelhante é evidente no filme de minha analisanda. É evidente também na maneira como ela traça as linhas, linhas que os outros instantaneamente reconhecem como só dela, que a identificam, linhas que ela 2 Lacan está aqui, creio eu, retrabalhando a afirmação de Freud em “Sobre Narcisismo”: “na neurose (...) encontramos as maiores diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seus eus ideais [a agência responsável pela repressão] e a quantidade de sublimação de seus instintos libidinosos primitivos.” Sublimação, uma vicissitude da pulsão, está nas palavras de Freud: um escape, uma maneira pela qual aquelas demandas [do ego] podem ser correspondidas sem envolver repressão” (SE 14, p. 95).
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fazia várias e várias vezes, traçando e apagando, procurando pelo tom certo. Até que o efeito fosse, como ela disse certa vez, como de uma nuvem delicada desaparecendo. O modo como ela fala sobre sua arte condiz com as afirmações que Lacan faz sobre a obra de arte em relação ao objeto a, com a sua função de fazer cócegas no das Ding. Mas isso também me faz pensar em uma tentativa dela de fazer um corpo sintomático para si mesma, um corpo que pode representá-la para si mesma e para outros, agora e em um futuro inimaginável. E apenas isso. Ao fazer isso ela evoca uma problemática central na melancolia – a relação do melancólico com o tempo e o espaço, em particular, com o tempo do objeto. Em certos momentos da vida de minha analisanda, momentos significativos quando ela foi confrontada por seu próprio gozo (tanto assassino quanto sexual), ela se deu conta de uma mudança dentro dela: “algo quebrou em mim”, ela disse, algo que pareceu quebrar sua segurança em relação ao mundo. “Meu corpo estava doente, agora está quebrado.” Diferentemente de suas amigas que conseguiam falar de seus futuros, como esposas e mães, e que poderiam de fato imaginar seus corpos como grávidas, desde os 11 anos minha paciente não conseguia se visualizar mais velha do que uma certa idade, nem de ser capaz de carregar uma criança em seu corpo – “Eu não sei por que não posso ir além dessa época; é o sentimento mais assustador”. Em vez disso, ela fala sobre três formas de ser que representam desespero para ela: a inércia de não se mover, rodopiar fora de controle ou viver uma vida pela metade, uma que envolve ver a si mesma vagueando pelo mundo, aparentemente contente. A imagem da menina que ela já foi e perdeu, e que procura nos seus devaneios e em outras representações de si, é profundamente evocada em várias ocasiões durante as análises – o devaneio sobre um tipo específico de menina que, ela diz rindo, não ser ela. Mas essa menina tem uma certa qualidade – ela é distante, misteriosa, romântica – a qualidade que desperta um certo sentimento nela, e ela ri de si mesma quando fala dessa menina – “indo a algum lugar para encontrar alguém que está a caminho de outro lugar”. Em outra ocasião, falando do tempo em que, ao contar aos amigos dela uma história sobre si mesma aos 7 anos de idade, ela riu tanto que entrou em um colapso de soluço, fazendo um barulho que não era tão comum em um choro, ela disse: “Eu me senti tão triste pensando naquela menina: me senti apegada àquela menina boba; me reconheci nela e foi catártico”. Foi uma mudança da paisagem espacial/temporal dela que, ao revisitar a perda dos semblantes que a fariam reconhecer a si mesma, ver a si mesma como um corpo em um espaço e tempo que desencadeou a ansiedade que a trouxe a análise. Ela tinha assistido um filme que, de algum modo, a relembrou de um ambiente
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específico que era tão bonito quanto perturbante3, teve o efeito de mudar algo dentro dela que parecia uma mudança no vento e o ambiente muda as pessoas de maneira monumental sem que elas percebam, ela explicou – “o mundo muda; tudo começa a desmoronar”. Depois desse filme ela viveu uma semana de noites sem dormir, aterrorizada diante da morte iminente de seus pais, medo de eles a deixarem sozinha em um mundo que a engoliria – “Eu cairei em um buraco negro e me perderei”. Ela fala do terror de ver a si mesma vagando por aí sozinha no espaço vazio e infinito para sempre; ela com tanto medo de ser arrastada para o espaço negro nos entremeios dos momentos em que está acordada e dormindo. “A pior coisa”, ela disse, “é ver a mim mesma fazendo aquilo”. E ela fala do silêncio interior que ela mesma associa com o O grito de Munch e que ameaça abocanhá -la, um silêncio que ela só pode tratar falando de seus pensamentos em voz alta e comentando sobre si mesma na terceira pessoa – “agora ela está respirando”. “Eu não sei como respirar sem pensar a respeito”, ela disse. Isso é o sinal de um corpo que ela tem que manter sob vigilância para que ele exista. O que Carmen Gallano diz sobre a angústia na melancolia é pertinente aqui: “Angústia marca a fronteira entre estar à beira da ruína e estar definitivamente arruinado” (GALLANO, 2003). O nome para essa ruína é das Ding, a Coisa. Produzir arte outra vez, desde que começou sua análise, e decorar as paredes de seu apartamento com seus desenhos, parece ter reduzido a angústia e a insônia que a trouxeram para a análise, esses sinais de perturbação em seu corpo diminuíram à medida que ela retomou, por minha sugestão, o que tinha abandonado – seu trabalho criativo. Preencher seu espaço de convívio com seu trabalho tornou o espaço menos ameaçador, menos opressor para ela, disse – “ele não é tão escuro como antes de eu começar a análise”. Embora minha paciente ainda diga que tem medo de cair, ela não tem tanto medo quanto tinha antes da análise, e isso está atrelado ao fato de ela ser capaz de ver a si mesma no mundo com mais confiança como “uma artista criativa”. Sua arte, e a identidade viabilizada por ela, funciona, creio eu, como um escabeau, com o qual ela se ergue. Assim como gosta de arrumar fragmentos de tecidos para criar formas, ver a si mesma como uma artista lhe dá uma forma, um escabeau que pode identificá-la como um indivíduo. Ela certamente não é um James Joyce, mas, de certo modo, sua identidade como “artista criativa”, que ela reencontrou durante sua análise, a fez ver que ela pode existir sem ser engolida pelo mundo. “Estou a meio caminho de estar em meu corpo”, ela disse. O que estar no corpo significa para ela é: “Sentir-se completa quando você é singular, quando você está plena estando sozinha”.
3 Lacan fala da beleza da última defesa contra o real na Ética da Psicanálise.
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“Não tenho uma noção clara de meu corpo, de minha fisicalidade como sendo minha, mas não é que seja de outra pessoa”. Um recente sonho de transferência confirma, creio eu, esse reencontro da noção de uma “identidade” com a qual ela pode viver mais confortavelmente. Falar do sonho em sua análise permitiu-lhe ter “noites de sono maravilhosas durante a semana” – “Consegui relaxar e respirar” – e soltou um suspiro que foi “como deixar algo antigo sair”. No sonho, uma mulher que ela costumava idolatrar, e que na vida real era bem tranquila e reservada, encontra-a na rua e, segurando o rosto de minha analisanda com as mãos, diz: “Obrigada por ser uma pessoa tão linda”. “O fato de ela ter-me visto, de ver alguma coisa em mim – [est-ce cas beau?]”, minha paciente disse, “tem mais peso do que se isso tivesse sido dito por um amigo”. Como sua analista, ouço nisso que a mulher vê nela o sujeito real que ela é, o escabeau possibilitando a ela como sujeito do desejo ser enodada ao ser de gozo que ela já representou no primeiro sonho que trouxe para a análise como um sapo que ficava sempre escapulindo de suas mãos. Tradução: Juliana Silva Revisão da tradução: Romilson Nascimento
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resumo
Com aquele tipo bastante particular de experiência de perda de objeto na melancolia, onde o objeto “suicidado”, o objeto como a Coisa, expõe-se na sua realidade e cai como uma sombra no ego do sujeito – o ego corpóreo agora sendo identificado como a Coisa imortal – o sujeito melancólico é atirado para fora do tempo. Mas para a agitação ansiosa e o desespero que acompanham o retorno desse gozo real pode emergir como um tipo particular de solução – o artifício da arte como sublimação – que pode restaurar algo da relação social que se partiu. Sintomaticamente religando o ego corpóreo que se desconectou do Real e do Simbólico, a sublimação pode prover ao sujeito a estrutura narcísica, uma escada, um “escabeau”, como diria Lacan, a qual prende o Real, o Simbólico e o Imaginário, e insere o sujeito de volta na conexão social.
palavras-chave
Sublimação sintomática, identidade, melancolia, escabeau.
abstract
With that very particular type of object loss experienced in melancholia, where the ‘suicided’ object, the object as the Thing, is exposed in its realness and falls
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as a shadow onto the subject’s ego – the bodily ego now becoming identified with this immortal Thing – the melancholic subject is thrown out of time. But to the anxious agitation and despair that accompany the return of this real jouissance may come a particular kind of solution – the artifice of art as sublimation – that can restore something of the social bond that had been broken. Sinthomatically re-linking the bodily ego that has been unlinked from the Real and the Symbolic, sublimation can provide the subject with a compensatory narcissistic structure, a stepladder, escabeau, as Lacan calls it, which knots the Real, the Symbolic and the Imaginary, and inserts the subject back into the social bond.
keywords
Sinthomatic sublimation, identity, melancholia, escabeau.
enviado 04/06/2015
recebido 10/08/2015
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Sublimação: laço entre arte e clínica Clarissa Metzger Este texto parte de minha interrogação sobre a vocação clínica do conceito de sublimação e da pesquisa a ela relacionada que tenho empreendido. Ao longo dos últimos anos, me deparei com articulações variadas da sublimação com diferentes formas de arte, mas encontrei poucas alusões ao que estou propondo chamar de vertente clínica do conceito. Por outro lado, a relação entre sublimação e arte parece mesmo pedir para ser feita, uma vez que no nível da sublimação o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e, muito especialmente, culturais. Não é que a coletividade as reconheça simplesmente como objetos úteis – ela encontra aí o campo de descanso pelo qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de das Ding, colonizar com suas formações imaginárias o campo de das Ding (LACAN, 1959-60/1997, p. 125/FR 1986, p. 119). Esta vertente é, sem dúvida, a mais explorada e estabelecida. As elaborações imaginárias às quais Lacan se refere incluem as manifestações artísticas em todas as suas variações, que podem, inclusive, ser paradigmáticas da sublimação: belas artes, literatura, poesia – quiçá a chamada sétima arte, o cinema. Entretanto, desde o momento em que Lacan rechaça a ideia de uma psicanálise aplicada, em “Juventude de Gide ou a letra e o desejo” (LACAN, 1958/1998) é necessário, antes de tudo, precisar de qual articulação entre arte e psicanálise estamos falando. Essa relação não só é antiga como também controversa e remonta ao próprio Freud, que discutiu a arte a partir da psicanálise desde pontos de vista diferentes em vários de seus artigos, como “Escritores criativos e devaneios” (1908), em que busca discutir a relação entre a construção de textos literários e a fantasia do neurótico; ou então em “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910), no qual aborda a sublimação e a neurose a partir dos diários de Da Vinci e de alguns de seus trabalhos, além da lembrança infantil que dá nome ao texto. “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen” (1907) é outro exemplo desse tipo. Não podemos esquecer que Freud utiliza em “O estranho” (1919) um conto de E. T. A. Hoffman para empreender sua discussão sobre o Unheimlich que remete à castração, nesse caso usado mais como metáfora do que como objeto artístico a ser
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discutido, mas que demonstra igualmente, e uma vez mais, o apreço do pai da psicanálise pelas produções artísticas e literárias.
Tratamento psicanalítico ou método psicanalítico? Todavia, se as produções artísticas comparecem no texto freudiano, isso não se deve, em última instância, a uma tentativa de desvendar o psiquismo dos artistas a partir de suas produções ou então de decifrar uma obra a partir da biografia do autor, mesmo que Freud pareça se aproximar um tanto disso, por exemplo, no artigo sobre Da Vinci. Ainda que não buscasse de forma geral essa relação tão direta entre vida e obra do artista, Freud levava em conta que havia algo do psiquismo do artista que comparecia em sua obra, tal como encontramos na discussão empreendida por ele em 1908, sobre o processo criativo dos escritores e sua relação com a fantasia. Esse ponto será precisado por Lacan, como veremos a seguir. Mesmo que não se trate de desvendar o psiquismo do artista ou interpretar a obra de arte, Freud já aponta para a existência de mecanismos que regem a criação e que, como aponta Rocha, remetem à linguagem: Ao tornar o discurso o solo comum que reúne elementos tão distintos quanto a produção linguageira de um analisante e a narrativa literária de um escritor criativo, Freud estará dando um dos passos mais fundamentais para a consolidação de sua teoria do inconsciente. Mas estará, não menos, fornecendo os termos que nutrirão a origem de uma importante polêmica acerca dos limites e consequências da aplicação de seu método (ROCHA, 2010, p. 33, grifos meus). A importância da linguagem e do significante fica patente em vários dos trabalhos freudianos, desde a Interpretação dos sonhos (1900) até o texto metapsicológico sobre O Inconsciente (1915) entre outros, como bem sabemos. O interesse e a pesquisa freudiana envolvendo as artes vão nessa mesma direção, demonstrando uma ênfase no significante e, portanto, na linguagem, solo comum ao analisante e ao texto literário. Se isso é verdade para o texto literário ao qual Rocha recorre em sua comparação, podemos dizer que o é também para as outras manifestações artísticas que envolvem a articulação de significantes na linguagem, como ocorre, por exemplo na criação de uma gravura ou de um filme. Ainda que a comparação se sustente, ela não é livre de conflitos, levando à polêmica, como alude esse autor e remete à discussão acerca do método psicanalítico. Entretanto, se a linguagem e o significante já se encontram em posição de destaque sob a pena freudiana em diversos de seus trabalhos, há, sem dúvida, diferenças entre a discussão de um caso clínico e da temática artística. A abordagem
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freudiana nos textos que envolvem temas relacionados aos artistas e suas obras, ainda que guardem grandes diferenças entre si, tem muito mais relação com o que Lacan elucidará anos depois, em “Juventude de Gide” e que aponta para uma discussão a partir do método psicanalítico – o mesmo método utilizado na discussão de um caso clínico, sem dúvida, mas nesse caso, não é de um caso clínico que se trata. Por mais que não fosse, lembremos que não há manejo da transferência em jogo, o que não nos autoriza, portanto, a tomar uma obra ou um artista do mesmo modo como faríamos com um caso clínico. Nesse ponto, vale a pena recorrer ao texto lacaniano: A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, e portanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora desse caso, só pode tratar-se de método psicanalítico, aquele que procede à decifração dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado. O que o livro1 em exame mostra brilhantemente é que uma investigação, na medida em que observa esse princípio, pela simples honestidade de adequação ao modo como um material literário deve ser lido, encontra na ordenação de sua própria narrativa a própria estrutura do sujeito que a psicanálise designa (LACAN, J. 1958/1998 p. 758, grifos meus). Encontramos aqui uma precisão do tratamento psicanalítico, que só pode se aplicar “a um sujeito que fala e ouve”, afirmação que retoma a importância crucial da fala para o tratamento psicanalítico, exposta pelo autor cinco anos antes em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953/1998). Ou seja, o tratamento psicanalítico, para além ou em articulação ao significante, pressupõe a fala – da qual poderíamos dizer que ouvir pode ser consequência. Pois bem, quando não se trata da fala, mas sim de uma decifração do significante, estamos no campo do método psicanalítico. A decifração do significante não pressupõe o significado, que só poderia surgir a partir da fala de um sujeito sob transferência, no contexto de um tratamento analítico. Por outro lado, se o método psicanalítico pode funcionar na ausência de “um sujeito que fala e ouve”, ele pode revelar a “estrutura do sujeito que a psicanálise designa”. Mas então, qual seria o objetivo de Freud – e de Lacan e de outros psicanalistas – ao eleger como objeto de discussão artistas e suas obras? Regnault nos oferece pistas ao anunciar que “[...] em Freud, não raro o que parece ser uma elucubração sobre o autor constitui também um avançar ou o avanço de um conceito” (REG1 Lacan discute aqui o livro escrito por Jean Delay sobre André Gide.
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NAULT, 2001 p. 21). A intenção de Freud talvez estivesse além do que ele próprio poderia enunciar no momento em que empreendia essas discussões concernentes ao mundo das artes, mas que se torna evidente, por exemplo, nas articulações que busca fazer a partir de sua discussão sobre Da Vinci no texto de 1910 e que abrem a possibilidade de avanços na discussão sobre o conceito de sublimação. Embora a relação de Freud com os artistas sempre tenha sido um tanto ambígua – por exemplo, chegou a aproximar o trabalho dos escritores ao brincar das crianças, em uma alusão eventualmente pouco elogiosa, tal como encontramos em “Escritores criativos e devaneios” –, em certas ocasiões deixou clara a admiração que nutria por alguns deles e, mais do que isso, tomava a arte eventualmente, tal como indica Regnault, como antecipação daquilo que a psicanálise buscava elucidar. É o que vemos em um trecho da carta de resposta aos cumprimentos de Arthur Schnitzler pelo aniversário de Freud, na qual este comenta: “Muitas vezes me perguntei com perplexidade de onde o senhor poderia ter retirado este ou aquele conhecimento secreto, que eu havia adquirido através de laboriosas investigações” (FREUD apud GAY, 1989, p. 296). Haveria algo que o escritor de algum modo já “sabe” e que diria respeito àquilo que busca o psicanalista, o que entreabre a possibilidade de que a psicanálise tenha o que aprender com a arte naquilo que tange ao psiquismo.
Da arte à clínica É essa posição adotada por Freud que abre caminho para Lacan e outros com relação à arte e que permite a afirmação de que o psicanalista não apenas não aplicará a psicanálise à arte, “mas aplicará a arte à psicanálise, pensando que, porquanto o artista preceda o psicólogo, sua arte deve fazer avançar a teoria psicanalítica” (REGNAULT, 2001, p. 20). Além de ser o oposto da concepção de que a psicanálise explicaria a arte, também vai na contramão de um certo modo de “aplicar” a psicanálise à arte que não faz mais do que encontrar na arte aquilo que já era ponto pacífico na teoria, como mera confirmação do que já se sabe – não é a isso que Lacan se refere quando alude à “psicanálise aplicada” em “Juventude de Gide”? Por exemplo, fazer uma correspondência direta de elementos de uma obra que confirmariam a presença do Édipo, da castração etc., em uma modalidade que poderíamos chamar de relação imaginária da psicanálise com a obra de arte, na qual a arte apenas espelharia o que a psicanálise buscasse encontrar na obra, sendo nesse caso a obra um mero espelhamento do sujeito do artista. Nessa situação, também poderíamos dizer que a psicanálise estaria em posição de mestria em relação à obra de arte, uma vez que se colocaria na posição de domínio em relação à arte. Do ponto de vista da própria psicanálise, isso seria uma contradi-
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ção em termos, já que o discurso do mestre é o avesso do discurso do psicanalista. Desse modo, chegamos ao ponto que nos interessa de forma central: destacar que a sublimação desde as artes é principalmente uma maneira de ampliar nossa abordagem da clínica, já que há produções artísticas que evidenciam, de modo quase didático, diríamos paradigmático, a maneira como se organizam em torno do vazio, aludindo desse modo à estrutura do sujeito.
Sublimação em Freud e em Lacan Nesse ponto, é importante retomar brevemente as definições de sublimação propostas por Freud e por Lacan para continuar o raciocínio. Lembremos que Lacan trabalha com o aporte freudiano do conceito, mas em 1960, em adição a essa conceitualização, propõe a sublimação como alusão, a partir de um objeto qualquer, ao vazio da Coisa (LACAN, 1959-60/1997). Essa característica da sublimação acompanhará o ensino do autor até as últimas aparições do conceito, no Seminário 16. Já em Freud, encontramos definições um tanto diferentes da sublimação, a depender do momento teórico (METZGER, 2008). A última definição freudiana da sublimação, aquela a que nos referimos com maior frequência, inclui mudança de meta e de objeto da pulsão; de meta e objeto sexuais para outros não mais sexuais, mas sim socialmente reconhecidos e valorizados e pode ser encontrada em um texto de 1922, “Teoria da libido” (FREUD, 1922/1990). Essa definição dá margem, de forma incômoda, a uma interpretação que conduz à ideia de que aí se trata de uma utilização da pulsão na produção de objetos comercializáveis e, ao mesmo tempo, de um afastamento do sexual. Interpretações como essa se apoiam basicamente na ideia de que a plasticidade da libido que estaria em jogo na sublimação apontaria para uma maior possibilidade de adaptação à realidade, em oposição à fixidez libidinal que se apresenta no sintoma neurótico – nesse sentido, a sublimação surgiria como um ideal a ser atingido, já que seria uma manifestação da “normalidade”. A sublimação implicaria, portanto, a “aceitação social”, o que a colocaria no lugar ideal desde a ênfase da adaptabilidade. Mas será que era isso que Freud estava propondo? Lacan já apontava esse estranho estatuto da sublimação, que surge em certa leitura da obra freudiana, mais próxima da chamada psicologia do ego e cujos elementos, inegavelmente, podem ser encontrados no texto freudiano – ainda que essa leitura seja equivocada, já que se apoia nesses elementos sem levar em conta a direção do pensamento freudiano em termos da amplitude de sua obra, tal como Lacan nos apresenta em sua proposta de “retorno a Freud”: ao levar em conta a proposição lacaniana de ler Freud de modo coerente com a radicalidade de seu
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próprio pensamento (o de Freud), é preciso, no mínimo, desconfiar dessa leitura. Se o grande mérito da psicanálise desde Freud é mostrar que a sexualidade humana é desadaptada desde o início, uma vez que é permeada pela pulsão e pela linguagem, não faria sentido que o pai da psicanálise forjasse um conceito que propusesse a impossível adaptação à realidade e a aproximação a uma suposta “normalidade” que ele mesmo tratou de desconstruir em textos como “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, S. 1905/1990). Lacan, em cujo ensino a sublimação está presente desde seus primórdios, não aceita o estatuto “adaptativo” do conceito e propõe, em 1959-60, a definição de elevação do objeto à dignidade da Coisa, o que aponta para a sublimação como uma produção que evidencia o vazio, cerne de toda criação. Assim, a ênfase não mais recai sobre o distanciamento daquilo que é da ordem do sexual na mudança de meta e objeto da sublimação, o que fica claro, por exemplo, na afirmação lacaniana “O jogo sexual mais cru pode ser objeto de uma poesia sem que se perca, no entanto, uma visada sublimadora” (LACAN, 1959-60/1997, p. 198). A ideia de uma exclusão do sexual é incoerente com a própria definição freudiana de pulsão, que é, ela mesma, manifestação do sexual. Assim, como indica Lacan, propor a dessexualização da pulsão na sublimação seria o mesmo que dizer que é possível dessexualizar o sexual. O que restaria dessa operação? A própria ideia de reconhecimento social ligada à sublimação é colocada em questão; Lacan precisará que a sublimação cria valor social, o que é muito diferente de uma produção que se adapte ao que já existe. Esse é um ponto crucial da discussão sobre o tema que empreende no Seminário 7. Ele também sublinha a presença da alusão ao vazio, o que consideramos uma mudança do estatuto do objeto (e não mais do objeto em si; ele agora deve ser elevado à dignidade da Coisa) como condição da sublimação em vez de levar em conta apenas as mudanças de meta e objeto da pulsão. Podemos entender que a posição lacaniana não exclui as proposições freudianas, mas sim as explicita e define melhor: não se trata mais de uma mudança de meta que exclui o sexual, mas sim no que toca à posição do objeto da sublimação. A definição lacaniana mantém a sublimação como conceito princeps da psicanálise na interface com a criação artística, mas não só isso. Aponta também para a ideia de que nem toda arte é sublimatória2 e de que há um viés clínico importante ligado ao conceito de sublimação. Lacan nos faz saber que a sublimação não está ligada à beleza ou popularidade de uma obra, mas sim a outras características peculiares: à alusão ao vazio da Coisa, à criação de um valor antes inexistente.
2 O que, de certo modo, já era consequência lógica da definição freudiana da sublimação.
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Sublimação na clínica Embora o conceito de sublimação seja de fato um operador privilegiado na discussão da arte de suas produções, esse não é o único escopo do conceito, que tem abrangência clínica importante, talvez um tanto desprezada ou então pouco elucidada em nosso campo. Se o reconhecimento do vazio e a criação a partir dele têm relação com uma mudança de posição do sujeito diante do objeto, é lícito supor que a sublimação tenha relação, em alguma medida, com certo percurso de análise, embora não necessariamente apenas com este (assim como a análise não é garantia de sublimação, a sublimação não acontece necessariamente apenas a partir de um contexto analítico). Ainda que se trate de um destino da pulsão, na proposta lacaniana esse destino pulsional supõe uma relação específica com o vazio de das Ding e, portanto, com o real. Se a ética da psicanálise aponta para uma relação específica com o real, na medida em que comporta o real de das Ding como central e como norteador do desejo, a sublimação será decorrência lógica da análise. Essa afirmação fica mais clara se tomamos como referência uma indicação de Lacan no resumo do Seminário 14. Ali, encontramos a sublimação como uma das saídas do impasse da fantasia. Fantasia que, como lembra Brodsky (2004), faz existir a relação sexual que não existe, funcionando, assim, como tela frente ao real. Entretanto, trata-se de um impasse do sujeito, como Lacan já indicara, pois a fantasia faz existir a relação sexual3 onde, de fato, ela não existe. Esse impasse abriria caminho para o ato, mas em versões bem específicas. Um ato que poderia ser da ordem do acting out, partindo do vértice da não relação e caminhando através do vetor da repetição, ou então da ordem da passagem ao ato, partindose do mesmo vértice, mas seguindo com o vetor da pressa. Essas seriam as duas falsas saídas ou lapsos do ato que Lacan indicou, tal como representado abaixo. A sublimação seria uma outra saída do impasse da fantasia, que, como vemos no grafo, levaria ao ato analítico. Ainda que haja saber no inconsciente, há também um saber que falta (LACAN, 1973/2003, p. 315). No grafo abaixo, vemos que a sublimação parte do vértice em que se encontra a fantasia, que, por sua vez, vem suprir a falta de saber, encobrindo o real. A fantasia, no entanto, tem como causa a incomensurabilidade do gozo sexual do homem e do gozo sexual da mulher, que apontam para aquilo que do ato sexual não se inscreve. Essa sequência culmina na constatação de que não há 3 Antecipamos aqui a menção ao aforismo “não há relação sexual”, que, embora ainda não tivesse sido enunciada e formulada como será posteriormente, já encontra seus pressupostos lógicos no Seminário 14, em que Lacan afirma que não há ato sexual na medida em que há incomensurabilidade entre o gozo do homem e o gozo da mulher.
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relação sexual.4 Ou seja, não há um saber no inconsciente que designe o modo como um homem se liga a uma mulher e vice-versa, dado o que acabamos de dizer sobre o gozo e dado que, decorrente disso, a relação do homem e a relação da mulher com o falo é diferente, como inferimos desde a entrada de cada um no Édipo. O falo é um elemento terceiro, não instala uma suposta complementaridade e menos ainda simetria entre homem e mulher. O que encobre esse não saber da relação sexual é a fantasia, que faz existir um saber que não há, já que é por meio da fantasia que um homem pode se vincular a uma mulher, como se soubesse como fazê-lo. Em suma, “É a partir desse momento, dessa confrontação com o ‘não há relação sexual’ que surge a possibilidade do que Lacan escreve nesse segundo quadrângulo, ou seja, a sublimação” (BRODSKY, 2004, p. 158). Uma vez que não há relação sexual e que o fantasma tenha sido atravessado, é a satisfação via sublimação que permanece aberta – e, nesse sentido, estamos nos referindo à característica de satisfação da pulsão pela alusão ao vazio da Coisa, característico da sublimação. Passagem ao ato
Pressa
$ ◊ a
Ato analítico
o
açã lim Sub
Repetição
Acting out
Se tomarmos como referência o mesmo quadrângulo, é possível dizer que a sublimação é ela mesma uma expressão da direção do tratamento, uma vez que se configura como saída do impasse da fantasia – que implica sua travessia – e que conduza ao ato analítico. É o que indica o vetor da sublimação, que sai do vértice inferior esquerdo e vai em direção ao vértice superior da direita. Desse modo, podemos dizer que, no que tange à clínica, a sublimação se apresentaria de duas maneiras diferentes, mas intimamente ligadas: como uma das 4 É interessante notar que no Seminário 14 encontramos a afirmação “O segredo da psicanálise é que não há ato sexual” (LACAN, 2008a, p. 293) (“Le secret de la psychanalyse, le grand secret de la psychanalyse, c’est qu’il n’y a pas d’acte sexuel” staferla, p. 142), que depois será modificada para não há relação sexual. Trata-se de uma precisão posterior efetuada por Lacan, de tal modo que a questão não se centre no ato sexual, mas sim na relação, proporção (rapport). Dito de outro modo, a modificação empreendida por Lacan vem responder ao fato de que há o ato sexual, o que não há é relação, proporção entre os sexos. Não como sexos biológicos, mas como posições de gozo.
