"A gata, um homem e duas mulheres/O cortador de juncos", de Jun'ichiro Tanizaki

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Jun’ichiro Tanizaki

a gata, um homem e duas mulheres e o cortador de juncos

Tradução

Andrei Cunha Clicie Araujo Lidia Ivasa Maria Luísa Vanik Pinto Tomoko Gaudioso

Estação Liberdade

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Título original: Neko to Shozo to Futari no Onna / Ashikari © Editora Estação Liberdade, 2016, para esta tradução

Preparação Fábio Fujita Revisão Vivian Miwa Matsushita Assistência editorial Gabriel Joppert Composição Letícia Howes Edição de arte Miguel Simon Imagem de capa Katsushika Hokusai, “Pessoas descendo a colina” (cerca de 1830) / Fine Art Images / SuperStock / Getty Images Comercialização Arnaldo Patzina e Flaiene Ribeiro Administrativo Anselmo Sandes Coordenação de produção Edilberto F. Verza Editor responsável Angel Bojadsen

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T17g Tanizaki, Jun'ichiro, 1886-1965 A gata, um homem e duas mulheres e o cortador de juncos / Jun'ichiro Tanizaki ; tradução Andrei Cunha ... [et al.] - 1. ed. - São Paulo : Estação Liberdade, 2016. 192 p. ; 21 cm. Tradução de: Neko to shozo to futari no onna / Ashikari ISBN 978-85-7448-276-7 1. Romance japonês. I. Cunha, Andrei. II. Título. 16-37175 CDD: 895.63 CDU: 821.521-3 19/10/2016

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Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008.

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SumĂĄrio

A gata, um homem e duas mulheres...................................9 Nota dos editores.....................................................................13

O cortador de juncos........................................................ 119 Nota da tradutora...................................................................123

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Tradução A ndrei Cunha, Clicie A raujo, Lidia Ivasa, M aria Luísa Vanik Pinto e Tomoko Gaudioso

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Nota dos editores Esta edição reúne duas das mais representativas narrativas breves de Jun’ichiro Tanizaki: A gata, um homem e duas mu­ lheres, publicada originalmente em 1936; e O cortador de jun­ cos, editada quatro anos antes, em 1932. Optamos por reuni-las aqui não só em função da proximidade temporal que as separa, mas sobretudo pela semelhança temática, no caso, as relações amorosas triangulares nas quais os personagens se veem inseridos. Mesmo as diferenças entre as duas novelas podem ser vistas como complementares. Enquanto A gata, um homem e duas mulheres é uma narrativa urbana — a trama se passa quase que integralmente dentro da residência do casal for‑ mado por Shozo e Fukuko —, O cortador de juncos tem uma ambientação rural: dois homens que se conhecem ao acaso passeando às margens do rio Yodo conversam sobre a atri‑ bulada vida amorosa do pai de um deles. Mas, em ambos os textos, evidencia-se um tema recorrente na obra de Tanizaki: a fragilidade dos laços matrimoniais — ou mesmo dos senti‑ mentos humanos —, que invariavelmente sucumbem a inte‑ resses sórdidos e condenáveis. A equipe com os cinco profissionais que assinam a tra‑ dução de A gata, um homem e duas mulheres nasceu como grupo de trabalho do curso de graduação de letras-japonês da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Sob 13

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orientação da professora Tomoko Kimura Gaudioso, o grupo foi composto pelas então alunas Clicie Araujo, Lidia Ivasa e Maria Luísa Vanik Pinto; a revisão final do texto ficou a cargo do também professor Andrei Cunha. Todas as notas de rodapé são dos tradutores.

