Escrita Criativa nº28

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Mês Julho nº 28

Um poema sobre a luta pelos sonhos Um poema sobre os sentimentos contraditórios do amor Um poema sobre os sentimentos de amor e de desejo em estar com a pessoa amada

Uma história que recorda o dia da liberdade

Uma história que nos envolve e faz-nos perder no enredo

Um conto misterioso sobre a valor da vida

Uma crítica sobre o respeito e a Escrita Criativa aceitação das diferentes opiniões


Índice e destaques

Índice Editorial………………………….……...3 As Nossas Sugestões………….…..5

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Destaques Histórias Narrativas  Adeus no Tempo – Uma história sobre os desejos e o sofrimento de um amor não partilhado e à distância.

Pequenas Histórias Grito de Liberdade……..……….9  Oscarstein….........................18  Alma Negra…….…………………..32 Adeus no Tempo………………….35 Lirismos Eco do Mar.......……………………41  O Direito a Sonhar……...........43  A Tela do Amor..………….……..44  Uma História a Preta e branco…………………………………...47  Estás em mim……………………..49  Os meus olhos…………………….50

Críticas e Maldizeres  Gente que rosna.……………..53 Os burocratas……………………..57

Regras para Trabalhos Enviados………………………………….58

Histórias Poéticas Eco do Mar– Um poema sobre os sentimentos de saudade e o desejo da pessoa amada  Uma história a preta e branco– Um poema sobre o amor entre diferentes culturas  Os meus olhos- um poema sobre os olhos e as emoções que podem ou não ser por eles demonstradas.

Críticas e Maldizeres Os Burocratas – um poema satírico sobre os burocratas Ficha Técnica: Mês de Outubro 2012 n.º28 via internet – ebook Editora: Marta Sousa Revisora: Patrícia Lopes Redacção: Marta Sousa, Liliana Novais, Adoa Coelho, José Almeida, Diogo Cabral, Ana Maria Teixeira, Ana Nunes, Maria Manuela Macedo, Firmino Bernardo, Giovana Damaceno. Grafismo: Paula Salgado (logótipo), Marta Sousa, imagens de “Tela de Amor”, “Eco do Mar” e “Os Meus olhos” foram enviadas por Maria Manuela Macedo e de “Gente que Rosna” foram retiradas do blog de Giovana Damaceno. Interdita a reprodução para fins lucrativos ou comerciais dos textos e interdita a outros que Escrita Criativa não o autor e a reprodução sem a indicação do respectivo nome do autor.


Editorial

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Neste mês de Outubro temos uma revista recheada de participações. A capa dá as boas vindas ao Outono onde se assinala o cair das folhas, sempre acompanhada com uma boa leitura, claro. Nas Nossas Sugestões, temos mais

dois

livros

lusófonos

da

Editora

Modocromia, graças à colaboração com Isabel Fontes. Agradecemos mais uma vez a colaboração e o apoio. Nas Pequenas Histórias, temos histórias diversas que falam de sentimentos, como a luta por sonhos, tais como a liberdade, amores ilusórios ou impossíveis, recheado de mistérios que nos prendem desde o início até ao fim, não deixem de ler e de se deixarem prender e levar por uma boa leitura. Na secção lírica temos poemas sobre sentimentos profundos como os de amor, que nos levam ao profundo do sentimento e nos deixam envolver por ele assim como na falta da pessoa amada, sem deixar de falar de sonhos e da necessidade de sonhar do homem, afinal sem sonhos o homem não é nada. Nas Críticas e Maldizeres temos a crítica Gente que Rosna, que faz um comentário sobre atitudes, que por vezes se tomam sem se ter

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4 consciência, apenas porque as opiniões são diferentes. Temos também o poema satírico sobre os burocratas de Firmino Bernardo. Agradecemos o apoio e divulgação e aguardamos as vossas opiniões no Facebook e no nosso Blog. Podem também enviar as vossas opiniões e participações para asnossahistorias@hotmail.com. Marta Sousa

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As Nossas Sugestões

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…Até a Sonhar de Artur Silva Sinopse “Como queria mergulhar, no teu pensamento.. Para eu receber de ti, a tua mais doce atenção Do teu peito! Nunca sairia de lá nem no tempo E ocuparia por inteiro, o teu delicioso coração...”

Biografia Artur da silva nasceu em 04 de Julho de 1961 em Oliveira de Azeméis. Em 2007 mudou-se para Águeda. Começou a escrever por mera “piada”, um verso erótico aos 9 anos de idade. No seu imaginário inventava histórias mas nunca as colocou no papel. Assim, foi perdendo muitos dos seus escritos que os construiu na sua cabeça. Em 2003 foi convidado a escrever um poema para um aniversário de uma pessoa amiga o qual ao ser lido teve uma ovação de perto de 200 pessoas. A pedido de diversas pessoas foi escrevendo poemas e

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6 oferendo, tendo já diversos espalhados por mais de 500 pessoas, perdendo o rasto de muitos. Tem escrito e não mais parado, já contando com cerca de mais de 6000 versos, a maioria a pedido de lindas mulheres, com quem foi convivendo, sonhos coloridos, paixões ardentes, amores proibidos. Continua a escrever as suas novelas...tornando assim estas palavras um retrato da sua vida.

Uma Edição: Editora MODOCROMIA Com o Apoio da Câmara Municipal de Águeda

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Borbo Letras de Lúcia Ribeiro Sinopse: "Esfolha-me suavemente, Lê-me pouco a pouco... Coloca teu marcador em minhas páginas."

Sobre Lúcia Ribeiro: Nasceu na Póvoa de Varzim, em 1951. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Variante de Estudos Portugueses e Franceses. Possui, ainda, O Diplôme Supérieur d’Études Françaises Modernes de L’Alliance Française (DSEF), uma Especialização em Orientação Educativa, do Instituto Superior de Educação e Trabalho (ISET) e outra em Administração Escolar, do Instituto Nacional da Administração (INA). Tem trabalhos publicados em alguns jornais regionais e revistas escolares e, ainda, em diversos sítios da Internet. Publicou no Recanto das Letras dois E.livros: “Un morceau de moi”, em 2007 e “Olhares escritos”, em 2012.

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8 Publicou o seu primeiro livro SENSUALidade 1, em 2006; em 2007, participou da « Antológica Primazia » da All Print Editora, de S. Paulo; em 2008, participou da « Antologia dei Premi, Poesia, Prosa e Arti Figurative » da Accademia Internazionale Il Convívio, Castiglione de Sicilia, Itália; em 2009, participou do livro Talentos, (As melhores poesias do 1º Concurso Digital) da EDITORA MM de Campinas, S. Paulo e em 2012, participou da 1ª Antologia da Editora UniVersus, Lisboa.