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consequências do fim de análise, na medida em que a análise proponha uma mudança de relação do sujeito com o real/com a pulsão e também, relacionado a essa mudança, como uma ética que norteia a própria análise e que, portanto, está necessariamente presente como horizonte em cada análise empreendida. Estando assim presente no campo da clínica, a sublimação não seria um modo de tratar o gozo? Talvez possamos pensar em um tratamento do gozo diferente da circunscrição de gozo que o sintoma faz na neurose, por exemplo. O tratamento que a sublimação poderia fazer se daria na direção de uma não fixação do gozo, diferente do que ocorre no sintoma – direção, aliás, apontada pelo próprio Freud. Mas, além da não fixação e concomitante a ela, o tratamento do gozo se daria pela própria alusão ao vazio. Tanto na não fixação quanto na alusão ao vazio temos uma saída para a pulsão diferente da fantasia, que tenta velar o vazio, fazendo existir a relação sexual. Em suma, proponho desde Lacan que a sublimação pode ser, por um lado, consequência da análise que trata o gozo e, por outro lado, fazer parte da direção do tratamento. Para concluir, retomando nossa proposição inicial, se a sublimação é normalmente utilizada para debater produções artísticas, é importante não perder de vista a importância desse debate para a clínica. A arte interessa à psicanálise na medida em que, a partir da interface que se estabelece entre os dois campos, a própria clínica pode avançar. É como interface entre arte e psicanálise que proponho a sublimação como conceito que faz laço entre arte e clínica.
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resumo
Este artigo parte de minha interrogação sobre a vocação clínica do conceito de sublimação e sua articulação com as artes. Desde Freud, a relação entre psicanálise e arte é presente e é comum que essa articulação se dê a partir do conceito de sublimação. Por essa razão, é importante discernir quais relações entre psicanálise e arte são legítimas e quais visam apenas confirmar o que já se sabe, por meio de um uso distorcido da psicanálise. Para isso, lanço mão da diferença proposta por Lacan entre tratamento psicanalítico e método psicanalítico, para depois precisar o conceito de sublimação em Lacan. Busco destacar que as artes se articulam à psicanálise principalmente como uma maneira de ampliar nossa abordagem da clínica, já que há produções artísticas que evidenciam, de modo quase didático a maneira como se organizam em torno do vazio, aludindo desse modo à estrutura do sujeito. Por fim, proponho que a sublimação estaria presente na clínica de dois modos: por um lado, como consequência da análise que trata o gozo e, por outro lado, como parte da direção do tratamento.
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Sublimação: laço entre arte e clínica
palavras-chave
Sublimação, clínica, arte, tratamento psicanalítico, método psicanalítico.
abstract
This article departs from my questioning on the clinical vocation of the concept of sublimation and its articulations with the arts. Since Freud, the relationship between psychoanalysis and art is present and it is common that this connection takes place from the concept of sublimation. For this reason, it is important to discern which relations between psychoanalysis and art are legitimate and which are intended only to confirm what is already known, through a distorted use of psychoanalysis. For this, I make use of the difference proposed by Lacan between psychoanalytic treatment and psychoanalytic method, and later work specifically on the concept of sublimation in Lacan. I seek to stress out that the arts are linked mainly to psychoanalysis as a way to expand our clinical approach, since there are artistic productions that show in an almost didactic way how they organize themselves around the empty, thereby alluding to the structure of the subject. Finally, I propose that sublimation in the clinic would be present in two ways: firstly as a result of the analysis which treats jouissance and, on the other hand, as part of the direction of the treatment.
keywords
Sublimation, clinic, art, psychoanalytic treatment, psychoanalytic method.
enviado 12/07/2015
aprovado 10/08/2015
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Sintoma social e a emergência do PCC Carlos Eduardo Frazão Meirelles A atuação em um órgão de assistência social em uma região periférica da Grande São Paulo, por alguns anos, levou à consideração de algumas articulações entre psicanálise e sociedade. A alteridade encontrada na experiência nas favelas, desde a arquitetura até os laços sociais, incluiu um conhecimento da organização conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC). Como detalham os trabalhos da antropóloga Karina Biondi (2009) e da socióloga Camila Caldeira Nunes Dias (2013), o PCC se diferencia de outras organizações de venda de drogas, como o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, pela politização de suas lideranças, e pela ideologia que os organiza. Um ponto paradoxal de seu surgimento expõe uma divisão social. Apresentam-se como antagônicos ao Estado e à lei jurídica, mas sustentando ideais e ações condizentes aos princípios desses mesmos Estado e lei organizadora dos laços. Como uma lei que se torna antagônica a si própria, expõem que a lei liberal, democrática e republicana, que se pretende universal a todos os cidadãos, não se realiza sem exceções, e desses lugares de exceção surge de modo transgressor e perturbador uma demanda de reconhecimento e cumprimento dessa lei. A elaboração da experiência de campo (GONÇALVES FILHO, 2009) em comunidades periféricas, com referências da psicanálise e da sociologia, conduziu à noção de sintoma social como posicionamento e discernimento crítico da conjuntura social atual do Brasil, ocupando o PCC o lugar de formação metafórica de um processo histórico, e exemplo de tentativa paradoxal de suplência do furo da lei pela reiteração fálica do próprio furo da lei. Propomos uma discussão teórica da noção de sintoma social e, ao final, breves apontamentos sobre a emergência do PCC.
Sintoma Em diversos momentos de sua obra, Lacan atribui a Marx a invenção da noção de sintoma. No Seminário 18, diz que “o responsável pela ideia de sintoma foi Marx” (LACAN, 1971, p. 153). No Seminário RSI, diz que os psicanalistas devem
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“buscar a origem da noção de sintoma, [...] não em Hipócrates, mas em Marx” (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). Em 1966, no texto “Do sujeito enfim em questão”, articula o sintoma em Marx pela relação entre verdade e saber. É difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha do saber. [...] Uma verdade de uma referência diferente daquilo, representação ou não, pelo qual ela vem perturbar a boa ordem. [...] Essa dimensão, mesmo não sendo explicitada, é altamente diferenciada na crítica de Marx (Ibid., 1966a, pp.234-235). O retorno perturbador da verdade na falha do saber seria uma estrutura que aproxima o sintoma analítico daquilo que Marx interpretou como efeito do capitalismo. Em 1966, o sintoma analítico é pensado por Lacan em torno da teoria do significante: “[...] O sintoma só é interpretado na ordem do significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante. É nessa articulação que reside a verdade do sintoma. O sintoma [...] é verdade” (Ibid., 1966a, p. 235). A relação estabelecida entre dois significantes produz efeitos de sentido em que o sujeito diz mais do que pensava e queria dizer. O que retorna como Outro, percebido como alheio ao eu, não esperado e não intencional, seria privilegiadamente o que é negado ou não reconhecido pelo sujeito, e tão mais perturbador será seu retorno quanto mais estiver nessa condição. A estrutura desse retorno é tal que, ao mesmo tempo oculta e revela o que se nega. A astúcia do inconsciente faz com que os mesmos artifícios usados para recalcar sejam os que trilham o retorno do recalcado. No caso do Homem dos Ratos, para recorrer a um exemplo rápido, temos uma medida protetiva que elaborou após sua primeira masturbação, uma prece com sons aparentemente sem sentido que termina com a palavra amém. “Gleijsamen” (FREUD, 1909/1996, p. 242). Na verdade, trata-se da mistura do nome da amada, Gisela, com a palavra sêmen. A medida protetiva ao desejo acaba ela mesma por realizar simbolicamente o ato sexual. Como formação do inconsciente, o sintoma é, ao mesmo tempo, algo que revela e esconde, sendo que o que aparece não permite uma apreensão imediata do que o causa, necessitando de interpretação. Nesse sentido trata-se de “uma verdade de uma referência diferente daquilo pelo qual ela vem perturbar a boa ordem”, isto é, o que aparece perturbando a boa ordem é diferente da referência que permite enunciar sua verdade. Em anos posteriores a 1966, teremos formulações diferentes de Lacan sobre o sintoma, mas que continuarão a se articular a Marx. Em “A Terceira”, temos que “o sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua
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proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de maneira satisfatória” (LACAN, 1974/inédito). De modo semelhante, no Seminário RSI irá situar o sintoma “como refletindo no Real o fato que há algo que não funciona e onde, no campo do Real, esse algo que não funciona se mantém” (Ibid., aula de 18/02/1975). As interpretações de sentido não são eliminadas, mas consideradas também no que podem servir para alimentar o sintoma. [...] Ao nutrir o sintoma, o real de sentido, não se faz outra coisa senão lhe dar continuidade de subsistência. É, ao contrário, enquanto algo no simbólico se cerra do que chamei o jogo de palavras, o equívoco, o qual comporta a abolição do sentido, que tudo o que concerne ao gozo, e notadamente ao gozo fálico, pode igualmente se cerrar (LACAN, 1974/inédito). Nessa direção, em relação ao discurso crítico de Marx, Lacan dirá que “não basta” – assinalei eu e a história o demonstra – “que se produza essa irrupção da verdade para que o que se sustenta nesse discurso seja derrubado” (LACAN, 1971, p. 154). Esse aspecto levará a considerar o quanto a interpretação crítica de Marx serviu, de certa forma, para consagrar o capitalismo: “dito e feito. O que [Marx] emitiu implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua exatamente como antes” (LACAN, 1974/inédito). A interpretação justa mostra a eficiência do capital, o quão bem está estruturado, e até ensina como ele funciona, podendo, inclusive, conduzir à decisão de empreender, extrair a mais-valia, ou investir em ações. Destacamos estes dois aspectos do sintoma analítico na obra de Lacan a serem detalhados em articulação ao pensamento de Marx como sintoma social – o retorno perturbador da verdade na falha do saber, e o satisfatório de impedir que as coisas andem.
O surgimento histórico do proletário Buscar a origem da noção de sintoma, que não é absolutamente a se buscar em Hipócrates, mas em Marx, em sua ligação entre o capitalismo e o tempo feudal. [...] O capitalismo é considerado como tendo certos efeitos, e porque, efetivamente, não os teria? Esses efeitos são, afinal, benéficos, já que têm a vantagem de reduzir a nada o homem proletário, graças a que o homem proletário realiza a essência do homem, e, por ser de tudo despojado, está encarregado de ser messias do futuro. Tal é a maneira como Marx analisa a noção de sintoma (LACAN, 197475/inédito, aula de 18/02/1975).
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A origem da noção de sintoma viria da interpretação de Marx a um período histórico específico, a passagem da produção feudal para a capitalista, tendo como efeito principal o surgimento do proletário. Por diferentes aspectos nesse processo histórico podemos considerar o retorno de uma verdade que estorva, e formas em que a manutenção do que não funciona é satisfatória. As ideias liberais sustentam a igualdade de condições, para se produzir conforme o esforço individual; a liberdade de iniciativa, para empreender; e a tendência ao equilíbrio das forças econômicas, por efeito do livre mercado. Contudo, a massa populacional de proletários denuncia com sua própria existência a inverdade dessas ideias liberais. Na transição do tempo feudal ao capitalismo, Marx demonstra que “a expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo” (1890/2013, p. 787). A base da acumulação inicial de capital para investimento adveio da expulsão dos camponeses de suas terras, por parte de novos empreendedores, os burgueses, que as transformavam em pastagens para criação de ovelhas, obtendo lã como matéria-prima para os primeiros galpões de manufaturas, os de tecelagem, já organizados como linha de produção, protótipo das fábricas quando do advento posterior da máquina. Não havendo escritura das terras, pois a posse se baseava no pacto de suserania e vassalagem entre nobres e servos, as opções dos camponeses eram ou lutar até a morte, ou de um dia para o outro passar a ter nada além do próprio corpo, restando apenas vender a força de trabalho como uma mercadoria, nas condições impostas pelos novos empreendedores. As favelas brasileiras, contexto de surgimento do PCC, se originaram de escravos antigos libertos, que, sem nada com que se estabelecer, se apropriavam de terrenos periféricos às cidades, e se desenvolveram com o proletariado crescente com a industrialização. O ato inaugural do capitalismo não é de igualdade, liberdade e equilíbrio, e a massa populacional proletária que se origina é a emergência da verdade da espoliação, seu retorno perturbador. Da mesma forma se dá com as relações de trabalho que se estabeleceram, em especial na mais-valia, em que Marx identifica uma expropriação na venda da força de trabalho. O valor do salário é menor do que o valor produzido pelo trabalho, sem o que não se produz lucro. Parte das horas de trabalho vão para o investidor. “A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho excedente, e ao trabalho nela despendido denomino mais-trabalho” (MARX, 1890/2013, p. 293). Zizek afirma que a extração da mais-valia “[...] representa a negação interna do princípio universal da troca equivalente de mercadoria; em outras palavras, ela acarreta um sintoma. [...] Ponto de exceção que funciona como sua negação interna” (ZIZEK, 1996, p. 307). A equivalência universal do valor das mercadorias pelo tempo de trabalho investido é negada na força de trabalho como
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mercadoria, pela desproporção que confere sua lei. Com a lógica da extração da mais-valia os assalariados tendem a permanecer estáveis no mesmo patamar de riqueza, por mais que trabalhem, enquanto que os investidores criam condições para acúmulos extremos, com cada lucro podendo ser reinvestido e gerar novas fontes de extração de mais-valia. A desigualdade se torna um efeito necessário, satisfatória para a concentração de lucros, e não uma falha no percurso. Lacan diz que “o subdesenvolvimento é, muito precisamente, a condição do progresso capitalista” (1971/2009, p. 36), “a expansão do capitalismo veicula o subdesenvolvimento” (Ibid., p. 47). A desigualdade é um capitalismo bem-sucedido, desde que não atrapalhe demais a boa ordem, não se insurjam grandes greves ou revoltas. A igualdade de condições para produzir conforme o esforço individual, a liberdade de iniciativa para empreender, a tendência ao equilíbrio das forças econômicas por efeito do livre mercado, se revelam proposições falhas, e o proletário expõe o desequilíbrio de poder que deixa sem escapatória a expropriação do valor do trabalho. O aspecto perturbador pode ser considerado, de modo amplo, no fato de que uma multidão de despojados de tudo vivendo em torno de ilhas de opulência necessariamente cria uma situação de permanente tensão, com todos os riscos à manutenção da boa ordem. Marcola, depondo sobre a história do PCC na CPI do Tráfico de Armas, situa essa herança social como campo de surgimento do PCC: “Nós todos somos praticamente filhos da miséria, todos somos descendentes da violência, desde crianças somos habituados a conviver nela, na miséria, na violência. [...] Quer dizer, a violência é o natural do preso, isso é natural” (BRASIL, 2006, p. 25). A dimensão política do grupo, como comentaremos, está na denúncia da contradição ideológica e na tentativa de “refrear essa natureza violenta”, proibindo o preso “de tomar certas atitudes, que para ele seria [sic] naturais, só que ele estaria invadindo o espaço de outro” (Ibid.). Seguindo o raciocínio de Zizek, o proletariado seria a expressão sintomática da negação interna da sociedade: Assim que tentamos conceber a ordem social existente como uma totalidade racional, temos de incluir nela um elemento paradoxal que, sem deixar de ser um seu componente interno, funciona como seu sintoma – subverte o próprio princípio racional universal dessa totalidade. Para Marx, esse elemento ‘irracional’ da sociedade existente era, é claro, o proletariado, ‘a desrazão da própria razão’ (Marx), o ponto em que a Razão incorporada na ordem social vigente depara com sua desrazão (ZIZEK, 1996, p. 308).
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De modo semelhante, Dunker articula com Marx uma “homologia entre a divisão social do trabalho e a divisão do sujeito” (2015, p. 187), o fato de que Marx inventa o sintoma ao “descrever a divisão social do trabalho que se estabelece no sujeito trabalhador, sendo, então, o nome desse sintoma o proletariado. Ou seja, o sintoma é a formação de uma classe social específica, o proletariado, sintoma do falso universal chamado sociedade” (Ibid., p. 222). Lacan aponta, porém, que também para Marx a existência de proletários é satisfatória. Porque deles é que pode advir a força de transformação social, como agentes da revolução, e messias futuros. Nesse sentido sua existência seria benéfica. De modo paradoxal, isso assegura seu lugar, concede toda importância para que existam proletários, sendo como que necessários. “Dito e feito. O que [Marx] emitiu implica que não há nada a mudar” (LACAN, 1974/inédito). O que Lacan discerne como sintoma na obra de Marx aproxima-se da noção de ideologia: “A verdade não tem outra forma senão o sintoma. O sintoma, quer dizer a significância das discordâncias entre o real, e aquilo pelo que ele se dá. A ideologia se quiserem [...]” (LACAN, 1966-67/inédito, aula de 10/05/1967). Poderíamos considerar a discordância entre o real do mais-de-gozar da mais-valia, e os significantes mestres pelos quais o liberalismo se dá. Nesse momento Lacan situa a função do Um como tentativa de estabelecer proporção entre os sexos, e a “presença de um gap, um furo [...] alguma coisa que não cola [...], um abismo” (Ibid.) nessa tentativa. “O sintoma, todo sintoma, é nesse lugar do Um furado que ele se liga. E é nisso que ele comporta sempre, por mais espantoso que nos pareça, sua face de satisfação ao sintoma” (Ibid.). No discurso do capitalista o S1 “é colocado no lugar da verdade”, tentando fazê-la “sem falha” (FINGERMANN, 2005, p. 78). Dunker aponta a relação entre sintoma e ideologia, citando Althusser que relaciona a alienação à função do eu: “É nessa direção que Lacan afirma que o eu, como instância de desconhecimento, possui a estrutura de um sintoma. Nesse sentido, Marx inventou o sintoma quando descreveu a ideologia” (DUNKER, 2015, p. 222). Na relação de senhor e escravo não havia o encobrimento do desequilíbrio de poder envolvido, como há na ideologia que justifica a relação do capitalista e do assalariado. Havia conflito, pois é uma dominação, mas em uma luta direta. No trabalho moderno, há um encobrimento ao se anunciar o direito à liberdade, uma negação interna na mais-valia sem escapatória, e o retorno de algo não previsto, uma massa de indivíduos despojados de tudo. Essa estrutura sintomática ideológica está presente em diversos elementos da civilização moderna, “[...] Marx analisa [...] uma multidão de outros sintomas, mas a relação destes com uma fé no homem [proletário] é totalmente incontestável” (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). O proletário possui um valor nodal na série de ideologias sociais
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por se referir às relações de trabalho e produção, alicerces fundamentais para a organização da vida coletiva. Nesse sentido, seria o único sintoma que poderia ser atribuído à estrutura social.
Cada indivíduo é um proletário Em “A Terceira”, temos a proposição de Lacan de que o único sintoma social é o proletário, ao mesmo tempo em que estende essa condição a cada um da sociedade. “Há apenas um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social, em outras palavras, semblante” (LACAN, 1974/inédito). Aparentemente, é apenas nessa passagem da obra de Lacan que há a expressão sintoma social, mas é coerente com o que vinha construindo com Marx sobre o sintoma desde 1966, e com o que apresenta no Seminário RSI (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). O que é diferente é a atribuição da condição proletária a cada um da sociedade, ricos e pobres, assalariados e investidores, e relacionada à ausência de laço social. Uma das formas de interpretar essa proposição é considerar o que para Lacan diferencia o proletário, surgido com o capitalismo, do escravo, o explorado da antiguidade, que não é um sintoma social: “O proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber. A pretensa libertação do escravo teve, como sempre, outros correlatos. Ela não é apenas progressiva. Ela é progressiva à custa de um despojamento” (LACAN, 1969-70/1992, p. 140141). A noção do proletário como o despojado de tudo advém de Santo Agostinho (XAVIER, 2013, p. 98), se referindo aos romanos cuja única função era ocupar a terra e reproduzir, para manter as fronteiras do império, possuindo nada além do próprio corpo. É uma acepção utilizada por Lacan ao se referir ao proletário como “aquele que assegura a função do que é mais despojado no capitalismo, [...] estado de despojamento” (LACAN, 1971/2009, p. 154). Certamente a libertação dos escravos é um progresso, ninguém propõe que se volte à escravidão. Contudo, em um mesmo passo de emancipação, paga-se o preço de uma perda, e o proletário é despojado do saber fazer que o escravo possuía. O escravo sabia produzir todos os objetos que a sociedade precisava. Sabia como plantar, produzir ferramentas, tecer, construir as moradias. Na era moderna, com a divisão do trabalho em linha de produção, cada um não domina mais o produto final por completo. Com o advento da máquina, há um distanciamento ainda mais radical do saber fazer, pois para operar uma máquina em uma linha de produção não é necessário eventualmente nem saber o que se está produzindo. Basta dominar algumas operações simples de um mecanismo, movimentos elementares e repetidos. A força
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de trabalho torna abstrata, praticamente pura força do corpo em procedimentos rudimentares, bastando ter um corpo para trabalhar na fábrica. “[...] Não é como Saber – ao oposto do escravo antigo, portanto – mas como simples força de trabalho que o proletário entra no processo de produção capitalista [...]” (ASKOFARÉ, 1997, p. 180). A perda do laço social se manifesta como isolamento em uma tarefa apartada do todo; o relacionamento com a máquina e não com outro corpo humano; e o hiato de conhecimento e poder a toda rede de determinações do trabalho. A mercadoria também permite estender a cada um da sociedade atual a condição proletária de despojamento de saber e redução ao próprio corpo. Marx aponta que em cada mercadoria, em sua forma final, há um apagamento das relações de trabalho e do processo envolvido. É o que chama de caráter fetichista da mercadoria, comparando-a aos objetos inanimados das sociedades antigas, que recebem atribuições de características humanas. “É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 1890/2013, p. 147). Tudo que determina a mercadoria, as horas de trabalho necessárias, as relações sociais envolvidas, o corpo ali implicado, as relações de poder, os conhecimentos para fabricação, o que orienta as escolhas de produção, todo esse campo desaparece, e o que aparece são características atribuídas à mercadoria, em especial sua tradução em um valor, o preço, como uma cifra, uma codificação: “Na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho em um hieróglifo social. [...] A determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem” (Ibid., p. 149). O dinheiro é para Marx “a forma acabada [...] do mundo das mercadorias que vela materialmente, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados” (Ibid., p. 150). Nas relações medievais, contrapõe Marx, “[...] as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais entre coisas, entre produto de trabalho” (Ibid., p. 152). [...] A verdade recalcada – a da persistência da dominação e da servidão – emerge num sintoma que subverte a aparência ideológica de igualdade, liberdade e assim por diante. Esse sintoma, o ponto de emergência da verdade sobre as relações sociais, são precisamente as ‘relações sociais entre as coisas’: [...] aí temos uma definição precisa do sintoma histérico, da ‘histeria de conversão’ que é própria do capitalismo (ZIZEK, 1996, p. 310).
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Sintoma social e a emergência do PCC
O advento da máquina, no que diz respeito tanto ao trabalho quanto à mercadoria, é um elemento a se destacar na condição proletária de cada um. Lacan localiza o início do discurso capitalista 200 anos antes do início do discurso do analista, que consideramos em 1900. “É por isso que dois séculos depois desse deslizamento, [para o discurso capitalista] [...], a castração fez enfim sua entrada irruptiva sob a forma do discurso analítico” (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 06/01/1972). O início das expulsões camponesas é anterior a 1700, “ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI” (MARX, 1890/2013, p. 789). O ano de 1700 é a data aproximada da origem da primeira máquina, a máquina a vapor, que ao longo do século é automatizada e utilizada para produções em larga escala, dando início à Revolução Industrial. Da primeira máquina a vapor até hoje, um dos fatos significativos é que elas saíram das fábricas e se proliferaram por todos os espaços da vida, permeando os laços sociais. Operamos essas grandes máquinas, que são os carros, os pequenos eletrodomésticos, a centralidade da televisão em muitas casas, como uma companhia, os computadores cumprindo inúmeras funções na vida diária, celulares sempre ao alcance – todos os gadgets que levariam a uma grande lista. De certa forma, nos tornamos todos operadores de máquinas, em tempo cada vez mais integral. Parcerias com elas, com efetivas melhoras a necessidades variadas, mas com um despojamento a rebote, de saber de seu funcionamento e determinações, e do gozo do corpo, subtraído pelo trabalho do simulacro. Lacan considera o valor subversivo que pode haver no saber do explorado, mas questionaa via de retorno ao saber fazer, como no pensamento do comunista chinês Mao Tsé-Tung. Se há uma coisa cujo tom me choca na temática que chamam de maoísta é sua referência ao saber manual. A nova ênfase dada ao saber do explorado me parece estar profundamente motivada na estrutura. A questão é saber se isso não é algo totalmente sonhado. Em um mundo onde emergiram essas coisas inteiramente forjadas pela ciência, gadgets, será que o savoir-faire, no nível do manual, pode ainda ter peso suficiente para ser um fator subversivo? (LACAN, 1969-70/2009, p. 140-141).
O PCC Um dos aspectos surpreendentes no depoimento de Marcola à CPI do tráfico de armas em 2006 é o testemunho de que presidiários se apropriam do saber formal de pensadores clássicos da cultura para questionar sua condição e formar um coletivo por uma causa. Uma restituição de saber aos que estão em um estado de despojamento, não pelo saber fazer, mas pelo saber de mestre, que produz efei-
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tos emancipatórios nas cadeias e nas favelas, não sem repetir precisamente o que tentam eliminar, consequência da destituição de um mestre por outro. Quando o deputado Paulo Pimenta (PT) aponta no PCC uma “estrutura leninista” (Ibid., p. 29), Marcola confirma: A gente leu muito sobre Lênin, sobre a formação do Partido Comunista. A gente lê sobre tudo. DEP. PAULO PIMENTA – Quando tu dizes a gente lê, tu queres dizer que é uma prática dos dirigentes estudar? MARCOLA – Dirigentes, não, presos em geral. DEP. PAULO PIMENTA – Mas preso comum estudando Lênin? MARCOLA – Claro, por que não? [...] Por que o preso faz isso? DEP. PAULO PIMENTA – Por quê? MARCOLA – Porque ele foi acordado, foi conscientizado, numa determinada época, de que os direitos dele, enquanto ele não soubesse que ele tinha determinados direitos, eles jamais seriam concedidos, o senhor entendeu? Então foi uma forma... foi um despertar (BRASIL, 2006, p. 29). Discutem a estrutura do partido comunista e Marcola cita ainda “Mao TséTung” (Ibid., p. 30), “Nietzsche”, “Voltaire” (Ibid., p. 92), “Victor Hugo” e “Santo Agostinho” (Ibid., p. 93), como algumas de suas leituras que vêm à cabeça. No campo do saber formal encontram referências para ações. Dentre os primeiros atos do PCC, estão a proibição do estupro, do roubo e do crack em todas as prisões do Estado de São Paulo, sob o argumento de afronta à “dignidade humana” (Ibid., p. 27), em decisões debatidas e definidas por voto de todos. Lembremos que na democracia brasileira, e em outras, condenados à prisão não têm direito a voto. Contudo, de modo mais radical do que ela, realizam uma democracia que inclui não apenas o voto, mas a possibilidade direta de qualquer preso de qualquer um dos presídios emitir uma opinião e participar do debate, construindo acordos não por trocas de favores utilitárias, mas por consenso a um bem comum. Outra ação nos presídios foi a educação da massa carcerária a hábitos de higiene e saúde, com a distribuição gratuita de produtos para tal, que por direito o Estado deveria fornecer, mas não o faz deliberadamente (Ibid., p. 31, pp. 99, 197). Outra lei que sustentam é a própria condição da palavra como lei. Em conflitos variados em prisões e favelas há a obrigação de haver um diálogo, com busca de consenso, em que antes se resolvia com atos impulsivos de violência. Tal princípio se expande para o próprio uso da língua. Mais decisivo é perceber que isso que se chama PCC se efetua nos quatro cantos da cidade, onde se fala e se escuta [...] esse modo específico de travar conversas, marca registrada do PCC, que substitui os ‘palavrões’ e as ofensas banais por um novo jargão ‘do crime’ [...]. Esse modo de travar conversas é efetuado
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também por crianças de 7, 8, 9 anos, que já sabem que não devem mandar seus colegas ‘tomar no cu’. Já preferem dizer: ‘Veja bem, fulano, essa fita não tá certa. Vamo debater essa fita’ (MARQUES, 2010). Surgido após o massacre de 1992 no Carandiru, como forma de defesa contra abusos de poder de diversas ordens, o PCC pede que o código penal seja cumprido, com o fim das torturas e a inclusão da educação e profissionalização como meio de ressocialização do preso. Defende também, como muitos juristas (CARVALHO E FREIRE, 2005), que seja extinto o Regime Disciplinar Diferenciado que, com critérios genéricos, prevê o isolamento do preso vinte e duas horas por dia, renováveis indefinidamente, em flagrante descumprimento das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos, se aproximando antes do uso da masmorra medieval. Comumente descrito como uma lei paralela, o PCC não propõe uma inversão sadeana da lei, o direito universal ao gozo desmedido e abusivo (LACAN, 1966b, p. 780), mas, pelo contrário, denuncia tal inversão em pontos da lei que se pretende esclarecida. Nesse sentido apresenta-se como emergência da verdade de que a ideologia liberal possui um furo. Nas favelas e cadeias a organização não é chamada de PCC, mas de o Partido, ou o Movimento. O principal crime cometido pela organização é o tráfico de drogas, que desde 2006 responde quase que pela exclusividade da atividade econômica do grupo. Como indicamos em outra oportunidade (MEIRELLES, 2010), o surgimento de proibições globais às drogas ocorreu antes por fatores econômicos e de poder entre grupos do que por questões de saúde (COSTA, 2007, p. 59-67; HERER, 2006). Marcola indica que, seguindo critérios pragmáticos do que “degrada o ser humano” (BRASIL, 2006, p. 54) e do que não, tolera a maconha e a cocaína. Nessa discordância entre a ideologia e o real, encontra um meio de exploração econômica, tentativa de contornar a exploração que testemunha no campo do trabalho. Nesse ponto transgride a lei brasileira, mas se aproxima da legislação de outros países, e da tendência atual, de agosto de 2015, do Superior Tribunal Federal brasileiro pela descriminalização do uso. A tentativa de transformação política do PCC encontra sua principal contradição na reprodução da violência que tenta eliminar, como reconhece o próprio Marcola (Ibid., p. 35). Seja no modo de sustentar as leis e condutas emancipatórias, punindo o descumprimento com espancamento ou morte, seja nas tentativas de reconhecimento social de sua causa, sequestrando jornalistas da Rede Globo (2006) para publicação de um manifesto (http:// youtu.be/bwPHGk0ifb4), seja na defesa contra torturas, por meio de ataques às corporações policiais nas ruas (Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e Justiça Global, 2006), a organização recorre a atos bárbaros que são precisamente o que pretende superar. Não por acaso, a mesma demanda
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de reconhecimento que levou ao sequestro dos jornalistas, se fez agora em 2015 como uma encomenda a que um rapper, Cascão, do grupo Trilha Sonora do Gueto, compusesse uma música para esclarecer a população em geral sobre a causa e os objetivos do PCC, a música “W2 Proibida”. Em uma condição limite de despojamento, de lugares de exceção da lei que se pretende universal, o PCC surge como formação crítica, que expõe uma verdade da estrutura social, e como uma formação conciliatória, de sutura do desacordo ideológico, se alojando em um ponto em que passa a ser satisfatória a conjuntura ideológica de poder, por exemplo com a proibição às drogas e a corrupção policial. A interpretação com a noção de sintoma social sugere que as tentativas de eliminar o PCC com repressão abusiva tenderão, como de fato se observa, a justificar e consolidar mais a causa que os funda, por repetir a violência histórica de que são efeito. O reconhecimento das demandas legítimas e legais no campo político poderia favorecer a deposição mútua das armas.
