Canadá - Richard Ford

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RichaRd FoRd

Canada

Tradução

Mauro Pinheiro



Canadรก



Canada Richard Ford

Tradução

Mauro Pinheiro


Título original: Canada © Richard Ford, 2012 © Editora Estação Liberdade, 2015, para esta tradução

Preparação Revisão Assistência editorial Editor assistente Editor de arte Imagem de capa Editores

Silvia Massimini Felix Vivian Miwa Matsushita Capucine Boutte Fábio Fujita Miguel Simon ImagineGolf/iStock by Getty Images Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F794c Ford, Richard, 1944 Canadá / Richard Ford; tradução Mauro Pinheiro. - 1. ed. - São Paulo : Estação Liberdade, 2015. 456 p. ; 23 cm.

Tradução de: Canada ISBN 978-85-7448-248-4

1. Romance americano. I. Pinheiro, Mauro. II. Título.

15-21289 CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3 25/03/2015 30/03/2015

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.

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Kristina



Canadá é uma obra da imaginação. Todos os personagens e eventos são fictícios. Não se pretende nenhuma semelhança com pessoas reais. Tomei certas liberdades com a paisagem urbana de Great Falls, Montana, assim como ocorreu com a paisagem rural da pradaria e alguns detalhes de cidades pequenas no sudoeste da província de Saskatchewan. A rodovia 32, por exemplo, não estava pavimentada em 1960, embora eu a tenha descrito como asfaltada. Fora isso, todos os erros e omissões explícitos são de minha responsabilidade. RF



Primeira parte



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ara começar, vou contar o assalto que meus pais cometeram. Em seguida, os assassinatos que aconteceram mais tarde. O assalto é a parte mais importante, já que serviu para mudar o rumo da minha vida e o da minha irmã. Nada faria sentido, se eu não contasse desde o início. Nossos pais eram as últimas pessoas no mundo capazes de roubar um banco. Eles não eram criaturas estranhas, não eram criminosos óbvios. Ninguém teria pensado que estavam destinados a acabar do jeito que acabaram. Eram apenas pessoas comuns — embora, é claro, esse tipo de reflexão tenha se tornado nulo e vazio no momento em que eles realmente roubaram um banco. Meu pai, Bev Parsons, um garoto do interior nascido em Marengo, no Alabama, em 1923, completou o ensino médio em 1939, ansioso por ingressar na Unidade Aérea do Exército, que se tornou mais tarde a Força Aérea. Ele foi para Demopolis, estudou na Base Aérea de Randolph, perto de San Antonio, sonhando em se tornar um piloto de caça, mas lhe faltava aptidão, então, em vez disso, tornou-se tripulante de bombardeiros. Ele voava em aviões B-25, os Mitchells de peso médio-leve, que operavam nas Filipinas e, mais tarde, em Osaka, onde despejaram a destruição sobre a terra — eliminando tanto inimigos quanto inocentes. Ele era um homem alto, sedutor e sorridente, com quase um metro e noventa de altura (mal cabia dentro do compartimento do bombardeiro), com um rosto grande e retangular, ossos maxilares proeminentes, lábios fartos 13


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e sensuais, e belos cílios femininos. Seus dentes brancos brilhavam e ele se orgulhava do cabelo preto e curto — assim como do seu nome. Bev. Capitão Bev Parsons. Ele nunca admitiu que, na cabeça da maioria das pessoas, Beverly pudesse ser nome de mulher. Suas raízes eram anglo-saxônicas, dizia ele. “É um nome comum na Inglaterra. Lá, Vivian, Gwen e Shirley são nomes de homem. Ninguém os confunde com nomes de mulheres.” Ele falava sem parar, tinha a mente aberta para um homem do sul do país, e seus modos elegantes e gentis deveriam tê-lo levado longe na Força Aérea, mas não o levaram. Seus olhos castanhos e inquietos vasculhavam qualquer ambiente onde ele se encontrasse para achar alguém que lhe desse atenção — normalmente, minha irmã e eu. Ele contava piadas de mau gosto num estilo sulista teatral, sabia fazer passes de mágica e truques com o baralho, remover o polegar da mão e botá-lo no lugar, fazer sumir um lenço e depois trazê-lo de volta. Tocava boogie-woogie no piano e, às vezes, falava com a gente com um forte sotaque do sul; outras vezes, como os brancos que se passavam por negros nos programas de rádio. A aviação o fizera perder parcialmente a audição, e este era um assunto delicado para ele. Mas sua aparência era apurada, com o cabelo bem aparado de soldado “honesto” e a túnica azul de capitão; em geral, ele transmitia uma simpatia autêntica, o que nos fazia, minha irmã gêmea e eu, adorá-lo. É provável que tenha sido isso também que levou minha mãe a se sentir atraída por ele (embora não pudesse haver pessoas mais incompatíveis e distintas) e, infelizmente, ela acabou grávida após uma única relação apressada, depois de se conhecerem numa festa em homenagem aos soldados da Força Aérea que voltavam para casa, perto de onde ele fazia uma reciclagem como oficial de intendência, em Fort Lewis, no mês de março de 1945 — quando já não precisavam mais de soldados para lançar bombas. Eles se casaram assim que descobriram. Os pais dela, que moravam em Tacoma e eram imigrantes judeus da Polônia, não aprovaram. Eles tinham sido eméritos professores de matemática e músicos semiprofissionais, tendo dado uma série de concertos populares na cidade de Poznan, de onde escaparam em 1918, vindo para Washington através do Canadá e tornando-se por acaso zeladores 14