Uma Edição: Editora MODOCROMIA

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Pequenas Histórias

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Um Grito de Liberdade - General Alexandre. - Só Alexandre por favor. - Está bem. Eu sou o jornalista que falou consigo ao telefone, gostava que me contasse a sua história. Como estamos a fazer um documentário sobre o Fascismo e a Revolução dos Cravos gostava que o Ge... hã… o Alexandre nos contasse a sua história. Aceita? - Claro. As pessoas devem saber, principalmente os mais novos, o que aconteceu naqueles anos de miséria. - Então liguem as câmaras e comecem a filmar. - Foi há trinta e cinco anos que a minha vida deu uma volta de cento e oitenta graus. Só tinha dez anos na altura. «Estava uma noite fria de Inverno como só existem em Janeiro. Nesta noite a chuva caía como lágrimas grossas do céu, parecia que este ia desabar em cima de nós. Relâmpagos e trovões enchiam o ar de luz, cor e som, eu na minha cama tremia de medo escorreguei para fora da cama, o meu Pai estava no rés-do-chão corri para ir ter com ele lancei-me nos seus braços e ele abraçou-me, riuse e disse:

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10 «- Então campeão - era assim que ele me chamava - Tens medo de uma trevoadazinha? - comecei a chorar. «Um dos amigos do meu Pai que iam constantemente visita-lo a altas horas da noite para ouvirem a Rádio Moscovo e falar contra o regime, coisa que eu não compreendia na altura, sorriu para mim e disse-me que tudo ia correr bem que a trovoada não me ia levar embora porque eles estavam lá para me protegerem. Ainda me lembro bem dele trabalhava com o meu pai no tribunal. Não sei ao certo o que fazia mas acho que era um juiz, sim, era-o, pois um dia quando fui com o meu pai ao tribunal ele estava vestido com uma toga; era um homem alto e robusto, tinha olhos azuis da cor do mar, os seus lábios eram grossos e vermelhos. Vestia um casaco de sarja verde umas calças iguais ao casaco. Sapatos novos de pele cobriamlhe os pés, aqueciam-os e protegiam-os das intempéries. «Ficaram a conversar não sei quanto tempo mais pois adormeci nos braços do meu Pai. Acordei com o barulho de uma mão que batia fortemente na porta. Quem seria?? A minha Mãe também acordou sobressaltada. Quem seria àquela hora? O meu Pai foi abrir a porta e vários homens armados invadiram a minha casa agarraram à força o meu Pai e os seus amigos arrastaram-os para fora de casa para uma carrinha. Foi a última vez que vi o meu Pai por muito e muito tempo. Os seus olhos negros olharam os meus. A vida que

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11 dantes existia neles dera lugar ao terror pois sabia que só com muita sorte voltariam a ver os meus. Apesar de ser um conceituado advogado foi tratado como um fora-da-lei, bateram-lhe (lágrimas começaram - me a correr pela face, gritei e tentei correr atrás do meu pai, mas, a minha Mãe impediu-me pois não queria que eles me magoassem) na cabeça com cacetetes e nem por um momento vi a correrem-lhe lágrimas. «No dia seguinte esperei que ele voltasse para casa e no dia seguinte e no dia que seguiu este, mas, ele não voltou. «Ele não sabia que a minha Mãe estava grávida. A minha Irmã nasceu e cresceu sem o conhecer. Os anos foram passando e nós sem notícia dele. Em 1969 tinha quinze anos e a minha Maninha cinco. Eu andava no liceu, tinha tido uma bolsa de estudos para poder ser alguém na vida. Foi nesse ano que a minha Mãe finalmente me contou a razão pela qual o meu Pai tinha sido levado: «- Alexandre,- disse-me ela - lembras-te das reuniões que o teu Pai tinha cá em casa? «- Sim.- respondi-lhe. «- Ele e os amigos estavam a preparar uma revolução contra o regime, mas, foram denunciados, e a P.I.D.E. levou-os. «- Porquê é que me contas isso só agora? «- Porque se to contasse antes não o irias compreender.

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12 «Ela tinha razão. Só com quinze anos é que uma pessoa compreende o que se passa à sua volta e toma consciência do que vai mal no mundo. O que tinham feito ao meu Pai deixou-me indignado mas o que podia fazer? Por agora, nada, a não ser esperar. «Seis meses passaram desde esta conversa que tive com a minha Mãe. Estava na escola na aula de Português, o professor estava a ler-nos um livro proibido mas nós não nos importávamos. Falava sobre a liberdade e o amor, já nos tinha lido muitos livros destes (estava uma manhã chuvosa), quando os homens do P.I.D.E. entraram na minha sala e o levaram tal como levaram o meu Pai. Um colega meu contou-me depois, no intervalo, que eles também tinham levado o seu pai e o seu tio, mas ao contrario de mim ele sabia que o seu pai estava morto. Tornamo-nos amigos. O nome dele era Pedro, era mais baixo que eu e forte , tinha olhos castanhos e doces como o chocolate e o cabelo era castanho escuro, quase negro, vestia, tal como eu, a farda do colégio. «Tínhamos agora dezoito anos e éramos inseparáveis, as nossas

mães

queriam

que

continuássemos

a

estudar

na

Universidade, mas, nós queríamos entrar para o exército, para sabermos notícias dos nossos familiares desaparecidos. Elas ainda tentaram fazer com que reconsiderássemos, mas, nada nos fez mudar de ideias.»

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13 - Foi assim que ajudou a revolução? - Já lá chego, não seja impertinente. - Tem razão, estou a ser impertinente mas a função de um repórter é fazer perguntas aos entrevistados. Desculpe-me. - Está desculpado mas deixe-me acabar. Está bem? - Sim. - Durante seis meses prepararam-nos para irmos para Angola lutar contra os angolanos em nome do regime, mas, um General, que já faleceu(que Deus o tenha), impediu a nossa partida porque tomounos para o seu comando e ficamos em Portugal durante vários meses com ele. «Em Dezembro de 1973 chamou-nos ao seu gabinete, queria falar em particular connosco. Apresentamo-nos com uma continência ele ordenou-nos que ficássemos à vontade , olhou-nos durante uns instantes e por fim falou-nos: «- Já estou a observá-los há muito tempo e verifiquei que vocês são corajosos e bons soldados por isso vou-vos fazer uma proposta, mas não podem falar disto a ninguém, é segredo militar. Se não respeitarem estas regras serão expulsos do exército. Compreenderam-me? «- Sim, meu General.- respondemos. «- O exército está a preparar uma revolução contra o

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14 Governo e gostava de saber a vossa opinião. «Não sabíamos o que lhe responder. Seria algum teste para ver a nossa lealdade perante o regime? «- Não precisam de se preocuparem tanto, tudo o que me disserem será mantido em segredo dou-vos a minha palavra de honra. «Graças a esta promessa arriscámos e respondemos com sinceridade: «- Senhor - começou o Pedro - ambos somos contra o Governo: «O General riu-se e disse: «- Já desconfiava, via-o nos vossos olhos. Bem vindos aos conspiradores. «É assim começamos a fazer parte dos que eram contra o regime salazarista. Nessa noite fomos apresentados aos elementos do M.F.A. da nossa base militar. E durante várias noites juntamo-nos para combinarmos tudo. Mais tarde viemos a saber que todo o exército do país estava envolvido porque estava descontente com o Governo. Em 24 de Março de 1974 foi realizada a última reunião, tudo ficou combinado, a revolução dar-se-ia a 25 de Abril de 1974. Pensei no meu Pai, nos seus amigos, no pai do Pedro, no meu professor, o sonho deles finalmente ia ser realizado.

