Stendhal nasceu na França em 1783. Acompanhou o exército napoleônico em suas investidas à Itália, Áustria e Rússia. Após obras ensaísticas, entre as quais o relato de viagem Roma, Nápoles e Florença, em 1827 publica seu primeiro romance, Armance. Suas obras de ficção mais conhecidas são O vermelho e o negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839). A complexidade psicológica de seus personagens e suas análises sociais influenciam toda a literatura francesa posterior. O estilo de Stendhal, ao invés do excesso de ornamentos que caracterizava o romantismo, predominante na época, valoriza o perfil psicológico dos personagens, a interpretação de seus atos, sentimentos e paixões.
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mesmo no faubourg Saint-Germain. A senhora de Malivert, que nada desviava de suas inquietações quanto à saúde do filho, nem mesmo seus próprios perigos, aproveitou-se do estado lânguido em que se encontrava para receber, como de hábito, dois célebres médicos. Ela desejava torná-los seus amigos. Como esses senhores eram, um, o chefe, e o outro, um dos mais Inclui carta de Stendhal a Mérimée fervorosos promotores de duas seitas rivais, suas discussões, embora sobre um assunto demasiado triste para aqueles que não são movidos pelo interesse da ciência e do problema a resolver, às vezes divertiam a senhora de Malivert, que conservara um espírito vivo e curioso. Ela os incentivava a falar e, graças a eles, ao menos de tempos em tempos alguém elevava a voz na sala tão nobremente decorada, mas tão sombria, do palacete Malivert. Tapeçarias de veludo verde, ornadas de elementos dourados, pareciam feitas de propósito para absorver toda a luz trazida por duas imensas janelas providas não de vitrais, mas de vidro. Essas janelas davam para um jardim solitário, dividido em compartimentos bizarros por orlas de buxos. Uma alameda de tílias podadas regularmente três vezes ao ano ocupava o fundo, e suas formas imóveis pareciam uma imagem ISBN 85-7448-085-1 viva da vida moral daquela família. O quarto do jovem visconde, situado acima da sala e sacrificado à beleza daquele cômodo essencial, mal tinha a altura de um meio pavimento.
Stendhal
Impressionada com as singularidades que observava em Octave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões. Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um regime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu para a sua velhice a possibilidade do isolamento. Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era rmance agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente.” Tradução e prefácio de Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para Leila Aguiar Costa produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até
Stendhal
Manuel da Costa Pinto
mundo causava-lhe horror; deixou a carruagem da família para seu tio e voltou a pé para casa. Chovia torrencialmente e a chuva dava-lhe prazer. Logo, não mais notou a espécie de tempestade que inundava Paris naquele momento.
Armance
ardor passional que sobrevive a uma sociedade de nobres decadentes e banqueiros, um mundo regido por contratos matrimoniais, em que o casamento poderia pacificar o tumulto do coração. Nesse sentido, Armance é um livro que mergulha como nenhum outro nas sutilezas do jogo amoroso, antecipando aquele culto à energia individual que, em seus romances posteriores, Stendhal irá contrapor ao desencantamento do mundo burguês.
Octave fugiu do salão da senhora de Bonnivet, o
8/12/2003, 19:57
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Armance é, cronologicamente, o primeiro dos grandes romances de Stendhal. Quando comparado a obras-primas como O vermelho e o negro e A cartuxa de Parma, porém, este romance de 1827 é considerado ambíguo — e isso por uma razão muito simples: toda a trama é articulada ao redor de um segredo sobre a vida do protagonista que nunca é revelado, o que tornaria obscuras as motivações deste livro sobre o amor idealizado e a renúncia ao casamento. A chave para se entender a trama estaria numa carta de Stendhal a Mérimée (publicada na presente edição), na qual ele explicita o motivo que impede a consumação do amor entre o visconde Octave de Malivert e sua prima, Armance de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo, ou seja, impotência sexual. De fato, um romance diante do qual o leitor depende de informações extraliterárias para captar o sentido da narrativa poderia ser considerado imperfeito. Mas isso só é verdade se confundirmos a intenção inicial de Henri Beyle (verdadeiro nome do escritor) com a realização de Stendhal (nome pelo qual ficou conhecido). A julgar pelo tom lúbrico que permeava sua correspondência com Mérimée, ele queria escrever um romance que satirizasse o ideal do amor romântico. O resultado, porém, é bem diferente: como a suposta anomalia permanece oculta, toda a torturante aproximação dos dois amantes se dá sob o signo do desafio a preconceitos sociais, políticos e econômicos. Stendhal faz da misantropia de Octave e da integridade de Armance a metonímia de um