primeira parte

numa escola. O fato de serem judeus não significava muito para eles, na época, ou pelo menos para a nossa mãe — era apenas uma velha con­ cepção da vida, severa e estreita, algo que podia ser tranquilamente esquecido, num país onde, ao que parecia, não havia judeus. Mas daí a deixar a única filha se casar com o filho único de negociantes de madeira irlando-escoceses do cafundó do Alabama, isso nem pensar, e logo eles tiraram o assunto da cabeça. Ainda que, vendo de longe, possa parecer que o problema era só o fato de nossos pais não terem sido feitos um para o outro, a verdade é que, quando mamãe se casou com papai, uma grande perda se anunciou para ela, e sua vida mudou para sempre — e não de um modo favorável, como decerto ela devia esperar. Minha mãe, Neeva Kamper (diminutivo de Geneva), era uma mulher pequena, intensa, usava óculos e seus cabelos castanhos indisciplinados disseminavam vestígios de penugem como uma costeleta ao longo da orelha. Suas sobrancelhas espessas realçavam a testa franzina e reluzente, sob a qual as veias eram visíveis, e sua compleição pálida de quem nunca saía de casa lhe dava uma aparência frágil — algo que ela não era. Brincando, meu pai dizia que as pessoas do lugar de onde ele vinha, no Alabama, chamavam aquele tipo de cabelos de “cabelo de judeu” ou “cabelo de imigrante”, mas ele gostava das melenas e a amava. (Ela nunca demonstrou dar grande importância a esses comentários.) Suas mãos eram pequenas e delicadas, as unhas tratadas e brilhantes, um motivo de orgulho para ela, bastava ver como gesticulava o tempo todo. Era uma pessoa cética e escutava quando lhe falavam. Às vezes, sua sagacidade podia se revelar mordaz. Seus óculos não tinham armação, ela lia poesia francesa e utilizava com frequência termos como cauchemar ou trou de cul, que minha irmã e eu não compreendíamos. Ela escrevia poemas com uma tinta marrom comprada por correspondência, compunha um diário que não tínhamos permissão de ler e, em geral, mantinha o nariz ligeiramente empinado, numa estigmatizada expressão de perplexidade — que se tornou uma característica dela, a menos que tenha sido sempre assim. Antes de se casar com meu pai e dar à luz minha irmã e eu, ela se formara com 15