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15 «O mês que se seguiu foi o mais longo da minha vida, mas, finalmente, a 24 de Abril chegou o jornal República. Este trazia ao comunicado em código, nessa noite o sinal ia ser transmitido. Nessa noite, às vinte e duas horas e cinquenta e cinco minutos foi emitida na Rádio Renascença, no programa Limite, a música “E depois do Adeus” de Paulo de Carvalho, que marcou o início das operações militares contra o regime. A 25 de Abril, às zero horas e vinte minutos também na mesma rádio e no mesmo programa foi emitida a música “Grândola Vila Morena”, que era proibida naquela altura, de Zeca Afonso. Foi o sinal que o M.F.A. escolheu para indicar que as operações militares estão em marcha e são irreversíveis. Estava um lindo dia. Dessa hora até às quatro da tarde todo o plano correu como o planeado: ocupamos todos os pontos estratégicos dados como fundamentais, tais como: R.T.P., Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Aeroporto de Lisboa, Quartel General, Estado Maior do Exército, Ministério do Exército, Banco Portugal e Marconi; foi emitido o primeiro comunicado via rádio pelo M.F.A., as forças governamentais começam a render-se sendo a Legião Portuguesa a primeira, o cerco ao Quartel do Carmo foi realizado onde Marcelo Caetano e mais dois ministros do seu gabinete tentaram em vão esconder-se. Tendo-se rendido às sete e meia da tarde. «A população acompanhava desde quase o início a revolução

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16 e quando soube que o Governo caíra, entrou em alvoroço. Uma rapariga que nunca vira agarrou-se a mim aos gritos «- Obrigado!gritava, era esse o seu grito de liberdade» e por fim deu-me dois beijos e partiu. Ouvi disparos. Era a P.I.D.E. que disparava para a multidão que se juntara, o Pedro caiu ao meu lado, estava ferido. Levei-o ao hospital, ia ficar bom. «No dia seguinte a P.I.D.E./D.G.S. rende-se. Eu recebi ordens para colocar em ordem as fichas dos presos políticos e levá-los ao General Spínola. Enquanto os ordenava, uma capa caiu ao chão nela estava escrito: “1964- caso da aliança revolucionária judicial” , abri a pasta com receio da resposta. Vários nomes estavam lá escritos. Finalmente descobri o que tanto procurava: o do meu Pai. O meu coração saltou de alegria, ainda estava vivo. Estava preso em Peniche. Levei à pressa os caixotes ao meu General e expliquei-lhe o que estava naquela pasta. Ele ordenou-me que fosse buscar a minha mãe e que a levasse para lá porque iam libertar todos os presos políticos e assim fiz. «Algumas horas depois eu, a minha Mãe e a minha Irmã encontravamo-nos à porta da cadeia e esperamos que ele saísse. Meia hora depois dos portões terem sido abertos, o meu Pai saiu e os nossos olhos negros encontraram-se ao fim de dez anos e ambos verteram lágrimas, abraçamo-nos muito. O meu Pai viu pela primeira

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17 vez a sua filha que tinha nove anos de idade. Abraçou-se à minha Mãe que também chorou. Ele já não era o mesmo. O seu rosto estava envelhecido de mais para a sua idade, o seu cabelo estava branco mas uma coisa voltou a ser o que era, os seus olhos negros mostravam a quem quisesse ver a vida que ele tinha. É assim acaba esta etapa da minha vida.» - Muito por ma ter contado. Corta. Adeus Alexandre. - Adeus.

FIM

Liliana Novais

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18

Oscarstein Se toda a escuridão da humanidade saísse para a luz, a face do Mundo transformar-se-ia de um dia para o outro. Apanhara o vapor para Londres onde pensava ficar até ver os seus propósitos concluídos. Apertara bem o espartilho e, como se as vísceras lhe subissem à cabeça, estava decidida. Desejava encontrar uma pessoa, um escritor muito famoso. Ele sabia da sua existência, embora nunca houvesse falado com ela mais do que meia dozena de palavras. Sentia-a à distância e este saber chegava para fugir-lhe como o diabo do céu. Não sabia porquê, via nela algo de muito perverso. Algo que nem ele conseguia, à altura, imaginar o que era. Algo que ultrapassava a perversidade da Londres vitoriana em que viviam. A corrupção dela avançou quando se aproximou num dia de maior exaltação. Tinha algo para lhe falar. Já antes, havia rondado o amante do escritor - o homem mais bonito do mundo, assim considerado pelos londrinos. Um homem vaidoso que se gabava de ser cobiçado pelas mulheres e homens da cidade e arredores, mas com razão. A beleza, herdara-a da mãe; a personalidade... do pai. Por bons motivos não se davam.

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19 Fez-se amiga deles. Mantinha-se por perto tentando saber tudo o que poderia usar. Conseguiu, num momento de descuido, ler o próximo trabalho do escritor, ainda no começo. Por fim ganhou coragem. Ele tinha de aceder ao pedido dela, era fulcral. Ela amava já aquela pessoa ainda que ela não fosse real. Ainda que dela apenas tivesse um vislumbre, umas palavras. Um capítulo. Não sabia exactamente quem ele viria a ser ou fazer, mas apressou-se a compor tudo o que imaginava que o personagem poderia desejar. - Por favor, ama-me! - Dizia-lhe ela. Nunca iria obter resposta, nunca da forma que ela desejava. Entretanto, continuava a insistir. Que aconteceria com aquele amor? Será que algum dia se tornaria realidade? Desejava que sim... As probabilidades de acontecer eram, no entanto, nulas. Porque não desistiu? Porque continuou a insistir? Às vezes temos tanta certeza do que queremos que perdemos toda a lucidez que ainda possamos ter. Ela, que já pouca tinha, pois perdiase no amor imposto, deixou-se perder prontamente nas palavras escritas pelo escritor e enlouqueceu. Nunca lhe haviam posto a vista em cima, nem antes dos acontecimentos e muito menos depois. O que sucedeu pelo meio... iremos descobrir se nalguma justeza vive ou é loucura de autor... É sabido que escritores famosos têm sempre pessoas a pedir para aparecer como personagens nos livros. Não é assunto novo. Quanto

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20 mais famosos, mais energia é investida nesses intentos. A jovem, perdida de amores virtuais por um desses personagens de papel e tinta, solicitou ao autor de tais escritos, que a colocasse como personagem na mesma história. Sabia tal amor impossível, mas desejava vivê-lo como se lhe fosse possível. Amava aquele personagem mais do que a própria vida e pela sua vida, iria vivê-lo de forma desesperada e perdida. Como pudesse. O escritor avisou-a da impossibilidade. Tentou afastá-la de si, qual abelha que não larga a fonte do mel, qual sarna que não larga a pele de quem a sente. Este amor doía-se como uma doença maléfica deixando ao autor pouco para fazer para afastar a doente. Um jogo parecia, que prontamente teria de ser jogado... A chantagem fora a primeira peça, outras se seguiram. Torturar quem cria pode bem ser das mais perversas maldades da humanidade. Deixem criar em liberdade - digo eu - deixem! Só Deus sabe as torturas por que passa quem tem em frente um papel ou uma tela em branco. Só Deus sabe. A fama pode, por ventura, ser bem a maneira de várias torturas adoptarem forma. Quem escreve, parece por vezes ficar ao serviço de quem lê, já que os leitores são quem terminam a obra verdadeiramente. A obra, sem ninguém para a ler, fica terrivelmente inacabada, como se não cumprisse o seu

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21 destino. Há uma tortura para quem cria e outra, talvez mais dolorosa ainda, por que silenciosa, da obra. A jovem movida por calores que subiam ao cérebro, sabia quem deveria encontrar. Sabia bem. Teria de ser ousada... Já o era. Circulou por toda Londres nocturna e degradante. Aquela em que a sociedade de altos valores se escondia durante a noite para amortecer a hipocrisia do dia. Foi precisamente aí que foi encontrar o amante de quem procurava. Fez-se actriz. Far-se-ia meretriz se necessário... o jovem Lord Douglas adorava ser bajulado. A curiosidade corrompia a jovem debutante. Fora para Londres escondendo-se na noite para encontra-se com o destino. E a liberdade de o perseguir, fosse ele qual fosse. Haveria de ser como ela desejava. Miss Vane sonhava em percorrer os corredores da fama ou, mais do que a fama, queria viver um grande amor digno de ser escrito pelo mais famoso escritor dos tempos vivos. Sim, vivos. Porque ela era, no fundo, uma mulher muito prática, como tal, sabia o que queria e o que fazer para chegar onde merecia. Poetas mortos não serviam. Aproximou-se do Lord. Ele, quase adolescente e vaidoso, queria porque podia - ser adulado sem findar. Viciara-se no prazer que lhe proporcionavam tais palavras. Qual vício fatal que transforma quem se lhe padece. Ainda que o vício o atordoasse havia um senão. O amante não poderia ter nunca rival. Tal impossibilidade prendia-se