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resumo
O artigo é uma pesquisa teórica sobre o conceito de sintoma social de Jacques Lacan. Discute as noções de sintoma como retorno da verdade na falha do saber, e como satisfação real, articulada à interpretação de Marx sobre a passagem do tempo feudal ao capitalismo, com a emergência do trabalhador proletário. Para além de um período histórico e uma classe social específica, Lacan estende a condição proletária a cada indivíduo da sociedade moderna, associada à ausência de laço social. Interpretamos essa condição pelas relações de trabalho mediadas pelo capital, pelo apagamento das relações sociais na mercadoria, e pelo despojamento de saber com o advento da máquina e sua proliferação no cotidiano. Utiliza elementos da organização do Primeiro Comando da Capital (PCC) como exemplo.
palavras-chave
Sintoma, Lacan, Marx, Primeiro Comando da Capital, capitalismo.
abstract
The article is a theoretical research on the concept of social symptom by Jacques Lacan. It discusses the notions of symptom like a return of truth in the failure of knowledge, and as real satisfaction, linked to the interpretation of Marx on the passage of feudal time to capitalism, with the emergence of proletarian worker. Way beyond a historical period and a specific social class, Lacan extends the proletarian condition to each individual of modern society, coupled with the lack of social ties. We interpret this condition by working relationships mediated by capital, by the invisibility of the social relations in the merchandise, and by the dispossession of knowledge with the advent of the machine and its proliferation in everyday life. We use in the article elements from the criminal organization of the First Command of the Capital (PCC) as an example.
keywords
Symptom, Lacan, Marx, Primeiro Comando da Capital, capitalism.
recebido 12/07/2015
aprovado 10/08/2015
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Relação do sujeito e seu ser frente à ditadura do Um Gioconda Espina Martin Heidegger retoma a pergunta que caiu no esquecimento e que desvelou Platão e Aristóteles e conservou-se até a lógica de Hegel: a pergunta sobre o ser que, agora, reformula em O ser e o tempo como a urgente pergunta pelo sentido do ser. A pergunta pelo sentido do ser exige acesso aos entes, que são muitas coisas: “tudo aquilo de que falamos, (também) o que somos (e) a maneira de sê-lo” (1927/2014, p. 16). A esse ente que somos nós mesmos e que tem a possibilidade de perguntar, o designa como “ser aí”. A existência, acrescenta, decide-se por obra do “ser aí”. Esse “ser aí” não está nem no passado nem no futuro, mas “sendo”. De modo que o tempo é “o genuíno horizonte de toda compreensão e toda interpretação do ser” (Ibid., p. 27). O ser aí, o ser do homem, o ser vivente, define-se por sua faculdade de falar e “dizer de” e “dizer quê”. A fala (que é a acepção de logos que Heidegger assume, mesmo que haja outras acepções da palavra) “permite ver” a partir daquilo de que se fala e o faz ao proferir sons, vozes, vocábulos, palavras; “permite ver” algo junto a algo e, porque permite ver, pode ser o logos verdadeiro ou falso. É preciso livrar-se, diz Heidegger, do conceito de “verdade” como concordância. Aqui, “o ser verdade do logos” quer dizer “tirar de seu ocultamento ao ente de que fala e permite vê-lo, descobri-lo como não oculto” (Ibid, p. 43). Igualmente pode-se dizer do “ser falso” do logos. Assim, não se pode considerar o logos (a fala) como o lugar da verdade. Isso, como lembrarão, Lacan exemplificará depois quando diferencia os ditos do sujeito, que mascaram seu desejo, com seu dizer. O que a fenomenologia (definida por Heidegger como o método da ontologia) permite ver é algo oculto ou “que volta a ficar encoberto ou que somente mostrase desfigurado, (não) é tal ente senão o ‘ser dos entes’”, isto é, aquilo mais além do qual não sou mais nada, isso que chama “fenômeno” enterrado ou apenas visível como “parece ser”. Fenômeno, em sentido fenomenológico, é “só aquilo que é ser (de) um ente (que) tem que se mostrar”. A isso chama “fenômeno fenomenologicamente capital” (Ibid., p. 48). Precisa mais: a fenomenologia do “ser aí” é hermenêutica, é interpretação. E finaliza sua introdução à sua mais importante obra resumindo que o ser está por cima de todo ente, é a “transcendência” pura e simples do “ser do ser aí” enquanto implica “radical individuação” (Ibid., p. 49).
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No capítulo IV da mesma obra, Heidegger introduz o conceito do Um em oposição ao ser e relaciona o ser com o sujeito, uma relação que Lacan estabelecerá depois, no Seminário 6, como definição do desejo. Pergunta-se quem é que no cotidiano é o “ser aí”? Pois eu mesmo, o sujeito, aquilo ontologicamente situado diante dos olhos dos outros entes que são “aí”, também “para” os outros, “com” os outros. Assim, o mundo do “ser aí” é um “mundo com” e o ser é “com” outros de minha espécie. O “ser aí”, como “ser com”, tem muitas possibilidades: ser um para o outro, ser um contra outro, ser um sem outro, não te importar o outro etc., que são “modos do procurar com”, mas, nesse procurar, há duas possibilidades extremas: 1. Pode substituir o outro, que fica expulso de seu lugar e convertido em dependente e dominado; 2. Não substitui o outro, ajuda o outro por meio de sua cura e deixa-o em liberdade para isso. Neste ponto, é pertinente esclarecer que Heidegger não está aqui se referindo ao um (com “u” minúsculo) que Lacan vai diferenciar do Um (com “u” maiúsculo). Não se trata em Heidegger nunca desse um que descreve a “unariedade” do gozo que cada sujeito tem na medida em que possui corpo, como precisa Colette Soler (2014, p. 26). Ainda assim, é preciso recordar que Lacan retomará o ponto da relação do ser com o Um em “O Aturdito” e no Seminário 19 (… ou pior), mas que aqui nos restringiremos ao elaborado até o Seminário 6. Voltemos a Heidegger. Entre as duas possibilidades extremas do “ser aí” como “ser com”, mantém-se o cotidiano “ser um com outro”, mas em um terreno pouco firme porque há muitas possibilidades de extravio que obstruem o caminho de buscar e o de conhecer seu peculiar “ser aí” arrebatado pelo “senhorio dos outros”, isto é, pela ditadura do Um. Por imposição do Um, gozamos como se goza, julgamos como se julga, encontramos sublevados o que o Um considera sublevante. Enfim, o Um prescreve a forma de ser da cotidianidade. O Um também tem seus peculiares modos de ser, mas mantém-se a “meio termo” em relação àquilo que está bem, que vigia toda tentativa de exceção: “tudo aquilo original é aplanado e o que aplana são ‘as possibilidades do ser’”. Por isso, a publicidade “obscurece tudo”, porque o Um que aí se expressa retira ao “ser aí” a responsabilidade. E, contudo, o Um é ninguém e foi sempre, conclui Heidegger. O Um descarrega o ser aí de sua cotidianidade. “Todos são o outro e nenhum ele mesmo” (HEIDEGGER, 1927/2014, p. 144). É clara a ressonância dessa definição do Um como colonizador do “ser aí” em proposições de Lacan no Seminário 6, sobre a perversão, a sublimação e a análise como protestos à normalização a que aspira o Um social e cultural e, muito mais tarde, quando se refere ao gozo previsto nessa versão do discurso do mestre que é o discurso capitalista. Parece-me que o que foi dito até aqui explica em extenso algumas razões pelas quais Jacques Lacan pôde fazer uso intensivo da teoria heideggeriana para revi-
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sitar a psicanálise em seu retorno a Freud, uso sustentado ao menos até 1960 (cf. François Balmes, 1999; Elizabeth Roudinesco, 1993), quando começa a distanciar-se de Heidegger, como se pode constatar no Seminário 7, sem – deixemos claro de uma vez – nunca abandonar algumas elaborações feitas a partir da ontologia e da fenomenologia heideggerianas. Agora que estão resumidas algumas das proposições de Heidegger, vejamos sua conexão com o que diz Lacan nas lições 23 (03/06/1959) e 26 (24/06/1959, última lição) do Seminário 6 sobre O desejo e sua interpretação (1958-59), quando se refere ao fantasma como aquilo que sustenta o desejo do sujeito e o que o analista deve ter presente ante o sujeito que fala.
Pegar o desejo pelo rabo… Na lição 23, Lacan coloca em primeiro plano o ser e o Um. O ser é propriamente o real, diz, enquanto se manifesta no nível do simbólico. Quando dizemos “ele é isto”, isso aponta ao real, porquanto o real está afirmado ou recusado ou denegado no simbólico. Esse ser aparece nos intervalos, nos cortes, onde o ser é o menos significante de todos os significantes, um significante que representa o sujeito ante outros significantes. Tal corte presentifica-se no simbólico enquanto uma cadeia significante subsiste segundo a fórmula: Todo sujeito é Um. Frente a esse Um está o Não Um, o ser que surge no corte. Se o desejo é um índice para o $ no “ponto em que ele não pode se designar sem desvanecer-se” (LACAN, 1958-59/inédito, p. 435), diremos que é no nível do desejo que o $ se conta, é contador. Mas esse $ contador entrega-se cotidianamente a uma série de “transações fiduciárias”, até que chega o momento em que o $ contador deve pagar à vista. Momento em que esse $ pode chegar aos nossos consultórios. Deve pagar e algo não funciona: trata-se do desejo sexual ou da ação plena e simples. O $ se faz aqui uma pergunta sobre o objeto do desejo, o qual não é de acesso simples, “não é fácil encontrá-lo” (Ibid., p. 436). O que significa realizar o desejo e qual é a via de realização desse desejo? Diz Lacan que a boa comédia é um “pega desejo” , já que o desejo aparece onde não se o espera. Chega mascarado e, quando se castiga ao burlista, o desejo sempre fica intacto. Como nós, analistas, pegamos o desejo do $, desejo que está enterrado ou mascarado? Não está no ponto em que se deseja, mas em algum lugar do fantasma. Disso depende toda nossa interpretação. Está nesse a, quando ocorre o desvanecimento do $, quando está em fading, como ensinou E. Jones ao falar do complexo de castração. Diz Lacan: “Já que o $ teme que seu desejo desapareça, isso deve mesmo significar algo, é que, em alguma parte, ele se deseja desejante” (Ibid., p. 442). Essa é a estrutura do desejo do neurótico: “Eu me desejo desejante e me desejo dese-
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jante desejado” (Ibid.). Para tanto, é muito útil analisar os fantasmas do perverso voyeur e exibicionista, assunto no qual se detém largamente, para nos mostrar como a fenda (a braguilha entreaberta do exibicionista de A Náusea de Jean-Paul Sartre, o postigo, o telescópio do protagonista de A Janela Indiscreta de Hitchcok) é “o que faz o $ entrar no desejo do Outro. A fenda simbólica de um mistério” e é “o que nos permite situar o perverso em relação com a estrutura do desejo como tal” (Ibid., p. 447). Se o sujeito deseja-se desejante e desejado, por que não pode desejar? Por causa do falo, ponto que Lacan deixa no ar, mas desenvolve na lição 26. Na lição 26, diz que o falo é o significante do desejo do Outro e, por isso, tem lugar privilegiado no nível do objeto a, como o falo é significante do desejo de desejo, é significante de seu reconhecimento pelo Outro. A fim de esclarecer mais o que já estava claro, refere-se aqui à função do fetiche, isso com o qual a criança tem que se haver em relação ao desejo indecifrável da mãe. No fantasma, cuja fórmula apresenta-se ao $ frente ao objeto a, o $ passa para o outro lado, o lado do a = falo. É o $ do corte, $ falado, na medida em que o corte é “a escansão essencial em que edifica a fala. (…) nada mais é do que o significante do ser ao qual é confrontado o sujeito, enquanto este ser é ele mesmo marcado pelo significante” (Ibid., p. 510). Isto é, o a, o objeto do desejo, é um resíduo, um resto, que deixa o ser ao qual o $ falante está confrontado em toda demanda. É por isso que o objeto alcança o real, que não é a realidade dominada pelo Um, que é a opinião pública, os meios de comunicação, a publicidade, como dizia Heidegger em 1926; e também – acrescentará Lacan – as distintas escolas psicológicas e psicanalíticas, especialmente a psicanálise da relação de objeto derivada de Klein e Winnicott. Esse objeto do qual vem falando, que alcança o real, é o que resiste à demanda e Lacan chama-o “o inexorável”, essa forma do real que retorna sempre ao mesmo lugar.
A posição do analista ante o desejo do sujeito O lugar que nós, analistas, devemos sustentar em relação ao desejo do sujeito não pode ser de adaptação às normas sociais e culturais dominantes impostas pelo Um. A perversão, insiste, representa uma forma da reclamação do desejo enquanto relação do sujeito com seu ser; outra forma é a sublimação, que é a forma em que se côa o desejo esvaziado da pulsão sexual e metido no jogo significante, até chegar à equivalência de desejo e letra; os produtos que resultam dessa elaboração em vazio podem, então, inserir-se no nível social e encontrar lugar na atividade cultural. O que sucede em análise? O desejo de desejo do Outro é o que vai afrontar-se como desejo de psicanálise, daí que devamos estar alertas sobre essa dimensão da função do desejo do sujeito em análise a que Lacan define como lugar ou relato
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Relação do sujeito e seu ser frente à ditadura do Um
do “reencontro do que se trata o relato”. O problema é que o desejo que o sujeito deve reencontrar, esse desejo do Outro que no dispositivo analítico somos nós, “esse desejo que é até presente demais no que o sujeito supõe que nós lhe demandamos” (Ibid., p. 517). Uma situação paradoxal que somente pode sustentar-se mantendo-se como “aquele que se oferece como suporte de todas as demandas, e que não responde a nenhuma. (…) Nessa não resposta que se encontra a mola de nossa presença” (Ibid.). Nosso desejo deve limitar-se a esse vazio, a esse lugar que deixamos para que o desejo do sujeito surja no corte, que – ratifica – é o modo mais eficaz da intervenção e da interpretação analítica e no qual mais devemos insistir. Nesse corte há algo sob a forma de objeto fálico latente em toda demanda e é, como fica dito, significante do desejo, significante equiparável ao “grão de fantasia ou de poesia” da mulher do poema de Desiré Viardot, que Lacan leu em 1951 ou 1952, intitulado “Phantômas”, isto é, fantasmas (Ibid., p. 518). Tradução: Maria Claudia Formigoni Revisão da tradução: Ida Freitas
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ESPINA, Gioconda
resumo
A partir de algumas proposições de Martin Heidegger em O ser e o tempo (1927), especialmente sobre a relação do ser e do Um, estabelecemos sua conexão com o que diz Lacan nas lições 23 (03/06/1959) e 26 (24/06/1959, última lição) do Seminário 6 sobre O desejo e sua interpretação (1958-59), especialmente quando se refere à relação do fantasma como suporte do desejo do sujeito e como o que o analista deve ter presente ante o sujeito que fala.
palavras-chave
Ser, sujeito, desejo, um, Um.
abstract
Departing from some propositions by Martin Heidegger in Being and Time (1927), especially regarding the relationship of the Being and the One, we establish their connection with what Lacan asserts in lessons 23 (06/03/1959) and 26 (24/06/1959) the last lesson of Workshop 6, on Desire and its interpretation (1958-1959), mainly when it comes to the relationship of the ghost as support for the subject’s desire, and what the analyst should keep in mind before the speaking subject.
keywords
Being, subject, desire, one, One.
recebido 28/05/2015
aprovado 10/08/2015
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Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação Pricilla Pesqueira de Souza Já é bem sabido que a feminilidade foi, para Freud, material para suas descobertas iniciais, já que foram as mulheres que deram o primeiro impulso para seu trabalho, bem como objeto de um mistério, de um desconhecido que o intrigou deveras do início ao fim de sua obra. A incompreensão com relação ao feminino não é própria da ciência, mas das civilizações. Segundo Freud, “o enigma da feminilidade tem colocado dúvidas aos homens de todos os tempos” (1932, p. 105). Mesmo em seus escritos iniciais, Freud não estava contente com a correspondência, estabelecida por ele, como hipótese, entre o Édipo masculino e feminino. Mas foi somente por volta de 1925, em seu texto “A diferença anatômica entre os sexos”, que ele começa a estabelecer a ideia de que, diferentemente do homem, na mulher havia uma pré-história edípica. Essa pré-história foi mais bem discutida no texto “A feminilidade”, de 1932. Na ocasião, Freud afirma que em uma mulher duas modificações deveriam operar para que ela deixasse de ser um “homenzinho”: uma modificação de objeto (da mãe para o pai), e uma modificação de zona erógena (do clitóris para a vagina, ao menos parcialmente). Além disso, era notável uma diferença fundamental entre meninos e meninas: enquanto para os meninos o complexo de castração representava, na melhor das hipóteses, um “sepultamento” do complexo de Édipo, nas palavras de Freud “[...] equivale, quando se consuma idealmente, a uma destruição e cancelamento do complexo” (1924, p. 185), para a menina, a castração possibilitava o início do Édipo, cujo fim, segundo Freud, era incerto: “excluída a angústia de castração, está ausente também um poderoso motivo para instituir o supereu e interromper a organização genital infantil” (1924, p. 186) e ainda “para a menina, a situação edípica é o desenlace de um longo e difícil processo [...] uma posição de repouso que não se abandona facilmente [...]” (1932, p. 119). O que Freud chama de pré-história edípica é cheio de consequências para a feminilidade. Enquanto que no homem o Édipo é primário, nas mulheres é uma “formação secundária” (Freud, 1925, p. 270), consequência da responsabilização da mãe, por parte da filha, pela falta de pênis, mais especificamente, pela falta de um apêndice que simbolize o falo (1925). Sobre isso, Freud nos fala:
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DE SOUZA, Pricilla Pesqueira
Sabíamos, há tempos, que havia existido um estádio prévio de ligação-mãe, mas não sabíamos que pudesse possuir um conteúdo tão rico, durar tanto tempo, deixar como sequela tantas ocasiões para fixações e predisposições. Durante esse período o pai é somente um importuno rival; em muitos casos a ligação-mãe ultrapassa o quarto ano. Quase tudo o que mais tarde achamos no vínculo com o pai preexistiu nela, e foi transferido daí para o pai. Em suma, chegamos ao convencimento de que não se pode compreender a mulher se não se pondera esta fase de ligação-mãe pré-edípica (1932, p. 111, grifo do autor). Portanto, no texto “A feminilidade”, Freud aborda a importância dessa relação filha e mãe, que atravessou toda a pré-história da menina. Também aponta para uma particularidade muito interessante da ligação com a mãe em comparação com a ligação com o pai: Na época em que o principal interesse se dirigia ao descobrimento de traumas sexuais infantis, quase todas as minhas pacientes mulheres faziam referência de que haviam sido seduzidas pelo pai. Por fim tive que chegar à conclusão de que esses informes eram falsos, e assim compreendi que os sintomas histéricos derivam de fantasias, não de episódios reais. Somente mais tarde pude discernir nessa fantasia de sedução pelo pai a expressão do complexo de Édipo típico na mulher. E agora reencontramos a fantasia de sedução na pré-história pré-edípica da menina, mas a sedutora é em geral a mãe. Entretanto, aqui a fantasia toca o terreno da realidade, pois foi efetivamente a mãe quem como resultado dos esforços com o cuidado corporal provocou sensações prazerosas nos genitais, e acaso até as despertou pela primeira vez (1932, p. 112, grifo nosso). Sobre esse aspecto, Colette Soler acrescenta: O grande princípio moderno, antissadeano, de que ninguém tem o direito de dispor do corpo do outro acaba, desse modo, encontrando um obstáculo nessa zona limite da maternação, ficando a humanização primária do corpo exposta a excessos e transgressões que, antes mesmo de entrar em jogo para a criança a apreensão da diferença sexual, já a aprisionam no ‘serviço sexual da mãe’, na posição de fetiche e, às vezes, na de vítima (SOLER, 2005, p. 93). A relação da criança com a mãe, depois da descoberta da ausência de pênis, acaba em ódio e se externaliza em acusações (FREUD, 1932). Nesse sentido Soler desenvolve:
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[...] na associação livre, sejam quais forem as variações individuais, é mais como acusada que a mãe se instala. Imperiosa, possessiva, obscena ou, ao contrário, indiferente, fria e mortífera, presente demais ou ausente demais, atenta demais ou distraída demais, quer cubra de mimos, quer prive, quer se preocupe, quer se mostre negligente, por suas recusas ou por suas dádivas, ela é, para o sujeito, uma imagem de suas primeiras angústias, lugar de um enigma insondável e de uma ameaça obscura (2005, p. 91). Como se observa, para toda criança, seja menino ou menina, a mãe ocupa um lugar, no mínimo, complicado. Além de iniciar a criança nas questões da sexualidade, como foi visto acima, ela também tem uma função que Colette Soler chama de “polícia do corpo” (2005. p. 93), na medida em que restringe a sexualidade da criança a fim de civilizá-la, de educá-la. E isso também para toda criança, seja ela menino ou menina. Então resta a pergunta: qual a particularidade que faz com que na menina, a relação com a mãe seja descrita por Lacan (1972) como devastadora? O criador da psicanálise nos diz que nas meninas, por questões estruturais, existe uma característica que se sobressai e que é típica da sexualidade feminina, “a inveja do pênis”, que, diante de uma leitura atenta de Freud, não pode ser reduzida a uma inveja do órgão pura e simplesmente, mas uma inveja por não ter alguma coisa no corpo que seja um símbolo do falo. Segundo Freud, essa inveja feminina “[...] deixa marcas imborráveis em seu desenvolvimento e na formação do seu caráter [...]” (1932, p. 116). Não é que os homens não necessitem de objetos fálicos, que a posse de um pênis baste a um homem, mas nas mulheres há um plus nesse sentido. “A comparação com o menino, tão melhor dotado, é uma afronta a seu amor-próprio [...]” (FREUD, 1932, p. 117). Essa inveja do pênis existe porque o órgão sexual feminino, a vagina, não é reconhecida no nível da constituição do sujeito; em vez de perceber um órgão diferente no corpo da mulher, o que se vê é uma ausência. É com as seguintes palavras que Freud define essa visão: “[...] horror frente a criatura mutilada, ou menosprezo triunfalista por ela” (1925, p. 271). E ainda com relação às mulheres: Superada a primeira tentativa de explicar sua falta de pênis como castigo pessoal, e depois de apreender a universalidade deste caráter sexual, começa a compartilhar o menosprezo do homem por esse sexo mutilado em um ponto decisivo e, ao menos nesse sentido, se mantém em igualdade com o homem (FREUD, 1925, p. 272).
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Em termos lacanianos, isto se dá pela ausência de significante que represente A mulher (LACAN, 1972-1973). E por isso, diferentemente do menino, que sai do Édipo “bem armado”, uma menina precisa construir o seu ser mulher. Freud coloca a saída para a feminilidade no Édipo. Após a percepção da castração, uma menina precisa se voltar ao pai na esperança de que ele lhe dê um pênis, que, na equivalência simbólica, pode ser um filho; entretanto, Freud é bem claro: “mas quem sabe deveríamos ver nesse desejo de pênis, melhor, um desejo feminino por excelência” (1932, p. 119). Para abordarmos o conceito de devastação é preciso, antes, entender o que Lacan chama de Gozo Outro (LACAN, 1972-73), o gozo que se difere do gozo fálico. A norma fálica, o falocentrismo, é atributo de todos os neuróticos, próprio do recalque. Estar referido à castração à maneira do neurótico significa que o falo entra em cena como uma baliza, um norte, ele dá enquadramento ao sujeito. Acontece que para os sujeitos que se colocam do lado feminino nas fórmulas da sexuação, o gozo fálico não é o limite (LACAN, 1972-73). Eles experimentam um outro gozo, chamado por Lacan de Gozo Outro. Trata-se de um gozo totalmente alheio ao gozo fálico, ilimitado, cujas qualificações são pouco sabidas, já que não podem ser ditas. É um gozo em que se podem ver algumas manifestações, mas não se pode dizer nada dele, “[...] é inacessível por não corresponder a nenhum desejo e, portanto, não pode ser de forma alguma apreendido ou significantizado” (MIRANDA, 2001, p. 245). Colette Soler chega a dizer que se trata de “um ponto de foraclusão” (2005, p. 97) que se manifesta, segundo Elizabeth da Rocha Miranda (2001), como desrazão, loucura e também nas manifestações dos místicos. Ele é tributário da ausência de significante que diga o que é uma mulher. Utilizando uma terminologia freudiana, é consequência do não reconhecimento da vagina no plano da constituição do psiquismo. O que faz de uma mulher não-toda na castração. Assim, para aqueles que se posicionam do lado feminino, e que por isso têm acesso ao Gozo Outro, as experiências de desrazão, descontrole, de uma certa modalidade de loucura não são raras. Na relação de uma mãe com sua filha, a manifestação desse Gozo Outro se chama devastação e se relaciona a algo do ser mulher que não pode ser dito, porque está fora da linguagem, não há significante capaz de nomeá-lo. Nas palavras de Soler (2005, p. 97): “[...] o não-todo se cala, por definição, e com um silêncio absoluto, que frequenta as margens de tudo o que se ordena na série fálica”. Diante do que foi exposto, resta a pergunta: existe saída para uma mulher? No que tange à relação com sua mãe, a devastação parece tratar-se de algo estrutural.