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dezoito anos no Whitman College, em Walla Walla, trabalhara numa livraria, possivelmente considerando a si mesma como uma boêmia e poe­ta, e tinha esperado algum dia arrumar um cargo no magistério numa pequena faculdade, e se casar com alguém diferente da pessoa com quem acabou casando — talvez um professor universitário, que lhe daria a vida à qual se acreditava destinada. Ela tinha apenas trinta e quatro anos em 1960, o ano em que esses eventos aconteceram. Mas já havia “rugas de seriedade” ao lado do seu nariz, pequenas e rosadas nas extremidades, e seus olhos cinza, grandes e penetrantes tinham pálpebras sombrias que lhe conferiam um ar incomum, um pouco triste e desgostoso — o que lhe era fiel. Seu pescoço era fino e gracioso e seu sorriso, sempre repentino e inesperado, revelava os dentes pequenos numa boca infantil que tinha a forma de um coração, embora raras vezes sorrisse assim — exceto para mim e minha irmã. Nós percebíamos que ela era uma mulher de aparência incomum, em geral vestida com calça verde-oliva, blusas de mangas largas e sapatos feitos de lona de cânhamo, que devia encomendar da Costa Oeste — já que não se vendiam coisas assim em Great Falls. E ela ficava parecendo ainda mais singular quando estava ao lado do nosso pai, um homem bonito, alto e extrovertido. Apesar disso, era muito raro que saíssemos em família ou frequentássemos restaurantes, de modo que não fazíamos uma ideia clara da impressão que eles causavam ao mundo, entre pessoas desconhecidas. Para nós, na nossa casa, a vida parecia normal. Era fácil para mim e para a minha irmã entendermos o que a levara a se sentir atraída por Bev Parsons: um homem grande, ombros largos, conversador, engraçado, sempre disposto a agradar todo mundo. Mas nunca ficou muito óbvio para nós o que o levara a se interessar por ela — baixa (menos de um metro e sessenta), introvertida, tímida, alheia, artística, bonita só quando sorria e espirituosa só quando se sentia completamente à vontade. De algum modo, ele deve ter apreciado isso tudo, pressentido que ela era uma pessoa mais refinada, mas que ele era capaz de agradá-la, e isso bastava para deixá-lo feliz. Acrescentava-se a seu favor o fato de enxergar além das diferenças físicas, concentrando-se nos 16


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sentimentos das pessoas, algo que eu admirava, muito embora minha mãe não parecesse notar. Ainda assim, a união inabitual dos seus atributos físicos díspares sempre me vem à cabeça como uma das razões pelas quais eles acabaram se dando tão mal: sem dúvida, os dois simplesmente não tinham sido feitos um para o outro, e nunca deveriam ter se casado e feito nada disso, deveriam ter seguido cada qual seu caminho, depois do primeiro encontro apaixonado, independentemente do resultado. Quanto mais tempo eles ficavam juntos e quanto melhor se conheciam, mais ela percebia seu engano, e mais suas vidas se desencaminhavam — como uma longa demonstração matemática atestando que os cálculos iniciais estavam errados, a partir do que todos os demais cálculos só se afastavam ainda mais de qualquer coerência. Um sociólogo daquela época — início dos anos 1960 — diria que nossos pais estavam na vanguarda de um momento histórico, encontravam-se entre os primeiros a transgredir os obstáculos da sociedade, entregando-se à rebelião, acreditando em credos que exigiam ratificação através da autodestruição. Mas não era nada disso. Eles não eram pessoas imprudentes na vanguarda de coisa alguma. Eles eram, conforme eu disse, pessoas comuns surpreendidas pelas circunstâncias e seus instintos equivocados, sem falar na falta de sorte, capazes de se aventurar além dos limites que consideravam legítimos, e por isso acabaram se encontrando numa situação da qual não havia volta. Mas há algo que posso dizer sobre meu pai: quando ele voltou da guerra e deixou de ser um agente da morte despejando bombas do céu — isso foi em 1945, o ano em que minha irmã e eu nascemos, em Michigan, na Base de Wurtsmith, em Oscoda —, ele se tornou vítima de uma seriedade imprecisa e grave, assim como muitos outros soldados. Ele passou o resto da vida lutando contra esse sentimento, esforçando-se para se manter otimista e à tona, tomando decisões erradas que pareciam ser as certas por um momento, mas basicamente sem entender o mundo que encontrara ao voltar para casa, e esse desentendimento se tornou sua vida. Deve ter acontecido o mesmo com milhões de outros rapazes, embora pessoalmente ele ignorasse o fato e jamais pudesse admiti-lo como sendo verdade. 17