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22 ao que existia por entre pernas, algo com que mulher alguma pudesse competir. Daí a frustração da moça. - Que fazer? - Gritava. Nem as doces palavras a aproximava como desejava. Tentou ser amiga. Ao menos isso. Amiga. - Como poderei ser amiga de homens que tinham o Mundo a seus pés? O Mundo não era perfeito. Muito menos o da noite, onde as trevas perfumavam encantando cada canto da cidade das almas. Fez-se actriz no palco mais famoso de Londres. Conheceu os artistas e inventores mais proeminentes da época. Seria tudo seu. Assim desejava. As almas jovens sofrem pelo mundo. Precisam dele e, sôfregas, perdem-se por ele. Passou a frequentar a amizade dos dois homens. Por caminhos travessos, aproximava-se. Ia tomar chá. Fazia-se convidada. Queria conversar sobre uma possível nova peça que a companhia apresentaria. - É claro que estão interessados na sua obra! Você é o escritor mais falado de Londres! Porque confiava na inocência dela nesse ponto, deixava os escritos mais recentes em cima da secretária. Seria impossível alguém roubar o que estava a escrever. - Quem se atreveria? - De facto, ninguém se atreveu. Por desvio, sempre se trata de desvio, a jovem conseguiu ler o capítulo fresquérrimo que pintava na secretária enquanto o dono saía do hotel para visitar filhos e esposa. O amante não se

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23 preocuparia em esconder as palavras derramadas, desde que houvesse dinheiro a fluir da fonte generosa. Miss Vane aparecia aos amantes especialmente quando o escritor se ausentava. Douglas agradecia. Não conseguia impedir os ciúmes de o assaltarem de cada vez que a família do amante se entrepunha. Cobarde, precisava da adulação da mais recente amiga. Miss Sibyl Vane fazia questão em estar presente. - Meu querido Lord Douglas. Ele deveria assumir tudo o que escreve e deixar a família, que afinal, é um passatempo. Você é a pessoa que o acompanha em cada linha por ele escrita. Deveria ter toda a sua atenção. Seria apenas justo! O Lord, que via nela uma apoiante necessária naqueles momentos de fraqueza que o torturavam de semana a semana, permitia que ela tivesse livre acesso por todo o quarto do hotel onde os amantes se inventavam. Ela não se importaria com as línguas rápidas e certeiras da cidade. Quase se tornaria mais um elemento do casal. – É muita gente - dizia entre dentes o escritor. Nunca conseguiu deitá-la para correr. Douglas não deixaria. Lord Douglas não deixava. Não faria isso à sua amiga do peito. - Sibyl, a sibilante – fora crismada. Riam-se às suas custas. As palavras brotavam sem perder a acidez. Escritor algum poderia dar-se ao luxo de ser hipócrita. A vontade deste, não se ficava pela escrita, queria saltar para o mundo físico. A cobardia, porque aqui sim, pode um

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24 escritor ficar à vontade desde que bem disfarçada, dava base à criatividade superlativa da mente inquieta. A actriz que aproveita já estar quase no meio dos lençóis dos amantes para pedir um pequeno favor... Não o faz directamente. Afinal de contas era uma senhora, uma Lady. Não lhe ficaria bem pedir. Começou a lançar sugestões para o ar. Há almas insatisfeitas que não se contentam em apenas frequentar a casa e ser amiga íntima. A obsessão carece de maior atenção. Como o escritor ou Lord Douglas nunca se interessariam por ela fisicamente, poderia ela, talvez, entrar de uma forma diferente. Esboçava como. Foi, ao ler o já mencionado capítulo, que a ideia lhe assomou. Ficou, aliás, prisioneira dela. As sugestões tornavam-se mais claras a cada dia. Ela queria conhecer aquele personagem no livro. Não era bem o personagem que ela via, era Lord Douglas. Uma versão aperfeiçoada dele. Confundia-se. Quem seria quem, ali? Se não podia ter o escritor, se não podia ter o amante dele, teria o personagem. Faria dela imortal. Ele a amaria como ela desejava e achava merecer. Não olhou mais para trás. - Creio que lhe darei uma lição. - Você não pensa, certamente, em sujar as suas mãos deliciosas... - Caro amigo, um escritor não tem de sujar as mãos quando pode usar palavras como machado.

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25 Lord Douglas contorceu os lábios indeciso se rir ou chocar-se. Acabou por rir. Afinal, adorava uma boa maldade. Londres seria o palco de muitas. Eles, artesãos... mestres de boas quantas. O plano, bem simples, seria apenas percepcionado por quem com eles convivesse - metade da cidade - a melhor metade, por sinal. A mais interessante e culta. Teria de ser inteligente. Já sabia como pôr a máquina a funcionar. As palavras, a arma mais mortífera de toda Londres. O romance escrevia-se por si. As idas à família proporcionava a Sibyl controlar se o acordo à chantagem estava a ser cumprido. Se pedir lhe estava vedado como Lady, chantagear não. À medida que ia lendo, deliciava-se com a paixão que os personagens viviam. Seria certamente uma obra-prima, pensava para consigo. A sua alma estava feliz. Finalmente conseguia. Jubilava com as aventuras que descobria com o personagem. Quando o escritor regressava perguntava-lhe como estava a correr o livro. - Muito bem, muito bem. O livro escreve-se por si. – Reforçava. Nem ela imaginava como. Ali, escondidos da vida caseira, o hotel proporcionava um esconderijo para escritor e amante se encontrarem. Mas escondidos estavam pouco. O caso entre ambos era sobejamente conhecido, falado entre dentes por toda a sociedade. Apenas não à frente deles. O escritor pouco se importou.

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26 Ignorou. Continuou o romance. A vingança pessoal saber-lhe-ia bem. Que importava a chantagem se todos sabiam. Ela só poderia ser pobre de juízo. Não era, entretanto o que ela compunha. Que maior e mais sublime desejo pode ter uma mulher, que o de resgatar um homem do seu destino, casando e constituindo família? Tão nobre era a jovem. Não conseguiria salvar as pessoas, salvaria os personagens. Pequena louca! Para espessa tarefa apanhou o vapor. Provocava-lhe medo. O maior de todo o país. Perdeu-se na água vaporizada que engolia a estação. Deixou-se deglutir no medo e desapareceu. Apesar de jovem, tinha alguns recursos. Quando não tinha resposta, improvisava. Criava. Também ela tinha um pouco da magia que assombrava o escritor. Se não magia, pelo menos demência. Sim, seria talvez demência, é certo. Revia-se no somador de palavras. Invejava-o. Ele poderia fazer tudo o que desejasse apenas por ser homem. A raiva preenchia as páginas ainda vazias do livro que povoava o seu coração. De alguma maneira iria conseguir. Iria conseguir. - O Mundo falará de mim para todo o sempre. Serei recordada como amada pelo ser mais belo e magnificente do planeta inteiro. - Iria emprestar a alma se necessário. Tudo faria para que tivesse aquele amor. Se não pudesse ter o real, teria o imortal.