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Nas palavras de Elizabeth Rocha Miranda: Se a devastação é uma não resposta do Outro em relação à falta de um significante que diga A mulher, a devastação é então, para a mulher, estrutural, na medida em que não se pode dizer A mulher. Mas poderá ou não ser amenizada de acordo com o desenrolar edípico e com a relação da mãe com sua própria alteridade e o gozo aí implicado. É a relação da mulher que é mãe com o não-todo fálico que a habita que situará a filha de modo a permitir que ela lide com sua alteridade de forma mais ou menos devastada (2001, p. 141). Carmen Gallano (2011, p. 155) afirma que Lacan “quase faz do estrago um assunto estrutural”; na sequência do texto desenvolve: Logo, a subsistência de sua essência feminina, a menina não pode receber do pai. Então, onde buscá-la? Na mãe. Mas a busca na mãe como mãe? Não, a busca na mãe como mulher. E a menina, às vezes, vai interpretá-la, de maneira selvagem, o que faz surgir essa relação dolorosa e às vezes demolidora é a feminilidade de sua mãe. É uma chamada para que a mãe responda do segredo de seu gozo de mulher. A falta de resposta a essa interpolação é estrutural porque a mãe nada pode dizer de sua relação direta com S(%) (2011, p. 155-156). Existe, como vimos, aquilo que uma mãe não pode fazer, porque não tem meios para isso. Porém, segundo Elizabeth da Rocha Miranda “uma mãe precisa vestir o corpo da filha de modo a ensiná-la a suportar a falta fálica” (2001, p. 139); já um pai precisa ser “um porto seguro [...] onde a filha se refugiaria para se proteger dos ataques de um amor excessivo, exclusivo, devastador com a mãe” (2001, p. 139140). Gallano (2011) afirma que uma mãe precisa mostrar à filha como resolveu sua dupla privação: fálica e feminina, e mesmo que o que é uma mulher não possa ser dito em significantes, isso não significa que não exista uma saída, caminhos possíveis para ser mulher. Elizabeth da Rocha Miranda acrescenta: [...] se seguirmos Lacan em seu aforismo ‘A mulher não existe’, as mulheres têm que ser inventadas uma a uma, e, para tanto, elas esperam da mãe ‘mais substância como mulher’, esperam uma resposta, uma orientação para inventar-se como mulher. A resposta só pode vir através dos meios ditos da mulher que é mãe, passando pelo que ela, a mãe, inventou para si própria do que é ser mulher [...] mas se do lado da mulher que é mãe a ‘resposta’ não vem, e do lado pai não há uma ‘promessa efetiva’, o que surge é a devastação (2001, p. 141).
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A resposta à pergunta o que é uma mulher? precisa vir pelo semblante. Agora, quando os semblantes e as máscaras não são suficientes, o ilimitado do gozo Outro, este ponto de foraclusão, atinge o corpo: [...] a interdição fracassa e surge a tentativa de fazer a relação sexual existir através do corpo a corpo com a filha. Aqui a clínica é vasta e desastrosa na medida em que não há o que decifrar. As invasões que afetam o corpo – carinhos exagerados, brigas que ambas se batem, a impossibilidade de a filha assumir a propriedade do próprio corpo – são relatadas sempre acompanhadas de ‘um não sei o que acontece’, ‘quando vi já tinha feito’, ‘não ligo’ e na maioria das vezes não aparece como queixa [...] (MIRANDA, 2001, p. 145). Três exemplos, dois deles casos clínicos, exemplificam essa ausência de limites entre uma filha e sua mãe, expressão do Gozo Outro. Catarina queixa-se de ter uma mãe muito brava, que a agredia fisicamente com frequência diante de motivos banais. Certo dia a mãe disse: “eu limpei a casa, e se você entrar aí eu vou te bater”. Catarina desafia: “se você me bater por causa disso, eu vou contar ao meu pai”. Ao que a mãe responde: “se você contar ao seu pai, eu vou te bater de novo”. A menina entra na casa, apanha da mãe, Catarina conta ao pai. Ele diz à esposa: “você é louca, olha como está essa menina, toda marcada por causa de uma besteira. Você está proibida de fazer isso”. A mãe se cala e dirige um olhar para a filha. Quando o pai se afasta, a mãe recomeça a tortura. Essa cena se repete durante anos. Catarina, então, tem treze anos. Foge para ir a uma festa. O pai fica furioso e a mãe pede que Catarina conte os detalhes do que fez na festa. Todos eles. A agressão física desde então é totalmente substituída. Catarina nunca mais apanha, a tortura é outra: contar à mãe todos os detalhes das suas noites, os homens com quem dorme, como se dá o sexo etc. Outro caso. Madalena tem uma mãe excessivamente presente em sua vida. Elas dormem juntas, a mãe confidencia à filha detalhes de sua vida conjugal com o marido, a mãe vai junto com ela para a faculdade, nas consultas etc. Madalena tem trinta e oito anos e conseguiu começar a faculdade agora. Passa por dificuldades, sente que todas as pessoas estão de olho nela, vigiando-a o tempo todo. Caso ficássemos apenas no nível do fenômeno, isso seria descrito como mania de perseguição, que não tem nada de delirante, já que é real. Eu digo “o mundo não te vigia como sua mãe o faz”. Ela se emociona e responde: minha mãe pensa que me superprotege, mas o que ela faz é o oposto disso, eu fico desprotegida diante do mundo.
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Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação
O terceiro caso é a Tereza, de Kundera. Em seu livro A insustentável leveza do ser, Milan Kundera nos presenteia com uma metáfora belíssima da devastação: campo de concentração. Trata-se, a meu ver, de uma definição com o rigor próprio de uma boa definição teórica. Então, diante do indizível do Gozo Outro, recorramos à arte como Freud bem nos ensinou. Conheçamos Tereza e sua mãe. Tereza era fruto de uma gravidez que ocorreu ao acaso, cujo resultado, devido à impossibilidade de encontrar um médico que fizesse o aborto, foi um casamento indesejado. A mãe de Tereza fora uma mulher muito vaidosa, que gostava de se olhar no espelho, era muito bonita. Não suportou quando as rugas começaram a aparecer “[...] e disse a si mesma que esse casamento tinha sido um erro” (KUNDERA, 1984, p. 39). Abandonou o marido e Tereza. Após a morte do pai, Tereza se viu obrigada a morar com a mãe e seu novo marido. Sobre a convivência das duas, o autor nos diz: [...] sentia-se culpada, mas era uma culpa indefinida, como o pecado original. Fazia tudo para expiar essa culpa [...] tudo o que ganhava entregava à mãe. Estava disposta a tudo para poder merecer seu amor. Tomava conta da casa, ocupava-se dos irmãos e irmãs [...]. Em casa não existia pudor. A mãe ia e vinha no apartamento em roupas de baixo, às vezes sem sutiã, às vezes completamente nua [...] Seu padrasto não andava nu, mas só ia ao banheiro quando sabia que Tereza estava no banho. No dia em que ela resolveu trancar a porta, a mãe fez uma cena: – Quem você pensa que é? Você acha que ele vai arrancar um pedaço de sua beleza? [...] Que seu marido olhasse Tereza com desejo, a mãe ainda podia admitir, mas não admitia que a filha quisesse se emancipar e ousasse reivindicar direitos (KUNDERA, 1984, p. 41). Em outro trecho: Num dia de inverno, a mãe pôs-se a andar nua no quarto com a luz acesa. Tereza correu para abaixar a veneziana, de modo que a mãe não pudesse ser vista do prédio em frente. Ouviu-a rir às suas costas. No dia seguinte algumas amigas foram visitar a mãe. A mãe imediatamente aproveitou para contar como Tereza quis proteger seu pudor. Ela ria, e todas as mulheres a imitavam. Depois disse: – Tereza não quer admitir que o corpo humano mija e peida. – Tereza ficou vermelha como um pimentão, mas a mãe prosseguiu: – Que mal há nisso? – E, imediatamente, ela mesma deu a resposta, soltando sonoros peidos. Todas as mulheres riam (KUNDERA, 1984, p. 42).
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Sobre a mãe de Tereza: Seu comportamento não é senão um gesto brutal que nega sua juventude e sua beleza. Na época em que os nove pretendentes se ajoelhavam em círculo à sua volta, ela tomava um cuidado escrupuloso com sua nudez. Era em termos de seu pudor que calculava o preço de seu corpo. Se é despudorada agora, ela o é radicalmente: com esse despudor, passa um risco solene sobre a vida e grita bem alto que a juventude e a beleza, que ela superestimara, não têm na realidade nenhum valor [...] Insisti em que a filha fique com ela no mundo do despudor, onde a juventude e a beleza não têm nenhum sentido, e onde o universo não é mais que um gigantesco campo de concentração de corpos idênticos e almas invisíveis (KUNDERA, 1984, p. 42-43). O trecho acima citado demonstra que, diante da impossibilidade de representar o feminino, a mãe de Tereza encontrava-se irremediavelmente aprisionada na beleza. Quando percebe que sua beleza não havia sido garantia de nada, escolhe um caminho doloroso: permanecer nesse mundo indiferenciado que é um campo de concentração. Desse horror não suportava que Tereza saísse, que se emancipasse. Mas, ao acaso, Tereza encontra um amor, Tomas. Sai da casa da mãe e vai morar com o amado em Praga. A mãe ainda fez uma tentativa desesperada: Quando a mãe de Tereza compreendeu que sua agressividade não tinha mais poder sobre a filha, passou a mandar cartas lastimosas para Praga. Queixava-se do marido, do patrão, de sua saúde, de seus filhos, e dizia que Tereza era a única pessoa que lhe restava na vida. Tereza acreditou estar ouvindo, enfim, a voz do amor materno, pela qual ansiava há vinte anos, e teve vontade de voltar. E essa vontade era ainda mais intensa porque se sentia fraca. As infidelidades de Tomas lhe revelavam de repente sua impotência, e desse sentimento de impotência nascia a vertigem, um imenso desejo de cair. A mãe lhe telefonou. Estava com câncer, dizia que tinha apenas alguns meses de vida. [...] Falou com Tomas sobre a doença da mãe e anunciou que iria tirar uma semana de licença para ir vê-la. Havia um desafio em sua voz. [...] Tomas lhe desaconselhou a viagem. Telefonou para o dispensário da pequena cidade. Na Boemia, os dossiês dos exames de câncer são muito detalhados, e ele pôde verificar, facilmente, que a mãe de Tereza não tinha nenhum sintoma de câncer e que há mais de um ano não fazia nenhuma consulta. Tereza obedece e não foi ver a mãe. Mas no mesmo dia caiu na rua, seu passo tornou-se hesitante; caía quase todos os dias, esbarrava nas coisas ou, na melhor das hipóteses, deixava cair todos os objetos que tinha nas mãos. Sentia um desejo irresistível de cair. Vivia em uma vertigem contínua. Quem cai diz: ‘Levanta-me!’ Pacientemente, Tomas a levantava (KUNDERA, 1984, p. 54-55).
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Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação
Campo de concentração é uma expressão muito propícia para definição de devastação, uma maneira belíssima de dizer o indizível. Kundera, de maneira poética, consegue ilustrar, a meu ver, a manifestação do Gozo Outro na relação mãe e filha. Continuemos com as palavras do autor: Tereza olhava para a prefeitura destruída, e esse espetáculo lembrou-lhe, de repente, sua mãe: essa necessidade perversa de expor suas ruínas, de se gabar de sua feiura, de ostentar sua miséria, de mostrar o coto de sua mão amputada e de obrigar o mundo inteiro a olhar. Nos últimos tempos tudo lhe lembrava a mãe, como se o universo materno, do qual escapara há uns dez anos, estivesse voltando, cercando-a por todos os lados. Foi por isso que no café da manhã ela havia contado que a mãe lera, às gargalhadas, seu diário íntimo para a família. [...] Tereza usava essa expressão desde criança quando queria exprimir a ideia que fazia de sua vida familiar. O campo de concentração é um mundo onde as pessoas vivem umas sobre as outras, dia e noite. As crueldades e violências são apenas aspectos secundários e supérfluos. O campo de concentração é a liquidação total da vida privada [...] Tereza, quando morava com a mãe, vivera num campo de concentração. Depois disso sabia que um campo de concentração não é nada excepcional, nada que deva nos surpreender, mas alguma coisa de comum, de fundamental; nascemos nele e dele só podemos escapar com a tensão máxima de todas as nossas forças (pp. 117-118). Com base no que foi desenvolvido, penso ser possível propor a devastação como campo de concentração, no sentido de um lugar de “corpos idênticos e almas invisíveis”, de dificuldade de emancipação, de despudor, um lugar familiar e mortífero.
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DE SOUZA, Pricilla Pesqueira
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resumo
O presente trabalho pretende abordar a relação de uma mãe com sua filha pelo viés da devastação. Em 1932, em seu texto “A Feminilidade”, Freud aponta para a importância da relação pré-edipiana para uma menina, bem como das consequências complicadas do complexo de castração, principalmente no que diz respeito aos sentimentos e reivindicações feitas à mãe. Lacan (1972) usa o termo devastação para descrever a relação entre uma mãe e uma filha. Fundamenta sua tese com a noção de Gozo Outro, fora do fálico – um gozo suplementar para os sujeitos que se posicionam do lado feminino nas fórmulas da sexuação. A devastação é a manifestação do Gozo Outro na relação entre uma mãe e sua filha, se fundamenta na ausência de significante que diga o que é uma mulher. Com o objetivo de clarificar do que se trata a devastação, recorreremos a Milan Kundera. Em A insustentável leveza do ser, o autor usa a expressão “campo de concentração” para se referir à relação de Tereza e sua mãe.
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Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação
palavras-chave
Complexo de Édipo, devastação, Gozo Outro, campo de concentração.
abstract
The present work intends to address the relationship between a mother and her daughter through the lenses of devastation. In 1932, in his text The Femininity, Freud stresses to the importance of the pre-Oedipal relationship to a girl, as well as to the complicated consequences of castration complex, especially in regard to the feelings and demands made to the mother. Lacan (1972) uses the term devastation to describe the relationship between a mother and a daughter. He bases his argument on de concept of Jouissance Another, outside the phallic – a supplementary jouissance to the subjects that are positioned on the feminine side in the formulae of sexuation. Devastation is the manifestation of Jouissance Another in the relationship between a mother and her daughter, and it is based on the absence of significant to say what a woman is. With the objective of clarifying what devastation is about, we resorted to Milan Kundera. In his book The unbearable lightness of being, the author uses the term “concentration camp” to refer the relationship between Tereza and her mother.
keywords
Oedipus complex, devastation, Jouissance Another, concentration camp.
recebido 05/03/2015
enviado 10/08/2015
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Fazer o amor é poesia: laço e contingência Marcia de Assis Introdução O título escolhido reporta-se, mais especificamente, aos capítulos 6 e 11 do Seminário Mais, ainda (LACAN, 1972-73/1985, p. 98), no qual Lacan designa o ato de amor como sendo a abordagem ao objeto causa de desejo, realizada pelo ser falante. “Aí está o ato de amor. Fazer o amor, como o nome indica, é poesia” (Ibid). Mais adiante, nesse mesmo seminário, ele esclarece uma nova função do amor, diante da impossibilidade de onde se define um real. É aí que o amor é posto à prova, perante a relação sexual impossível de se escrever, pois “do parceiro, o amor só pode realizar o que chamei, por uma espécie de poesia, para me fazer entender, a coragem, em vista deste destino fatal” (Ibid, p. 197). Caso a coragem seja traduzida em aceitação de tal destino, assunção da sorte de falasser, pode revelar um amor que sabe da impossibilidade da relação sexual e indicar “uma relação de amor possível que, desta vez, reconhece o outro” (SOLER, 2012a, p. 183), um laço que vem em suplência, encontro, instante que subsiste pelo cessa de não se escrever. Contingência, destino e drama do amor. Este trabalho, produto de cartel, propõe esclarecer tal escolha de título, por considerar o tema relevante e que não pode ser negligenciado, uma vez que pretende apontar uma mudança de posição do sujeito, ao considerar a possibilidade de surgimento de um amor que sabe, envolvendo um savoir-faire perante o real definido por meio da impossibilidade.
Efeito da operação de linguagem Inicio esta empreitada com a seguinte frase: “Não existe escolha de objeto na vida amorosa a não ser que o objeto a tenha sido extraído” (SOLER, 2012c, p. 65). Tal subtração é efeito da operação de linguagem sobre o ser vivente, sobre o real da vida. E o que Lacan designou como objeto pequeno a (um objeto externo a qualquer definição possível da objetividade) trata-se da referência ao vazio que não se obtura, falta estrutural que origina o desejo. A linguagem introduz a falta, cava a fenda, abrindo espaço para o desejo. Mas o significante também é causa de gozo, sem o significante não se pode abordar o corpo do Outro sexo.
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Não se pode falar em amor, desejo e gozo sem referência à perda, ao objeto perdido desde sempre, pois é dessa subtração que surgem o desejante, os ímpetos de apetência e as extensões da libido, fazendo o sujeito ir buscar... o Outro, na tentativa de repor a perda. Todo desejo vai na direção de um complemento da falta, e sendo o desejo a verdade do amor, é com essa falta que se ama. “Vocês sabem que é nas perturbações da vida amorosa que jaz uma parte importante da experiência analítica e que nossas especulações concernem ao que chamamos de escolha de objeto amoroso”, expõe Lacan (1962-63/2005, p. 105). Relembrando Freud, em seu artigo “Introdução ao Narcisismo” (1914/1984), há dois tipos de escolha amorosa: 1. Escolha narcisista; 2. Escolha por apoio. Esta última é a escolha que se dá por transferência de libido. Tomando o par especular, que serve de suporte ao par erótico, ocorre uma ramificação do investimento erógeno original, investimento este, originariamente no próprio corpo, que se transfere ao outro lado – i’(a), ou seja, ocorre transferência de a para a imagem do Outro, conferindo valor erótico a este, conferindo o brilho desejável, “a cor só encontrável no terceiro minuto da aurora”.1 Este tipo de escolha amorosa é o que ocorre na transferência analítica, em que o analisante investe libidinalmente o outro, incluído no fantasma, dando-lhe o lugar de objeto amado, enquanto ocupa o lugar de amante/desejante, aquele a quem falta. No Seminário A transferência (LACAN, 1960-61/1992), Lacan convoca-nos a buscar O Banquete, de Platão, enfatizando o que se passa entre Alcibíades e Sócrates. De acordo com o que foi exposto acima, podemos dizer de uma forma esquemática: Alcibíades ------------> Sócrates a-------> $ --------------> (a) Outro barrado “É aí que se estrutura e se situa o que, em nossa análise da transferência, produzi diante de vocês com o termo agalma” (LACAN, 1962-63/2005, p. 121). Sócrates não é mais que um invólucro do objeto a, causa de desejo, o continente do agalma, objeto precioso. E pelo simples fato de haver transferência, o analista está implicado na posição de ser aquele que contém o agalma, mesmo que o su1 Referência ao poema Receita de Mulher, de Vinícius de Moraes.
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jeito não o saiba. Apenas pela suposição endereçada, é no outro que o pequeno a, o agalma, funciona. Lacan expõe desta forma no Seminário A transferência (LACAN, 1960-61/1992, p. 194), propondo uma equivalência entre agalma e objeto da pulsão parcial. No Seminário A angústia, ele aponta o que está latente na posição do analista, a função de objeto parcial (LACAN, 1962-63/2005, p. 106). Dez anos após, no Seminário Mais, ainda, enfatizará que ocupa-se o lugar de semblante de objeto, ocasionalmente (LACAN, 1972-73/1985, p. 129). Ainda no Seminário A angústia, ficará mais clara a equivalência proposta entre agalma e objeto parcial ao se distinguir o objeto pura causa de desejo e o objeto a situado “no campo do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 366), ou seja, quando há investimento libidinal que se transfere “para objetos historizados, vestidos com as imagens e significantes do discurso” (SOLER, 2012a, p. 166). Dito de outra maneira, objeto mais-degozar visado em tum parceiro eletivo. É o que parece estar em jogo, quando Soler irá denominar objeto sintoma (Ibid). Voltarei a ele, mais adiante. Acontece que entre o amante e o amado não há nenhuma coincidência, pois o que falta em um não se encontra escondido no outro. Aí reside o problema do amor, uma vez que, no plano amoroso, servimos nossa castração, ou seja, amar é dar o que não se tem. Recorro à poesia, mais uma vez, buscando uma bela forma de ilustrar, por meio dos versos de Drummond, recolhidos do poema O malvindo:2 ama torto cada vez e ama sempre, desfalcado, com o punhal atravessado na garganta ensandecida (DRUMMOND, 1996, pp. 74-75, grifo nosso). A forma da conquista do outro não é a do “eu te amo, mesmo que não queiras”. Há outra formulação, não articulável: “Eu te desejo, mesmo sem saber. Desejando-o, sempre sem saber disso, eu o tomo pelo objeto, por mim mesmo desconhecido, de meu desejo... eu te identifico com o objeto que falta a ti mesmo” (LACAN, 196263/2005, p. 37). Desejar o Outro é desejar o a, o desejo “aiza” o parceiro.
2 Referência ao poema O malvindo, de Carlos Drummond de Andrade.
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O sujeito não alcança o Outro E x Фx x Фx A
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Recuperado de Lacan (1972-1973, p. 105)
A função do desejo está subjacente no amor, é seu pivô essencial. E o par no nível do desejo é o par da fantasia, cujo matema, $<>a, Lacan sugere que leiamos da seguinte maneira: “sujeito desejo de a” (Ibid, p. 59). Proponho uma aproximação ao que nos apresenta Soler (2012b, p. 133): “Entre o homem e a mulher há o muro erigido pelo fantasma”. Portanto, a cada encontro de amor, o sujeito reproduz a sua fantasia, em que o objeto é postiço, nos assegura Lacan. O sujeito não alcança o Outro. No ato sexual, o gozo do homem não vai ao encontro do Outro sexo, a mulher barrada. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, pelo fato de ele ser a causa de seu desejo, eis o que nos apresenta Lacan no Seminário Mais, ainda (LACAN, 1972-73/1985, p. 108). Ou seja, entre os seres falantes, aquele que se alinha do lado homem só pode abordar o Outro sexo, contornando o objeto maisde-gozar. Eis o ato de amor. Não há acesso ao Outro barrado, senão pela via das pulsões parciais. Estou tomando homem e mulher com base na referência ao quadro da sexuação proposto por Lacan no Seminário Mais, ainda (Ibid., p. 105). Aquele que se alinha do lado homem tem relação com o $ que só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a inscrito do outro lado, o lado mulher, que tem relação com o Outro barrado (Ibid., pp. 107-109). A libido é masculina e se faz presente do lado homem, o lado todo no gozo fálico. Do Outro lado, o Outro gozo, enigmático e sem palavras, que faz dela parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira (LACAN, 1972/2003, p. 467). Na voz do poeta: Te quero reta como a espada ou o caminho Porém te empenhas em guardar um recanto de sombra que não amo. Amor meu, me compreende, te quero toda... (NERUDA, 2001, pp. 44-45, grifo nosso).3
3 Trecho de poema de Pablo Neruda, em Los Versos del Capitán.
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Porém, ela é não-toda, não-toda dele. Resta um recanto de sombra, pois, por ser não-toda na função fálica, ela tem um gozo suplementar. Faz-se necessário esclarecer que o pronome ela está aqui referido a “um ser falante qualquer que se alinha sob a bandeira das mulheres” (LACAN, 1972-73/1985, p. 98). “A mulher, isto só se pode escrever, barrando-se o A” (Ibid.). E é por isso que ela tem relação com o Outro, tomando por referência o quadro da sexuação já mencionado. Do lado todo na função fálica, “a gente se alinha aí, em suma, por escolha – as mulheres estão livres de se colocarem ali se isto lhes agrada” (Ibid., p. 97). Nesse momento, Lacan refere-se às mulheres, aquelas que não possuem os penduricalhos entre as pernas. E ele faz, também, a seguinte ressalva: a função fálica não impede os homens de serem homossexuais, ou seja, mesmo que a escolha de parceiro seja um outro homem (aquele com penduricalhos entre as pernas), a função fálica lhes serve para se alinharem do lado homem e abordar as mulheres, o Outro sexo. Portanto, tal qual Lacan, “chamemos heterossexual aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (LACAN, 1972/2003, p. 467). Qualquer que seja o sexo, anatomicamente falando, e a escolha de parceiro. O Outro (A mulher barrada) só se apresenta para o sujeito em uma forma a-sexuada. Tudo que foi suporte-substituto do Outro na forma de objeto de desejo é a-sexuado (LACAN, 1972-73/1985, p. 172). Se o ato sexual é um a-sexo, é possível aceitar que se proponha uma equivalência entre tal ato de amor e la petite mort, uma vez que o instante de satisfação orgástica ratifica a separação. O orgasmo não tem acesso ao Outro. Não há o dois do amor, há Um, sozinho, afirma Lacan no Seminário Mais, ainda (Ibid, p. 91), em que também ressalta a solidão do falasser, no que diz respeito à relação que não pode se escrever (Ibid. p. 163). A cada um seu gozo, não há proporção sexual. Dito de outra forma, trata-se de uma impossibilidade do desejo ter acesso ao Outro do gozo. No entanto, a busca se mantém, mais, ainda. No percurso analítico, ela se manterá enquanto não se esgota a libido analisante, combustível causado pelo objeto, reserva derradeira e irredutível da libido. Ao ir em busca do objeto causa de meu desejo, realizo para o outro justamente o que ele procura. Ou seja, propor-me desejante é propor-me como falta de a, diz Lacan no Seminário A angústia (LACAN, 1962-63/2005, p. 198). É por esta via que abro a porta para que eu seja apreciado como amável, afirma Lacan, ilustrando com a metáfora: a mão que se estende em direção à lenha ardente e, no momento em que parece alcançá-la, a lenha se inflama e, da chama, aparece outra mão que se estende em direção à primeira (Ibid, p. 106). Aí está a reciprocidade do amor. É porque se deseja que se ama, pois ao ir buscar no outro o que lhe falta, abre-se a porta para que esta outra mão se estenda, também em busca. Soler (2012a, p. 141) afirma que, no ato sexual cada um dos parceiros se experimenta estar no lugar da coisa inatingível, por um instante. Ou seja, cada par-
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ceiro ocupa o lugar de semblante do perdido desde sempre, momentaneamente. Proponho aproximar os termos semblante, invólucro e suplência, acrescentando mais um nesta equivalência: postiço. O objeto da fantasia neurótica é um objeto postiço, nos assegura Lacan, no Seminário A angústia (LACAN, 1962-63/2005, p. 61). No lugar de... substituição, portanto. “Poesia é voar fora da asa”, disse o poeta-passarinho pantaneiro,4 que também nos mostrou que o “verbo tem que pegar delírio”, tem que se prestar às metáforas, se emprestar à substituição significante, para que a palavra tome lugar na voz do poeta: No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio (BARROS, 2000, p. 15).
O amor faz suplência: laço e contingência A poesia responde ao impossível, nomeando o possível. Fazer poesia é utilizarse da metáfora: um significante vem em lugar de outro e produz o novo. “Fazer o amor, como o nome indica, é poesia”, afirmou Lacan (LACAN, 1972-73/1985, p. 98), e a proposta aqui é tomar tal afirmação não somente pelo viés do ato de amor (ato sexual), mas também pela via criativa, inventiva, ao final de um percurso analítico, quando poderá surgir um amor que “indica um saber fazer uma conduta com seu parceiro-sintoma” (BITTENCOURT, 2013, p. 26). O gozo só se interpela, só se evoca a partir de um semblante, nos assegura Lacan no Seminário Mais, ainda (Ibid., p. 124). Mesmo o amor se dirige ao semblante, ao que está envelopado com as vestes imaginárias e simbólicas. No laço de amor, o parceiro é eleito a partir dos significantes e das representações da fantasia. Ele se presta a ser invólucro do objeto a, causa de desejo, e um corpo de gozo para o sujeito/ser falante. Há um eleito no amor, parceiro instituído como o continente do agalma, objeto-sintoma tornado alvo do vetor chamado desejo. Para que se torne mais clara a referência, é preciso trazer outra, ou seja, trazer a referência 4 Poeta Manoel de Barros, O Livro das Ignorãças.
