Comentário Esperança Novo Testamento - Evangelho de João I

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João e os evangelhos sinóticos

Diante disso, porém, cumpre levantar uma pergunta bem decisiva: Onde fica, nesse caso, o limite entre “testemunho histórico” e “elaboração espiritual”? Será que realmente estamos lidando com o próprio Jesus ou com um personagem que o evangelista também retrata depois, a partir dessa “compreensão adquirida posteriormente”? Quando Büchsel pensa que “[quem] queria compreender Jesus a partir daquilo que ele podia saber dele no tempo em que viveu, de acordo com João necessariamente o tinha de compreender mal” e “que a impressão da atuação histórica como tal simplesmente não leva nenhuma pessoa a crer em Jesus”, então os “judeus” estariam plenamente desculpados por não terem compreendido a Jesus naquele tempo, rejeitando-o. Nesse caso, a conhecida palavra de Jo 1.14 teria de ser artificialmente reinterpretada: A palavra se tornou carne, e mais tarde, depois de sua ressurreição e ascensão, nós também vimos a sua glória.22  Se João descreve Jesus totalmente de acordo com sua compreensão espiritual posterior, então nos tornamos, de um modo questionável, dependentes de João e da exatidão de sua compreensão, e não temos mais a ver realmente com Jesus, mas de fato apenas com o “Cristo joanino”. A fé não é capaz de viver de “interpretações”, nem mesmo das mais profundas e belas. A fé vive de realidades. Quando João não reproduz as palavras decisivas de Jesus porque as ouviu assim, mas opina a partir de sua compreensão posterior de Jesus, (“Na verdade Jesus deveria ter falado assim”), então nós, como fiéis, estamos numa situação complicada. Como ainda poderíamos interpretar seriamente as afirmações “Eu sou” de Jesus, se tivéssemos de pensar que o próprio Jesus nem sequer as pronunciou? E como podemos acreditar que um israelita — pois é isso o que o autor do Evangelho de João é — teria inventado livremente essas palavras de Jesus que evocam o nome de Javé, e que as teria colocado nos lábios de Jesus? Talvez seja verdade o que recentemente é salientado nesse contexto,23  que anedotas e afirmações inventadas seriam capazes de caracterizar melhor um personagem histórico que relatos historicamente confiáveis. Contudo, a situação se torna muito diferente quando eu próprio quero fazer uso das promessas de uma pessoa poderosa. Então de nada me servirá a mais poderosa e “característica” palavra, se for inventada. A pessoa tem de ter dado sua promessa de uma forma inequívoca, para que eu possa fundamentar sobre ela uma reivindicação. Se Jesus não pronunciou de fato sua poderosa palavra “Eu sou...” com as promessas subsequentes, de nada nos servirá no caso mais sério, p. ex., ao morrermos, que João assegure a partir de sua compreensão posterior de Cristo que Jesus “poderia” ter falado dessa maneira, sim, que na realidade “deveria” ter falado desse modo. Contudo, toda essa concepção de projetar para trás, para a descrição do Jesus histórico, a compreensão posterior de Cristo é refutada pelo próprio Evangelho de João. O autor anotou pessoalmente em algumas passagens que os discípulos compreenderam essas palavras de modo correto apenas mais tarde, depois da ressurreição de Jesus (p. ex., Jo 2.22; 7.39; 12.16). Com isso, porém, atestou justamente que ele não inventou nem modificou essas palavras de seu Senhor, mas sim que as reproduziu em sua forma original, enquanto naquela época ele e os demais discípulos ainda careciam do entendimento dessas palavras, ficando claras somente mais tarde, após a Páscoa. Se ele, porém, tivesse relatado parte por parte de acordo com sua compreensão posterior, então ele não teria tido mais nenhum motivo para destacar em determinadas passagens específicas que nesse ponto somente uma percepção posterior teria descortinado o sentido mais profundo da questão. No fundo, deparamo-nos com uma questão de confiança. Não temos condições de verificar objetivamente se João reproduziu correta e fielmente os discursos de seu Senhor. Contudo, constantemente vemos em seu evangelho o empenho em relatar com exatidão, em todos os E como deveríamos compreender, então, 1Jo 1.1, onde se fala expressamente de um “ver com os olhos” e “apalpar com as mãos”? 23 Como diz W. Stählin, “Auch darin hat die Bibel recht”, Evangelisches Verlagswerk, Stuttgart 1964. 22


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