UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS
Sinara Fagundes
CONHECENDO E DESCOBRINDO O MUNDO DE UM AUTISTA
São Leopoldo
2 2010
Sinara Fagundes
CONHECENDO E DESCOBRINDO O MUNDO DE UM AUTISTA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Pós-graduação - Especialização em Educação Infantil, Área de Ciências Humanas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Orientador: Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa
São Leopoldo
4 2010
Sinara Fagundes
CONHECENDO E DESCOBRINDO O MUNDO DE UM AUTISTA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Pós-Graduação - Especialização em Educação Infantil, Área de Ciências Humanas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.
Aprovada em: ___/___/_____
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________ Prof.Dr.Luciano Bedin da Costa (Orientador) Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
_________________________________________________ Prof. Ms.Bianca Sordi Stock (Segundo Avaliador) Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
Dedico este trabalho aos meus pais, Ieda e Sérgio, à minha irmã Jussara, ao meu irmão Joel, ao meu cunhado e à minha cunhada Tatiana, aos sobrinhos Lucas e Nicolas, e às minhas amigas, pelo apoio e compreensão que tiveram comigo durante a trajetória de meu curso, pelo carinho e estímulo que me ofereceram ao longo deste período, dedico esta conquista como agradecimento por tudo que fizeram por mim.
Agradeço... A Deus, por estar concluindo o curso e por ter colocado pessoas especiais em minha vida. Ao meu orientador, Profº. Dr. Luciano Bedin, pelo carinho, pela ajuda, pela paciência e pela compreensão com que sempre me acolheu. À minha família e a meus amigos, pelo apoio e estímulo que me dedicaram. À Marelise e Estela, pelo apoio, pela compreensão e pela amizade que sempre me dedicaram. Às minhas colegas de trabalho, pelo incentivo e pelo carinho. A todas as pessoas, que de uma forma ou de outra, me incentivaram a lutar pelos meus sonhos.
RESUMO
Esta monografia identifica elementos importantes sobre o trabalho realizado com um menino com Espectros de Autismo. O que é o mundo dos autistas? Um mundo só deles, em que raros momentos saem da “toca” e percebem a existência de tudo e de todos? A entrada no ambiente escolar faz com que se deparem com tantas coisas e pessoas estranhas, momentos extremamente estressantes e desorganizadores. Esta pesquisa busca explorar um pouco este universo, centralizando-se na relação entre professor-aluno, a partir de uma experiência vivida. Através de relatos e impressões de um cotidiano escolar, visa-se compreender um pouco mais o mundo difícil, imaginário e solitário de uma criança autista, e a complexa conexão com as demandas da realidade. Dois mundos, dois planos diferentes, duas realidades com as quais o professor deve, necessariamente, lidar para que o processo de aprendizagem se concretize com a criança. Palavras-chave: Autismo. Mundo. Viver. Solitário. Confortável.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................08 2 UM PEQUENO RELATO SOBRE O AUTISMO............................................................09 3 OLHOS NOS OLHOS.........................................................................................................12 3.1 O PRIMEIRO CONTATO: POR DETRÁS DA NORMALIDADE..................................12 3.2 O ANO SEGUINTE E A “CAIXA MÁGICA”..................................................................15 3.3 O QUE TOCA A RETINA: IMPRESSÕES DE UMA COM-VIVÊNCIA........................17 4 CUIDANDO COM CUIDADO: CONCLUIR O QUE NÃO SE CONCLUI.................19 4.1 UM PEQUENO MANIFESTO...........................................................................................20 REFERÊNCIAS......................................................................................................................22
10 1 INTRODUÇÃO