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ossa família foi parar em Great Falls, Montana, em 1956, assim como muitas famílias de militares que se deslocaram depois da guerra. Tínhamos morado em bases aéreas no Mississipi, na Califórnia e no Texas. Nossa mãe já estava formada e trabalhou como professora substituta em todos esses lugares. Nosso pai não tinha sido chamado para lutar na Coreia, mas lhe atribuíram um cargo administrativo, na intendência de abastecimento. Haviam lhe permitido permanecer ali porque ele ganhara medalhas de combate, mas nunca foi promovido além de capitão. E a certa altura — quando estávamos em Great Falls e ele com trinta e sete anos — resolveu que a Força Aérea não lhe oferecia mais um futuro promissor e, tendo se dedicado a ela por vinte anos, era hora de dar baixa e receber sua pensão. Ele sentira a falta de interesse social da nossa mãe, e sua relutância em convidar alguém da base aérea para jantar em casa devia ter alguma coisa a ver com isso — talvez ele tivesse razão. Na verdade, acho que se houvesse alguém que nossa mãe admirasse, ela poderia ter apreciado a ideia. Mas ela nunca achou que poderia haver. “Nesta terra só tem vacas e plantações de trigo”, dizia ela. “Não existe uma sociedade realmente organizada aqui.” De qualquer forma, acho que nosso pai se cansara da Força Aérea e, além disso, ele gostava de Great Falls e achava que poderia prosperar naquele lugar — mesmo sem uma vida social. Ele dizia que estava pensando em se filiar à maçonaria. Estávamos então na primavera de 1960. Minha irmã Berner e eu tínhamos quinze anos e estudávamos na Lewis Junior High (em homenagem a Meriwether Lewis), que ficava perto o suficiente do rio Missouri 18


primeira parte

para que eu pudesse ver das janelas mais altas da escola a superfície cintilante das águas e os patos e pássaros que se reuniam ali, e também dava para ver ao longe a estação ferroviária Chicago, Milwaukee and St. Paul, onde os trens de passageiro não paravam mais e, lá longe, o Municipal Airport, em Gore Hill, onde havia dois voos diários, e rio abaixo, as chaminés da fundição e a refinaria de petróleo, antes das cascatas que davam seu nome à cidade. Em dias mais claros, eu podia ver os cumes nublados e nevados da face oriental das montanhas, a cem quilômetros dali, estendendo-se ao sul na direção de Idaho e ao norte até o Canadá. Minha irmã e eu não tínhamos a menor ideia de como era o “Oeste”, exceto pelo que víamos na televisão; aliás, não fazíamos a menor ideia de como era a América, embora tivéssemos certeza de que se tratava do melhor lugar do mundo. Nossa verdadeira vida era a família, e fazíamos parte da bagagem. E por causa da alienação crescente da minha mãe, da sua reclusão, seu senso de superioridade e seu desejo de que Berner e eu não assimilássemos aquela “mentalidade provinciana”, que ela acusava de sufocar a vida em Great Falls, não vivíamos como a maioria das crianças, o que envolvia visitar os amigos, distribuir jornais, tornar-se escoteiros ou ir aos bailes. Minha mãe pressentia que, se nos integrássemos, aquilo só aumentaria as chances de acabarmos ali mesmo, onde estávamos. Era verdade também que, com nosso pai na base — não importa onde morássemos —, sempre tínhamos poucos amigos e raramente conhecíamos nossos vizinhos. Fazíamos tudo na base — consultas médicas, dentista, cortávamos os cabelos e comprávamos mantimentos. As pessoas sabiam disso. Sabiam que você não ficaria muito tempo por lá, para que então se dar ao trabalho de conhecê-lo? A base carregava um estigma, como se as coisas que aconteciam lá dentro fossem algo de que as pessoas respeitáveis não precisavam saber ou tomar parte — além do mais, minha mãe era judia, tinha uma aparência de imigrante e era, de certa forma, uma boêmia. Costumávamos conversar sobre isso, como se defender a América dos seus inimigos não fosse algo decente. Assim mesmo, pelo menos no início, eu gostava de Great Falls. Chamavam-na de “Cidade Elétrica” por conta da energia produzida pela 19