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ao Seminário RSI, em que Lacan lança a pergunta “para um homem, o que é uma mulher?” (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 21/01/1975). Um sintoma, um corpo de gozo eleito por meio do inconsciente, uma formação de seu inconsciente. “Não é o caso de todo parceiro?” (SOLER, 2012a, p. 149). O sintoma sexuado instaura um substituto, uma suplência. Se não há relação sexual, há uma relação de amor possível, efeto (afeto/efeito) do inconsciente real, pois é somente pelo afeto resultante da hiância que algo se encontra. E nada reduz a contingência. Uma relação de amor que reconhece o outro como unicidade solitária não acredita no parceiro, nem dá crédito a ele. Encontro contingente entre dois saberes inconscientes, dois falasseres que trazem, cada qual, a sua marca de exílio. Dueto entre dís-pares amantes a entoar, cada um, a sua lalação. Embora a psicanálise não programe o bom encontro, que se deve à contingência, o discurso analítico acolhe as coisas do amor, colocando em jogo a castração, foracluída no discurso capitalista. Portanto, acolho o que nos mostra Soler em seu livro Lacan, o inconsciente reinventado: cabe à psicanálise se aliar a Eros, o deus do laço, “mas na medida para cada um do real sintomático que o define e sem passar pela norma, ainda que hétero” (Ibid., p. 189). O amor é a causa humana por excelência, diz Jairo Gerbase (1998, citado por MAGALHÃES, 2013, pp. 241-242). Ele faz semblante de preencher o vazio humano, mais que o capital e o trabalho.5 Se insiste no encontro com a parte perdida, ele é desencontro; porém, em sua função sintoma, suplência do furo, ele é parceiro-sintoma, “e é então que, qual Eros menino, o amor brinca de faz de conta que encontrou a parte perdida, ainda que saiba que ela jamais existiu” (MAGALHÃES, 2013, p. 244). Em sua função sintoma, o amor enlaça as três dimensões, sendo uma das diversas modalidades de sintomas socializantes, em que “o gozo, por muito pouco que se ligue, se aloja em um laço, pelo fato de se enodar ao Imaginário e Simbólico do parceiro” (SOLER, 2012a, p. 148). Acontece de eles se enodarem, contingência. Não se trata de reafirmar o que Lacan já havia dito em “Nota Italiana”? “Pôr a contribuir o simbólico e o real que o imaginário aqui une (por isso é que não podemos largá-lo de mão)” (1974/2003, p. 315). E continua, dizendo ser preciso aumentar os recursos graças aos quais se possa fazer o amor mais digno. Fazer o amor mais digno: l’amur, amuro. A arte também é uma causa humana, ao apontar o objeto que falta. O amor, que só subsiste a partir do cessa de não se escrever, faz suplência, porém não obtura o furo irredutível, apenas supre a ausência de relação sexual que não cessa de não se escrever. A coragem do falasser diante do destino fatal, daí poderá surgir uma solução inédita e singular, indicando a transformação, a saída da impotência ditada 5 Gerbase é citado no livro A criança em nós.
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pela fantasia. Um amor mais digno, que não espera complemento do Outro, pois reconhece o outro, um dís-par. Amor, além do sentido e das significações, signo do Um, Um-todo-só. Como não tomar tal coragem pela via inventiva, pelo viés de criação? Esse amor que vem em suplência implica um savoir-faire, um saber lidar com a impossibilidade. E por este viés criativo, cabe apostar e propor que o amor é uma trama tecida nas bordas do furo, pois “o que perdura de perda pura é bordado” (DIAS; FINGERMANN, 2005, p. 39).
referências bibliográficas ANDRADE, C. D. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996. 144p. BARROS, M. O livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2000. 104p. BITTENCOURT, M. V. Os destinos do amor ao saber. In. Stylus: revista de psicanálise, n. 27. Rio de Janeiro: AFCL, 2013, pp. 23-28. DIAS, M.; FINGERMANN, D. Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras, 2005. 174p. FREUD, S. (1914). Introducción del Narcisismo. Tradução de José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1984. (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV, pp. 65-98). LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 386p. . (1962-63). O seminário, livro 10: A angústia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 367p. . (1972). O Aturdito. In. LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 449-497. . (1974). Nota Italiana. In. LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315. . (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 201p. . (1974-75). O Seminário, livro 22: RSI. Inédito. MAGALHÃES, S. A criança em nós. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico: AÁgalma, 2013. 300p. NERUDA, P. Presente de um poeta. Tradução de Thiago de Mello. São Paulo: Vergara & Riba Editoras, 2001. 103p. SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012a. 234p.
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Fazer o amor é poesia: laço e contingência
. O Inconsciente: o que é isso? Tradução de Cícero Alberto de Andrade Oliveira e Dominique Fingermann. São Paulo: Annablume, 2012b. 194p. . Seminário A angústia, de Jacques Lacan. Tradução de Elynes Barros Lima, Lia Carneiro Silveira, Sonia Maria Coni Campos Magalhães. São Paulo: Escuta, 2012c. 168p.
resumo
Esta é uma elaboração resultante do trabalho de cartel sobre o Seminário Mais, ainda, que se propõe a desenvolver a seguinte afirmativa de Lacan: “Fazer o amor, como o nome indica, é poesia”, apontando uma função nova do amor, sua função de suplência, que faz laço. É o amor posto à prova diante da relação sexual impossível de se escrever, o afeto resultante da hiância, que permite o encontro contingente. Não será este amor da ordem da invenção, indicativo de um saber fazer uma conduta?
palavras-chave
Não relação sexual, amor, suplência, laço.
abstract
This is the result of a cartel upon Lacan’s Seminar Encore which aims to develop the following statement of Lacan: “To make love, as the expression implies, is poetry”, pointing to a new function of love which is to make link, its substitutive function. It is by putting love under test, in face to the impossibility of the sexual relationship that does not cease to not write itself, the affect before the hiatus, that allows the contingent encounter. Is not that love of the order of invention an indication of a knowledge on how to make a conduct?
keywords
Love, non sexual relationship, substitution, link.
recebidos 11/07/2015
aprovados 10/08/2015
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 31 p.177-185 outubro 2015
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“O amor feliz não tem história”: notas sobre o amor cortês e a impossibilidade1 Miriam Ximenes Pinho “O amor, isso me incomoda. A vocês também, é claro. Mas não como a mim” (LACAN, 1973-74/inédito). Também eu, instigada por este incômodo, fui investigar o fenômeno amoroso pela via de um de seus avatares, o amor cortês, cujos artifícios Lacan de(se)cantou em diferentes momentos de sua obra. Do amor cortês, interessa-me o seu princípio de impossibilidade e, para tanto, os Seminários 7, 20 e 21 foram examinados. Qual o estatuto dessa impossibilidade? Seria da mesma ordem daquela que atinge todos os amores, mesmo os mais eternos? Parto de um romance de cavalaria medieval que começa assim: “Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e morte? É de Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em grande aflição eles se amaram, depois morreram no mesmo dia, ele por ela, ela por ele” (BÉDIER, 2012, p. 1). A lenda de Tristão versa sobre o amor ilícito entre um bravo cavaleiro e uma dama de alto valor destinada a desposar o rei Marcos, tio de Tristão. Rodeios e obstáculos perseguem os amantes até o desfecho trágico quando morrem um pelo outro. O romance de Tristão e Isolda expressa um tipo de relação entre um homem e uma mulher, surgido em um determinado círculo social e histórico, a sociedade cortês e cavaleiresca dos séculos XII e XIII (ROUGEMONT, 1988). Um romance que encanta menos por celebrar os prazeres do sentido, a paz e a felicidade dos amantes do que os entraves, o sofrimento, o amor irrealizado. Em pleno feudalismo, trata-se de um embate em que o amor é contraposto ao casamento arranjado. Uma relação em que a fidelidade, ou melhor, a “feudalidade” (LACAN, 1973-74/ inédito) é sustentada pelo amor e não pelo contrato. Os trovadores medievais nomearam de fin’amour esse amor fino, delicado, contido, cheio de cortesias e regras cavalheirescas. O amante tudo suporta, tudo sofre por sua Dama, mulher divinizada, inatingível e, por isso mesmo, investida da mais elevada superestima. Gaston Paris foi quem, no século XIX, batizou esta relação singular de “amor cortês” e destacou os seus traços distintivos: 1) é ilegí1 Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil, 2014, Campo Grande-MS.
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PINHO, Miriam Ximenes
timo e furtivo; 2) o amante pertence a uma classe inferior enquanto que a Dama é nobre e altiva; 3) o amor da amada é ganho por meio de demonstração de proeza, valor e devoção; 4) o amor é uma arte e uma ciência sujeita a regras e regulações (MOORE, 1979). Há um quinto traço a acrescentar: a conjugação amor e morte, que no Ocidente se tornou fórmula de sucesso de inúmeros romances. No amor cortês morre-se de amor, morre-se por amor. O amor é mortal. Um outro modo de se falar da não garantia do amor, de seus limites: “Amor e morte, amor mortal: se isso não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida” (ROUGEMONT, 1988, p. 15). O amor cortês está entre a satisfação erótica e a realização espiritual. É “ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e disciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente” (NEWMAN, 1968, p. 7). É essencialmente um ideal... de lealdade, conduta e comportamentos que partem de uma erótica (LACAN, 1959-60/2008). O amor é o pivô que lança o cavaleiro, a serviço de sua Dama, a buscar não mais as armas, mas as virtudes (NEVES, 2004). A paixão amorosa é elevada ao estatuto de uma moral. O amante é transfigurado na medida em que submete sua paixão a um ideário sublime compensatório. É nesse sentido que Lacan (1959-60/2008, p. 156), no Seminário 7, tomou o canto dedicado ao amor cortês como “uma obra de sublimação em seu mais puro alcance”. O objeto do amor cortês, um objeto feminino, é idealizado, exaltado, elevado “à dignidade da Coisa” (Ibid., p. 137). De outro modo, se uma mulher é qualificada como a Dama, um objeto digno do mais alto louvor, isso se deve menos às suas virtudes reais e concretas do que àquilo que os trovadores criaram: um objeto “enlouquecedor, um parceiro desumano”, cujo alto valor está em se prestar a ser um objeto transcendente a si mesmo, uma representação da Coisa (Ibid., p. 182). Se a mulher é cortejada como um significante a serviço da Coisa, é compreensível a produção do caráter desumano da belle dame sans merci [bela dama sem misericórdia]2 que exige de seu cavaleiro-amante toda espécie de homenagens e serviços por mais absurdos ou arbitrários que sejam. Uma relação de vassalagem à qual o cavaleiro se submete com o intuito de provar-se, enobrecer-se para, por fim, se fazer merecedor de sua inalcançável amada. Malgrado seus esforços, o objeto cobiçado sempre falta ao encontro, permanece inacessível. Na obra poética, 2 Referência ao célebre poema de John Keats, “La belle dame sans merci”, escrito em 1819.
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“não há possibilidade de cantar a Dama [...] sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e a isole” (LACAN, 1959-60/2008, p. 181). A Dama, no lugar da Coisa, é um objeto produzido para ser cingido, mas jamais atingido. O cortejo do amor não implica gozo do corpo. “Fazer amor é poesia, mas há um mundo entre a poesia e o ato” (LACAN, 1972-73/2008, p. 78). A erótica cortês prima pelo amor em suspensão, interruptus, irrealizável, impossível. No Seminário 20, Lacan (1972-73/2008) evoca novamente o amor cortês, desta vez para associá-lo com o fato de que “entre os sexos, no ser falante, a relação não se dá” (Ibid., p. 72). É o tempo da não relação sexual. E o amor cortês, o que é? “Uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculos” (Ibid., p. 75). O romance de Tristão e Isolda segue à risca a fórmula do amor inflamado, mas impossibilitado por inúmeros entraves: a diferença de status entre o humilde cavaleiro e a nobre Dama; o marido ciumento; as intrigas dos invejosos e dos maledicentes de plantão e ainda aqueles inventados pelos próprios amantes, tal como o casamento precipitado de Tristão com outra Isolda por concluir que a rainha não mais o amava. Rodeios e obstáculos forjados para se fazer crer que são eles que impedem a plena fruição amorosa ou modos formidáveis de se “sair com elegância da ausência da relação sexual” (LACAN, 1972-73/2008, p. 75). Ainda no Seminário 20, Lacan articula as relações entre o amor e as categorias modais (o possível, o necessário, o impossível, o contingente) que o romance de Tristão nos ajuda a ilustrar. Diz a lenda que Tristão e Isolda não amariam um ao outro se não fosse por causa de um certo “filtro de amor”, um vinho ervado mágico preparado para ser servido na noite de núpcias por ocasião de seu casamento com o rei. Tristão e Isolda tomam o vinho por engano e ei-los, a partir daí, arremessados involuntariamente no fogo do amor, sem que a ele possam resistir. O filtro é um artifício engenhoso fabricado para justificar e garantir o sem-garantia de um encontro amoroso: “Os que beberem juntos amar-se-ão com todos os sentidos e com todo o seu pensamento, para sempre, na vida e na morte” (BÉRDIER, 2012, p. 29). E de que se trata um encontro de amor senão de uma contingência? Um acontecimento fortuito que surpreende por dar a ilusão temporária de que o impossível passou ao possível, isto é, que a relação sexual parou “de não se escrever” (LACAN, 1972-73/2008, p. 156). Na lenda, o caráter contingencial do encontro aparece na ideia de que a poção mágica foi ingerida por engano pelos amantes. Porém, é curioso como um acontecimento fortuito é imediatamente convertido em necessário pelos amantes que passam a depositar na conta do filtro toda e qualquer responsabilidade pelo encontro. O amor é cristalizado, torna-se um destino a ser cumprido, uma fatalidade à qual os amantes não podem se furtar. Assim se justi-
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fica Tristão: “Se ela me ama, é pelo veneno. Não posso dela separar-me. Nem ela de mim...” e assim confirma Isolda: “... Ele não me ama, nem eu a ele. Foi um filtro que bebi e ele também: esse foi o pecado” (ROUGEMONT, 1988, p. 25). Por causa do filtro, a relação sexual não apenas é possível, mas está garantida como necessária – “para sempre, na vida e na morte” – abolindo o caráter contingencial do encontro. É nisso que os amantes se fiam ao depositar na conta do filtro não somente a garantia de que o encontro acontecerá, mas ainda toda e qualquer responsabilidade pelo que lhes acontecer. O amor, diz Lacan (197273/2008), é o que vem em suplência à não relação sexual; é a função que enoda e fornece um tempo de tréguas do exílio da relação sexual, ou seja, aquilo que permite ilusoriamente que a relação sexual se escreva (Ibid., p. 156). O drama do amor consiste justamente nessa tentativa de passar uma inscrição que se deu de modo contingencial à ordem do necessário, imaginá-lo como aquilo que “não para de se escrever, não para, não parará” (Ibid., p. 156). Como costuma dizer Ana Laura Prates-Pacheco em seus seminários: “É tentar fazer do tempo de suspensão, uma eternidade”. Em uma versão antiga da lenda de Tristão, conta-se que o efeito do filtro, embora maravilhoso, não era eterno, estava limitado a três anos: “Por quanto tempo foi determinado o vinho do amor? A mãe de Isolda, que o preparou, a três anos de afeição o limitou” (ROUGEMONT, 1988, p. 25). Decorrido o prazo, a poção perderia o efeito. E foi assim que, de repente, Tristão passou a ter saudades de sua vida de cavaleiro; e Isolda, dos confortos da vida na corte. Eles decidem então se separar. Porém, em meio a inúmeras atribulações, eis que os amantes se deixam novamente arrebatar pela paixão, desta vez sem a garantia do filtro. Mas como o amor cortês é aquele que “visa garantir o impossível” (PRATES-PACHECO, 2014), o fim que os aguarda não é o clássico “... e foram felizes para sempre”, mas a morte que os arrebata “no mesmo dia, ele por ela, ela por ele” (ROUGEMONT, 1988, p. 25). Desta vez é com o “filtro da morte” que se conta para garantir a eternidade, porém sem um corpo do qual se possa gozar. No Seminário 21, o amor cortês é retomado em articulação ao nó borromeano. Lacan (1973-74/inédito) propõe que o amor cortês tenta escrever a relação sexual como um “nó olímpico”, composto de três argolas: a argola do meio tem prevalência sobre as demais, se tirarmos a argola do meio as outras se soltam desfazendo o nó. No amor cortês, o Imaginário é a argola do meio a sustentar a relação do Real ao Simbólico, do gozo ao saber. Lacan, neste seminário, apresenta o princípio segundo o qual “o amor é o amor cortês” na medida em que o amor é chamado a obturar a hiância entre o Real e o Simbólico. Nascido dessa “raiz do impossível”, por mais que se force a barra o amor está fadado ao fracasso na medida em que
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esbarra no impossível de se escrever da relação com o objeto. Pois é justamente o objeto a aquilo que limita o amor: todo amor só é “trazido à existência pelo impossível da ligação sexual com o objeto, o objeto, qualquer que seja sua origem, o objeto desta impossibilidade”. Esta afirmação de Lacan me ajuda a extrair dois modos de ler a impossibilidade a partir do amor cortês: há a impossibilidade que é própria desse tipo de “amor olímpico” que tenta de todo modo garantir não o amor, mas o impossível e que, para tanto, sustenta em um horizonte a relação sexual como ex-sistência, isto é, garante que a relação sexual existe, porém são os obstáculos que atrapalham e não a deixam acontecer. Fabrica-se assim um encontro amoroso complicado para sustentar a impossibilidade. Mas há ainda outro tipo de impossibilidade, exaltado pela criação poética cortesã, cujo traço atinge todo e qualquer encontro amoroso: os limites impostos no amor pelo objeto a que não se atinge. Tal como uma barreira a separar os amantes, o objeto a é o (a)mur, o (a)muro que faz Eros fracassar em sua tentativa de encontrar para o S1 o seu “par perfeito”. Um traço que limita qualquer amor, por mais oceânico ou eterno que seja, conforme observou Allouch (2009, p. 11), “a experiência amorosa é aquela de seu próprio limite. Não tanto que o amor tenha um fim, uma vez que a ligação se rompe ou que a morte lhe dá um fim. Acontece, e vamos lançar na conta da contingência. É num outro sentido [...] que vamos entender esse traço da experiência amorosa: por mais atual, por mais intensa, por mais talvez apaixonada que seja, ela permanece autolimitada”. Em suma, se o amor só se dá por bon-heur, a boa chance, a felicidade de um encontro contingencial, não há como assegurar no “horizonte do amor o avô e a avó” (LACAN, 1973-74/inédito). Não há “filtro de amor” ao qual se agarrar para lhe garantir a duração. Por outro lado, a fragilidade a que o amor se expõe tornaria o encontro menos precioso?
referências bibliográficas ALLOUCH, J. Amor Lacan. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010. BÉDIER, J. O romance de Tristão e Isolda. Tradução de Luis Carlos de Castro e Costa. São Paulo: WMF Martins, 2012. LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Versão de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Versão de M. D. Magno. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
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. (1973-74). O seminário, livro 21: Le non-dupes errant, inédito. MOORE, J. C. Courtly Love: a problem of terminology. Journal of the History of Ideas, vol. 40, n. 4, oct.-dec., 1979. NEVES, M. A. S. Quid sit amor: o conceito do amor na literatura cortês, a poesia lírica médio-alto-alemã e galego-portuguesa – Walther von der Vogelweide e D. Dinis. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, 2004. NEWTON, F. X. (Ed). The meaning of courtly love. Albany, NY: Sunypress, 1968. PRATES-PACHECO, A. L. Para sempre é sempre por um triz. Prelúdio – XV Encontro EPFCL, Campo Grande-MS, 2014. ROUGEMONT, D. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
resumo
Este estudo tem por objetivo investigar a experiência amorosa pela via de um de seus avatares, o amor cortês, um amor delicado, cheio de cortesias e regras cavalheirescas em que o amante tudo suporta por sua Dama, mulher divinizada e inatingível. O romance cortês é um amor infeliz, marcado por entraves e sofrimento. Lacan de(se)cantou seus artifícios em diferentes momentos de sua obra. Do amor cortês interessa-me destacar o seu princípio de impossibilidade tantas vezes ressaltado. Qual o estatuto dessa impossibilidade? Trata-se da mesma impossibilidade que atinge todos os amores, mesmo os mais eternos? Para tanto, os Seminários 7, 20 e 21 foram examinados e ainda um romance de cavalaria, Tristão e Isolda que serviu para ilustrar algumas das considerações aqui apresentadas.
palavras-chave
Amor, amor cortês, impossibilidade, Lacan.
abstract
This study aims to investigate the experience of love by way of one of his avatars, courtly love, a gentle love, full of amenities and gentlemanly rules in which the lover endures all things by his Lady, a divinized and unreachable woman. The courteous novel is an unhappy love marked by obstacles and suffering. Lacan decanted/disenchanted its devices at different times of his work. I’m particularly interested in courtly love’s principle of impossibility, so often emphasized. What is the status of this impossibility? Is it the very impossibility that affects every type of love, even the eternal one? To achieve this goal, Seminars 7, 20 and 21 were exa-
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mined as well as a romance of chivalry, Tristan and Isolde, that served to illustrate some of the considerations presented here.
keywords
Love, courtly love, impossibility, Lacan.
enviado 12/08/2015
aprovado 10/08/2015
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Efeitos da nomeação na Escola de Lacan Silvana Pessoa Introdução Existem, na nossa comunidade de Escola, as siglas AP (Analista Praticante), AE (Analista de Escola) e AME (Analista Membro de Escola), expressões que designam alguém que pratica a psicanálise, no primeiro caso; alguém que decidiu pedir o passe e foi nomeado, no segundo; e alguém que foi reconhecido pela comunidade pelo seu percurso como psicanalista e pelo seu trabalho pela Escola, no terceiro. Podemos dizer que essas três expressões são funções-nomes. O termo função-nome é tomado por empréstimo do conceito de função na matemática, que se define por uma lei de formação com a qual relacionamos distintos conjuntos e que serve para expressar situações com base na álgebra, generalizando os problemas por meio de fórmulas. Por exemplo: a função de y = 2x ou f(x) = 2x mostra que os valores de y dependem dos valores de x. Neste caso, temos que y corresponde ao dobro de x. As funções ou funções-nome não asseveram nada, pois constituem enunciados acerca dos números, uma relação entre valores, diferentemente de uma fórmula, que pode ser verdadeira ou falsa. Por exemplo, podemos dizer que fulano é AME e, portanto, igual a cicrano, tal como dizemos 5 = 3 que, embora falsa, assevera uma relação entre os numerais. Por outro lado, signos, expressões linguísticas, fórmulas a se grafar, apagar e copiar podem gerar muitos mal-entendidos, pois quando se cria uma lista, seja de AME, ou de qualquer outra coisa, pode-se dar a impressão equivocada de que quem está dentro é V e quem está fora é F, ou vice-versa, enaltecendo ou desmerecendo as nomeações. Se o analista ou a comunidade entende o AE e o AME – deixemos o AP de lado neste trabalho, pois este legitimamente se autoriza de si mesmo – como uma fórmula, e não como uma função-nome, não começaria aí problema, o paradoxo e o barulho do resto da frase de Lacan sobre a garantia, o “entre outros”? Não seria nisto que residem os efeitos possíveis – mas não desejáveis – de ganhos de “consistência” nas listas de AME? Consistências tais como: este “é melhor”, “sabe mais” ou “está mais autorizado do que aquele?! Bem, esvaziar a in-
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flação imaginária da nomeação de AME e explorá-la como uma função-nome é o que pretendo com este trabalho.
Parte 1 – Torre de Babel: uma grande confusão “Daqui em diante você é um dos nossos” (2009, p. 41) foi o que Dumézil, psicanalista, escutou com surpresa de Lacan, após ter sido nomeado AE. Digo com surpresa, pois ele já se considerava mais um entre os outros, afinal fora um dia seu analisando, tornou-se analista e depois membro da Escola. Ao escutar a “sentença”, ele achava que acabava de entrar em uma confraria do tipo “Lions Club”. Esse é o problema quando um analista é tomado como fórmula e não por função-nome. Para evitar isso, Lacan, imediatamente, o advertiu: “Não se tome por um grande Outro, você está simplesmente sendo aceito como um AE da EFP” (Ibid., p. 41). Talvez quem pediu o passe e foi nomeado como AE ou quem foi reconhecido como um AME, pelos seus pares, entenda melhor o que é uma função-nome, ou seja, um nome que identifica um número, uma expressão, e, por isso, não pode ser V nem F. Um número “designa ou nomeia” algo que não pode ser grafado, copiado, apagado, uma expressão que não assevera nada. A expressão (7 X 5) + 8 designa o 43, por exemplo. Nomeia um certo 43. Não faz sentido perguntar se 43 é Verdadeiro ou Falso. Se o AME, como defendemos, é uma função-nome, uma expressão que não assevera nada, desejar ou não desejar fazer parte desta lista, “ficar zangado” por não ter sido incluído, não faz sentido algum. Um analista ter qualquer um destes afetos é esquecer o ato que os funda, o ato psicanalítico do qual se extrai que do psicanalista nada é predicável (LACAN, 1967/2003, p. 277); é esquecer o real em jogo em qualquer experiência. Somos muito e bem diferentes. Nós nos reconhecemos e nos estranhamos. Tons, estilos e sotaques múltiplos. Somos uma Escola internacional organizada em torno de Fóruns de múltiplas línguas, diferentes lugares, diversas instâncias: uma torre de Babel. Uma confusão. Sim, uma confusão difícil de compreender pelos que chegam, mais ainda pelos que estão fora, e, muito trabalhosa de manejar pelos que estão dentro. Logo, urge tentar entender a lógica deste funcionamento. Ora, a ética da psicanálise é, antes de tudo, uma ética do desejo e do respeito à diferença. A institucionalização da psicanálise e seu reconhecimento social, na medida em que implica a constituição de grupos, fundada na transferência, deve estar advertida para não ter como consequência, contudo, o recalcamento de sua função subversiva, uma vez que se responda pela via da demanda ao desejo do sujeito. Isto não significa que devamos abandonar todas as formas de agrupamento, menos ainda as diferenças, o que seria não só impossível, como também indesejável.
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Somos analistas diferentes, em momentos diferentes da clínica. Existem “passos”, “degraus” – sim, pois este é o significado da palavra latina gradus, que considera o real em jogo na experiência analítica, versus a hierarquia praticada em outras sociedades, que conta com o saber como agente. Diferença sustentada por Lacan na “Proposição de 9 de outubro” (1967/2003) e defendida por ele, pois na sua Escola “só se é admitido com base no projeto de um trabalho e sem consideração para com a proveniência nem as qualificações”. (Ibid., p. 249). Assim, temos na Escola analistas praticantes (AP), estes que se autorizam de si mesmos, e aqueles que, também analistas praticantes, deram provas suficientes da sua prática e que são reconhecidos por seus pares como analistas membros de Escola (AME). Estes últimos têm que saber o tipo de problema da fase final de uma análise para poder designar um passador, e podem ser reconhecidos a qualquer momento por seus pares, pelo que enunciam nos cartéis, nos encontros, nas conversas, e, mais particularmente ainda, nas suas supervisões. Dizendo um pouco mais: uma nomeação de AME, por tratar-se de uma função-nome, não se trata de um juízo de valor. Não é considerar “este melhor que aquele”, logo, verdadeiros, mas sim que não há paridade entre os analistas. Apesar de sermos congêneres, ou seja, todos da mesma raça, pois se espera que tenhamos “atravessado as mesmas transformações de desejo e gozo, percorrendo todos os graus do processo até o desejo do analista” (SOLER, 2012, p. 43), alguns têm mais percurso e experiência. “Antiguidade é posto: temos que respeitar”, diz uma determinada música muito conhecida na minha terra de origem.1 Dos AME, espera-se mais do que dos AP, porque também eles já deram mais pela psicanálise e pela clínica. Dizem alguns textos que, aos AMEs, deve-se dar mais deveres do que direitos para cumprirem a função de “animar, orientar, transmitir sem cessar o vírus da psicanálise ao exterior e ao interior da Escola” (NOMINÉ, 2012, p. 27), além de designar passadores, tarefa de muita responsabilidade. Também os critérios para nomeá-los tornaram-se ainda mais exigentes em dez anos; depois de aprimorada a experiência, muita coisa mudou. Antes, “júri e aprovação”; hoje, “garantia e nomeação”, no meu entender, mais próximo a uma função-nome. Como eram, especificamente, esses critérios no final do ano 1990? Extraio inicialmente algumas constatações do depoimento de alguém que já ocupou a função de AE. Patricia Munõz diz, sobre o começo da Escola na Colômbia, em um artigo escrito para um dos Boletins da EPFCL (WUNSCH, 2012, p. 24).
1 Música Dona Canô, escrita por Neguinho do Samba e gravada por Daniela Mercury.
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Ela explica que alguns nomeados analistas membros da Escola (AME) não tinham necessariamente muito tempo dentro da prática, tinham pouco tempo de experiência com a Escola Lacaniana e com a designação de passadores e, por ser uma comunidade pequena e jovem, em muitos casos ainda não haviam tido “tempo necessário para se chegar ao final de análise” (Ibid., p. 24), o que foi um complicador por lá. Nos documentos recentemente compilados e circulados na rede EPFCL-Brasil (rede-epfclbrasil@yahoogrupos.com.br) por Ana Laura Prates Pacheco, encontramos as primeiras observações sobre como se pensava a nomeação de AME, no início da nossa Escola, que pode ser resumida com a expressão: “aqui há analista”, ou, apenas, com uma “convicção íntima” expressa em: “eu confiaria nele”, o que não é pouca coisa, mas que ainda não resultou suficiente. Passou-se bastante tempo no nosso campo e quarenta e cinco anos desde a “Proposição de 1967”. A EPFCL continua apostando no gradus, no passo, no passe, como compromisso inadiável com a formação. O debate de Escola sobre o AME, iniciado em Paris em 2012 ou indiretamente em Buenos Aires em 2009, pelos recém-criados Encontros de Escola, apontou duplamente para “um desejo de mudança e um desejo de não perturbar o estabelecido de maneira tão brutal (WUNSCH 13, 2012, p. 4). As questões atuais que atravessamos na nossa Escola, e que estão postas desde 1974, tratam das variedades dos fins das análises e de saber “aquela que convém para fazer um analista, aquele que pode acompanhar as turbulências do fim, porque experimentou a saída possível” (SOLER, 2012, p. 42), seria este quem poderia receber o título de AME. Entretanto, gostaria de interrogar se seria mesmo um “título”, destes que gerariam o efeito de uma “denominação honorífica”, logo, algo a “se orgulhar”? Ou tratar-se-ia mais de uma “nomeação”, logo função-nome, portanto, nada a “se gabar”.