A bibliografia revela que, até os dias atuais, muita confusão é feita quando o assunto é autismo. Talvez contribua para isso o fato de que não há exames capazes de determinar o diagnóstico de autismo, estabelecido somente com base na avaliação médica e na observação do comportamento. Além disso, diversos estereótipos, presentes ainda nos dias de hoje, contribuem para a dificuldade de identificação de pessoas autistas. Entretanto, mesmo dando margem a muitas confusões e levantando uma série de imaginários, a discussão acerca do autismo tem tomado proporções interessantes, uma vez que o autismo passou de um fenômeno aparentemente raro para um muito mais comum do que se pensava. O presente estudo traz um relato de experiência, uma espécie de estudo de caso em que analiso o comportamento e a relação de uma criança portadora de autismo no espaço escolar. Nesse sentido, apoio a pesquisa na minha experiência enquanto professora de uma criança autista de uma escola infantil privada, no município de São Leopoldo/RS, considerando as experiências vivenciadas desde o ingresso dessa criança na escola até os dias atuais. O texto toma como base os acontecimentos/episódios vividos na relação com esse aluno, que me trouxeram certo desconforto e ao mesmo tempo muitas inquietações, os quais registrei no meu diário de campo durante a prática e convivência diária. Tais experiências são rememoradas em “fragmentos” detalhados em dias (os quais tomo partido do pensador Roland Barthes, chamando-os de “incidentes”), evocando minhas percepções sobre os desdobramentos do autismo na vida escolar de uma criança, bem como a importância da escola enquanto espaço de convivência e socialização. A partir de um caso específico vivenciado na minha prática profissional, meu objetivo central é compreender o autismo através das relações escolares cotidianas, investigando-o num universo repleto de peculiaridades, estudando as possibilidades de interação e socialização dessa criança, aliando minhas percepções à bibliografia sobre o assunto.
11 2 UM PEQUENO RELATO SOBRE O AUTISMO
De todas as “psicopatologias” já descritas, poucas causaram (e ainda causam) tanta confusão quanto o autismo. A impossibilidade de determinar um diagnóstico com precisão, aliada aos mitos de que são construídos em relação ao tema, contribuem para o fortalecimento de certos estereótipos. Na maioria das vezes, associamos a criança que fica se embalando constantemente, que possui dificuldade de fixar o olhar nos demais, como autista. Neste contexto, segundo Balbo: Eu dizia que atualmente se busca a psicose mesmo no útero, e isto se dá porque temos toda uma escola que trabalha esse ponto e que ocupa um lugar bem considerável, não só na Europa. Ester Bick, por exemplo, é uma inglesa que criou a abordagem que afirma que devemos nos ocupar das mães, e do que elas dizem da criança quando estão grávidas de alguns meses, com o intuito de diagnosticar muito precocemente um autismo ou uma psicose (2003, p.25).
Autistas recebem ainda hoje os mais diferentes diagnósticos médicos, incluindo desde transtorno obsessivo-compulsivo, personalidade esquizoide, esquizofrenia, transtornos de humor, deficiência mental isolada. Apesar disso, o quadro clínico do autismo tem sido bastante descrito e caracterizado, manifestando-se por comprometimento do relacionamento social, por repertório repetitivo e estereotipado de comportamentos, por dificuldades de linguagem e por insistência em determinadas rotinas não funcionais. Suas manifestações são extremamente variáveis, indo do extremo – sujeitos com ausência de desenvolvimento da linguagem, retraimento social importante e dependência nas atividades de vida diária –, até casos em que autistas conseguem atingir um desempenho social mais efetivo, ainda que mantenham algumas dificuldades de comunicação e de interação social. Segundo Tuchman & Rapin: Os médicos devem avaliar a linguagem de modo natural, em vez de fazer perguntas que exijam respostas monossilábicas ou a penas gestuais; no consultório, devem observar brevemente como a criança gesticula e usa a linguagem de modo conversacional com o pai ou a mãe ou consigo mesma, sobretudo durante jogos com brinquedos representacionais. Por isso, os neurologistas infantis precisam ter no consultório uma série desses brinquedos, assim como quebra-cabeças e livros apropriados para a idade. È preciso inserir a criança na conversação e na brincadeira, o que fornecerá informações sobre os vários níveis de linguagem e as habilidades sociais e de afeto, além de gerar uma estimativa apropriada do nível cognitivo (2009, p.69).