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catarata. Parecia uma cidade áspera, honrada e remota — ainda que fizesse parte do país sem limite no qual já vivíamos. Eu não gostava muito que as ruas da cidade só tivessem números, no lugar de nomes. Aquilo era confuso, dizia minha mãe, e significava que a cidade havia sido erguida por banqueiros mesquinhos. E, é claro, os invernos eram gelados e longos, e o vento soprava do norte com violência, como um trem desgovernado, e a escuridão desmoralizava todo mundo, até mesmo os espíritos mais otimistas. A verdade, contudo, era que Berner e eu quase nunca pensávamos de onde vínhamos. Cada vez que minha família se mudava para um novo lugar — qualquer um dos vários onde moramos — e se instalava numa casa alugada, nosso pai vestia seu uniforme azul bem engomado e ia trabalhar em alguma base aérea, minha mãe começava a ensinar numa escola, e Berner e eu tentávamos combinar sobre o lugar de onde tínhamos vindo, no caso de alguém nos perguntar. Treinávamos dizendo essas palavras um para o outro diariamente a caminho da nossa nova escola, onde quer que ela fosse. “Oi. Nós somos de Biloxi, Mississippi.” “Oi, eu venho de Oscoda. Fica lá em Michigan.” “Oi. Eu moro em Victorville.” Eu tentava aprender o básico que os outros garotos sabiam e falar do jeito que falavam, usando as mesmas gírias e andando como se estivesse seguro por estar ali e nada pudesse me surpreender. Berner fazia o mesmo. E então, nos mudávamos para outro lugar qualquer. E Berner e eu tentávamos nos adaptar mais uma vez. Crescer dessa maneira, eu sei, pode deixá-lo se sentindo banido ou à deriva, ou também pode encorajar as pessoas a ser maleáveis, aptas a se ajustarem — algo que minha mãe desaprovava, visto que ela não o fazia, guardando para si alguma noção de um futuro diferente, mais parecido com aquele que imaginara antes de encontrar nosso pai. Nós — minha irmã e eu — éramos atores secundários num drama que ela via se prolongar de modo implacável. Em consequência disso, o que passou a me importar sobremaneira foi a escola, que era uma linha contínua e paralela à da minha família. Eu queria que nunca tivéssemos férias. Passava a maior parte do tempo na escola, ruminando sobre os livros que nos davam a ler, conversando 20


primeira parte

com os professores, respirando os odores da escola, que são os mesmos em todos os lugares e ainda assim únicos. Conhecer as coisas se tornou importante para mim, não importava o que fossem. Nossa mãe conhecia muitas coisas e apreciava seu valor. Nesse aspecto, eu queria ser como ela, já que poderia guardar comigo as coisas que conhecia e elas me tornariam alguém culto e promissor — características que eram importantes para mim. Pouco importava que eu não viesse de nenhum desses lugares, eu vinha da escola. Eu era bom em inglês, história, ciências e matemática — matérias nas quais minha mãe também era muito boa. Todas as vezes que fazíamos as malas e nos mudávamos, a única preocupação que tornava essas mudanças assustadoras era que, por alguma razão, não viessem a me permitir voltar à escola, fazendo com que eu deixasse de aprender algo crucial que poderia garantir meu futuro e não estava disponível em nenhum outro lugar. Ou então que fôssemos morar onde não houvesse escola nenhuma para mim. (A ilha de Guam chegou a ser debatida certa vez.) Eu temia acabar não conhecendo nada, não dispondo de nada confiável que pudesse me distinguir. Tenho certeza de que eu havia herdado da minha mãe essas impressões de uma vida sem recompensas. Embora também pudesse se dever ao fato de nossos pais, tragados pelo redemoinho da juventude — não tendo sido feitos um para o outro, exceto o desejo físico que os atraíra por breves instantes, tivessem se tornado pouco a pouco satélites um do outro, chegando por fim a experimentar um ressentimento mútuo sem de fato se darem conta disso —, não nos tivessem oferecido algo em que pudéssemos nos apoiar, o que os pais supostamente deviam fazer. De qualquer maneira, culpar seus pais pelas dificuldades da sua vida não leva a lugar algum.

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uando nosso pai saiu da Força Aérea, no início da primavera, estávamos todos interessados na campanha presidencial em curso. Eles concordavam quanto aos democratas e Kennedy, que logo seria eleito. Minha mãe dizia que meu pai gostava de Kennedy porque se imaginava parecido com ele. Meu pai detestava Eisenhower por ter sacrificado os bombardeiros americanos para “fragilizar os fritz” no Dia D, e também pelo silêncio traidor de Eisenhower em relação a MacArthur, que meu pai reverenciava, e porque todo mundo sabia que sua mulher era entornava em série. Ele tampouco gostava de Nixon. Tratava-se de um “rabugento”, “pinta de italiano” e um “quaker bélico”, o que fazia dele um hipócrita. Também não gostava da onu, que considerava muito dispendiosa e permitia que comunistas como Castro (a quem chamava de “ator de dois vinténs”) dessem suas opiniões sobre o mundo. Havia uma fotografia emoldurada de Franklin Roosevelt pendurada na nossa sala de estar, acima do piano Kimball e do metrônomo de bronze e mogno que não funcionava, mas que fazia parte dos objetos que encontramos na casa. Ele idolatrava Roosevelt por não se deixar vencer pela poliomielite, por se matar trabalhando pelo país, por ter retirado as áreas remotas do Alabama do obscurantismo com o programa de eletrificação rural e por suportar a senhora Roosevelt, a quem chamava de “A Primeira Muquirana”. Meu pai sustentava sérias ambivalências em relação às suas origens no Alabama. Por um lado, ele se considerava um “homem moderno” e não um “matuto”, como dizia. Ele tinha opiniões modernas sobre muitas 22