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Um Cara Fukuko, Começo pedindo desculpas por me fazer passar por Yukiko para lhe enviar esta carta. Mas, quando você abriu este en­ velope, já sabia quem era o remetente, não é? E deve estar pensando, aborrecida: “Que mulher descarada, usando sem permissão o nome da minha amiga para me escrever... que grosseria!” Entenda, por favor, que se eu pusesse meu nome no envelope, com certeza ele acharia esta carta e a esconde­ ria. Queria muito que você soubesse de algumas coisas que eu tenho para lhe contar. Por isso, não tive outra escolha. Mas fique tranquila, não tenho a intenção de descontar minha raiva sobre você, ou de ficar me lamentando. Bem, para ser sincera, acho que precisaria de uma carta com dez ou vinte páginas a mais para esse propósito. E é tarde demais para lhe dizer essas coisas. É engraçado. Por causa das dificul­ dades pelas quais passei, acabei me tornando uma pessoa mais forte, e não estou mais chorando com a mesma frequên­ cia. Apesar de haver muitos motivos para lágrimas e ressen­ timento, decidi não pensar nesse assunto, fazendo o possí­ vel para viver feliz. É verdade o que dizem sobre o destino das pessoas: apenas os deuses sabem quando e a quem pode acontecer algo; portanto, é tolice invejar ou odiar a felicidade alheia. 15

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Embora eu não tenha recebido uma educação muito refi­ nada, estou ciente de que é falta de educação não ir pessoal­ mente entregar uma carta. Porém, por várias vezes, pedi ao senhor Tsukamoto que falasse com ele sobre essa questão, e foi inútil. Por isso, agora não me resta alternativa a não ser lhe escrever. Mas, por mais que pareça extremamente difícil lhe ex­ plicar o meu pedido, no fundo não é nada de mais. Há apenas uma coisa na sua casa que eu desejo. É claro que não me refiro a ele. Na verdade, é uma coisa bem simples, uma coisa insigni­ ficante... eu quero Lily. Segundo o senhor Tsukamoto, ele disse que você não quer se separar de Lily de jeito nenhum. Isso é ver­ dade, Fukuko? É você quem está vetando o meu único desejo? Fukuko, por favor, pense bem. Eu já cedi a você a pessoa mais importante para mim... não, não é só isso, também cedi o lar feliz que construí junto a ele. Tudo isso é seu, agora. Nem uma única peça de louça eu levei. Não recebi de volta nem mesmo o enxoval que trouxe comigo no dia do casamento. To­ das essas coisas podem gerar lembranças tristes, e talvez seja melhor mesmo que eu não as tenha levado comigo, mas você não poderia abrir mão ao menos de Lily? Eu não peço nada impossível. Aguentei pacientemente os insultos e abusos. Em consideração ao meu sacrifício, seria pedir demais que você me entregasse pelo menos a gatinha? Para você, deve ser ape­ nas um animalzinho insignificante, mas no meu caso seria um grande consolo para minha solidão... não quero que você pense que sou fraca, mas sem Lily eu me sinto triste. Não tenho ninguém neste mundo para me fazer companhia, a não ser essa gata. Depois de me destruir, quer continuar me fazendo sofrer? Não sente pena da minha solidão e angústia? Você não é esse tipo de pessoa; eu bem sei que essa história de não abrir mão de Lily não é coisa sua, e sim dele; com toda a certeza dele. Porque ele gosta muito de Lily. Sempre me dizia: 16

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“Mesmo que eu me separe de você, não vou me separar desta gata.” Além disso, fosse na hora das refeições, fosse na hora de dormir, ele sempre dava mais atenção a Lily do que a mim. No entanto, sendo assim, por que ele não diz logo com fran­ queza: “Não posso me separar da gatinha”? Não seria uma maneira de botar a culpa em você? Ora, peço-lhe, por favor, que pense sobre essas intenções. Ele me expulsou para ficar com você, de quem gostava. No momento em que vivia comigo, Lily lhe era útil como des­ culpa, mas agora, a esta altura, ela já não se teria tornado um estorvo? Ou mesmo agora, se Lily não estivesse aí, ele agiria como se estivesse faltando alguma coisa? Então me pergunto se você, assim como eu, não estaria abaixo da gatinha na visão dele. Desculpe, acabei dizendo algo que não devia... Eu certamente não pensaria em uma coisa assim tão ridícula, mas acho que o fato de ele tentar esconder a afeição pela gata, e de colocar a culpa em você, com certeza prova que ele se sente culpado, de alguma maneira. É estranho. Seja como for, não tenho mais nada a ver com isso, não é mesmo? Apenas tenha cuidado. Se subestimar a influência da gata sobre ele, você pode acabar perdendo o lugar para ela. Não estou de modo nenhum lhe desejando mal; estou, inclusive, colocando o seu bem-estar acima do meu. Separe-o de Lily quanto antes. Se ele não concordar com isso, então você teria motivo para suspeitar de algo...