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27 O escritor lançava as palavras, as emoções e sensações. Procurava ser preciso, dar-se o mais generosamente que sabia. Total. Escrevia duas versões. A que deitava, cuidadosamente exposta, escondida apenas o suficiente para não ser óbvia e a outra, a que guardava sigilosamente até do seu Lord. Não iria arriscar ser descoberto. As vinganças serviam-se frias – uma das primeiras lições de quem pretendia ascender socialmente. Aí está um livro que o autor teria feito bom uso pessoal, mais tarde, na sua vida – como sobreviver em sociedade. Uma terrível tarefa aproximava-se. Escolher um destino para os personagens. Se o Homem alguma vez quis ser Deus teve sempre, na sua tarefa em criar, o encontro com o criador maior. Podia um escritor inventar os mundos mais fantásticos e impossíveis, os personagens mais horríveis ou angélicos, fazer as leis como muito bem lhe aprouvesse que nenhum mal para ele daí viria. Querem cometer um crime sem ir para a prisão? Querem cometer o crime perfeito? Escrevam! Querem ser Deus? Escrevam! Nesta encruzilhada se encontrava o escritor. Que aconteceria ao personagem e sua amante? Deveria seguir todos os seus instintos ou simplesmente deixá-los viver e no fim, zás!, castigá-los? Destas pequenas grandes coisas se faz um escritor.

Oscarstein

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28 Deveria deixar os personagens respirar livremente até que tudo vira num repente catalisador? As hipóteses multiplicavam-se. As vinganças mentais procuravam realizar-se na perfeição. Haveria de encontrar o caminho perfeito. Tudo era perfeito. Ter aparecido esta mulher na vida dele e do amante fora perfeito. De que outra maneira teria encontrado o personagem ideal para a história? Pela experiência de outros livros, sabia, o escritor, que tudo se sincronizava na vida real para acontecer na vida escrita. Ou seria talvez o contrário? Por vezes não tinha bem a certeza. Pensava nisso constantemente. O que estava ele deveras a criar? A própria vida ou um romance? Assustava-o a resposta, mas nunca deixaria de escrever por medo dessa verdade. Tinha sempre uma história a contar, nem que fosse a sua, misturada com alguma fantasia ou loucura - à escolha do leitor. Quantas vezes não se desviou desta consciência? Não a queria totalmente. Não totalmente. Preferia não saber tudo da vida. De Deus, escolhia ser partes. Não queria ser omnisciente, enojava-o saber tudo do Mundo, antes mesmo d’ele próprio poder sabê-lo. Por isso se tornava tão importante saber como e quanto falar sobre a vida dos personagens. Contar uma história tinha o seu saber e não havia Cursos de Deus, que se soubesse. Como teria Deus aprendido? Será que tinha errado às primeiras tentativas? Qual foi a sua escola? Eram talvez questões que

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29 lhe colocaria quando estivessem frente a frente. Irritava-o não ser perfeito. Os personagens, embora este se parecesse muito ao ideal de beleza que gostaria de viver e ser sem pagar por tal, teria de pagar as consequências. Havia sempre consequências. E para ser-se Deus também? Trabalho solitário... Talvez um dia, Deus viesse à terra e fizesse verdadeiros amigos por cá. Com os filhos nem sempre conseguiu. Miss “Vain” era terrivelmente feminina de aspecto, o que só por si causava um afastamento. Pensara ela que a ajudaria a ganhar o favor. Enganara-se. A assimetria dos gostos era mais do que evidente. A Jovem desejava mais do que poderia alguma vez obter, do que aquele escritor desejava oferecer à humanidade. Bastava-lhe ser quem era, não precisava corresponder a expectativas frustradas de leitoras patetas. A lição que lhe daria serviria para toda a humanidade. Esta seria a sua grande contribuição. Um escritor era apenas um homem, tinha defeitos e qualidades. Não lhe pedissem mais que isso. Mas pediram-lhe. Pediram-lhe que fosse infra-humano - menos do que ele era, seria pedir tal. Quando se recusou a ceder à chantagem, Miss Vane abriu o jogo. Contaria tudo ao pai do belo amante. Certamente um Lord não deixaria ver o nome arrastado pelas bocas do Mundo, muito menos quando esse mundo correspondesse a Londres. Capital da depravação à noite e símbolo

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30 de muitas virtudes durante o dia, não era a ele que corresponderia enfrentar essa luta. Faria o que sabia fazer melhor, para além de amar e viver bem a vida, escrever. Escreveria nem que toda Londres lhe caísse em cima e denunciaria toda a podridão nas letras que seriam impressas. A liberdade estava acima de tudo, a liberdade de ser quem era. Sem contar com grandes contratempos, Miss Vane tinha preparado contar tudo a Lord Douglas pai caso os planos saíssem frustrados. Pensava apenas em ser amada e ser famosa. De qualquer maneira, uma acção completava a outra. Quem poderia ser famosa sem ser amada? Estava cega ao próprio exemplo que dava. Odiava aquele par porque se amavam, porque eram felizes e porque faziam a vida tal como a desenhavam. A inveja cegava-a. Queria aquilo a ponto de matar se preciso. À noite, no teatro, dava azo à sua energia. Raivava nos papéis mais pequenos que lhe ofereciam. Alguém pagaria, foi o escritor de certeza que tratou de tudo. Fora ele quem convencera o dono do teatro a dar-lhe os piores papéis. Mal saísse o livro, haveria de pagar por tudo. Entretanto, faria o papel de amiga dedicada, principalmente para o pequeno e indefeso Lord Douglas. Depois, largá-lo-ia às feras juntamente com o que restasse do escritor. Aquele seria o seu último sucesso e ela teria lá a sua marca, por todo o lado.

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31 Cansado de a ver rodeá-los, o escritor apressou o final do romance. Sairá ainda este mês, prometo! Miss Vane mal podia esperar. - Só mais umas semanas... - Vivia cada dia em plena expectativa. A obra saiu. A cada palavra lida pelos leitores, Sibyl Vane largava uma gota de suor. Com as páginas, mais gotas se lhe juntavam. À medida que Sibyl lia a obra ainda fresca, o seu corpo desvanecia em vapor. Mal notara, quando Dorian Gray lhe dera aquele primeiro e único beijo, que de apenas mãos e cabeça suspensas no ar era feita. Pouco mais tempo tinha. Afinal era água que estava no seu destino, acalorada e de rápido desaparecimento. Tão rápida que foi esquecida.

Adoa Coelho

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A Alma Negra

O sabor ligeiramente salgado daquele líquido morno, fluído, que lhe invadia a boca e descia pela garganta trazia-lhe reminiscências de memórias de um prazer adjacente à alimentação. Algo para além da satisfação de uma necessidade básica de sobrevivência. Eram recordações perigosas para alguém da sua condição. Nunca voltaria a ser o que antes fora e desejá-lo retardava a sua evolução dentro da forma actual. Esse fraquejar momentâneo trouxe-lhe uma revolta interior que logo se transformou em irritação. Largou o braço da vítima com desprezo como se assim arrancasse definitivamente todas as metástases que ainda lhe faziam aflorar o passado ao pensamento, como um tumor que teima em continuar a crescer mesmo depois de cortado. O sangue jorrou da artéria sujando-lhe o rosto e a roupa. Estava ainda viva? Mais algumas golfadas de sangue emergiram daquele braço inerte. A sua mão direita ainda apertava aquele pescoço frágil de mulher. Voltou o olhar para aquele rosto de olhos muitos abertos e fixos de espanto, de medo. A boca entreaberta parecia ainda querer expulsar o grito que ficara bloqueado na garganta apertada. Mas os lábios estavam imóveis, mudos. Estava morta. Porque não haveria de estar?