Parte 2 – AME: um passador de experiências Em muitos textos estudados sobre este assunto, encontrei afirmações a respeito desta “titulação”, dentre elas, uma advertência: “não se confortem com seus títulos”. Suspeito que a utilização deste termo “titulação” pode provocar os efeitos possíveis – mas não desejáveis – de ganhos de “consistência” nas listas de AME. Desde que, ao receber “um título”, este seja tomado, por si e por outros, como fórmula. Se assim for, isso pode gerar uma sensação de poder, um lugar fálico de posse de um saber, e, tal como um mandamento, vivificar aquilo que ela quer abolir, como tratou Lacan no Seminário da Ética (1959-60).
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Se estes efeitos são constatados na prática, defendo que devemos cuidar das palavras – que, sabemos, têm poder – nos nossos textos e na concepção de nomeação. Particularmente parece-me mais pertinente tratar de nomeação, de uma funçãonome, que não assevera nada, do que com uma fórmula ou titulação permanente, destas que já recebemos de diversos lugares e que não garantem a prática analítica. Outrora, ouvi uma AME, que já não está mais na nossa Escola, dizer com leveza e sorrindo que o fato de “ser AME para sempre” não deve ser coisa boa. A permanência do título versus a transitoriedade da função parece-me uma questão. No Livro Zero (2012) há uma outra proposta que também me pareceu importante para dar tratamento ao mal-estar que as listas geram na comunidade, sem abolir o gradus. A proposta feita pelo autor é pensar o AME como um passador, um passador de experiências (Ibid., p 19). Ou seja, aquele que tenta explicar de diversas formas e lugares o incomum que a experiência da psicanálise e o que ela lhe ensina do real. Para defender essa ideia, tomo uma reflexão de Martine Menès (2011, p. 46) sobre o passador, a qual ela faz inicialmente pelo seu contrário: o que não é um passador. Ela diz que ele não é um secretário que deve tomar notas fielmente do passante e restituí-las o mais fielmente possível; não é alguém que não sabe reconhecer a distância entre o saber que se pode deduzir de uma análise e a verdade, e, ainda, não é alguém que não percebeu a distância da mentira da verdade do sentido e a parcela do real que pode daí escapar para aí, no entanto, exprimir-se. Com esta definição de passador, vale interrogar o que faz um “analista passador”, como optei por ora chamar o AME, tal como propõe a autora do artigo Da função e do lugar do AME, publicado no Livro Zero (Ibid.). Entendo que um “analista passador” não é um escriba/citador do que disse Lacan ou Freud. Também entendo que, diferentemente do AE, a designação de AME – tal como a designação do passador –, não pode ser pedida e, portanto, ele não poderá “ser culpado” de ter sido reconhecido por outros AMEs. A sua função, “como passador” de uma experiência, é testemunhar na Escola, não a realidade dos fatos, mas apenas a sua posição subjetiva em face do real, pois ambos, o passador e o analista passador, devem poder se deixar afetar, como se não soubessem de nada, como recomendava Freud para os analistas a tomarem cada novo paciente. Mas como eles se farão ouvir? Nos cartéis, nas apresentações clínicas, no ensino, nos escritos, nas supervisões, nos congressos. (...) Se o analista for “passador da experiência”, seu testemunho será forçosamente ouvido “por alguns outros”, que saberão, eles mesmos, transmitir o valor desse testemunho à CLEAG, dando-lhe condição de passar para frente os argumentos para o Colegiado Internacional de Garantia (CIG)” (Ibid., 2012, p. 19).
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Bernard Nominé (2012, p. 27), para falar de uma das funções do AME (animar, orientar, transmitir o vírus no interior e no exterior da Escola), diz das três letras juntas, que se leem âme (alma) em francês, mas que é também um nome que se dá a um pequeno pedaço de madeira bastante simples que o fabricante introduz no violino após terminado, para transmitir vibrações à mesa da harmonia e propagá-las até o fundo do instrumento. A alma é, portanto, em grande parte responsável pela sonoridade do violino. Esta pequena cavilha de madeira ordinária que abre em segredo e que está longe de se parecer com um bastão marechal, me parece bastante adequada para nos dar a imagem disso que nós esperamos de um AME da nossa Escola (Ibid., p. 27). Ainda assim, o “som” de um analista praticante (AP), autorizado de si mesmo, pode não reverberar, nem tão longe no CIG, nem tão perto para nossos colegas de Escola. “Alguns outros” poderão não ouvir. Sim. Mesmo se isso acontecer, cabe perguntar: mas, e daí?! Não deveríamos nos surpreender com o fracasso, advertenos Lacan no seu texto “A psicanálise. Razão de um fracasso” (1967/1998). Neste caso, não deveríamos nos afetar com a divulgação das listas sem os nossos nomes. As listas são e serão sempre falhas; isso não deveria incomodar, pois não é com o gradus que o analista conduz o tratamento ou orienta a sua fala, e sim do lugar de objeto, no primeiro, ou do lugar de analisante, no segundo. A indicação de um analista praticante para fazer parte da lista de analistas membros da Escola – e a sua possível nomeação pelo CIG – é consequência de um instrumento tocado, de uma voz que se faz ouvir, não causa. Se não estamos nela, cabe nos interrogar como estamos “tocando” a nossa prática ou por que não estamos nos fazendo ouvir.
Considerações finais O fato de ser nomeado AME, por ter dado provas “dos efeitos de seu desejo de saber na formação de outros psicanalistas” (LIVRO ZERO, 2012, p. 13), não é uma saída desse lugar de desejante para o lugar fálico de posse de um saber, muito menos um lugar de poder. Essa diferença fundamental entre gradus e hierarquia pode ainda ser melhor compreendida no artigo “Da função e do lugar do AME pensados a partir das diferenças entre gradus e hierarquia”, publicado pela revista Livro Zero (Ibid.), do Fórum do Campo Lacaniano São Paulo, do qual retiro a citação acima. O fato de ser nomeado AME, por ter dado provas, não é uma garantia para a Escola, pois “nada garante que ele vá designar um passador, nada garante que estará animado pelo desejo de participar na experiência do passe e nos cartéis do passe,
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Efeitos da nomeação na Escola de Lacan
e nada garante que deseje contribuir à marcha da Escola nas funções e tarefas do CIG” (GALLANO, 2012, p. 19). Uma pena, pois participar desta forma na Escola poderia despertá-los mais como analistas nos seus tratamentos, como aconteceu com Carmen Gallano (Ibid., p. 20), e como já aconteceu com muitos. Este depoimento sobre o “efeito de despertar”, que poderia resultar de uma nomeação como AME, me fez lembrar uma passagem – encontrada em um artigo “O riso oriental” (GERBER e FIGUEIREDO, p. 285) em um livro que trata do humor e da psicanálise – que teve para mim este mesmo efeito, antes mesmo da minha nomeação como AME em 2014, que foi posterior à redação deste artigo apresentado em um Encontro Nacional da EPFCL-Brasil em Belo Horizonte. Conta-se que um renomado professor da Universidade de Tóquio procurou o mestre Nam-In para fazer perguntas sobre o Zen. Nam-In oferece-lhe um chá e, enquanto o prepara em silêncio, o professor discorre ininterruptamente sobre as suas obras, realizações, títulos honoríficos, certezas. Pronto o chá, Nam-In verte na xícara do professor, enche-a e continua a vertê-lo derramando-o sobre a roupa do professor, que pergunta surpreso: – Mas o que significa isso? E Nam-In responde: – Quando a xícara está cheia, não cabe mais chá. Minha xícara está vazia, muito vazia, pronta a receber as demais contribuições dos infinitos Espaços Escola, ainda por vir, e da minha clínica em permanente movimento até o dia em que eu a deixar de vez, e espero que seja bem antes de adormecer.
referências bibliográficas DUMÉZIL, C. Observações sobre a prática institucional de Lacan. In. Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. DIDIER-WEILL, A. e SAFOUAN, M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009. pp. 36-43. FREUD, S. (1910). As perspectivas futuras da terapia psicanalítica. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.11, pp. 127-136). GALLANO, C. A aposta do AME e suas consequências. Wunsch. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. n. 12, pp.18-20, 2012. GERBER, I. e FIGUEIREDO, L.C. O riso oriental. In: SLAVUTZKY, A. e KUPERMANN D. (orgs.) Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp. 281-286.
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PESSOA, Silvana
LACAN, J. (1955). Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. . (1959-60). O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. . (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. . (1967). A psicanálise. Razão de um fracasso. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. LIVRO ZERO: Revista de Psicanálise. Da função e do lugar do AME pensados a partir das diferenças entre gradus e hierarquia. São Paulo: FCL-SP/EPFCL-Brasil, n.3, pp. 11-15, 2012. LIVRO ZERO: Revista de Psicanálise. Os Analistas Membros da Escola: passadores da experiência. São Paulo: FCL-SP/EPFCL-Brasil, n. 3, pp. 17-22, 2012. MENÈS, M. Posição do passador. Wunsch. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. n. 10, pp. 45-46, 2011. MUÑOZ. P. O AME é responsável pelo progresso da Escola. Wunsch. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. n. 12, pp. 23-25, 2012. NOMINÉ, B. Sobre o AME. Wunsch. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. n. 12, pp. 25-27, 2012. PRATES PACHECO, A. L. Arquivos sucata sobre os dispositivos de Escola Brasil, disponibilizado dia 22 de outubro de 2013 pela rede-epfclbrasil@yahoogrupos.com.br. SOLER, C. O fim, os fins. Wunsch. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. n. 12, pp. 38-43, 2012. WUNSCH. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Ecos do Terceiro Encontro Internacional II: A Escola à prova do passe. n. 13, pp. 3-4, 2012.
resumo
Existe, em nossa comunidade de Escola do Campo Lacaniano, as siglas AP (Analista Praticante), AE (Analista de Escola) e AME (Analista Membro de Escola), expressões, funções-nome, que não asseveram nada, diferentemente de uma fórmula que pode ser verdadeira ou falsa e que pode gerar muitos mal-entendidos. Tratar da diferença entre essas três expressões, os efeitos possíveis de “ganhos de consistência” nas listas de AME, e, interrogar a possibilidade de se evitar isso em uma comunidade analítica, é o que se pretende com este trabalho.
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Efeitos da nomeação na Escola de Lacan
palavras-chave
Nomeação, AME, Escola, fórmulas, função-nome.
abstract
There are, in the Lacanian Field Community, certain acronyms such as: PA (Practitioner Analyst), SE (School Analyst) and SMA (School Member Analyst), expressions, name-functions, which do not assert anything, unlike a formula that can be true or false, and that can lead to many misunderstandings. Treating the difference between these expressions, the possible effects of “consistency gain” on the the lists of SMA, and examine the possibility of avoiding that in an analytical community is what is intended with this article.
keywords
Nomination, AME, Lacan’s School, formulae, name-functions.
enviado 27/05/2015
aprovado 10/08/2015
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A provocação do Mais-Um como possibilidade de um laço diferenciado Elynes Barros Lima Deparei-me recentemente com o texto de Lacan (1980a/s.d.) chamado “D’Écolage”. De pronto, o neologismo do título chamou-me a atenção. Corri os olhos na nota de rodapé do texto e descobri que ele faz alusão a alguns termos, como “descolarização”, que remete à Escola; “descolagem”, que remete à noção de cola; e “decolagem”, que remete a “sair voando”. Este texto corresponde à terceira aula do Seminário 27, que se chama Dissolução. Assim, todos esses termos que decorrem do neologismo D’Écolage estão, em suma, relacionados à Dissolução. Nesse momento da escrita de seu texto, Lacan está dissolvendo sua escola, a EFP (Escola Freudiana de Paris), e fundando a Causa Freudiana, que ele chama de campo e não de escola, e não é sem propósito que todos esses termos estejam aí colocados. Retomarei essa discussão mais adiante; por ora, gostaria de enfatizar outra coisa que me chamou a atenção e tornou-se o motivo da escrita deste trabalho. Fazendo parte de um cartel peculiarmente constituído, pois seus participantes estavam distantes geograficamente, encontrando-se quinzenalmente via Skype, ocorreu-me investigar se a função do Mais-Um e a condução do trabalho no cartel sofreriam algum efeito dessa distância ou pelo uso dessa ferramenta. O tema proposto por este cartel, constituído em novembro de 2012 e dissolvido em janeiro de 2014, foi: “O Amor e suas fronteiras”. Esse tema levou-nos a refletir sobre os laços transferenciais e pensar com Freud: o que liga? Em seu texto “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud (1921, p. 117) vai dizer que as relações amorosas constituem a essência da mente grupal. Ele diz: [...] um grupo é claramente mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo? Mas Freud (Ibid.) ainda se pergunta: de que natureza seriam os laços existentes entre os membros de um grupo? Parte, então, da análise do mecanismo de identi-
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LIMA, Elynes Barros
ficação, que é a forma mais primitiva e original de laço emocional, e enumera três tipos de identificação: identificação ao pai, identificação ao sintoma e identificação histérica, para concluir que (Ibid., p. 131): [...] o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo (identificação histérica) baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder. Freud (Ibid.) conclui que a ligação existente entre os indivíduos de um grupo consiste no fato de eles colocarem, um só e mesmo objeto, no lugar de seu ideal do eu e se identificarem uns com os outros em seu eu. Assim, entre os fenômenos que manteriam unidos os membros de um grupo e esses ao seu líder, Freud (Ibid.) aponta o “amor igual”, que pode ser encontrado principalmente em dois grupos: no exército e na igreja, cuja perda do líder pode levar seus membros à situação de pânico. O medo, segundo Freud, irromperia pela quebra dos laços emocionais, e esse processo estaria na origem do medo neurótico e na ansiedade. Para amenizar os efeitos dos fenômenos de grupo, próprios a todo ajuntamento humano, Lacan (1971) institui, na “Ata de fundação” de sua Escola, o cartel. Que tipo de ligação Lacan propõe ao instituir o cartel? Retomando o texto da “Ata de fundação”, lemos: “Para execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo” (LACAN, 1971/2003, p. 235). Depreende-se daí que a ligação entre os membros desse grupo pequeno está apoiada na execução de um trabalho; seus membros estarão ligados por uma transferência de trabalho. Aqui podemos salientar a contribuição de Lacan ao conceito de transferência, como amor que tem todas as características do amor comum, mas é amor que se dirige ao saber. Lacan (Ibid.) institui o cartel como a base do funcionamento de sua Escola, sendo que a adesão a ele será feita mediante a participação nesse pequeno grupo de trabalho. Esse pequeno grupo, segundo ele, será formado por no mínimo três e no máximo cinco pessoas, sendo quatro a justa medida, e também MAIS-UMA, encarregada da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um. Depois de alguns anos de trabalho nesses grupos, Lacan (1980a/s.d.) acrescenta algumas modificações na função do MAIS-UM, dizendo que, mesmo sendo uma função que pode ser exercida por qualquer um, deve ser alguém e que o mesmo “seria encarregado de velar pelos efeitos internos do empreendimento e PROVOCAR a elaboração” (Ibid.).
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A provocação do Mais-Um como possibilidade de um laço diferenciado
A partir desse segundo momento, a função do Mais-Um passa de um administrador, para um provocador. Que provocação seria essa? Antes de avançarmos nessa e em outras questões, recorramos ao dicionário (HOUAISS, 2001). Nele, encontramos algumas concepções para a palavra provocar: 1. forçar (alguém) a responder a um desafio; desafiar; 2. dizer desaforos a; insultar; 3. impelir, incitar, instigar; 4. ser a causa de; causar, ocasionar; 5. fazer perder a calma; irritar, perturbar; 6. estimular o desejo sexual de; 7. pro-vocar = voz – vocalizar = fazer falar, instigar à fala. Provocar, como vemos, pode ter várias conotações, desde irritar, brigar até estimular o desejo sexual, passando por causar, instigar. Uma dessas concepções pareceu-me precisa para o debate sobre a função do Mais-Um: “forçar (alguém) a responder um desafio”. Observamos que essa provocação parece responsável por ligar os membros de um cartel, na medida em que mantém o trabalho em andamento, só que essa ligação não é da ordem da identificação, mas de um enodamento. Lacan vai dizer que todos desejam a identificação com o grupo e que isso é compreensível, porém devem estar advertidos de saída de que o nó só se constitui na não relação sexual como buraco. Retoma a fórmula do cartel e faz uma analogia ao nó borromeano (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 15/04/1975): Não dois, pelo menos três, e o que quero dizer é que se vocês só forem três, isso já faz quatro. A mais-uma estará aí mesmo que sejam só três, [...] Mesmo que sejam só três, isso faz quatro, donde minha expressão mais-uma. E será retirando uma, real, que o grupo se desata. É preciso para isso, que se possa retirar uma real para a prova de que o nó é borromeano e que estão ali as três consistências mínimas que o constituem. A identificação possível para Lacan se dará ao coração do nó, ao seu centro, onde se situa também o desejo, o objeto a, causa de desejo. Essa identificação é semelhante àquela proposta por Freud como o desejo da histérica, diz Lacan (LACAN, 1980a/s.d.). É semelhante sim, mas Lacan vai mais adiante e parece-nos que marca uma diferença em relação a Freud; e essa diferença tem relação com a forma como
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LIMA, Elynes Barros
se enlaça, o jeito que se faz para que o laço dê uma estrutura de nó. Não se trata de um laço como identificação, como uma ligação, mas de um laço-nó, que pressupõe, de saída, um furo. No lugar da identificação ao líder, às suas ideias fascinantes, no cartel há uma subversão: cada um é provocado a dar algo de si: “... terá liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta” (LACAN, 1980a/s.d.). É por isso que mesmo na “Carta de dissolução” de sua Escola, Lacan (1980b/2003, p. 320) persevera (père séverè – pai severo) dizendo que “não necessito de um mundo de gente”, e assim mesmo dissolvendo sua Escola, mantém o cartel convocando o Mais-Um a uma provocação. Em que medida, então, essa provocação do Mais-Um poderia instituir um laço possível de trabalho, sempre inédito e descolado, que faria avançar a transmissão da psicanálise e daria um tratamento ao real sempre em jogo na formação do analista? Talvez uma das respostas possíveis a essa pergunta esteja na própria definição de “provocar”, como sendo aquilo que causa; aquilo que causa está no coração do nó e remete também a esse furo que poderia afastar a possibilidade de uma identificação imaginária sempre fadada ao fracasso. A resposta de Lacan aponta para experiência dos cartéis. Sua experiência com os cartéis denunciou o que ia mal em sua Es-cola, e o fez apostar nesse pequeno grupo, aprimorando sua formalização, não sem indicar-nos um caminho: a exposição periódica dos resultados e das crises de trabalho. Retomo aqui a questão levantada no início deste texto sobre a peculiaridade no uso da internet como ferramenta para execução de um cartel: seria essa forma de trabalho um impedimento para o funcionamento do cartel, como proposto por Lacan? Acreditamos que não. Os membros de um cartel podem estar on-line, “ligados” e ainda assim sustentar essa estrutura de nó, provocada pelo Mais-Um. O que impede o progresso da psicanálise são os desvios e as concessões, dizia Lacan (Ibid.), desvios e concessões que fizeram os laços, as ligações, a cola grupal, falarem mais alto, e quando o discurso do grupo psicanalítico prevalece, torna-se igreja, cujo único sentido é o religioso, diz Lacan, e acrescenta que fala isso não por zombaria, mas é que a estabilidade da religião provém do fato de o sentido ser sempre o mesmo, o religioso (LACAN, 1980b/2003). Por isso ele propôs uma des-colarização; quem sabe, descolando do sentido o inédito, o novo poderia advir? Lacan apostava que descolarizando, os que ele abandonava poderiam, então, mostrar o que sabiam fazer – uma provocação? Ele responde em “Meu Ensino” (LACAN, 1967/2006, p. 86): “uma chance de voltar a partir”, decolando.
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A provocação do Mais-Um como possibilidade de um laço diferenciado
referências bibliográficas FREUD, J. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XVII, Rio de Janeiro: Imago, 1976. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001. LACAN, J. (1967). Meu Ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. . (1971). Ato de Fundação In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1974-75). O seminário, livro 22: RSI. Aula de 15 de abril de 1975. Inédito. LACAN, J. (1980a). D’Écolage. Revista da Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, Documentos para uma Escola, ano I, n. 0, Rio de Janeiro, s/d. . (1980b). Carta de dissolução In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003.
resumo
Este texto trata sobre a função do Mais-Um no cartel. No decorrer do texto discute-se o laço transferencial que une os membros de um cartel e como a função do Mais-Um pode promover um laço diferenciado, capaz de provocar o trabalho dos membros.
palavras-chave
Escola, cartel, grupo, mais-um, laço.
abstract
This text addresses the function of the Plus-One in the cartel. Throughout the text, we discuss the transference bond which unites the members of a cartel and also how the Plus-One can promote a differentiated bond which is able to provoke the work of the cartel members.
keywords
School, cartel, group, Plus-one, bond.
enviado 14/06/2015
aprovado 10/08/2015
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resenhas
A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio Geísa Freitas Por que a morte se apresenta como única saída para alguns sujeitos? Quem é esse sujeito que decide morrer? Enquanto psicanalista, que ética seguir diante do anúncio de um paciente de que vai se matar? A morte pode esperar por uma análise? É assim que Soraya Carvalho, psicanalista, nos coloca diante dessas e de muitas outras de suas inquietações, oriundas de sua experiência clínica de mais de vinte anos no atendimento de sujeitos que haviam tentado o suicídio. A autora aborda o suicídio como uma manifestação humana, uma carta na manga que pode ser usada quando a vida se torna insuportável. Um modo de lidar com a dor de existir. O ser falante, ou falasser, é o único ser vivo que atenta contra a própria vida, que faz da morte uma escolha. Para a autora, o homem só suporta a vida porque tem na morte uma escolha, o que a torna suportável: O homem suporta a vida pela possibilidade que dispõe de matar-se. A morte é o que torna a vida possível. A vida é real e a morte simbólica, e se o real é o impossível, viver é o exercício da impossibilidade. E o suicídio é uma escolha capaz de dar um significado à vida quando ela chega ao limite da impossibilidade (CARVALHO, 2014, p. 145). É no encontro com o real, com a impossibilidade, e a angústia advinda daí, que alguns sujeitos escolhem a morte. Mas, de que encontro se trata? Aquilo que parece obra do acaso ou destino, quando na verdade é a repetição do traumático, da constatação da não existência da relação sexual. O falasser, inscrito na linguagem, paga o preço do determinismo inconsciente à cadeia significante, que determinará seu modo de gozo, como também o automatismo de repetição. É, assim, aprisionado a este determinismo, que faz suas escolhas diante da vida e da morte. E, escolhe o pior, escolhe repetir o traumático. Carvalho traz um exemplo que mostra, ao mesmo tempo, que a pulsão de morte está contida na cadeia significante, que o gozo não para de não se escrever e que o sujeito, ao escolher repetir o que lhe foi traumático, vivendo situações novas, está, na verdade, demonstrando o seu aprisionamento à cadeia significante.
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FREITAS, Geísa
Dá como exemplo uma pessoa que sofreu abuso sexual na infância e que, ao se colocar em situações que possibilitam a reedição do abuso, acaba repetindo a violência sofrida durante várias vezes na vida, como se fosse carma ou destino. Para a autora, o suicida pode ser considerado o sujeito da tiquê, que é uma forma de repetição, na qual o sujeito repete sempre a mesma falha, mas trazendo um algo novo. Diante desse gozo da repetição, vivido como excesso ou perda, o sujeito pode ser levado a um ato, em uma tentativa de pôr um limite, “mas também de nada querer saber sobre isso” (Ibid., p. 147). O sujeito que escolhe morrer, via de regra, está submerso em uma angústia avassaladora. Dito de outra forma, é um sujeito atravessado pela irrupção do real no corpo. A angústia é sempre angústia de castração, portanto angústia de quem está vivo, angústia do homem, no corpo, na vida. A morte não é a causa da angústia, mas uma forma de exterminá-la. A autora aponta o abandono do Outro ou a série de encontros faltosos com o real, como causas para nos depararmos com sujeitos empobrecidos e aniquilados, que assim escolhem morrer, fazendo do suicídio algo que dê significado a uma vida sem sentido, marcada pela impossibilidade. Carvalho, interessada em entender em que medida a relação entre fantasia e ato participa da decisão pela morte, parte do pressuposto de que tanto o sintoma, a fantasia, como o ato são respostas do sujeito ao real e analisa o suicídio do neurótico, do psicótico e do melancólico a partir do S(%), significante da falta no Outro e do a, objeto a, causa de desejo, objeto de gozo e objeto de amor. O suicídio neurótico é, muitas vezes, “um acting out, isto é, um ato no qual o sujeito cria a cena e participa dela, como se fosse autor, ator e diretor da obra, cuja finalidade é alcançar o Outro, daí seu aspecto de mostração” (Ibid., p. 157). Mas, por que clamar ao amor do Outro com um ato suicida? Por que correr o risco de sair da cena da vida sem chance de retornar? O neurótico, diante da falta do Outro, do enigma do desejo do Outro, responde com a fantasia, que é formulada como ($ ◊ a), onde o sujeito se relaciona com o objeto causa de seu desejo, que é também o objeto para sempre perdido e objeto mais-de-gozar. A fantasia é, então, ao mesmo tempo, suporte do desejo para o sujeito e ferramenta para lidar com a falta do Outro, para tamponar a falta no Outro. É uma forma de fazer suplência à impossibilidade da relação sexual. Então, perder o objeto pode causar um abalo tal na fantasia, que leve o neurótico a um ato suicida. Para a autora, a psicanálise postula a impossibilidade da relação sexual, desde Freud, com a pulsão, que nunca se satisfaz e mais tarde, com Lacan e sua tese de que a relação sexual não existe, exceto no sintoma.