12 Embora seja bastante discutido, o autismo na infância ainda surpreende pela diversidade de características que pode apresentar e pelo fato de que, na maioria das vezes, a criança com autismo tem uma aparência física aparentemente normal. Ultimamente não só vem aumentando o número de diagnósticos, como também esses vêm sendo concluídos em idades cada vez mais precoces. Ao contrário de outros quadros como a Síndrome de Down, por exemplo, em que a criança portadora é facilmente reconhecida por sua estrutura física diferenciada, já o diagnóstico de autismo se faz através da observação do dia a dia, nas peculiaridades que se instauram no comportamento e relacionamento da criança com seu meio. Por detrás de uma “beleza” ou de um “rosto normal” instaura-se o quadro de autismo, um problema de várias faces, reconhecido, com mais facilidade, por um número maior de pessoas. Provavelmente, é por isso que o autismo passou mundialmente de um fenômeno aparentemente raro para um muito mais comum do que se pensava. Neste contexto, segundo Tuchman & Rapin: Os estudos epidemológicos (inclusive a vigilância) têm usado, principalmente, três métodos para identificar crianças com autismo: (1) questionários que solicitam dos pais ou de quem cuida da criança informações sobre o seu funcionamento; (2) revisões de registros administrativos médicos e escolares sobre crianças com autismo e problemas de desenvolvimento relacionados; e (3) exame de amostras da população (população total ou subgrupos de alto risco) (2009, p.38).
O autismo intriga e angustia as famílias nas quais se impõe, pois a pessoa portadora de autismo, geralmente, tem uma aparência harmoniosa e ao mesmo tempo, um perfil irregular de desenvolvimento, com bom funcionamento em algumas áreas enquanto outras se encontram bastante comprometidas, como por exemplo.1 1. Dificuldade de comunicação – caracterizada pela dificuldade em utilizar, com sentido, todos os aspectos da comunicação verbal e não verbal. Isso inclui gestos, expressões faciais, linguagem corporal, ritmo e modulação na linguagem verbal. Portanto, dentro da grande variação possível na severidade do autismo, poderemos encontrar uma criança sem linguagem verbal e com dificuldade na comunicação por qualquer outra via – incluindo a ausência de exercícios de gestos ou seu uso muito precário. A ausência de expressão facial ou expressão facial incompreensível para os outros e assim por diante. Como também podemos, igualmente, encontrar crianças que apresentam linguagem verbal, porém esta é repetitiva e 1
1 A apresentação dos pontos abaixo foi construída a partir da minha participação no curso: Como desenvolver os comportamentos desejáveis em crianças com necessidades especiais, março de 2010, Faculdades Est em parceira com a Associação Mantenedora Pandorga.
13 não comunicativa. É comum que crianças que têm autismo e são inteligentes repitam frases ouvidas anteriormente e de forma perfeitamente adequada ao contexto, embora, geralmente nestes casos, o tom de voz soe estranho e pedante. 2. Dificuldade de socialização – esse é o ponto crucial no autismo, e o mais fácil de gerar falsas interpretações. Significa a dificuldade em relacionar-se com os outros, a incapacidade de compartilhar sentimentos, os gostos e as emoções e ainda há discriminação entre diferentes pessoas. Muitas vezes, a criança com autismo aparenta ser muito afetiva, por aproximar-se das pessoas abraçando-as e mexendo, por exemplo, em seu cabelo, ou mesmo beijando-as, quando na verdade, ela adota, indiscriminadamente, essa postura, sem diferenciar pessoas, lugares ou momentos. Essa aproximação usualmente segue um padrão repetitivo e não contém nenhum tipo de troca ou compartilhamento de emoções. A dificuldade de socialização faz com que a pessoa com autismo tenha uma pobre consciência da outra. Ela é responsável, em muitos casos, pela falta ou diminuição da capacidade de imitar, que é um dos pré-requisitos cruciais para o aprendizado, como também de se colocar no lugar do outro e de compreendê-los a partir de uma perspectiva. 3. Dificuldade no uso da imaginação – se caracteriza por rigidez e inflexibilidade e se estende às várias áreas do pensamento, linguagem e comportamento da criança, que pode ser identificado através de comportamentos obsessivos e ritualísticos, compreensão literal da linguagem, falta de aceitação das mudanças e dificuldades em processos criativos. Essa dificuldade pode ser percebida por uma forma de brincar desprovida de criatividade e pela exploração peculiar de objetos e brinquedos. Uma criança que tem autismo pode passar horas explorando a textura de um brinquedo. De acordo com Bergés (2003, p.158), “quanto ao autista, vê-se bem no que ele é apenas um real. Não apenas ele não tem grande Outro, nada que diga respeito ao simbólico, mas ele também não tem acesso ao imaginário”. Crianças autistas, que demonstram capacidade cognitiva menos comprometida, podem-se perceber a fixação em determinados assuntos, na maioria dos casos, incomuns em crianças da mesma idade, como calendários ou animais pré-históricos. O que é confundido, algumas vezes, com nível de inteligência superior. Uma outra característica do autismo, e que costuma aparecer muito no ambiente familiar e escolar, é a rigidez. As mudanças de rotina incluindo as de casa, dos móveis, ou até mesmo de percurso, costumam perturbá-las bastante.