Enquanto lia a carta lentamente, palavra por palavra, Fukuko espiava de soslaio para ver o que Shozo e Lily estavam fa‑ zendo. Shozo bebericava um saquê e beliscava uns picles de cavalinha no vinagre. Depositou o copinho da bebida após tomar um gole, e disse: 17

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— Lily! Enquanto isso, apanhou com o hashi um dos peixes em conserva e o segurou bem alto. Levantando-se com as patas de trás e apoiando as patas dianteiras na borda da mesinha baixa e oval, Lily observou os petiscos do prato. Essa posição se parecia com a de uma pessoa encostada em um balcão de bar. Também se assemelhava à das gárgulas da Catedral de Notre-Dame. Assim que Shozo levantou o petisco, a gata se pôs a farejar, excitada; os olhos pareciam os de uma pessoa assustada, enormes e astutos, fitando o peixe. Porém, Shozo estava decidido a não largar a isca tão facilmente: — Olha o peixe! Aproximando a cavalinha do focinho do bicho, levou-a em seguida à própria boca. Sorvendo todo o vinagre que havia no peixe e mastigando as espinhas mais duras, ele apanhou o pe‑ tisco mais uma vez da boca e o mostrou à gata, aproximando e afastando, erguendo e abaixando o peixe. Levada por esses movimentos, Lily afastou-se da mesinha, erguendo as patas dianteiras. Perseguiu o peixe apoiada apenas nas patas de trás, como um bebê que está aprendendo a andar. Quando o petisco estava bem acima de sua cabeça, ficou parada, prepa‑ rando-se para dar o bote. Nesse momento, as patas dianteiras tentaram alcançar a presa, mas ela errou por um triz, tentando pular novamente. Esse ritual se repetia a cada vez, e a gata demorava de cinco a dez minutos até conseguir o petisco. Durante a brincadeira, Shozo ia bebericando saquê. — Lily! — chamava-a enquanto pegava o próximo peixe. No prato, devia haver a princípio doze ou treze cavali‑ nhas, cada uma medindo cerca de seis centímetros. Dessas, Shozo conseguiu comer apenas três ou quatro. Depois que ele chupava o molho à base de vinagre e molho de soja, pra‑ ticamente toda a carne acabava indo para a gata. 18

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De repente, Shozo deu um grito. Lily, de surpresa, saltara e fincara as unhas em seu ombro. — Ai, ai, ai! Isso dói, sua peste! Ei! Desce! Embora já estivessem na segunda metade de setembro, um calor remanescente do verão ainda perdurava. Shozo, como normalmente acontece com as pessoas obesas, era sen‑ sível ao calor e transpirava muito. Ele havia movido a mesinha para a varanda, onde a lama da última enchente estava acu‑ mulada, e vestia um haramaki 1 de lã por cima da camisa de mangas curtas e das ceroulas de linho. Sentou-se de pernas cruzadas, e Lily, como se escalasse um morro, se agarrou ao seu ombro. Para não escorregar, ela fincou as garras nele com força. Shozo gritou: — Ai! Ai! Ei! Não vai descer, não?! Sacudiu então o ombro, inclinando-se para que ela des‑ cesse, mas, ao fazer isso, Lily cravou ainda mais as garras para não cair. Por fim, gotas de sangue começaram a escorrer pela camisa do homem. Contudo, mesmo Shozo resmungando um “sua abusada!”, passou longe de ficar bravo com ela. Engolindo todo o peixe de uma vez, a gata veio então esfregar o rosto na boche‑ cha dele para bajulá-lo. Ao vê-lo segurando o peixe com a boca, Lily se posicionou audaciosamente ao seu lado. E então, quando ele começou a mastigar e a colocar a língua com o peixe para fora da boca, a gata prontamente atacou a outra extremidade do pedaço. Às vezes, após morder o peixe, ela lambia o entorno da boca de Shozo, parecendo bem satis‑ feita e feliz. Em certos momentos, eles disputavam a cavali‑ nha, cada um puxando uma ponta. Shozo soltava interjeições como “eca!”, “opa!”, “ei, peraí!”, franzia as sobrancelhas e se 1. Espécie de cinta feita de lã, usada em volta da cintura no inverno. 19