Alma Negra

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33 Sempre sucumbiam ao terrível poder da sua mão. As unhas, garras, apenas afloravam a pele. O que os derrotava, homens, mulheres, mais velhos ou mais novos, era o aperto. Morriam por asfixia. O que teria de diferente esta mulher? Tentara libertar-se daquela mão, como sempre fazem. Tivera os espasmos que sempre têm. Depois imobilizara-se, como sempre se imobilizam. Até hoje nunca olhara o rosto deles depois de se alimentar. Sempre partia sem sequer olhar para trás. Tê-lo feito deixava-o pouco à vontade.

Não

gostava

de

alterar

a

ordem

habitual

dos

acontecimentos. A imagem do rosto daquela mulher levou-o novamente ao passado onde, envolto numa névoa ténue, outro rosto de mulher lhe sorria, lhe dizia palavras que não ouvia mas adivinhava o significado. Desse rosto parecia sentir um calor que passava para o seu próprio rosto, uma suavidade que acalmava o seu espírito. Estendeu a mão para o acariciar. Então o rosto contorceu-se, o sorriso deu lugar a uma expressão de terror, e os olhos que antes

pestanejavam suavemente tornaram-se fixos e enormes. Via a sua mão destroçar aquela garganta. Queria parar mas a mão possuía uma vontade própria.

Alma Negra

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34 Daqueles olhos agora inexpressivos ainda rolaram algumas lágrimas antes do calor dar lugar ao frio. Frio. O presente era um corpo frio, o seu, que se alimenta tornando frios outros corpos. Porque o atormentavam agora estas memórias? Já tantos anos tinham decorrido desde que o calor o havia abandonado. Limpou a boca com um gesto rude da mão, levantou-se e começou a andar sem olhar para trás tentando assim um retorno definitivo à normalidade das coisas. Aquela rua era quase tão escura como a sua alma. Os seus sentidos sublimados pela sua actual condição mantinham-no informado de todos os detalhes sonoros, olfactivos, visuais. Sabia que não havia ninguém ao longo de todo o caminho. Ao fundo, numa pequena janela, cintilava uma luz fazendo distorcer a imagem do contorno do telhado. Distorcer? Era impossível a sua visão ser distorcida. Um instinto residual fez com que levasse os dedos aos olhos. Espanto, fúria, medo, esperança, todos estes sentimentos lhe percorreram o corpo reunindo-se num grito, num rugido, num uivo que gelou o sangue das criaturas que o ouviram. Os olhos estavam molhados.

José Almeida http://coordenadasgraficas.blogspot. pt/

Alma Negra

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35

Adeus do Tempo Nunca acreditei que fosse um “adeus”, mas um possível “até já”. Valorizei as tuas palavras, mas amei incondicionalmente os teus atos. Nunca dei valor ao teu sexo, preferi antes os momentos de ternura que vivemos e tivemos juntos. As palavras não me escasseiam, o amor é eterno, o sofrimento é constante, a dor é contínua. E nós? Qual o nosso fim? Será que ainda podes dar-me a tua mão e caminharmos juntos? Será que ainda posso ver o teu sorriso sem que me caia uma lágrima de tristeza depois? Posso sonhar ainda com o teu possível regresso? Serei um poeta sem sentido, um eterno sofredor, um amante do teu amor. Infelizmente, o tempo voa. Passa rápido. Parece uma autoestrada sem fim. Um destino sem meta. Uma peça de teatro sem público a aplaudir. Infelizmente, o sol vai e vem sem que lhe toquem no seu extremo de radiação. Infelizmente, as pessoas são egoístas e não ligam ao que deviam: o amor, o sentido pela vida, a urgência em acudir os outros! Ninguém olha por este poeta que vinga a sua dor no verdadeiro sentido que as palavras podem proporcionar. Parece que o mundo transformou-se no corredor da urgência de um hospital. Todos com uma dor, todos sem respostas e quando chego para ser atendido ninguém tem uma palavra de apreço para isso que

Adeus no Tempo

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36 sinto. Talvez seja aqui que está a cura de todos os meus males. Ninguém teve a coragem de me olhar nos olhos. Ninguém tem a coragem de me dar a mão. Sim, eu sei que sou um mendigo maldito das palavras, mas não roubo dos outros para sobreviver. Uso das minhas para matar a fome. Uso do meu amor por mim a arma para matar a minha sede. As duas juntas são o desígnio da minha sobrevivência. Sem elas serei um eterno para o mundo e um ignorante da humanidade. Um desgraçado que só quer e precisa de ser feliz. Mas a chuva cai, cai intensamente num dia solarengo. A tristeza voltou a assolar-me. Diria que ela é a minha melhor companheira. É aquela com quem sei que vou partilhar a minha vida eternamente, porque sei que ao amor não fui destinado. Não me digam que estou errado. Há coisas que sabemos sem precisar de esperar pelo futuro. Simplesmente, sinto com a mesma força que sinto algo em que acredito realmente. De todas as coisas que o mundo transborda para a realidade é o ódio que as pessoas têm umas pelas outras. Sinceramente, olho o planeta, porque sou um viajante sedentário da minha vida, e vejo a violência verbal que uns nutrem pelos outros. Vejo a crueldade com que maltratam as crianças. Sou despido e livre destas coisas. Mas sei ver que há pessoas bem piores que eu. Mas sei que nós os dois estamos nesse processo de separação emocional: tu segues o

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37 caminho que trilhaste e eu sofro, atrás desse sorriso bonito. Dessa máscara que não me deixa ser quem sou. Acredito que o nosso amor é mais forte. Escondo-me permanentemente atrás de um ser que só sabe chorar por dentro, mas que tem medo que as lágrimas escorreguem face abaixo. Uma atrás da outra. Como se estivessem numa constante luta. Realmente, estou numa guerra sangrenta. Vejo-te partir do meu horizonte constantemente. Quando deixo de te ver sufoco lentamente. A minha respiração vai-se. O meu desejo de nunca mais te deixar é forte e caio no chão. Caio na lama. Rastejo no chão e grito o teu nome, mas não me ouves. Nunca na minha vida amei alguém como te amo a ti! Nunca na minha vida implorei para que voltasses. Sou um farrapo do tempo. Sei que a tua viagem corre bem, menos bem estou eu: continuo a latejar na mesma ferida. Nesta maldição que ainda hoje me atormenta e que seguirá a mesma viagem que tu, só que noutros contornos. Tu em direção à felicidade e eu, sabes onde? Rumo ao sofrimento de um poeta que não se cansa de dizer que só precisa de atenção. Que só quer que voltes e que o resto é história para os nossos ouvidos. Devolve-me o sorriso que tiraste. Dá-me a alegria de viver. Tira esta máscara irritante de um alguém que não é feliz com a vida. Que é um frustrado ao agir com os outros. Preciso que me devolvas o meu sentir. Preciso apenas que voltes. Prometo-te tanta coisa, mas a