primeira parte

coisas — tais como raça, por ter trabalhado com negros na Força Aérea. Ele achava que Martin Luther King era um homem de princípios e a lei dos direitos civis de Eisenhower era extremamente necessária. Pensava que os direitos das mulheres precisavam ser tratados de forma mais justa, e que a guerra era uma tragédia e um desperdício que ele conhecera no íntimo. Por outro lado, quando minha mãe dizia algo com desdém em relação ao Sul do país — o que fazia com frequência —, ele ficava meditativo e afirmava que os confederados Lee e Jeff Davis eram “homens de substância”, ainda que desvirtuados pela própria causa. Muitas coisas boas tinham vindo do Sul, dizia ele, e muito mais que o descaroçador de algodão e os esquis aquáticos. “Talvez você possa me citar uma delas”, argumentava minha mãe, “excluindo você mesmo, é claro.” Assim que deixou de vestir seu uniforme azul e trabalhar na base, meu pai achou um emprego de vendedor de veículos Oldsmobile novos. Ele achava que seria naturalmente um bom vendedor. Sua personalidade cordial — alegre, afável, simpática, confiante, sua fluência verbal — atrairia as pessoas e ele lidaria com facilidade com algo que outras pessoas consideravam difícil. Os clientes confiariam nele porque era um homem do Sul, e os sulistas eram conhecidos por serem mais práticos que os homens do Oeste, que eram mais lacônicos. O dinheiro começaria a entrar assim que acabassem as vendas do modelo do ano e os grandes descontos das promoções estimulassem os negócios. Como veí­ culo de função, deram-lhe um Oldsmobile Super-88 cinza e rosa para usar como demonstração, e que ficava estacionado em frente da nossa casa na First Avenue sw, uma boa forma de publicidade. Ele nos levou a passeio em Fairfield, na direção das montanhas, ao leste, a caminho de Lewiston, e no sul, perto de Helena. “Verificações de desempenho e capacidade orientacional”, era como ele chamava esses passeios de um dia — embora conhecesse pouco a região em qualquer direção e, na verdade, muito menos a mecânica dos carros, exceto o suficiente para dirigi-los, algo que adorava fazer. Ele sentia que seria fácil para um oficial da Força Aérea conseguir um bom emprego e que deveria ter dado baixa quando a guerra acabou. Agora, ele estaria numa situação bem melhor. 23


Para começar, vou contar o assalto que meus pais cometeram. Em seguida, os assassinatos que aconteceram mais tarde.

século XXI. “Um dos primeiros grandes romances doJohn ” Banville, Guardian melhor Richard Ford em seu extraordinário romance Canadá “(...),O num nível de maestria linguística rivalizado por poucos, se houver, nas letras americanas de hoje. ” André Dubus III, The New York Times

A sabedoria que ele [Ford] oferece ao longo destas páginas pode ser ouvida no silêncio abafado que percorre esta história angustiante.

Ron Charles, The Washington Post

deixar o queixo caído... um grande jorro sobre o isolamento “e aDeviolência na alma da experiência norte-americana. ” Douglas Kennedy, The Independent Evoca uma solidão especificamente americana, a “transitoriedade, o desenraizamento e os espaços vazios, de que

Ford — filho de um vendedor que gastou parte de sua juventude em um hotel do Arkansas — se apropriou... Em quase toda página há algo de hipnótico, marcante ou sábio.

London Review of Books

Digno, adornado de graça e meticulosamente discreto. Majestoso novo romance.

The Globe and Mail

ISBN 978-85-7448-248-4

9 788574 482484


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