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babava, mas a verdade é que ele parecia tão feliz quanto Lily naquela situação. Quando enfim a brincadeira teve uma pausa, ele estendeu despreocupado o copinho de saquê para a esposa — e então percebeu que recebia um olhar carregado de reprovação. — Que foi? Por algum motivo, a mulher, que até pouco tempo atrás estava de bom humor, havia parado de servir o saquê, e agora, com os braços cruzados, encarava-o com dureza. — Não tem mais saquê, não? Ele acabou por recolher a mão com o copo, espiando ti‑ midamente os olhos dela. A esposa, sem titubear, disse: — Tenho um assunto para tratar com você. — Ah, mas que tipo de assunto? — Dê essa gata para Shinako. — O quê?! Surpreso, Shozo piscava os olhos de espanto. Como se pode falar algo tão brutal assim, sem mais nem menos? Po‑ rém, Fukuko não parecia querer retroceder, mirando-o com uma expressão ameaçadora. Ele não estava entendendo nada. — Por que esse assunto de repente? — Isso não importa, dê a gata para Shinako. Chame Tsu‑ kamoto e entregue logo esse bicho. — Afinal, o que está acontecendo? — Por quê? Você é contra? — Não, es... espere! Não acha injusto dizer essas coisas sem falar o motivo? Você tem algo contra Lily? Seria ciúmes de Lily?, ele logo imaginou, mas esse mo‑ tivo não era convincente, já que Fukuko gostava de gatos. Na época em que Shozo ainda vivia com a ex-esposa, ao ouvir as histórias de como Shinako morria de ciúmes da gata, Fukuko ria da tolice dela. Ao se casar, ela já era ciente sobre o apego 20

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de Shozo por felinos. Além disso, mesmo sem o mesmo exa‑ gero dele, Fukuko também mimava Lily. De fato, em todas as refeições, a gata sempre ficava no meio do casal, que sentava em lados opostos da mesinha baixa. Fukuko nunca se opôs a isso. Pelo contrário, ela observava com interesse a estra‑ nha cena de circo acrobático protagonizada pelo marido e pela gata: Shozo bebericando saquê enquanto brincava com Lily, como acabara de acontecer. Às vezes, ela mesma jogava petiscos ou fazia a gata saltar. A existência de Lily entre eles fortalecera os laços dos recém-casados, alegrando as refei‑ ções. De modo nenhum o bicho se mostrara, até então, um estorvo. Assim sendo, qual seria o motivo da mudança repen‑ tina? Até o dia anterior, não, até havia pouco, enquanto bebia seus cinco ou seis copinhos de saquê, nada havia ocorrido. Em que momento a atitude da esposa mudara? Qual fora o pequeno acontecimento que a ofendera? Ou será que Fukuko ficou com pena de Shinako de uma hora para outra? Por falar nisso, quando Shinako saiu de casa, uma das suas exigências fora a de levar a gata. Depois disso, é fato que ela pediu pela gata duas ou três vezes, por intermédio de Tsukamoto. Mas achei melhor não dar ouvidos, e sempre ne­ guei o pedido. Segundo Tsukamoto, Shinako não gosta mais de mim, me tem por um traidor, que a expulsou de casa para se casar com outra mulher. Mesmo assim, pode ser que até hoje ela não tenha conseguido me esquecer, e enquanto tenta me odiar e fracassa, quer a todo custo uma pequena lembrança, pedindo por Lily. Quando morávamos juntos, a existência de Lily era irritante para ela; Shinako a maltratava às escondi­ das. Mas, hoje, ela diz que tem saudades dos objetos da casa, e principalmente de Lily. Ela quer cuidar da gata como a fi­ lha que não tivemos, mimando-a e, assim, consolando sua tristeza. 21