Adeus no Tempo

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38 mais verdadeira e sincera que posso prometer é que vou amar-te como sempre amei… Não gosto de suportar a minha dor, mas ultimamente é a minha única companheira, é ela que me conhece bem. Sabe onde posso sofrer mais, sabe escorraçar de mim rios de lágrimas, porém sabe em que destino me confortar: em dores que aparecem constantemente. Serei um eterno escravo desta perdição? Acredito que sim. Maldito é o tempo que não volta atrás até ao dia em que a bolha da nossa felicidade rebentou e transformou todo este paraíso em sofrimento. Maldito é este tempo que ainda não percebeu que a nossa saudade é mais forte. Triste tempo que não sabe que um dia irei virar as costas a tudo e rumar junto ao destino certo: o descanso. Um descanso eterno: das minhas palavras, dos meus atos. Longe da presença do mundo. Mas é sóbrio e com o pulsar do coração acelerado que te imagino no meu pensamento. Gostava de te perguntar se tivesse dez segundos de vida o que me dirias. Será que voltavas? Será que me davas um último beijo? Será que fazias força para eu não morrer? Será que te casas comigo mesmo na minha insanidade mental ou será que dizias aquilo que sempre desejei ouvir da tua boca? Um simples “AMO-TE – Foi por ti que o meu coração bateu sempre mais

Adeus no Tempo

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39 forte. Foi por ti que os meus olhos brilharam. Era capaz de dar a minha vida por ti”. Quando proferisses algo assim mandava-te parar. Acrescentava que foste a única pessoa que amei de verdade na vida e que agora tenho de partir. Entretanto, os dez segundos em que estiveste no meu pensamento voaram e a dor continua lá. Não voltaste, não disseste que me amavas. Não disseste que o teu coração bate mais forte nem o teu olhar brilha quando me vê! Enfim, a dor apenas ficou mais calejada. É verdade. Tenho de dizer um adeus ao tempo. Preciso ser feliz. Preciso ver o sol. Quero ser feliz. Um adeus de saudade ao mundo e um até já ao meu sofrimento. Fechei as cortinas da vida e vou procurar o meu descanso. A vida tornou-se uma estátua sem um alicerce capaz de suportar todos os medos. Diogo Cabral Licenciado em História

Adeus no Tempo

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Lirismos

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O ECO DO MAR... Noite... Imensidão... Oceano... Eco... Antes de dormir pedi -lhe silêncio, para dormir esta noite. Mas ele teima em continuar o eco do teu nome. Oiço-o em cada rebentação das ondas. É como um assopro forte do vento chamando por ti. E ao ouvi-lo acordam-me os sentidos. Sentidos que eu quero adormecer para todo o sempre. Foi ele que destruiu tudo o que eu levei tanto tempo a construir. "O AMOR" Não lhe bastou já, ter me condenado,um dia, com esse encanto de um amor impossivel. Eu continuo implorando-lhe para parar de ecoar o teu nome em cada onda que rebenta na areia húmida da praia. Sim... Só tu és o culpado ...

O Eco do Mar

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41 TU!!!!!mar imenso... Tu és o culpado e a culpa da minha infelicidade. Foste feitiço,no meu coração e na minha alma Como posso eu amar esse mar imenso que me traiu? Como posso amar esse mar se a sua vingança é continuar ainda ecoando o teu nome na noite,fazendo-o chegar até mim como música tocada numa harpa angelical... Cada acorde me vai elouquecendo com a corrente de um sem fim de saudosas ilusões. E com lágrimas nos olhos e desespero no peito acabo por adormecer. Com a melodia do teu nome nos ouvidos e no coração. E, em cada onda, sinto dentro de mim cada vez mais o desapego da realidade . Sinto o desejo cada vez mais forte de me afogar nesse oceano de mar salgado como o sabor das minhas lágrimas. Sei que foi... é ... e será ... tudo ilusão. Não quero mais dormir e sonhar. Quero afogar-me nesse mar e morrer com o teu nome nos meus lábios a sorrir.

O Eco do Mar

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42 O mar continua ecoando o teu nome,mas tu não ouves. Só eu ouço... Mas o mar o mar perdoa-te... todas as noites... como a minha alma aprendeu a perdoar-te todos os dias... sem entender o porquê...

Maria Manuela Macedo https://www.facebook.com/groups/453409811366375/

O Eco do Mar

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O direito a sonhar Uma alegação do teu sonho está concretizada Mas para ti um aditamento não é nada. Não é nada mas pode ser a elementar palavra Pronunciada perante o Juiz, na defesa do teu sonhar.

O Sonho de alguém já ajudaste a edificar. És a sua ordem, o seu código, O melhor decreto, o filho pródigo, O sonho que ele quer acalentar.

Pelejar a sós não nos dá qualquer alento Mas tu já tens alguém para te advogar. Ele será o docente sempre atento. Os sonhos precisam de exercício para brilhar!

Tens todas as causas abertas E resmas de devaneios para analisar Mas para os defender da forma certa Tens o direito de continuar a sonhar. Ana Maria Teixeira

O direito a sonhar

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A TELA DO AMOR Sentada á frente de uma tela... Olhava abstrata,sem saber o que pintar. Apesar de se deparar pela minha frente uma linda paisagem campestre. Mas a inspiração falhava-me... Levantei-me desanimada, pronta para abandonar aquele cenário. Mas... Olhei uma vez mais em meu redor... E como uma visão, A tua imagem surgiu-me na minha mente. E todos os nossos momentos de amor se desenrolavam naquele instante. Como se fossem as flores a desabrocharem naquele campo chegando á Primavera. Então... Comecei a pintar... E a imaginar o que este meu quadro poderia para ti significar. Comecei pintando O quanto te amo...

A Tela do Amor

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45 E o quanto eu quero que sintas o quanto eu te quero... A seguir pintei alegres sorrisos... Porque em cada daqueles sorrisos escondidos atrás da tela.... Era como se fossem os meus... Cheios de calor e de prazer.... Na ansiedade de te amar... Desejando teus carinhos ter... E enquanto pintava... Senti minha alma a cantar.... Se tu podesses estar em mim neste momento perceberias o quanto eu te amo.... Que somente a ti meu coração se abre... E meu amor te pertence. Só o teu amor no frio, me aquece... Só a tua respiração na solidão eu sinto... Nas tuas palavras me conforto... Nos teus beijos. derreto meus desejos... Quero-te meu amor... Quero-te em mim por todos os instantes ... Quero que só tu me transponhas para lá espaço. Sem a noção do tempo. Quero que me protejas em teus braços,me amando sem cansaço.

A Tela do Amor

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46 Quero me entregar toda em teus braços... Vem ... Vem cá...não fiques só aí a olhar para mim... Atrapalhas-me com esse teu olhar. Vem... Abre a porta e entra. Mas quando entrares não te esqueças logo de a fechar. Não deixes mais ninguém entrar. Porque agora sei que és tu... És tu o meu amor!

Maria Manuela Macedo https://www.facebook.com/groups/453409811366375/

A Tela do Amor

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47 UMA HISTÓRIA A PRETA E BRANCO

Meu acto de fé… No kapussoka: a travessia. Meu destino: muxima ué. Nunca eu ouvia A canção da kianda ao anoitecer (Mambos por resolver), Até me arrancares Do peito esse maboque E me curares Com o teu toque. Meu milongo ardente… Minha boca fica aberta, abuamada. Tuas pálpebras acenam, lentamente. Boca aberta… boca calada, Pois teus olhos falam mais alto. Meu sobressalto… Ondalu negro. Veludo, Semba, magia esquecida. Porque hoje me deixas mudo Dás-me a voz ontem perdida.