14 3 OLHOS NOS OLHOS
3.1 O PRIMEIRO CONTATO: POR DETRÁS DA NORMALIDADE
Ser professora de crianças “normais” tudo bem, afinal de contas é o que se espera em uma escola onde se trabalha nos padrões dessa normalidade. Sempre que se inicia o ano, entrevistamos os pais para sabermos um pouco mais sobre a criança com a qual iremos trabalhar. Geralmente, os relatos são tranquilos e não há nada de inusitado. Quando entrevistei os pais de Beto2, o relato foi: “Ele é um menino tranquilo, quando é contrariado chora e fica muito bravo, mas não tem nenhum problema de saúde, e apesar de estar com três anos ele ainda não fala”. Diante desse relato dos pais, eu fiquei despreocupada e nunca imaginei que pudesse existir algo “de errado”. Até então não tinha tido nenhum contato com Beto, pois contrariando as normas da escola, os pais não o levaram quando foram conhecê-la e nem no dia da entrevista. Combinei com a mãe sobre o período de adaptação e marcamos que na manhã seguinte, ele deveria estar na escola e que ela deveria permanecer no ambiente, caso necessário. Beto entrou na sala de aula com a mãe, chorou um pouco. Eu me aproximei, conversei com ele e o peguei no colo. Pedi que a mãe esperasse no corredor e se ele chorasse muito eu iria chamá-la. Quando ele desceu do meu colo, começou a correr pela sala de um lado para o outro, fez isso várias vezes. Eu lhe ofereci um carrinho. Ele jogou fora e continuou correndo, começou a gritar e ficou muito agitado, chamei a mãe para tentar acalmá-lo. Beto se agarrou nela e se tranquilizou. Fomos ao pátio brincar. Lá ele teve a mesma reação, corria de um lado para o outro sem parar e quando chamávamos, ele não respondia e nem sequer me olhava. Continuava correndo; correndo. Neste contexto Miller diz : Acima de tudo eu era um olho, um enorme holofote que perscrutava o horizonte distante e que girava incessantemente, impiedosamente. Esse olho tão desperto parecia ter feito adormecer todas as minhas outras faculdades. Todas as minhas forças eram consumidas no esforço de ver, de absorver o drama do mundo (1976, p.71).
2
Levando-se em conta o sigilo e ética, optou-se por um nome fictício.