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— O que vale uma gata, Ishii? Não sente pena dela ao ouvir isso? Foi o que Tsukamoto disse. Contudo, Shozo respondeu: — Não dá para levar a sério o que aquela mulher diz. Ele sempre respondia a mesma coisa. Shinako sabia convencer as pessoas com sua lábia, e, as­ sim como um fundo falso, o que dissesse poderia guardar outra intenção por trás. Em primeiro lugar, ela era insistente, e não gostava de perder. Por isso, era de se desconfiar quando dizia que ainda gostava de mim e queria mimar a gata. Por que ela iria mimar Lily? Shinako certamente só a queria para poder maltratá-la à vontade e se vingar de mim. Se não for por isso, ela deve estar tentando tirar de Shozo a coisa de que ele mais gosta apenas para lhe fazer uma maldade. Não, talvez houvesse um motivo mais profundo do que uma vingança infantil, mas a mente limitada de Shozo não permitia que ele compreendesse as verdadeiras intenções da ex-mulher, sentindo um estranho desconforto e uma cres‑ cente antipatia por ela. E não é só isso; aquela mulher fez uma série de exigências. Porém, por mais difícil que tenha sido para mim atendê-las, concordei com quase tudo, porque queria que ela partisse de uma vez. Mas Lily? Não, Lily eu não entrego. E assim, sempre que Tsukamoto vinha com insistência falar sobre o assunto, Shozo dava desculpas esfarrapadas e se esquivava habilmente da conversa, contando com o apoio de Fukuko, que era enfática e negava o pedido de maneira clara.

— Me explica isso! Não estou entendendo nada — disse Shozo, puxando a garrafinha de saquê para perto, e entornando. 22

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Então deu um tapa na própria perna. — Será que não temos nenhum daqueles repelentes de inseto em espiral? — disse, meio que para si mesmo, enquanto olhava em volta como quem não quer nada. Já estava escuro e, saídos do lado do pátio, os mosquitos se juntavam na varanda. Depois de ter comido tudo o que co‑ meu, Lily estava enroscada embaixo da mesinha. Quando se tornou o motivo da discussão, ela discretamente passou para o jardim, por baixo da cerca-viva e se foi para algum lugar; um comportamento estranho, como se estivesse fazendo ce‑ rimônia, mas era sempre assim: depois das refeições, ela não demorava a desaparecer. Fukuko levantou-se calada e foi até a cozinha. Procurou pelo repelente de insetos e o trouxe, acendendo-o e colocan‑ do-o embaixo da mesinha. Então, dessa vez, com um tom de voz calmo, disse: — Querido, aquelas cavalinhas, você deu tudo para a gata, não deu? Você comeu umas duas, três no máximo, certo? — Não me lembro. — Eu contei. No começo, tinha treze cavalinhas no prato. Lily comeu dez, e você, três, não foi? — Me desculpe por isso. — De que adianta pedir desculpas... você não entende? Tente pensar um pouco. Não é que eu esteja com ciúmes. Eu odeio peixe no vinagre, mas como você gosta e pediu que eu fizesse, eu fiz. Só que você mal comeu e deu tudo para a gata... — disse Fukuko.

Ao longo da linha de trem Hanshin, há várias cidades, como Nishinomiya, Ashiya, Uozaki e Sumiyoshi. Há uma praia local abundante em cavalinhas e outros peixes, e todos os dias os 23