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A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio
Lacan, quanto à partilha dos sexos, divide os seres falantes em dois lados: o masculino e o feminino, partindo não da anatomia, mas da modalidade de gozo. Assim, do lado masculino temos o gozo fálico e sujeitos totalmente submetidos à norma fálica, enquanto do lado feminino encontramos o Outro gozo e sujeitos não totalmente submetidos à norma fálica. Desse modo, o sujeito que está na posição masculina goza falicamente do seu objeto na fantasia, objeto causa de seu desejo, que pode ser o corpo de uma mulher. Já o sujeito do lado feminino pode gozar de três modos: como objeto na fantasia de um homem, pela via fálica (Ф) ou no que falta no Outro S(%) e por meio do Outro gozo, gozo suplementar, fora do significante. O sujeito feminino presta-se a ser o objeto da fantasia do homem, evidenciando que o homem goza do objeto e a mulher goza como objeto. Para a mulher sustentar-se nesse lugar de objeto ela precisa do amor de um homem. Perder esse amor é desvelar a sua condição de objeto de gozo na dimensão de resto, o que pode levar a atos suicidas, tanto actings ou mesmo passagens ao ato. A fantasia, resposta do neurótico ao enigma do desejo e falta no Outro, é formalizada pela autora assim: Neurose: S(%) + ($ ◊ a) = A O que o neurótico faz é recobrir a falta do significante falo com um objeto, objeto causa de seu desejo. Ao usar um objeto para preencher a falta do falo, não há garantia de sucesso, uma vez que não existe equivalência lógica entre objeto e significante. Assim, a fantasia pode ser abalada e, como é o suporte do desejo, o desejo também será abalado. A autora enfatiza a importância clínica da fantasia na clínica do suicídio, na identificação dos tipos de neurose, obsessiva ou histérica, em função da posição que ocupam na fantasia. Na neurose obsessiva, o sujeito normalmente está do lado do $, na fórmula da fantasia, no lado masculino, gozando de seu objeto. Para Carvalho, o obsessivo, ao perder o objeto que sustentava seu desejo e seu gozo, perde uma posição de gozo, causando um abalo na sua fantasia revelando cruamente a falta no Outro. Sem a fantasia, o obsessivo é tomado por puro gozo, depara-se com a falta no Outro, a sua própria falta e sua condição de objeto dejeto. Assim, pode escolher morrer, passando ao ato ou por meio de um acting. Na análise da histeria, a autora faz distinções importantes entre a posição histérica e a posição feminina, tomando como referência o texto de Colette Soler O que Lacan dizia das mulheres. No entanto, no tocante ao suicídio são as questões amorosas as causas mais frequentes para ambas as posições. Na histeria é a perda do amor e a consequente perda de lugar de objeto causa de desejo de um homem que leva a histérica ao suicídio. “É uma recusa dramática do sujeito em perder o lugar
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FREITAS, Geísa
de objeto que causava o desejo para um homem” (Ibid., p. 164). A histérica busca o suicídio normalmente por meio de um acting out, em uma tentativa desesperada de apelar ao Outro para que lhe “restitua o amor e o lugar de complemento de seu desejo, opondo-se a reduzir-se a puro resto” (Ibid., p. 165). Também para a posição feminina é a perda do amor que pode levar o sujeito ao suicídio. O sujeito nessa posição se oferece como objeto de gozo do Outro, colocando o gozo do parceiro como causa de seu desejo. Ao perder o amor que dava a proteção para esta condição de gozo, o sujeito depara-se com uma angústia infinita, podendo escolher o suicídio. A autora conclui que no suicídio neurótico, seja em quaisquer dos tipos clínicos, diante de uma perda de objeto, de perda de gozo, o sujeito terá que se haver com o desejo do Outro, com a falta no Outro e com a sua própria falta. Nesses momentos, a fantasia fica abalada e sem o seu suporte, a falta do Outro se apresenta no real. Já na psicose, a foraclusão do nome-do-pai faz do grande Outro, um Outro sem a barra, consistente, sem furo. O que foi rechaçado no simbólico volta no real, sob a forma dos fenômenos elementares, como alucinações auditivas, visuais e principalmente os fenômenos de linguagem. O psicótico se vê totalmente submetido ao gozo do Outro. Então, quando se suicida é, ou para sair dessa condição insuportável de objeto de gozo do Outro, ou para obedecer a uma ordem que vem do Outro, de que se mate. O psicótico se suicida sempre em função desse gozo invasivo e imperioso do Outro, ao qual está submetido, por estrutura. Carvalho aborda a questão da perversão rapidamente explicando que é raro perversos buscarem uma análise. Identifica, no entanto, que a causa do suicídio para esta estrutura é também a perda de gozo, ocasionada por algo da realidade que mexa em seu status, denegrindo sua imagem. O suicídio melancólico é tomado pela autora como o paradigma do suicídio. Normalmente, são passagens ao ato radicais, consequência de uma sentença de morte, dada pelo próprio sujeito, ao tomar a decisão de morrer. Freud caracteriza o melancólico como o sujeito que, de tão identificado ao objeto, ao perdê-lo, culpa-se e pune-se por isso. Obtém uma satisfação sádica de seu sofrimento e vinga-se do objeto por meio da autopunição. Seria essa a explicação de Freud para a tendência do melancólico ao autoextermínio, ao suicídio, que não deixa de ser também um homicídio, pois ao matar-se ele mata o objeto. “O Outro não colocou sua falta, no momento de sua relação inaugural com ele” (Ibid., p. 169). Por esse motivo o melancólico não dispõe do recurso da fantasia, além de ter um comprometimento na constituição de seu desejo. O recurso do melancólico é a identificação a um outro, em uma relação puramente imaginária, pela via do amor. Doa seu ser, em uma tentativa de preencher o Outro com o obje-
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A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio
to a, na vertente objeto de amor, sendo que o que falta ao Outro é um significante. Então, não ser aceito pelo Outro desvela sua condição de “resto, nada, mero objeto sem valor, sem ao menos uma imagem que lhe sirva de suporte” (Ibid., p. 170). A perda do objeto faz o melancólico deparar-se com um buraco no eu, pois perde seu objeto de amor, que servia para suturar sua falha imaginária. Revive sua catástrofe original, a falta de lugar no desejo do Outro, restando-lhe a condição de objeto de gozo, gozo mortífero, o que pode causar a passagem ao ato suicida. Soraya Carvalho nos apresenta a opinião sobre a melancolia de Marie-Claude Lambotte, psicanalista que vem pesquisando o tema. Para esta autora, a melancolia não é uma psicose, mas também não é uma neurose. Adota a expressão cunhada por Freud para a melancolia, “neurose narcísica”, porque indica de maneira mais direta a “relação particular que um sujeito estabelece com um objeto por meio de uma identificação narcísica ao objeto, proveniente de uma falha originária no eu” (Ibid., p. 107). Para Lambotte, na constituição do sujeito melancólico houve uma deserção abrupta do desejo do Outro, o que implica a falta de investimento em sua imagem, impedindo que realize uma identificação narcísica, configurando uma falha na constituição de seu eu, e acarretando uma fragilidade da função imaginária. É por esse motivo que a eleição de um objeto de amor serve para o melancólico suprir essa falha no eu, pois identificando-se ao objeto narcisicamente tem a ilusão de ter constituído o seu eu. Ao perder esse objeto, a ferida é reaberta e a dor é enorme. Dor que se localiza no corpo, portanto, angústia. Então, se toda angústia é angústia de castração, o melancólico passou pela castração, mas o que o diferencia do neurótico e do psicótico é o mecanismo com o qual se defende desta. O neurótico usa o recalque, o psicótico a foraclusão e o melancólico faz uso de uma evitação da castração. Carvalho explica que o fato de a melancolia se dar a partir da deserção abrupta do Outro não implica que o desejo do Outro seja igual a zero, ou que esse Outro não porte a falta, a castração, mas que em um momento crucial para o sujeito o Outro não pôs sua falta em jogo. O melancólico, então, afirma a castração, o que o difere do psicótico, utilizando-se do mecanismo de evitação da castração. Parece que o melancólico coloca a realidade a distância para evitar “se confrontar com a falta, com o real, mantendo a salvo a potência do ideal em relação ao qual ele se identifica” (Ibid., p. 112). Há no melancólico uma identificação ao nada, causada pelo desaparecimento abrupto do Outro, justamente no momento em que seria iniciado no campo do desejo. Essa identificação ao nada faz Lacan dizer em seu Seminário 8 que o melancólico está no simbólico. Para Lambotte, “o nada indica a entrada do sujeito na cadeia significante, especificando a sua relação com o Outro” (Ibid., p. 113).
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O melancólico, por estar identificado ao nada, nega o valor das coisas, que é um juízo de atribuição, mas não nega a realidade, que é um juízo de existência. A autora nos apresenta a clínica com os sujeitos melancólicos a partir de suas especificidades. O primeiro ponto abordado é conhecer o discurso do melancólico, uma vez que a psicanálise opera sobre o discurso, é importante conhecer o discurso sobre o qual o discurso do analista irá operar. Para Lambotte, o discurso do melancólico é um discurso desprovido de afeto, sem representações, com palavras desvitalizadas, nas quais tanto o sentido como a verdade remetem à aniquilação, em uma sucessão de ideias sem pontuação, sem especificação, afeto ou sentido. É um discurso formal que busca a perfeição, que tenta driblar a falta e reduzir a enunciação ao enunciado. O analista deve conduzir o tratamento de tal forma, que o sujeito possa identificar a falta no Outro e a impossibilidade de dizer tudo. Carvalho apresenta um recorte de caso de um sujeito melancólico, atendido durante nove anos, com várias tentativas de suicídio. Um caso típico, no qual a perda do objeto de amor faz com que se autoflagele com ferro quente e que se recrimine como incapaz e sem valor. Envia cartas à analista, em uma escrita rigorosa, bem ao estilo do discurso melancólico. A autora indica a necessidade de um cuidado nesta clínica, pois a queda dos ideais que seria o caminho da cura para os neuróticos, pode “expor brutalmente a falha narcísica do sujeito, podendo provocar uma passagem ao ato suicida” (Ibid., p. 206). No caso apresentado, Carvalho relata a condução do tratamento baseado em dois pilares: levar o sujeito a identificar a falta no Outro e buscar uma identificação, algo do próprio sujeito, que pudesse substituir a identificação ao nada. A analista faz uma interpretação de suas cartas: “Você escreve bem!”. Essa interpretação teve valor de revelação, causando perplexidade e dúvida no sujeito, que a tomou como um equívoco do analista. A analista conferiu um juízo de atribuição a um traço do próprio sujeito, permitindo que uma nova identificação se desse no lugar da identificação ao nada. Desse modo, um significante novo passou a ser a sua marca narcísica, com a qual pôde “tamponar sua falha imaginária e assim não necessitar mais de um objeto para fazê-lo” (Ibid., p. 209). A autora sustenta a hipótese de que o analista precisa suportar o tempo que for necessário para o sujeito melancólico reconhecer a falta no Outro, podendo assim suportar a sua incompletude, fazendo alguma invenção, sua própria versão, conseguindo sair do lugar de objeto e, finalmente, assumir-se como sujeito. A questão da ética do psicanalista na clínica do suicídio é abordada pela autora na forma de um diálogo com o leitor, interrogando-nos, enquanto interroga-se a si própria.
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Sabendo que a ética da psicanálise é a ética do desejo e do bem-dizer o sintoma, de não ceder do desejo, Carvalho nos interroga: Qual a ética na clínica da depressão? E na clínica onde o gozo da morte é o gozo maior do sujeito? Que ética seguir diante do anúncio de um paciente que decidiu se suicidar? A ética humana, praticada pela medicina, postula que a vida está acima de tudo e tudo deve ser feito para preservá-la. Já, a ética da psicanálise, sendo a ética do desejo, de não ceder do desejo, convoca o sujeito a não desistir de buscar o objeto que causa seu desejo e seu gozo, a bem-dizê-los, podendo, em uma análise, apropriar-se de sua verdade e responsabilizar-se pelo seu sofrimento. Quando o paciente diz “quero morrer”, está expressando seu desejo? Freud relaciona morte à pulsão, pulsão de morte. “O sujeito que não tem mais tempo para viver escolhe a morte, não porque a deseje, visto que o inconsciente não a reconhece, mas porque dela pretende tirar alguma satisfação” (Ibid., p. 213). A autora apresenta um caso, no qual um sujeito melancólico chega muito triste e inibido, relatando sua história cheia de fracassos e de tentativas de suicídio, também fracassadas. Nunca havia procurado ajuda, e, mesmo descrente, procura o psiquiatra para ser medicado. Desiste diante da fala do médico, de que terá que esperar o efeito dos medicamentos. Ele estava cansado de esperar. Havia esperado a vida inteira por algo que sabia que não viria. O Outro, que o deserdara abruptamente, nunca veio e nem virá. Sem lugar no Outro e, tomado pela angústia dessa constatação, decide morrer e anuncia que dessa vez fará diferente: “Vou comprar uma arma”. Ainda acrescenta que não autoriza a analista a fazer contato com a família, ameaçando processá-la por quebra de sigilo. A analista decide não atender à demanda na tentativa de barrar o gozo mortífero, acreditando que com a ajuda dos fármacos poderia tirá-lo do lugar insuportável de objeto de gozo do Outro. Fala com os parentes, sugere a internação e mesmo o resgate, como última alternativa, diante da gravidade do caso. Mas eles dizem que não poderiam fazer isso, que ele jamais os perdoaria. O sujeito se retira da cena, em uma passagem ao ato, com um tiro na cabeça. Põe fim à “angústia de estar, toda uma vida, identificado à condição de objeto, de resto para o Outro” (Ibid., p. 184). Carvalho questiona suas intervenções sob a óptica da ética e da técnica da psicanálise. Quebrou a regra do sigilo ao contatar os parentes e expor a decisão de seu paciente de se matar. Também sugeriu uma internação involuntária. A analista visou assim ao bem de seu paciente? Já foi dito que a ética da psicanálise não é a ética do bem, mas do bem-dizer. Não cabe ao psicanalista querer o bem do paciente. O único desejo que cabe a um
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analista é que uma análise se dê. Portanto, “ao infringir algumas regras, a analista colocou em ato seu desejo, desejo que esse sujeito pudesse ter acesso a uma análise e, por conseguinte ao bem-dizer” (Ibid., p. 185). Carvalho, com base em sua experiência, ressalta a importância de, na clínica do suicídio, deixar o sujeito falar sobre sua dor, sem qualquer julgamento ou interpretação. A pergunta deve ser: “O que há com você?” Somente assim poderá advir uma demanda de análise. Ao falar, o analisante estará desfiando seus significantes, que revelarão o que é da ordem do real, do impossível de ser dito. Também revelarão os equívocos, os mal-entendidos na relação com o Outro. Falar implica perda de gozo, ir além do gozo mortífero, passar por outros sítios de gozo e desejo no terreno de sua história. Cabe ao analista identificar a posição de gozo do sujeito, a partir dos significantes que se repetem na fala. Para a autora, nesse momento o paciente pode ser questionado sobre sua participação no seu sofrimento, e se ele dirige uma pergunta ao analista, configura-se a sua entrada em análise e o estabelecimento da transferência, por meio do SsS (sujeito suposto saber). É o momento para colocar a pergunta sobre o desejo. “O que permitirá que o sujeito, já engajado no desejo de saber, possa implicar-se e responsabilizar-se pela posição de gozo que escolheu ocupar na relação com o Outro” (Ibid., p. 220). A transferência é o motor e o pivô do tratamento para Freud. Lacan acrescenta que na relação paciente-analista há transferência se o sujeito supõe um saber ao analista (SsS). Somente assim há uma demanda verdadeira. Transferência é o amor dirigido ao saber. A autora interroga o que pode levar o sujeito suicida a substituir o gozo da morte pelo desejo de saber. E responde que sua hipótese é a transferência. “Somente a transferência poderá levar o sujeito a abrir mão dessa condição de objeto e interrogar sobre seu ato, sua existência, seu desejo e seu gozo” (Ibid., p. 221). Essa é a aposta de Carvalho, de que o sujeito possa substituir o gozo da morte pelo desejo de saber, um saber sobre o real, sobre a falta no Outro. Aposta no ato analítico como opositor ao ato suicida. Para concluir, a autora afirma que a morte pode esperar por uma análise, desde que haja, além da transferência, o desejo do analista de que uma análise se dê, suportando o tempo que for necessário para que o analisante abra mão da satisfação com a morte e possa substituí-la pelo desejo de saber.
referências bibliográficas CARVALHO, S. A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio. Salvador: Associação Campo Psicanalítico, 2014.
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Mal-estar, sofrimento e sintoma José Luiz Aidar Prado Mal-estar, sofrimento e sintoma, de Christian Dunker, um estupendo livro, começa pela pergunta dirigida pelo zé-ninguém a um analista simbólico: “O que é que eu tenho? Qual é o nome dessa coisa que atrapalha a minha vida...?”. Como funciona, baseado nessa pergunta, o grande dispositivo que diagnostica, intervém e avalia? Como isso funciona socialmente, faz girar a economia, a moral, a ciência, os laboratórios, os consultórios médicos? Os diagnósticos clínicos se expandiram nas últimas décadas, bastando para constatá-lo um exame nas codificações do DSM e no faturamento da indústria de fármacos. Dunker amplia o universo de questões e temas para compreendermos esse dispositivo diagnóstico, entendendo-o como diagnóstica, que é reconstrução de uma forma de vida, de modo que não se trata mais apenas da nomeação técnica de um mal-estar e de sua consequente medicalização, mas de pensá-lo socialmente, a fim de “refazer os laços entre trabalho, linguagem e desejo, pensando a patologia – que se exprime no sintoma, no mal-estar e no sofrimento – como uma patologia do social” (p. 24). Isso implica uma grande travessia, por mais de 400 páginas, vertendo cruzamentos de estudos sobre a identidade, filosofia e psicanálise brasileiras, com seus respectivos impasses, até os meandros do pensamento ameríndio. Por que tanto esforço de pensamento? Por que o sofrimento hoje tornou-se algo pragmaticamente parametrizável, reduzindo-se a uma geometria neoliberal de sintomas tabeláveis que se lê dentro de um regime de visibilidade social em que a figura do homem euforicamente construída é o eu de corpo bombado e inflado de sucesso a partir das insígnias lustrosas do selfy? Para desconstruir essa visão hegemônica, Dunker retira o piso desse terraço plácido e capitalizador, para reconstruir uma forma de encarar o sofrimento que precisa da psicanálise, da antropologia e da filosofia, entre outros campos, para se estabelecer e se fazer entender: “o sofrimento se partilha e é função direta dos atos de reconhecimento intersubjetivo” (p. 24). Nomear um sintoma implica narrativizar um evento dentro de uma história. Viver não é buscar as insígnias do capital do Eu peitoral, mas caminhar para o encontro contingente do acontecimento que rompe os confortos do já-sabido e inaugura processos de verdade. Trata-se, portanto, de repensar os modos pelos quais as experiências brasileiras têm convertido mal-estar em sofrimento. Que papel tem a psicanálise nesse
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PRADO, José Luiz Aidar
cenário de releitura mais ampla a fim de enfrentar o paradigma de consumo do Eu S/A inflado do sucesso e em busca do seu capital identitário? Como o capitalismo à brasileira adaptou a racionalidade diagnóstica para esses novos tempos do EU inflado dos condomínios? Condomínio é palavra-chave para Dunker, não se restringindo aos Alphavilles de muros altos, mas valendo para tematizar os funcionamentos dos dispositivos sistêmicos-totêmicos em que domina a gestão e não a política. Gestão é operação de sistemas peritos síndicos-cínicos, com tarefas lideradas por analistas simbólicos e suas redes técnicas em que os espaços são separados por barreiras de acesso e vigiados por olhos eletrônicos, e em que os desgarrados são medicalizados ou aprisionados. Feitas as contas, o empreendimento de Dunker é repolitizar nossas formas síndicas condominiais de encarcerar os sintomas, para refazer as formas de vida. Essa leitura a contrapelo implica encarar o sintoma como um desejo de que a vida mude, mas que carece de expressão política. Dar voz ao sintoma, fazer o mal-estar dizer qual experiência perdida ele expressa, trocar os síndicos pelos sujeitos acontecimentais, tais são os horizontes que se depreendem da via traçada por nosso autor. Dunker varre, assim, a história da modernidade brasileira, que cruzou com os caminhos da psicanálise em nossas terras, para depois fazer proposta de desligar as chaves totêmicas psis que comandam essas teorias, abrindo a escuta para o perspectivismo ameríndio: Se o psicanalista freudiano se aproxima do xamã sacrificial, na antiga acepção de Lévi-Strauss, o psicanalista lacaniano, no sentido do discurso do psicanalista, se aproxima do xamã transversal descrito por Viveiros de Castro. O xamã é uma espécie de comutador, um guerreiro diplomata que procura estabelecer conciliações e paridades entre universos não comensuráveis. Ele não é o tradutor que tenta fazer duas populações estrangeiras situarem um ponto comum de mútua relação, mas alguém que busca resolver problemas práticos entre populações incomunicáveis. [...] O xamã encarna, relaciona, relata e mimetiza os diferentes pontos de vista (p. 386). Dunker desliga, em consequência, o funcionamento da psicanálise liberal, que aposta suas fichas nas experiências produtivas de determinação, esquecendo, em consequência, da produtiva experiência de não identidade, o que conecta seu pensamento ao de Safatle, que opera com Lacan e Adorno. Por isso, a psicanálise é aqui aposta e sintoma:
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Mal-estar, sofrimento e sintoma
Este é um livro sobre a visibilidade dessa articulação em dois contextos muito específicos: os condomínios de nossa mais alta modernidade e o encontro na mata entre os remanescentes ameríndios do alto Xingu. Entre eles, a psicanálise é, ao mesmo tempo, cura e sintoma, realização bem acabada e implante postiço (p. 398). Aposta difícil, contingente e necessária.
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Escrever o trauma, de Freud a Lacan Tatiana Carvalho Assadi Polifonia traumática Uma menina-moça me procura para análise depois de muitos cortes, marretadas e arranhões que produziu em seu corpo. Em alternância, vômitos diários, refluxos, dores abdominais e desarranjos intestinais. Os resultados foram cicatrizes, gastrite, doença de Crohn e uma angústia dilacerante. Na lembrança, uma cena, uma única, de um suposto abuso sexual na infância em que os resíduos ecoantes são o olhar dos garotos e a sonoridade do riso. Restos de imagens e de sons reaparecem a cada instante e a lançam como dejeto humano. Esse foi um dos fragmentos clínicos que me surgiram ao ser tocada pelo livro de Sandra Leticia Berta: Escrever o trauma, de Freud a Lacan, publicado neste ano na coleção Ato Psicanalítico, pela Editora Annablume. Inicio pela clínica, porque talvez esta seja a melhor forma de explicitar como li e leio esse texto. Berta propõe um projeto clínico traçado pelas amarras da teoria do trauma. Um livro denso, mas não tenso. Um texto sobre o trauma que trama uma belíssima trança entre conceitos que se alinhavam e desalinhavam desde a clínica psicanalítica. Uma andança moebiana que chama Freud e Lacan em uma temporalidade que não obedece ao desenvolvimento, tampouco à linearidade. A autora, com sua escrita cuidadosa e rigorosa, recupera o conceito de trauma em sua mais delicada aparição. Contraria o pressuposto de uma teoria abandonada, desusada, esquecida, ultrapassada e resgata seu valor no âmago da psicanálise. Parte de um mapeamento e de uma varredura na obra de Freud, investigando o trauma que surge nas tramas analíticas. Os ditos dos analisantes saltam aos seus ouvidos e a recuperação pelo tema bordeia sua escrita. O trauma estaria ligado a um acontecimento? Qual a relação do trauma com a fantasia? E sua questão temporal, como se enlaça? Uma de suas apostas, logo na entrada de seu texto, é tomar o trauma não como um conceito fundamental, mas, sobremaneira, como uma questão imprescindível para a direção de um tratamento. Três palavras surgem como representantes do que seria essa questão: Prägung, Tyché e Trou. Primeiro, gostaria de convidar o leitor a pensar que conseguir reduzir o tema a três palavras é um esforço representativo de uma investigação precisa e
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intensa. Berta nos apresenta a forma com que transitou pela literatura psicanalítica, não apenas pelo tema escolhido para sua pesquisa. Segundo, marco aqui que são três palavras em três idiomas diferentes, a saber: alemão, grego e francês, uma polifonia que em si mostra a densidade da questão e aponta para uma não universalização. Trauma, encontro e furo, como poderíamos verter as palavras para o português, endereçam para uma forma de amarração imprescindível, diria, que apontam para três elos amarrados pela temporalidade nachträglich. Nesse sentido, repito e retomo a apresentação nas primeiras linhas dizendo que temos em nossas mãos um texto que serve como referência aos psicanalistas, tanto em seu mapeamento teórico perspicaz quanto em seu projeto clínico. O trauma surge, então, como questão que aponta para a estrutura, para o acontecimento e para a clínica. O livro está dividido em oito capítulos. Cada qual propõe uma amarração e um ir e vir que convida a acompanhar o pensamento da autora. A introdução e as palavras finais traduzem um estilo pontual e conciso. Salvo as palavras da autora, três textos sobre o livro são de suma coesão e refinamento para a apreensão da temática: a contracapa, o prefácio e a quarta capa. Autores estudiosos da psicanálise lacaniana atual apresentam sua leitura dessa polifonia. Um livro publicado em espanhol e em português transita pelo continente de forma elegante. Em uma tentativa de percorrer e deslizar pelos enodamentos e desenodamentos apresento um pouco de cada capítulo, recuperando não apenas seu aspecto clínico, mas, sobretudo, trazendo, por meio de seus exemplos clínicos, a travessia de Berta pelo acampamento ético, lógico e poético. O capítulo um de seu texto apresenta a recuperação do naghträglich freudiano em sua estrutura temporal que não deixa de lado o que devirá naquilo que foi. Partindo de duas construções fundamentais à psicanálise, experiência e acontecimento, o futuro do pretérito surge como elemento temporal na estruturação do trauma. Enuncia um fato que pode ocorrer posteriormente a um determinado fato passado, ou seja, nesta primeira parte a anterioridade e a posterioridade se confundem, se embaraçam e temos uma primeira mostração de como o trauma pode ser apresentado em Freud. Tomado em sua dupla face, em sua cantoria duplificada, as cenas clínicas do intermezzo conferem ao trauma seu caráter fortuito e imprevisível, basculante entre hereditariedade e incidente. Algumas personagens do século passado são convidadas a dar voz àquilo que sofreram. Entram em cena Frau P. J. e Katharina. O corte cirúrgico que Sandra consegue fazer na recuperação desses casos clínicos coloca o leitor diante da surpresa que os ditos produzem. Ouvimos a mesma Carmem balbuciada por Frau P. J. e escutamos o ar impossibilitado de trânsito em Katharina nos momentos em que a rememoração de duas cenas surgem e na lembrança retroativa de cada uma. A construção sintomática ao trauma foi o que possibilitou Freud abrir as portas da fantasia.
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Escrever o trauma, de Freud a Lacan
Lembremos que este livro trata do tema da “escrita” do trauma; isso quer dizer que a autora dedica seu capítulo três a essa aposta. O que se escreve? A diferença entre a Prägung traumática e Entwurf é de extremo refinamento para adentrar a questão proposta. Freud faz referência à Prägung, no eixo de cunhagem, de impressão quando evoca em suas construções as cenas traumáticas em casos de histeria e de neurose obsessiva. Há algo que é cunhado, impresso, não inscrito, que produz tensão contínua e que se refere ao imaginário nessas aparições. Desta forma, podemos, então, considerar o primeiro aspecto referente à teoria do trauma – um Prägung. Algo é impresso, cunhado! Convocando Emma, Sandra revisita textos preliminares freudianos para extrair a escrita temporal do trauma, assim como a estranheza do evento e os resíduos produzidos. Apresenta a tese de que o traumático, nessa primeira proposta de Prägung, seria o que não foi transcrito, tampouco traduzido. Faço uma pequena digressão. Cenas traumáticas, eventos traumáticos, significante traumático, trauma, surgem em aparições distintas ao longo do livro. Em minha apreensão essa vacilação do uso diz respeito, justamente, ao aspecto polivalente da questão. Diria que a autora caminha pelo “dentro” e “fora” da banda mostrando sua abertura temporal e espacial. A causa incidental do trauma é evidenciada no capítulo quatro, quando a autora recupera a construção psicanalítica do trabalho d’alma por meio do sonho. Retomando, causa incidental e fixação remetem ao aspecto traumático da sexualidade. O caso clínico do Homem dos Lobos e, sobremaneira, seu sonho, é trazido para dialogar com algo que não se integra às fantasias, reiterando o resto do ouvido e do visto que conduzem ao traumático. Imagem e audição ocupam lugar no instante traumático. O que posso depreender dessa leitura é que o texto vai deslizando de construções de espaço para temporalidade e vice-versa. Nesse exemplo clínico fica evidente que a fantasia é a resposta ao trauma, aliás, considera-se esse caso como paradigmático da construção da fantasia e sua implicação com o trauma. O aspecto da repetição também é relevado em sua incidência do retorno do mesmo, apontando para o inominável, atingido e indecidível, como Sandra esmiúça no item 4.5 de seu livro. Aqui vale ressaltar, veementemente, o lugar do trauma. Ampliaria um pouco mais esse ponto dizendo que o lugar fica salientado neste momento do texto, mas o lugar que se trata pode ser compreendido como o lugar do trauma recuperado na psicanálise. Depois do abandono da teoria da sedução, alguns autores compactuam com a ideia da teoria traumática. O que recuperamos pelos alinhavos, costuras e cortes desse escrito é que há um lugar ofertado, muitas vezes negligenciado, para o traumático.
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É com essa consideração que as portas do capítulo cinco se abrem. As neuroses traumáticas tomam suas posições, cristalizando o momento do acidente. É possível também considerar que o livro não mostra o valor da teoria do trauma estritamente; sua amplitude é veiculada pela expansão à metapsicologia psicanalítica, à psicopatologia da neurose e, de fato, à teoria do aparelho psíquico. Aprendi com essas linhas que podem ocorrer eventos traumáticos que promovem fixações, isto não quer dizer que neuroses sejam produzidas nesses instantes. A autora dialoga com outros psicanalistas que percorreram seus estudos enveredando pela teoria da causação e do trauma, e conduz a escrita para um outro lugar: o lugar do analista diante desta clínica. Mais uma vez os sonhos ocupam o cenário. Sonho e sintoma vão se revezando em suas aparições nesta escritura. “Pai, não vês que estou queimando?” apresenta a angústia que protege o trauma, e a conclusão é que a angústia mitiga o trauma, se emparelhando ao desamparo. Até aqui temos um longo mapeamento sobre a escrita do trauma, de como Freud foi construindo, descontruindo e enfrentando essa questão extraída dos ditos analisantes. O livro mostra um exercício freudiano de não aplicabilidade da teoria, mas de interrogação, indagação, de provocação que a clínica coloca aos psicanalistas. Nos capítulos subsequentes, Lacan entra como debatedor do tema. O trauma, como tela de fundo a cada conceito armado por Lacan em seu ensino, fica evidente logo na apresentação de seu sexto capítulo. Lacan, relendo o Homem dos Lobos, traz a ideia de acontecimento, de ficção, de reconstrução, deste modo, de nachträglich. Em suas construções dos anos 1950, o apagamento do traço se torna importante presença na passagem da Prägung traumática para a presença da tiquê. Mudanças de idiomas, mudanças de paradigmas mantendo a pintura clínica e as discussões teóricas. O atrelamento da questão do trauma à dor de existir levanta um dos aspectos mais relevantes neste texto. O trauma é humano? A linguagem é traumática ou a entrada na linguagem que o é? Já nos foi esclarecido que a sexualidade é, por excelência, traumática. Uma das extrações que dizem respeito ao projeto clínico que a autora tem nos mostrado ao longo de suas amarrações diz respeito à violência espacial que a questão produz e sua eternização do tempo. Retomo agora o exemplo clínico que trouxe no primeiro parágrafo desta resenha. A analisante recupera o instante a cada vez, o próprio ato de falar intensifica a temporalidade e rasga, denunciando uma espacialidade. Restos do que foi ouvido, do que foi visto; a linguagem e a sexualidade como traumática; a angústia mitiga o trauma e daí por diante...