15 A Coordenadora veio conversar com a mãe e cumprimentou Beto que, da mesma forma, continuou correndo, correndo, e sempre fazendo o mesmo trajeto. Ela estranhou, porque mesmo que a criança esteja tendo um primeiro contato ela pára, olha, chora, esboça alguma reação, mas Beto não fez nada isso. Após o término da aula, fui conversar com a Coordenadora e relatei a minha estranheza em relação à postura dele, no entanto como os pais tinham afirmado que ele não tinha nenhum problema, achei que pudesse estar imaginando coisas. A Coordenadora me relatou que também ficou intrigada e disse que iria conversar com a mãe, para perguntar se ele não era portador de algum problema auditivo. O período de adaptação estava transcorrendo dentro do esperado, afinal de contas, nos primeiros dias de aula a criança sempre chora; até criar confiança e vínculo com a professora, é normal. Mas eu ficava sempre preocupada com as atitudes de Beto, pois percebia que algo estava errado. Tive a certeza de que realmente Beto era “diferente”, quando conversamos com a mãe, que admitiu que o filho agia muito diferente das outras crianças, porque ele ficava sozinho, não aceitava que as outras crianças se aproximassem dele. Quando pegava um carrinho, por exemplo, não parecia brincar, ficava somente girando a roda. Durante a conversa com a mãe, questionamos acerca do possível problema de audição, porque quando chamado, ele não olhava, ficava totalmente absorto no que estava fazendo. No primeiro momento, a mãe ficou ofendida e disse que o seu filho não tinha nenhum problema, que já havia feito todos os exames e que ele era uma criança “normal”. Depois dessa conversa, a mãe começou a prestar mais atenção às atitudes dele e comentou comigo que estava preocupada. Eu comentei que também estava angustiada com seu jeito de agir e que seria importante que fossem feitos novos exames, que procurassem um neuropediatra. Ela concordou e começava a maratona de exames. Passado o período de adaptação, comecei a me deparar com uma situação inusitada e também bastante angustiante: aquela criança parecia não entender o que eu falava, não sentava para fazer as atividades, não queria comer, chorava, gritava muito, às vezes, eu precisava chamar alguém para ficar na minha sala e eu saia com ele pelos corredores da escola aos gritos, uma fúria, um olhar tão estranho que, muitas vezes, eu chegava a ficar com medo, porque eu não sabia o que se passava com ele. Conforme Tiburi:
16 O olhar mostra que não é fácil ver e que é preciso ver, ainda que pareça impossível, pois no olhar o objeto visto aparece em seus estilhaços de ser e só com muito custo é que se recupera para ela a síntese que nos possibilita reconstruir o objeto. É como se depois de ver fosse necessário olhar, para então, novamente ver. Há, assim, uma dinâmica, um movimento – podemos dizer – um ritmo em um processo de olhar-ver. Ver e olhar se complementam, são dois movimentos do mesmo gesto que envolve sensibilidade e atenção (setembro/outubro).
Durante as crises, Beto se batia, se mordia, batia com a sua cabeça na parede; as outras crianças ficavam olhando assustadas, foram dias muito atribulados. Comecei a comparar as atitudes dele com as de um menino de um filme que eu tinha assistido há muito tempo – este menino era autista. Conversei com a Coordenadora da escola acerca de minha suspeita e ela concordou comigo. Isso me deixou mais assustada ainda, porque pensei: se isso for verdade, como vou lidar com essa situação? Após alguns dias, os pais marcaram uma conversa comigo, com a Coordenadora, com a Psicóloga e com o Diretor da escola. Eles trouxeram o resultado dos exames, que não foi uma surpresa, pois já desconfiávamos da situação. Foi só então que os pais disseram que Beto tem Espectros de Autista, eles estavam desesperados. “Como o nosso filho querido e perfeito pode ter essa doença?” Foi uma conversa muito difícil, na qual ficou decidido que seria contratada uma pessoa para ficar com Beto na sala de aula e tentar ajudá-lo a se socializar. Até a chegada dessa pessoa, eu fiquei muito apreensiva e aflita, porque cada manhã era um sufoco; quando ele entrava em crise e eu tinha que sair correndo, largar tudo para acalmá-lo, e também não queria que as outras crianças ficassem presenciando àquelas cenas. Quando a pessoa que iria me auxiliar chegou fiquei muito feliz, porque sabia que não iria mais estar sozinha com toda aquela situação. As coisas aconteceram da maneira como eu esperava, porque ela foi muito parceira e sempre disposta a fazer o que fosse necessário para trazer Beto ao nosso convívio. No que diz respeito ao cuidado especial com o ser humano, especialmente, com uma criança autista. Concordo com Boff quando ele diz que: A ternura vital é sinônimo de cuidado essencial. A ternura é o afeto que devotamos às pessoas e o cuidado que aplicamos às situações existenciais. È um conhecimento que vai além da razão, pois mostra-se como inteligência que intui, vê fundo e estabelece comunhão. A ternura é o cuidado sem obsessão: inclui também o trabalho, não como mera produção utilitária, mas como obra que expressa a criatividade e a auto realização da pessoa. Ela não é efeminação e renúncia de rigor e conhecimento. É um afeto que a sua maneira, também conhece. Na verdade só conhecemos bem quando nutrimos afeto e nos sentimos envolvidos com aquilo que queremos bem, quando nutrimos afeto e nos sentimos envolvidos com aquilo que queremos conhecer (1999, p.118).