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vendedores anunciam sonoramente: “Olha a cavalinha fres‑ quinha! Olha a sardinha fresquinha!” São peixes frescos e custam de dez a quinze centavos a porção. As famílias de três ou quatro pessoas sempre apa‑ recem para comprá-los. Por isso, em um dia, há vários ven‑ dedores. As cavalinhas durante o verão têm mais ou menos três centímetros de comprimento, mas no começo do outono elas crescem gradualmente. Enquanto estão pequenas, não são muito boas para salgar e grelhar, ou para fritar. Só é pos‑ sível fazê-las assadas na brasa, conservando-as em vinagre e molho de soja, adicionando gengibre cortado bem fininho, para serem consumidas com espinha e tudo. Porém, Fukuko odiava essas cavalinhas avinagradas. Ela preferia comidas quentes e gordurosas, e ficava triste por ter de comer essas coisas frias e murchas. Quando ela lhe falou desses caprichos, Shozo disse que ela podia cozinhar o que quisesse — ele mesmo prepararia as cavalinhas. Ele então se dirigia aos ven‑ dedores e comprava os peixes. Fukuko e Shozo eram primos, e, devido às circunstâncias do casamento, ela não precisava se preocupar em agradar à sogra. Depois do casamento, começou a se comportar ca‑ prichosamente, mas, ainda assim, não ficava bem deixar o marido ir para a cozinha. Desse modo, no fim das contas, era ela quem preparava os peixes avinagrados, e acabava por comer junto. Já tivera de preparar o odioso prato de cavali‑ nhas diversas vezes nos últimos cinco ou seis dias. Ainda por cima, havia apenas dois ou três dias começara a perceber que Shozo mal comia, dando todo o peixe para a gata. Assim, de fato, quanto mais ela pensava, mais se dava conta de que aquelas cavalinhas eram pequenas, com os‑ sos macios e pedaços que desmanchavam com facilidade, e, sendo baratas, podia-se comprar muitas. Além disso, por ser 24

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uma refeição fria, era a mais apropriada para dar à gata todas as noites. Ou seja, a comida de que Shozo dizia gostar era, na verdade, a comida favorita da gata. Naquela casa, o marido ignorava os gostos da mulher, priorizando as vontades da gata na hora de escolher o jantar. Assim, a paciente esposa que pensava estar cozinhando por amor ao marido, na verdade acabava mesmo preparando comida para a gata e servindo de companhia para ela. — Não é bem assim! Eu também me sirvo da comida, mas é que Lily é tão insistente, que a toda hora tenho que dar mais peixe para ela. — Não seja mentiroso! Desde o começo esse peixe era para ela. Diz que gosta de algo de que nem gosta só para agradar a gata. Você gosta mais dela do que de mim! — Poxa, não é bem assim... Com essa afirmação, Shozo ficou desarmado. — Então você diz que se importa mais comigo? — Mas isso não é óbvio?! Que coisa mais besta de se dis­ cutir! — Não adianta dizer só da boca para fora, está ouvindo? Tem que provar! Senão, eu não acredito. — Certo, a partir de amanhã eu paro de comprar cavali‑ nhas. Daí você não vai mais ter do que reclamar. — Mas, acima de tudo, livre-se de Lily. É melhor para nós que aquela gata não fique por perto. Talvez Fukuko não tivesse a intenção de dizer aquilo a sério, mas se Shozo subestimasse sua obstinação, teria pro‑ blemas. Sem saída, ele juntou os joelhos, e, ajeitando a pos‑ tura para parecer o mais respeitoso possível, curvou-se para frente, com as duas mãos sobre eles. — Então, mesmo sabendo que a gatinha seria maltratada naquele lugar, você quer dá-la? Não seja malvada! — disse 25

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ele, lamentoso, em tom de súplica. — Por favor, não me peça para fazer isso... — Viu só? Eu sabia, você se importa mais com a gata do que comigo! Ora, se você não der um jeito em Lily, pode dei‑ xar que eu mesma dou. — Não diga asneiras! — Eu é que não vou ficar sendo tratada pior que bicho! Talvez por ter ficado tão furiosa de repente, lágrimas lhe brotaram dos olhos, pegando-a de surpresa. Fukuko rapida‑ mente virou de costas para o marido.

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Dois Na manhã em que Shinako enviou aquela carta, fazendo­ -se passar por Yukiko, a primeira coisa que deve ter pensado é que havia conseguido semear a discórdia entre nós. Que mulherzinha ruim! Mas se pensa que alguém cairia nessa, ela está enganada. Com o que escreveu, Shinako sem dúvida planejava que eu passasse a me preocupar com a presença de Lily na casa, que eu começasse a ter ciúmes da gata para que ela pudesse me ridicularizar. Talvez imaginasse que eu aca­ baria na mesma situação que ela — de achar que Shozo dava menos importância para mim do que a um bicho —, criando assim uma tempestade neste lar, que até então havia sido tão harmonioso, e fazendo-nos ceder a gatinha. Mas Shinako mal sabe que somos um casal que vive cada vez mais feliz e em harmonia, que a sua carta não criaria problemas, e que nós dois amamos Lily na mesma proporção, sem a mínima inten­ ção de nos desfazermos dela. Seria ótimo se fosse assim. No entanto, essa carta infelizmente veio em uma hora ruim. Isto é, o caso do peixe no vinagre já estava entalado na minha garganta havia dois ou três dias, então aproveitei a oportunidade para repreender meu marido de uma vez. Eu não gosto de gatos tanto quanto Shozo pensa, mas acabei por me afeiçoar à gatinha naturalmente, porque pre­ cisava aceitar o apreço dele e provocar Shinako. Isso foi até 27