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Escrever o trauma, de Freud a Lacan
Qual a direção do tratamento diante dessa questão? Sandra nos reponde que é fundamental abrir ao sentido para que uma ficção seja construída, para que, a posteriori, essa mesma ficção seja cortada para que não se torne elemento cristalizado produzindo uma verdade universal e hermeticamente fechada. Poderia sustentar que os três últimos capítulos, a saber, seis, sete e oito, são dedicados, respectivamente, aos três “nomes” oferecidos ao trauma: Prägung, Tiquê e Trou. De chofre, na entrada do capítulo sete, o leitor encontra a assertiva de que basta estar na linguagem; a condição de falasser é traumática, stricto sensu. Deparamo-nos com a analogia de que tiquê está para o trauma assim como automatôn para a fantasia, assim como denuncia Lacan em 1964. A roupagem ofertada a essa questão é a de que, no acontecimento traumático do encontro, estamos diante do ato e do evento. Deste feito, o encontro ocupa as vestes de real e o trauma, as de retorno do real. É o encontro falhado que abre as portas para a temporalidade de ruptura. Nesse lugar que o trauma ocupa na teoria, o significante traumático, o traumatismo, entra em cena, e uma aposta transita entre a noção de impossibilidade e impotência. Em uma passagem bem costurada, a autora passa do trauma ao trou-matisme. Um furo inevitável ao sujeito que institui a lalangue materna como trou. O debate sobre saber e verdade é retomado. Ao longo do livro, esse debate surge a cada vez como pano de fundo para a questão proposta. Uma verdade não-toda é apenas sustentada pela escrita. Quando escutamos a cena que é traumática, ela apenas o é porque ali não há um saber sobre ela. Nesse tanto, o sujeito se vê diante da busca de um saber sobre a verdade que reinsiste em ser não-toda. As teses de Lacan sobre a questão do trauma se refinam no capítulo oito, e a palavra materializada moterialidade é embarcada como uma goma de mascar, usada até gastar como um tratamento possível ao traumático. Seus matizes pela lógica, topologia e nó borromeano ganham espaço, e a questão do trauma ocupa o lugar da extimidade, do que possibilita fazer a borda do furo no saber. Sandra encontra nessa torção a junção entre o topos e a temporalidade. Lugar e tempo, extimidade e naghträglich traduzem o percurso desde Freud até Lacan e, mais ainda, encorps, no corpo das linhas lituraterreadas da escrita da autora. Leio o livro em uma dupla via: do impossível ao impredicável, e arrisco pronunciar que o trauma é impredicável, mas não sem ser impossível. Termino convidando o leitor a recuperar a proposta clínica de Sandra Berta quando, na página 225, em uma versão e reversão tórica, ela nos apresenta: “[...] cabe ao analista, pela sua operância, causar a ficção fantasmática, porém fazendo ex-sistir a cada vez o... ‘não é isso’, índice do real em questão. Índice
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do traumatisme. Isso faz ressoar o poder da moterialidade da palavra, ou, se quisermos, o poder da lalangue traumática – corpo do simbólico – seu alongamento pelas voltas dos ditos.” Um texto que merece ser estudado, lido, usado, manuseado como as palavras o são no contexto analítico. Retomo o título e recupero o uso da vírgula. Ali, esta pontuação funciona para explicar a frase. A primeira oferece sentido e não sentido à segunda e vice-versa. Verso, reverso, anteverso da questão do trauma. Saio do texto poetizando a polifonia e escrevendo...
referências bibliográficas BERTA, S. L. Escrever o trauma, de Freud a Lacan. São Paulo: Annablume, 2015.
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Lacan lecteur de Joyce Marc Strauss O elo perdido?1 Inicialmente, gostaria de agradecer a Colette Soler a proposta para fazer aqui a apresentação de seu livro recém-lançado, Lacan lecteur de Joyce [Lacan leitor de Joyce], publicado pelas Presses Universitaires de France (PUF). Não vou referir aqui o percurso meticuloso que ela desenvolve nesse livro, nem me debruçar sobre uma ou outra formulação, seja ela esclarecedora ou enigmática. Vou apresentá-lo a vocês e dizer, então, aquilo que, a meu ver, parece-me importante, e até mesmo essencial. E como Colette Soler está presente, perguntar-lhe-ei na sequência o que ela pensa de alguns pontos que dele deduzo. Ao ler Lacan lecteur de Joyce, uma questão se apresentou para mim, a mesma que tinha em seus livros anteriores, questão essa que não deixa de ter seu lado avesso de inquietação. Formulo-a assim: “Mas para onde é que ela está nos levando...?”. É certo que Colette Soler apresenta-se resolutamente como uma leitora de Lacan, mas segui-la leva a consequências inesperadas, para não dizer incômodas. Se seus livros se contentassem em nos esclarecer aquilo que mais ou menos já sabíamos, eles não levantariam problemas, e certamente seriam mais bem acolhidos. As reações de meus colegas na ocasião das publicações de seus livros anteriores mostraram que eu não era o único a reagir assim. Mais uma vez, esse é um livro que nos convida a questionar nossas referências analíticas adquiridas e, portanto, nos desafia a ousarmos nos dizermos lacanianos. Tomemos como exemplo o inconsciente. Todos nós sabíamos que ele era simbólico, e eis que nos foi necessário consentir vê-lo como real, pois, relendo Lacan, isso se sustentava. Em seguida, os afetos. Eles eram imaginários e inconsistentes, e ei-los, por causa dela, quase mais reais do que a própria linguagem. Mas, aí ainda, por que não, já que isso ainda se sustenta? Com sua última obra, Colette Soler vai ainda mais longe, a contrapelo: ela toca em nossa fronteira mais sagrada, aquela na qual tudo se sustenta: a estrutura. A estrutura é, no entanto, o nosso mínimo necessário para nos considerarmos lacanianos. É nela que se fundamenta o corte significante, aquele que permite que 1 Apresentação do livro de Colette Soler, realizada na livraria Tschann, em Paris, em 16 de junho de 2015.
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STRAUSS, Marc
o branco não seja um preto, que o sim não seja um não. A estrutura é a oposição fonemática no próprio princípio da lógica do significante e suas consequências para aquele que fala. Para o nosso campo, o do sujeito às voltas com seu ser vivente e falante, a estrutura se distingue e se formaliza, como sabemos, a partir do Nome-do-Pai (NdP). Com ele distinguem-se a neurose e a psicose, a perversão ficando reduzida a um divertículo – isso lhe convém – da neurose. Para a psicose, a foraclusão do NdP necessita de uma suplência, e esta última pode, então, fazer objeto de uma clínica brilhante por sua fineza. Uma clínica que ordena as formas pelas quais um sujeito psicótico se sustenta, apesar de seu impossível encontro com a perda, se, é claro, ele não se abandonar a isso de corpo e alma, como faz o melancólico. Há outros benefícios para a clínica estrutural lacaniana: os casos-limite, os estados-limite, os borderlines e a ampla literatura que a eles é dedicada tanto na psiquiatria quanto na psicanálise, tudo isso pode ser ignorado. O talento de um bom clínico lacaniano é saber identificar o signo distintivo irrefutável que permite distinguir um sujeito, tão difícil de entender como esse, de um lado ou do outro da fronteira entre a neurose e a psicose. É inútil objetar Joyce a um clínico tão bom. Lacan certamente nunca disse que este último era psicótico. Mas ele não fez senão poupar a sensibilidade de seu público, deixando passar àqueles bem sabidos, indícios suficientes com os quais eles se orientam. Devo confessar que, às vezes, me ocorre pensar que sou um bom clínico? Eis então que Colette Soler surge com esse pequeno livro, que, em sua apresentação, faz-se o mais discreto possível, teríamos quase pena disso por ela. Ela vem nos dizer neste momento: não, não, Lacan levou as consequências clínicas de sua reflexão sobre a estrutura até sair da oposição binária entre a neurose e a psicose. Já em 1945, com seu texto sobre o tempo lógico, ele havia mostrado que uma estrutura era sempre ternária, e até mesmo duplamente ternária. Em seguida, passou seu tempo tentando aplicar isso à psicanálise. Ele começou trazendo os três termos Imaginário, Real e Simbólico. Após um longo caminho, deu a cada um deles a melhor definição possível, a partir da chave enunciada em ...ou pior: uma palavra só se define a partir de três termos e pela exclusão dos outros dois. Assim, não se deve interpretar a estrutura como uma alternativa em torno do NdP, uma vez que há uma foraclusão de partida para todo ser falante, a do Um da relação sexual. Uma foraclusão que impõe a qualquer um que fala fazer suplência a ela, relacionando o real, o simbólico e o imaginário, de tal forma que eles possam coexistir. Não estamos mais, de forma alguma, no esquema de uma oposição dual que daí apela para o terceiro que é Outro para que ele dê o passo, já que os três devem se deslocar com um mesmo movimento.
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Lacan lecteur de Joyce
Lacan, então, encontrou os nós borromeanos, cuja representação permite distinguir os enodamentos borromeanos daqueles que não o são, estes últimos rompendo a simultaneidade temporal. E Lacan também encontrou Joyce, que lhe permitiu formalizar o terceiro tipo clínico que logicamente faltava à série neurose e psicose. Então, partimos da alternativa do NdP para na chegada, lendo Colette Soler, e sob reserva de que eu não tenha feito contrassenso, nos encontrarmos com uma foraclusão para todos, mas também com uma alternativa, diferente da primeira, aquela entre a dimensão borromeana ou não da suplência. Ora, esta última partição não se sobrepõe à primeira. Com efeito, é isso que Joyce prova: a suplência borromeana não necessita do NdP. Em Joyce, o filho necessário, a foraclusão do NdP vai até mesmo ser reivindicada. Ele não produz daí menos uma suplência borromeana, é preciso e basta que haja um dizer; um dizer que faz pai do nome, PdN, já que o dizer é pai. O PdN pode dispensar o NdP, e é ele que é o operador verdadeiro da função borromeana. Com efeito, Joyce, por sua art-dire [arte-dizer] que faz sinthoma borromeano se distingue de um Schreber, o qual a paixão pelo sentido condena a uma suplência não borromeana. Entre a neurose e a psicose, portanto, somos obrigados a fazer lugar a um tipo clínico intermediário, no qual há foraclusão do NdP, mas não do PdN. Isso faz da suplência pelo NdP um simples caso particular da suplência pelo PdN. Uma tal radicalidade na leitura de Lacan nos leva a precisar pôr em questão muitos de nossos hábitos, não apenas teóricos, mas também práticos. Ela não pode deixar de ter consequências sobre nossa forma de considerar aqueles que se dirigem a nós, desde o diagnóstico até aquilo que temos a oferecer-lhes. Primeira questão, portanto, que este livro nos coloca: acompanhamos Colette Soler nessa nova clínica que ela oferece a partir de sua leitura de Lacan, ou, antes, nesse complemento pós-joyceano à clínica? Responder a isso é uma questão individual, e por isso é preciso ler o livro e reler Lacan. De minha parte, aquilo que tive tempo de ler dele reteve meu interesse, por sua promessa de esclarecimentos novos sobre a prática, e, mais precisamente, acerca de certos impasses até então mais sentidos que explicitados, inclusive com as neuroses. É sobre esse ponto que me dirijo a Colette Soler agora: se a existência deste terceiro tipo clínico é revelada, inúmeras questões clínicas se colocam. Inicialmente, encontramos tais casos e em quais circunstâncias? Eles têm um ou mais sintomas suscetíveis de fazê-los dirigir-se a nós? Qual é então o âmbito de nossa intervenção e quais são seus limites? Faço essas perguntas de bom grado, ainda mais porque a própria Colette Soler remete, no fim do livro, ao mal-estar do sujeito contemporâneo do capitalismo. Uma terceira questão, por fim: já que esse terceiro tipo faz nó com a psicose com a qual ele compartilha a foraclusão do NdP, e já que ele faz nó também com a neu-
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rose com a qual ele partilha a suplência borromeana, não haveria então para cada falasser uma parte joyceana, ao lado das versões que dão as suplências neuróticas e psicóticas? Essa parte joyceana não seria o inconsciente real? E, por fim, essa parte joyceana não pode ser, para todo falasser, um apoio mais firme do que todas as suplências já repertoriadas, inclusive aquela do NdP? Com efeito, não se trata para nós, de ajudar o falasser a se dizer, de ajudar, portanto, o neurótico a largar um pouco seu sonho edipiano para, lastreado com sua parte de solidão, tomar seu lugar na vida; de ajudar também o psicótico a encontrar uma forma sustentável de se fazer reconhecer como exceção? Enfim, uma última questão, a mais inquietante: esse terceiro tipo clínico, se ele faz nó com os outros dois, não poderia permitir uma passagem de um ao outro desses tipos menos impossível do que parece? Agradecemos, para concluir, a Colette Soler, e também graças a ela o ensino de Lacan está longe de ainda nos ter entregado todos os seus recursos. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
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letras
O laço de fita Castro Alves Não sabes, criança? ‘Stou louco de amores... Prendi meus afetos, formosa Pepita. Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?! Não rias, prendi-me Num laço de fita. Na selva sombria de tuas madeixas, Nos negros cabelos da moça bonita, Fingindo a serpente qu’enlaça a folhagem, Formoso enroscava-se O laço de fita. Meu ser, que voava nas luzes da festa, Qual pássaro bravo, que os ares agita, Eu vi de repente cativo, submisso Rolar prisioneiro Num laço de fita. E agora enleada na tênue cadeia Debalde minh’alma se embate, se irrita... O braço, que rompe cadeias de ferro, Não quebra teus elos, Ó laço de fita! Meu Deus! As falenas têm asas de opala, Os astros se libram na plaga infinita. Os anjos repousam nas penas brilhantes... Mas tu... tens por asas Um laço de fita. Há pouco voavas na célere valsa, Na valsa que anseia, que estua e palpita. Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
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ALVES, Castro
Beijava-te apenas... Teu laço de fita. Mas ai! findo o baile, despindo os adornos N’alcova onde a vela ciosa... crepita, Talvez da cadeia libertes as tranças Mas eu... fico preso No laço de fita. Pois bem! Quando um dia na sombra do vale Abrirem-me a cova... formosa Pepita! Ao menos arranca meus louros da fronte, E dá-me por c’roa... Teu laço de fita.
Espumas Flutuantes (1870) In: Poesias completas. São Paulo: Ediouro/Publifolha, 1997.
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Quando é que o cativeiro Fernando Pessoa Quando é que o cativeiro Acabará em mim, E, próprio dianteiro, Avançarei enfim? Quando é que me desato Dos laços que me dei? Quando serei um facto? Quando é que me serei? Quando, ao virar da esquina De qualquer dia meu, Me acharei alma digna Da alma que Deus me deu? Quando é que será quando? Não sei. E até então Viverei perguntando: Perguntarei em vão.
Novas Poesias Inéditas (Direção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). [Disponível em http://arquivopessoa.net/textos, Acesso em 14/09/2015]
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Sobre autores e tradutores Albert Nguyên Membro fundador da IF. Psicanalista em Bordeaux (França). AME da EPFCL, membro da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Autor regular da Revista l’En-je lacanien. E-mail: a.nguyen33@numericable.fr
Ana Paula Lacorte Gianesi Psicanalista. Membro da EPFCL e do FCL-SP. Doutora em Psicologia Clínica pelo IP-USP. E-mail: anapaulagianesi@yahoo.com.br
Antonio Quinet Psicanalista, membro da IF-EPFCL Brasil e da FCL-Rio de Janeiro, professor da Universidade Veiga de Almeida e diretor da Cia. Inconsciente em Cena. E-mail: antonioquinet@gmail.com
Beatriz Helena Martins de Almeida Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. Coordenadora da Rede de Pesquisa sobre as psicoses de Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Coordenadora, supervisora clínica e professora do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa da Saúde Mental e Psicossocial A Casa, em São Paulo. E-mail: almeidabia@gmail.com
Carlos Eduardo Frazão Meirelles Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano, graduação e mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: frazaomeirelles@gmail.com
Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Professor de francês e tradutor, mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com
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Clarissa Metzger Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto A Casa e da Equipe Hiato, de Acompanhamento Terapêutico. E-mail: clarissa2007@uol.com.br
Dominique Fingermann Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Est (France). Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014). E-mail: dfingermann@gmail.com
Elynes Barros Lima Psicóloga, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum Fortaleza. E-mail: elynesbl@gmail.com
Esther Faye Psicanalista. Analista praticante registrada no Australian Centre for Psychoanalysis (ACP) e membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. É professora do Program of Theoretical and Clinical Studies in Psychoanalysis do ACP. Participou por alguns anos do comitê editorial do periódico Analysis, e regularmente apresenta e publica suas pesquisas na Austrália e internacionalmente. E-mail: esther.faye1@gmail.com
Françoise Josselin Psiquiatra hospitalar, psicanalista, AME, membro fundador da EPFCL, ensinante no Colegiado Clínico Psicanalítico de Paris, responsável pelo CAPA (Centre d’Accueil Psychanalytique pour adolescents et jeunes adultes). E-mail: francoisejosselin@free.fr
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Gabriel Lombardi Integrante do Foro Analítico del Río de la Plata. AME da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, na qual secretaria atualmente a Comissão Internacional da Garantia. Médico e Doutor em Psicologia, é professor titular regular da disciplina Clínica de Adultos na Facultad de Psicología de la Universidad de Buenos Aires, onde integra a Comissão de Doutorado. Dirige o Colegio Clínico del Río de la Plata. E-mail: gabriellombardi@fibertel.com.ar
Geísa Freitas Psicóloga. Psicanalista, membro da IF-EPFCL, Fórum Rio de Janeiro, atual coordenadora da clínica de psicanálise de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. E-mail: geisafreitas.gf@gmail.com
Gioconda Espina Licenciada em Letras, mestre em Estudios de Asia Occidental e doutora em Estudios del Desarrollo. Docente e pesquisadora da Universidad Central de Venezuela. A.P. desde 2001. A.M.E da EPFCL-Foro de Venezuela. E-mail: giespina@gmail.com
Ingrid Ventura Psicanalista em formação. Membro do Fórum do Campo Lacaniano-SP. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará-UFPA. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia-FIBRA. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Doutoranda em Psicologia Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade da PUC-SP e do Laboratório de Clínica do Sujeito: Sintoma, Corpo e Instituição – UFPA. E-mail: ifigueiredoventura@gmail.com
Jorge Ivan Escobar Gallo A.E. 2013-2016. Membro da Escola e do Fórum de Medellín. Médico geral da ESE Metrosalud. E-mail: jorgee@une.net.co
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José Luiz Aidar Prado Professor no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pesquisador do CNPq e editor da revista Galáxia. É organizador da hipermídia Regime de Visibilidade em Revistas e autor dos livros Habermas com Lacan (São Paulo: EDUC, 2014) e Convocações biopolíticas dos dispositivos midiáticos (São Paulo: EDUC/Fapesp, 2013). E-mail: aidarprado@gmail.com
José Romilson Gomes do Nascimento Psicanalista membro do Campo Psicnalítico – Salvador, mestre em Educação e coordenador do projeto Clube de Leitura Cristal. E-mail: jromilson@uol.com.br
Juliana Silva Doutoranda do Programa de Língua e Cultura do Instituto de Letras da UFBA. Fez graduação em Língua Estrangeira Moderna – Inglês e, desde 2010 desenvolve pesquisa no campo de estudos Inglês como Língua Franca. Tem atuado também como professora de inglês em diversos contextos, intérprete consecutiva (português-inglês e inglês-português) e tradutora. E-mail: juls8410@gmail.com
Marc Strauss Psiquiatra, psicanalista. Ex-residente dos Hopitaux Psychiatriques de la Région Parisienne. Ex-assistente de Consultas no Hospital Sainte-Anne (Paris). Membro Fundador da EPFCL, AME, Docente no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: strauss.m@wanadoo.fr
Marcia de Assis Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Niterói. E-mail: marcia.assis@gmail.com
Maria Claudia Formigoni Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br
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Michele Roman Faria Psicanalista. Psicóloga clínica com graduação, Mestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-Doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp sobre O real, o simbólico e o imaginário nos seminários de Lacan. É autora de Constituição do sujeito e estrutura familiar. O complexo de Édipo, de Freud a Lacan (São Paulo: Cabral, 3a ed., 2014) e de Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais (São Paulo: Hacker, 1998). Atua como psicanalista em consultório particular e como docente em cursos de pós-graduação. E-mail: michelefaria@terra.com.br
Miriam Ximenes Pinho Psicanalista. Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2015). Mestrado em Ciências (UNIFESP, 2009). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1994). Analista membro do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP). E-mail: miriampinho@yahoo.com
Pricila Pesqueira Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul. Professora e supervisora clínica da Universidade da Grande Dourados. E-mail: pricila_pesqueira@yahoo.com.br
Sávio Siqueira Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor de língua inglesa e linguística aplicada do Departamento de Letras Germânicas do Instituto de Letras da UFBA, coordenador do Programa de PósGraduação em Língua e Cultura. Atualmente, faz estudos de pós-doutorado no Departamento de Estudos de Aquisição de Segunda Língua na Universidade do Havaí, Manoa, Honolulu, Havaí, Estados Unidos da América. E-mail: savio_siqueira@hotmail.com
Silvana Pessoa Psicanalista. Mestre em Educação pela USP. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum SP e Membro Honorário do Campo Psicanalítico – Salvador. Ensinante e coordenadora de atividades de transmissão nas FCCL-SP. Autora de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais sobre a práxis e a teoria psicanalítica em intensão e extensão. E-mail: silvanapessoa@uol.com.br
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Sol Aparicio Psicanalista, trabalha em Paris. AME e membro fundador da EPFCL. Ensinante no Collège Psychanalitique de Paris e de Roma. Consultora no Centre Médico-Psychologique de Cachan (Centre Hospitalier Paul Guiraud-Villejuif). Publica regularmente artigos em revistas de psicanálise. E-mail: sol.aparicio@orange.fr
Tatiana Carvalho Assadi Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano-SP/ EPFCL-Brasil. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade-SP e MC/FCL-SP. Pós-doutora em Psicologia Clínica-USP. Doutora em Ciências Biomédicas-Unicamp. Autora de artigos em livros e revistas. Autora do livro Vergonha (Coleção Emoções São Paulo: Duetto Editorial, 2010). Autora e organizadora, juntamente com Heloísa Ramirez e Christian Dunker de A pele com litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise (São Paulo: Annablume, 2011). E-mail: tatiassadi@uol.com.br
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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacional do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise, principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a linguística, a música, a literatura etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.
Fluxo de avaliação dos artigos: 1.) Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-afcl@yahoogrupos.com.br e na if-epfcl@champlacanien. net 2.) Distribuição para parecer. 3.) Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4.) Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5.) Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6.) Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7.) Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.
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Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Conferências: conferências proferidas sobre temas psicanalíticos ou de interesse da psicanálise no âmbito dos Fóruns do Campo Lacaniano em Diagonais Epistêmicas e outras atividades, nas Universidades, nos Encontros da EPFCL Nacionais e Internacionais. As conferências proferidas oralmente serão transcritas. Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise. Expressão mais subjetiva das escolhas discursivas e, portanto, podendo apresentar conclusão mais original (aproximadamente de 05 laudas ou 9.000 caracteres até 15 laudas ou 31.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica ou descritiva de livros, filmes, peças tetrais ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente de 02 a 05 laudas, entre 3.000 e 9.000 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Letras: poesias e poemas de autores brasileiros ou estrangeiros que tenham relação com o tema proposto para aquela edição específica da revista. STYLUS possui as seguintes seções: conferência, ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, espaço escola, entrevista e resenhas e letras; cabendo à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.
Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver.
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Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.
Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a não o encaminhar para outro(s) veículo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com. Alternativamente, podem ser enviadas em mídia digital, acompanhadas de três cópias impressas, para o seguinte endereço: Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo Revista Stylus: Revista de Psicanálise da Associação de Fóruns do Campo Lacaniano Brasil Rua Veríssimo Glória, 126. CEP: 01251-140 – Sumaré (São Paulo – SP)
Os artigos devem conter os seguintes elementos:
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO t Primeira lauda contendo apenas o título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais, em 10 linhas, no máximo] e endereço completo (com e-mail). t Demais laudas, numeradas consecutivamente a partir de 1 (um), repetindo o título, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. t No caso de investigações/desenvolvimentos teóricos, relatos de pesquisas, debates e entrevistas, deve ser incluído um resumo de no máximo trezentas palavras, ao final, na mesma língua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mínimo três e no máximo sete). Após esse resumo, deve-se incluir também uma tradução do mesmo, em inglês (abstract), acompanhada da tradução do título e das palavras-chave. t No caso de entrevista, devem ser incluídos, ao final, os seguintes dados: data
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da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. t No caso de resenhas, deve-se incluir, ao final, a referência completa da obra resenhada. As ilustrações devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas também em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um título sugestivo do seu conteúdo.
SOBRE CITAÇÕES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt. pdf) Referências bibliográficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf)
Citações no texto: As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.” Já as citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em consequência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanálise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente,
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enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. As citações indiretas devem conter as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideias originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (ALBERTI e ELIA, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (ALBERTI et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. t Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). t Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). t Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parênteses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).
Notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.
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Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955). A coisa freudiana. In: . Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437. 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
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Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Graça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: Fingermann, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 8 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br
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Pareceristas Stylus 30 Alba Abreu (EPFCL-Aracaju) Amélia Almeida (Campo Psicanalítico-Salvador) Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-São Paulo) Ana Paula Gianesi (EPFCL-São Paulo) Andréa Brunetto (EPFCL-Campo Grande) Andréa Franco Milagres (EPFCL-Belo Horizonte) Andréa Hortélio Fernandes (EPFCL-Salvador) Ângela Diniz (IF-EPFCL) Angela Mucida (IF-EPFCL) Angélia Teixeira (EPFCL-Salvador) Beatriz Oliveira (EPFCL-São Paulo) Christian Dunker (EPFCL-São Paulo) Clarice Gatto (IF-EPFCL) Conrado Ramos (EPFCL-São Paulo) Daniela Chatelard (EPFCL-Brasília) Eliane Schermann (IF-EPFCL) Ester Aida Gelman (Campo Psicanalítico-Salvador) Graça Pamplona (IF-EPFCL) Gracia Azevedo (IF-EPFCL) Henry Krutzen (Natal) José Antônio Pereira da Silva (IF-EPFCL) Kátia Botelho de Carvalho (EPFCL-Belo Horizonte) Leandro Santos (FCL-São Paulo) Lia Silveira (EPFCL-Fortaleza) Luís Andrade (IF-EPFCL) Luis Achilles Rodrigues Furtado (EPFCL-Fortaleza) Maria Luisa Rodriguez (EPFCL-Rio de Janeiro) Roseli Rodella (EPFCL-Aracaju) Silvana Pessoa (EPFCL-São Paulo) Sônia Borges (EPFCL-Rio de Janeiro) Tatiana Assadi (EPFCL-São Paulo) Vera Pollo (EPFCL-Rio de Janeiro) Zilda Machado (EPFCL-Belo Horizonte)
uva: Pantone 667 C
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mostarda: Pantone 606 C ISSN 1676-157X outubro 2015 no 31
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil
“Durante um certo tempo, enchi os ouvidos de vocês com a lacuna,
Laços
agora lacuna se reduz a laço”. LACAN, Jacques (1961-62). O seminário, livro 9: A identificação, lição de 07/03/1962. * “Ainda temos que precisar nesta ocasião o que quer dizer esse laço. O laço (...) é um laço entre aqueles que falam. Vocês logo veem aonde vamos – aqueles que falam, certamente, não são não importa quem, são seres que estamos habituados a qualificar de vivos e, talvez, é muito difícil excluir, daqueles que falam, a dimensão da vida”. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 43. * “Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma”.
ISSN 1676-157X
LACAN, Jacques (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 21.
s t y l u s
epfcl brasil
31 outubro 2015
stylus R E V I S TA
DE PSICANÁLISE
Laços