17 No final do ano, percebemos algumas mudanças no comportamento de Beto. Ele sentava para lanchar, participava das atividades; quando estas eram com tintas, ele se detinha por muito tempo, mostrando interesse e alegria pelo toque, com aquela textura fina e “ao mesmo tempo geladinha”.
3.2 O ANO SEGUINTE E A “CAIXA MÁGICA”
Um novo ano inicia, e sou convidada pela escola para dar continuidade ao trabalho que tinha sido iniciado com Beto. Logo aceitei, porque queria continuar ajudando no seu desenvolvimento. O dia está nublado e chuvoso e não iremos ao pátio para brincar; vamos ao Anfiteatro assistir a um filme infantil, para mudarmos um pouco de ambiente. As crianças sentam sobre o tapete e se concentram na história infantil que estão assistindo, enquanto Beto pega um lego e fica brincando. De repente, começa a correr de um lado para o outro e se depara com uma “caixa quadrada, com dois botões e uma porta de vidro”, onde vê sua imagem refletida. Ele observa por um tempo aquela “caixa mágica” (forno elétrico) e vê sua imagem nela; corre e volta a se olhar, beija sua imagem refletida no vidro e sorri. Seus olhos brilham de alegria e entusiasmo. Beto está se percebendo. Corre, ri, grita de satisfação e permanece fazendo o movimento várias vezes. Todo o ser estava concentrado no rosto [...] Eu não podia pensar em outra coisa além do rosto, da estranha e uterina qualidade do sorriso, de sua envolvente urgência. O sorriso era tão dolorosamente rápido e fugidio que parecia o lampejar de uma faca (MILLER, 1976, p.310).
Quando Beto percebe que eu estou olhando, corre até mim, me abraça, volta a se olhar na “caixa mágica”, gira seus botões, sorri e volta a me abraçar. É um momento único, de grande encantamento. Como uma coisa tão simples e corriqueira para nós pode se transformar para ele em um misto de prazer e satisfação? Eu confesso que estou chocada, começo a perceber que os traços de psicótico estão a cada dia que passa mais presentes na vida dele. E me pergunto o que mais posso fazer para ajudá-lo, além do carinho e da compreensão que procuro transmitir? Os dias estão passando e cada conquista – por menor que seja – é uma grande vitória.
18 Percebo que Beto gosta muito de riscar no papel com giz de cera, canetinha, tinta e pincel – é um fascínio. Seus colegas começaram a se preocupar mais com ele. Chegam perto, abraçam, beijam, brincam de pega-pega. Beto aceita, sorri, foge dos amigos e corre até mim para se esconder. Isso é tão maravilhoso, porque até bem pouco tempo ele não permitia que nenhuma criança chegasse perto, ficava furioso, seu olhar me assustava, tamanha a ira que demonstrava estar sentindo quando uma outra criança se aproximava. Mais uma vez me pergunto: será que é só o hábito de estar todo dia naquele ambiente que faz com que Beto permita essa aproximação, ou ele está começando a ser dar conta do mundo ao seu redor? Conforme Fernandes: Para os psicanalistas, a experiência clínica com autistas dá provas inequívocas de que o enlace significante, do qual depende o organismo para constituir-se como corpo, não é um dado natural. No sujeito humano, a aquisição do controle sobre o corpo, para a realização até mesmo de suas ações mais primárias, não depende apenas do desenvolvimento biológico, necessita de um impulso a mais: uma ação especifica do Outro (2000, s/n).