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antes de eu me apossar desta casa, enquanto ainda tramava com a minha sogra, Orin, uma maneira de expulsar Shinako daqui. Nessas circunstâncias, mesmo depois de vir morar nesta casa, eu mimava Lily, fazendo de tudo para fingir que gostava de gatos. Contudo, aos poucos, comecei a odiar a existência desse pequeno felino. Parece que a gata é de uma raça oci­ dental; há algum tempo, quando vim como visita a esta casa, ao colocar Lily em meu colo, a sensação ao tocá-la era de maciez, sua pelagem era uniforme, e sua aparência e forma, muito agradáveis. Por ser uma fêmea de uma beleza que não se encontra tão facilmente, naquela época achei a gata muito bonitinha, pensando que Shinako era uma pessoa estranha ao considerar que Lily pudesse ser um incômodo. Pensei que Shozo tinha razão em não gostar de Shinako, imagine, sentir ciúme até de uma gata! Mas hoje, ao me colocar no lugar dela, já não acho mais graça. Que estranho! Claro, não sou tratada do mesmo jeito que ela era, e tam­ bém sei que Shozo me dá o devido valor. Porém, o amor de Shozo por gatos não é normal, extrapola os limites. De fato, não há problema em mimar a gata, mas dar peixe para ela comer diretamente da boca (e na minha presença!) já é de­ mais. Além disso, para falar a verdade, me incomoda o fato de a gata ficar entre nós durante o jantar. À noite, minha sogra, para não nos atrapalhar, janta mais cedo e sobe para seu quarto no segundo andar da casa. Com isso, eu poderia jantar mais à vontade com Shozo, mas Lily vem e monopoliza toda a atenção dele para si. Quando penso que, por alguma sorte, a gata não vai apa­ recer, ela ressurge rapidamente ao ouvir o barulho dos pra­ tos ou da mesinha sendo montada. Às vezes, quando ela não aparece, Shozo faz algo imperdoável: chama a gatinha pelo 28

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nome inúmeras vezes, até ela aparecer, ou vai procurá-la no segundo andar da casa. Chega a sair pelo portão dos fundos para olhar a rua em volta. Mesmo quando ofereço saquê, di­ zendo que Lily logo voltará, ele fica inquieto, sem saber o que fazer. Nessas horas, seus pensamentos são tomados pela gata, e ele nem se importa com o que eu acho dessa situação. Outra coisa desagradável é a hora de dormir, quando a gata tam­ bém se põe entre nós. Shozo já teve três gatos, mas, segundo ele, Lily é a única que sabe entrar no mosquiteiro. Tem razão, observei o modo como ela faz, encostando a cabeça no tatame e empurrando o mosquiteiro até levantar a borda e conseguir entrar. Na maioria das vezes, ela dorme próxima ao futon dele, mas se estiver frio, dorme em cima da coberta, até que, pelo lado do travesseiro, entra por baixo com a mesma eficiên­ cia como faz no mosquiteiro. Por isso, a gata é testemunha até de nossos momentos íntimos. Mesmo assim, Fukuko não tinha motivo para dizer que não gostava de gatos de uma hora para outra. E, levada pela vaidade — afinal, não ia se rebaixar a dizer que tinha ciúmes de uma “simples gata” —, ela chegara até ali escondendo seus verdadeiros sentimentos. Shozo apenas brinca com Lily, sou eu quem ele ama de verdade, sou insubstituível para ele, seja no céu ou na terra. Se, por causa desses fatos, eu começasse a agir de forma estra­ nha, daria razão para me mostrar mesquinha. Mudei minha forma de pensar para tentar ser complacente e não odiar um animal que não tem culpa. Fukuko procurara se adaptar aos gostos do marido, mas, devido à sua natureza impaciente, isso não durou muito tempo. Aos poucos, a insatisfação aumentou, e então acon‑ teceu o caso dos peixes no vinagre. Aquilo tornou evidente que, com a gata e a esposa numa balança, o prato pendeu 29

