Alá e as crianças-soldados

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E aí vem de novo Kourouma, com sua sabedoria de ancião da casta dos guerreiroscaçadores, como indica seu nome: “Se os africanos realmente têm o poder que a magia lhes promete, não teriam aceito nem a escravidão, nem a colonização.” E nem, mais recentemente, teriam tolerado essas guerras de desequilibrados empregando crianças-soldados descritas com eficientíssimo sarcasmo por Ahmadou Kourouma. Faforo! Gnamokodê!

Ulf Andersen/Gamma/Keystone

Havia entre os soldados-crianças uma menina-soldado, o nome dela era Sara. Sara era única, ela era única e bela como quatro mulheres juntas e fumava haxixe e mascava maconha por dez. Ela namorava às escondidas Cabeça Queimada, lá em Zorzor, há muito tempo. [...] Ela quis descansar, encostar num tronco para descansar. Cabeça Queimada gostava muito de Sara. Ele não podia abandonar ela assim sem mais nem menos. Mas a gente estava sendo seguido. A gente não podia esperar. Cabeça Queimada quis levantar Sara e obrigar ela a seguir a gente. Ela descarregou sua arma em cima de Cabeça Queimada. Felizmente ela estava maluca e não enxergava mais nada. Tradução de Flávia Nascimento

Alá e as crianças-soldados

Ahmadou Kourouma

novembro de 1927, na Costa do Marfim. Quando estudante, suas atividades políticas resultaram num alistamento forçado no corpo expedicionário francês da Indochina. Após a independência, sua oposição ao regime de partido único de Houphouët-Boigny fez com que ele fosse exilado. Kourouma passou pelo exílio em diversos países: Argélia (1964-1969), Camarões (1974-1984) e Togo (1984-1994). Após estudar matemática em Paris e Lyon, escreve Les Soleils des indépendances (1968), uma impiedosa sátira política, a partir da qual foi reconhecido como um dos escritores mais importantes do continente africano. Publicou ainda En attendant le vote des bêtes sauvages (1998), Monnè, outrages et défis (1990) e Le Diseur de vérité (1974, peça de teatro). Recebeu o Prêmio Renaudot 2000 por este Alá… e o Prêmio Jean Giono pelo conjunto de sua obra.

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Ahmadou Kourouma

Ahmadou Kourouma nasceu em 24 de

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De um lado temos os cacos de um continente em decomposição moral, social e política e, do outro, um acerto de contas de um dos maiores autores da África com a língua do colonizador, “não adaptada para apresentar as realidades africanas”. O resultado nos chega num road book africano de proporções absolutamente farsescas (“Eu aumento a realidade para que ela tome uma dimensão aceitável. O humor permite colocar distância, enfrentar a antropofagia, o modo pelo qual as guerras são praticadas, como as pessoas morrem.” – Magazine littéraire, set. 2000), no qual nenhuma ferida fica intocada, e elas são inúmeras. Alguns exemplos, saídos diretamente da fértil imaginação de Ahmadou Kourouma – mas, como ele mesmo diz, não precisa inventar nada, é só ler os jornais: orfanatos e asilos que freiras amantes dos prazeres da vida defendem metralhadora em punho; sessões de desenfeitiçamento “feitas só com o coronel Papai bonzinho durante horas. Diziam que durante aquelas sessões Papai bonzinho ficava pelado e as mulheres também”; enfim, frentes guerrilheiras putrefatas e bandidos alçados à chefia de Estados sangrados que não passam de quixotescas paródias dos movimentos de libertação africana dos anos 60. Nesse alucinante périplo por vários países da África Ocidental, o pequeno narrador Birahima nos leva, com a importante ajuda de quatro dicionários que lhe servem para readaptar a língua do branco “forjada numa civilização cristã, por espíritos lógicos”, em sua longa busca por uma tia sumida na Libéria de todos os males. Viagem que ele empreende em companhia da obrigatória Kalachnikov e do inseparável Yacuba, o feiticeiro falsificador de dinheiro que sempre achará uma saída salvadora nos momentos de maior perigo. Mas mesmo os feitiços, que na hora da verdade acabam funcionando melhor do que dinheiro – real ou falsificado, mas qual a diferença em países onde tudo é simulacro? – devem estar falhando, para nos vermos frente a tamanha desagregação. (continua)


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