Percebo também como Beto aceita os outros professores da escola. Ele dá beijo, pede colo, pega na mão destes quando quer alguma coisa. Ele adora o professor de educação física que monta uma ponte por onde caminha e se joga no colchão: que caminho mágico é esse que enche seu olhar de prazer e satisfação? E o mais encantador agora: Beto me chama, olha para mim e diz “Si”. Sua mãe me relatou que em uma consulta com a fonoaudióloga, ela disse meu nome, e ele parou o que estava fazendo, veio até ela, fez um carinho no rosto dela e sorriu. Ele se lembra de mim (é o que a mim pareceu). Temos um vinculo de carinho e de aprendizado, juntos estamos crescendo (e quem sabe evoluindo?), percebendo a vida e as pessoas. Nesses últimos dias, Beto passa o tempo todo balbuciando, “ata, ati, hahaha”; bate palmas, faz movimentos com a boca como se fosse falar – é como se estivesse se esforçando para dizer o que sente. Ele fala através de seus gestos, de suas gargalhadas, de seus maneirismos e de seu choro – o que parece perturbar a ele e aos outros. Uma dor, uma fome, uma sede, um prazer, uma angústia... Nós tentamos entendê-lo e sofremos – com ele – por nossa incompreensão.
19 3.3 O QUE TOCA A RETINA: IMPRESSÕES DE UMA COM-VIVÊNCIA
Primeiro dia de aula. Algumas atitudes estranhas. Eu o olho e o que vejo me atravessa em meu olhar de normalidade. A pedagogia com-vive com os estados normais. Aos desviantes restam-lhes restos? *** Surpreendente. Ele está no meu colo, me olha muito sério e com o seu dedo começa a tocar o meu olho. Ele fica fascinado, toca meu olho e me olha muito interessado. O olhar é de surpresa, como se tivesse descoberto, só naquele momento, que eu tenho olhos. *** Fico muito emocionada, porque para mim isso é natural (ter olhos), mas para ele tem um significado muito importante. Pisco com o olho, abro e fecho os olhos. Ele me olhando, concentrado e encantado. *** Permanecemos nessa descoberta mútua por uma meia hora. Para outras pessoas isso pode parecer besteira, mas para mim tem um significado muito grande. *** O professor de educação física entra na sala e logo é percebido por ele, que se encanta com seus cabelos crespos. Pula, sorri e corre de um lado para outro. *** É impressionante como ele presta atenção em coisas tão simples e comuns. Isso lhe impressiona e causa alegria. *** Olha para o professor bem nos olhos e sorri. É como se quisesse dizer com o olhar: “que bom, adorei essa brincadeira, vamos de novo?” *** Quando percebe que eu estou o observando, para de rir, levanta-se do sofá, fica na minha frente e olha bem no fundo dos meus olhos. Um olhar sério, mas ao mesmo tempo, sereno e tranquilo.
20 *** Fica encantado com os balões, e quando cantamos parabéns, seus olhos se enchem de alegria e encantamento. Junto com os amigos, também bate palmas e sorri. *** Autismo é uma incógnita para mim, sempre me pergunto até que ponto ele consegue se dar conta das coisas, perceber os outros e o mundo (e a mim).
21 4 CUIDANDO COM CUIDADO: CONCLUIR O QUE NÃO SE CONCLUI
Lacan insiste no fato de que se não há educação e aprendizagem, haverá fracasso no enodamento dos três círculos: do Real, do Simbólico e do Imaginário. (BALBO, 2003, p.28).