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abusos. Em consideração ao meu sacrifício, seria pedir demais que você me entregasse pelo menos a gatinha? Para você, deve ser apenas um animalzinho insignificante, mas no meu caso seria um grande consolo para minha solidão...”

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ISBN 978-85-7448-276-7

9 788574 482767

Relações de dominação e submissão sem-

pre alimentaram a literatura de Jun’ichiro Tanizaki. Se no clássico Diário de um velho louco ele aborda como um homem senil é manipulado pela jovem nora de belas curvas, neste A gata, um homem e duas mulheres o autor de As irmãs Makioka eleva à quinta potência o nível de complexidade nos relacionamentos afetivos entre seus personagens. Publicado em 1936, o romance põe a gata Lily no centro da trama protagonizada pelo casal Shozo e Fukuko, e ainda pela ex-mulher do primeiro, Shinako. Se um animal de estimação costuma ser tratado como verdadeiro integrante da família, esse não é bem o caso da gata Lily. O autor parece recorrer ao felino como metáfora para a falência dos relacionamentos humanos — e nesse sentido a verve de Tanizaki é notável. A intimidade que Shozo dispensa a Lily está longe de se repetir com a esposa. É curioso constatar aqui uma iconoclastia tanizakiana: o autor, que com frequência abordou a subserviência da mulher, fragiliza seu personagem masculino, Shozo, mas propondo um protagonismo feminino graças à presença magnética da gata.

A GATA , UM HOMEM E DUAS MULHERES seguido de

O CORTADOR DE JUNCOS LAMINAÇÃO FOSCA

www.estacaoliberdade.com.br

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O CORTADOR DE JUNCOS

JUN’ICHIRO TANIZAKI, nascido em 24 de julho de 1886, viveu e estudou em Tóquio até o terremoto de 1923, quando mudou-se para a região de Kyoto-Osaka, cenário de muitas de suas obras. Mais transgressor do que seus compatriotas de ofício, o universo literário de Tanizaki é centrado na sensualidade e no erotismo, sendo que infidelidade, fetichismo, tendências sádicas e voyeurismo não coíbem os personagens de realizar seus anseios, bem na tradição budista que desconhece a noção de pecado — Tanizaki jamais viajou ao Ocidente e não era influenciado pelo cristianismo e suas normas morais. Foi o primeiro escritor japonês eleito como membro honorário da American Academy of Arts and Letters. Dentre suas principais obras estão Amor insensato [1924], Voragem [1928], Há quem prefira urtigas [1929], As irmãs Makioka [1943], A chave [1956] e Diário de um velho louco [1961]. Faleceu em 30 de julho de 1965.

“Aguentei pacientemente os insultos e

A GATA, UM HOMEM E DUAS MULHERES

Acervo família Gotoda

A gata, um homem e duas mulheres e O cortador de juncos sintetizam ambos com precisão algumas das temáticas que alçaram Jun’ichiro Tanizaki ao rol dos grandes da cena literária japonesa: em comum, personagens desvirtuados, relações amorosas triangulares e casamentos de conveniência.

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O segundo texto que compõe a presente edição, O cortador de juncos — publicado em 1932 —, propõe uma espécie de homenagem ao teatro nô ao estruturar uma “história dentro da história”. Caminhando pelas cercanias do rio Yodo, em Okamoto, um homem cruza por acaso com um desconhecido, com quem trafega em reminiscências. O primeiro conta ao interlocutor a história de seu pai, um homem que, na

A gata, um homem e duas mulheres • O cortador de juncos / Katsushika Hokusai

JUN’ICHIRO TANIZAKI

juventude, viu-se dividido entre duas irmãs — uma história de amor complexa e imprevisível.

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