Uma história a preta e branco

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48 Minha vida… Preta…Ngueta…Nosso dilema. Que as barreiras se desfaçam Quando as nossas línguas se abraçam Num beijo… ou num poema. José Almeida http://coordenadasgraficas.blogspot.pt

2007-03-10 ________________________________________________________

Kapussoka – Barco que faz a travessia de Luanda para a ilha do Mussulo Muxima ué – Teu coração Kianda – Sereia Mambos – Assuntos Maboque – Fruto ácido Milongo – Remédio Abuamada – Espantada Ondalu – Fogo Semba – Uma dança Ngueta – Pessoa de raça branca

Uma história a preta e branco

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Estás em mim Queria eu poder arrancar de mim isto que sinto, E me mata! Estás em toda a parte! Corres no rio, deleitas-te no mar e transformas-te no oceano! Enches o céu de estrelas, e os campos de papoilas…brancas! És a brisa e és a tempestade, És o calor e és o frio, És o riso e és a lágrima! És o longe e és o perto, És o barco à deriva e és o porto de abrigo! Queria eu poder arrancar de mim isto que sinto, E me mata! Estás em toda a parte! Estás em mim…e que importa se me mata?

Ana Nunes http://www.facebook.com/ana.nunes.771

Estás em Mim

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OS MEUS OLHOS… De onde eu venho? O que eu tenho?

Que brilho e esse em meus olhos?

Os meus olhos são misteriosos....

Meus lábios não dizem o que os meus olhos refletem...

Meus olhos confessam meus desejos...Meus olhos descobrem devaneios…

Meus olhos mostram minha dor ou transmitem minha alegria,quando choram ou quando expressam agonia...Meus olhos revelam amor...

Meus olhos deslumbram ou cegam...

Meus olhos acarinham ou maltratam...

Os meus olhos

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51 Meus olhos curam ou matam...

Meus olhos concedem ou negam...

Meus olhos tem o dom de alegrar ou entristecer ,consolar ou comover...

Meus olhos são:Olhos que sabem falar...

Olhos que sabem sorrir...

Olhos que sabem ferir...

Olhos que sabem beijar.

Olhos que gelam como neve

Olhos que queimam como brasas

Olhos que dão o calor de uma ternura por onde passam. Mas quando lançam flechas ferem como agudas setas.

Os meus olhos

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52 Eles sentem um prazer inexplicável quando se cruzam com olhares tranqüilos e quando atrás de doces pupilas descobrem um paraíso que seja encantador.Assim são meus olhos...

São como duas rosas lindas,mas, cheias de muitos espinhos, também

Maria Manuela Macedo https://www.facebook.com/groups/453409811366375/

Os meus olhos

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Críticas e Maldizeres

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Gente que rosna

Já rosnei muito. Do tipo que não podia ser contrariada. Sério. Brigava contra qualquer ponto de vista que não fosse o meu. Manja dona da verdade? Impunha, batia o pé, não aceitava oposição. Quando não podia bater boca pela minha brilhante opinião, remoía dias, até quase sufocar de raiva. E rosnava.

Chatinho, isso. Tão chatinho, que olhei pra dentro e me deparei com uma pessoa insuportável e não pude mais me tolerar. Afinal, quem

Gente que rosna

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54 aguenta conversar cinco minutos com alguém que rosna para se impor, ao invés de discutir ideias?

O tempo deu uma acelerada, anos se passaram, recolhi e reciclei minhas energias animalescas. Mudei de ares e de rumos e hoje consigo observar de longe comportamentos bem semelhantes. Não me libertei de todo, mas ganhei autocrítica suficiente para não mais rosnar para quem quer que seja.

Da mesma forma que não me tolerei, tornei-me intolerante com qualquer pessoa que mostre os dentes para não sorrir. Ou que esconde atrás do sorriso um animal raivoso. E lamento muito o tanto de gente que conheço assim.

Nesta época de campanha eleitoral, por exemplo, é muito comum encontrar gente que rosna a cada esquina, em cada mesa de bar, em milhares de posts nas redes sociais. Todos os dias, várias vezes ao dia, recebo emails não solicitados com um grrrrrrr no campo do assunto. E falo de pessoas letradas, privilegiadas com a oportunidade do estudo, ou seja, teoricamente preparadas para emitir opiniões, discutir em bom nível, porém vencem um cão acuado, com mérito.

Gente que rosna

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55 Não falam. Vociferam, berram, só falta sapatearem feito criança pirracenta: “Eu estou certo! Você tem que me dar razão”.

Não. Parei de dar atenção. Antes até tentava conversar, dizer calmamente que penso diferente, como penso e porque penso; porque pensar diferente é normal. Nem isso entendem, infelizmente. Porque sequer ouvem. São mesmo como bichos, que só rosnam. Queria, de verdade, saber o que têm a dizer, ouvir suas opiniões, juntar as deles com as minhas e, quem sabe, chegar a algo novo. Mas, com quem rosna não se chega a lugar algum. Quem rosna não sai do lugar. Fica ali, mostrando os dentes, babando, estático, esperando que o mundo lhe dê um afago ou um chute, sei lá.

Hoje me recolho ao silêncio. Assisto com certa distância a esses destemperos e só encaro debate com quem está mesmo a fim de Gente que rosna

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56 discutir ideias, não pontos de vista. É mais saudável, mais produtivo, mais criativo e, com certeza, resulta em algo que realmente valha a pena.

Tive uma aluna da faculdade que rosnava. Era até engraçado, porque sempre manifestava certa raiva ao falar sobre alguns temas específicos. E pensava, sim, que mudaria o mundo com sua agressividade. Dizia a ela: “Para de rosnar; apenas fale. Você não precisa disso. É inteligente e pode discutir suas ideias em nível melhor”. O curso superior e as experiências que juntou lhe fizeram muito bem. Pelo menos soube aproveitar o que os bons livros nos propõem. É o que penso. Mas não precisa pensar como eu… Giovana Damaceno

www.giovanadamaceno.com

Gente que rosna

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Os Burocratas Os burocratas fecham-se em gabinetes Os burocratas nunca olham pela janela Os burocratas estudam papéis e julgam conhecer o mundo Os burocratas inventam teorias de gabinete Os burocratas discutem os arquivos Os burocratas discutem leis inventam leis passam-nas para o papel Os burocratas mudam o mundo que não conhecem E de vez em quando mudam também a disposição dos móveis

Firmino Bernardo wwww.vidaparaesquecer.wordpress.com

Os burocratas

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Regras para Trabalhos Enviados

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- A Escrita Criativa não se responsabiliza pelo conteúdo que é publicado, a responsabilidade é única e exclusivamente dos seus autores. - A Escrita Criativa publica os trabalhos dos autores tendo como o limite a capacidade da revista, caso haja demasiados trabalhos enviados alguns poderão não ser publicados ou poderão ser publicados no número seguinte. - O limite de tamanho dos trabalhos recebidos é de vinte páginas A5 com letra a tamanho 11, se os trabalhos não respeitarem estas indicações poderão não ser aceites. - A Escrita Criativa não aceita trabalhos com conteúdo sexual explícito. - Por norma só será publicado um trabalho por pessoa em cada número, podendo haver excepções por falta de trabalhos. - A Escrita Criativa não corrige erros ortográficos nem faz alterações às obras enviadas, se for enviado algum trabalho com erros ortográficos poderá ser enviado de volta para correcção ou não ser aceite. - A Escrita Criativa só aceita trabalhos escritos em português.

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- Trabalhos com expressões noutras línguas deverão ter uma nota no fim a dizer o seu significado, caso isto não aconteça poderão não ser aceites. - Trabalhos com direitos de autor registados na Sociedade Portuguesa de Autores deverão informar a SPA antes de enviar os seus textos para a Revista Escrita Criativa. A Revista Escrita Criativa publica somente textos autorizados pelos autores.

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