Com o trabalho que realizo diariamente, vivencio uma prática fundamentada em estudos técnico-científicos, considerando o que há de mais adequado no convívio com o autista. Saliento a rotina estabelecida, o relacionamento entre mim e os outros profissionais, o ambiente e a satisfação das necessidades básicas apresentadas por Beto. Algumas considerações sobre prática: você pode cultivar a atenção em sua vida, e isso significa dar assistência, capacidade de estar presente, ligado, voltado para, consciente. O sentimento é de ternura, externa-se no cuidado e no carinho. Essa assistência ou esse cuidado são a essência da prática e da atenção. Portanto, para mim a prática significa esforçar-se para estar plenamente presente em qualquer situação, não agir mecanicamente; também não é uma tentativa de atingir objetivos ou resultados fixos. É a esse aprendizado que me refiro a prática que experimentei, que comprovei e que continuo a experimentar – e que é possível sustentála. Conforme estudos são de consenso a necessidade de que o autista tem de uma rotina. Percebe-se que é através dela que o autista sente-se seguro, calmo, tranquilo e confortado. A rotina que estabeleci para trabalhar com Beto são sabidas e respeitadas por todos. É gratificante ver o quanto todos se beneficiam. O relacionamento entre os profissionais é de cumplicidade, de parceria, de compreensão, de amizade e de respeito. E é nesse ambiente, com tal atmosfera, que Beto sente-se acolhido. Ele é aceito e desafiado de acordo com suas possibilidades. O cuidado com o ambiente físico, a oferta de jogos / brinquedos apropriados também é um ponto que considero positivo, pois permite que Beto explore e descubra novas sensações e experiências. Trabalhar com Beto ajudou-me a respeitar e valorizar mais as percepções, as habilidades e os esforços de cada um; sinto-me mais segura para aceitar o que cada um é
22 capaz de fazer em cada momento e procuro controlar minha ansiedade e minhas expectativas em relação ao que o outro é realmente capaz de produzir. No entanto Bergés nos diz: O fracasso primário do desenvolvimento mental: a criança procura o objeto como se visasse à preensão do objeto. Não é o objeto, assim como Lacan o concebe, que a pulsão vai tentar contornar e falhar em todas as tentativas. Justamente no fato de falhar é que consiste o fracasso, isto é, esse desenvolvimento busca o objeto continente receptivo que sua mãe não lhe pode oferecer (2003, p.32).
Também tenho percebido que meu sentimento em relação ao Beto mudou. Eu estava sempre muito ambivalente com sentimentos de pena e de incapacidade. Agora já estou conseguindo substituir esses sentimentos por empatia e compreensão. Sei que devo impor limites e mantê-los. Sei que o autista tem condições de entender as regras e respeitá-las. Sei que devo desafiá-lo de acordo com seu ritmo de desenvolvimento e de tolerância. Sei que pode estabelecer relações afetivas e potentes quando inserido num meio onde é aceito. Eu vi isso acontecendo!
4.1 UM PEQUENO MANIFESTO
Se todos conseguissem enxergar o que ele vê Se todos estivessem do seu lado Se o amor não tivesse lhe faltado Se ele tivesse sido assistido Se as suas angústias fossem entendidas Se não tivessem fugido dele Se a vida fosse perfeita Se as pessoas fossem perfeitas Se todos fossem cúmplices Se todos se amassem Se ele tivesse amor Se ele não sentisse medo Se ele não sentisse dor
23 Se os remédios pudessem ajudá-lo Se a vida fosse perfeita Se ele fosse feliz Se ele saísse do seu casulo Se ele pudesse descobrir o mundo Se o mundo pudesse descobri-lo Se as pessoas pudessem se olhar da mesma forma Se a diferença pudesse ser a condição do olhar... Se o olhar fosse o sentido da vida Se a vida existisse para ele... Como seria?
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REFERÊNCIAS
BERGÉS, Jean; BALBO, Gabriel. Há um infantil da psicose? Porto Alegre: CMC, 2003. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – Compaixão pela terra. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999. FERNANDES, Ribeiro Lia. O olhar do engano, autismo e o outro primordial. São Paulo: Escuta, 2000. MILLER, Henry Miller. Trópico de Capricórnio. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. TIBURI, Márcia. Aprender a pensar é descobrir o olhar. Jornal do Margs, ed. 103, set./out., [s.d.]. Disponível em: <http://www.artenaescola.org.br/pesquise_artigos>. TUCHMAN, Roberto; RAPIN, Isabelle. Autismo: abordagem neurobiológica. Porto Alegre: Artmed, 2009.