Contos da palma da mão - Yasunari Kawabata

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Kawabata estudou literatura na Universidade Imperial de Tóquio e foi um dos fundadores da Bungei Jidai, revista literária influenciada pelo movimento modernista ocidental. Acompanhado de jovens escritores, defenderia mais tarde os ideais da corrente neo-sensorialista (shinkankakuha), que visava uma revolução nas letras japonesas e uma nova estética literária, deixando de lado o realismo em voga no Japão em prol de uma escrita lírica, impressionista, atravessada por imagens nada convencionais. Ao contrastar o ritmo harmônico da natureza e o turbilhão da avalanche sensorial, Kawabata forjou insólitas associações e metáforas táteis, visuais e auditivas que surpreendem por revelar os processos de fragilização do ser humano diante do cotidiano, numa composição surrealista de elementos da cultura e filosofia orientais, personagens acuados e cenários inóspitos. Sua obsessão pelo mundo feminino, sexualidade humana e o tema da morte (presente em sua vida desde cedo, sob a forma da perda sucessiva de todos os seus familiares) renderam-lhe antológicas descrições de encontros sensuais, com toques de fantasia, rememoração, inefabilidade do desejo e tragédia pessoal. Desgastado por excesso de compromissos, doente e deprimido, Kawabata suicidou-se em 1972.

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Yasunari Kawabata Ela, que vivera

sempre perseguindo amores intensos, mesmo agora que estava enferma, não conseguia conciliar o sono sossegado sem sentir, no seu pescoço ou no peito, o braço de um homem. Entretanto, quando seu estado se agravou, ela implorava: — Segure meus pés! Não posso suportá-los tão tristes.

Tradução de Meiko Shimon

ISBN 978-85-7448-137-1

9 788574 481159

contos da palma da mão

Yousuf Karsh / National Gallery of Australia

Prêmio Nobel de 1968, Yasunari Kawabata é considerado um dos representantes máximos da literatura japonesa do século XX. Nascido em Osaka em 1899, após uma infância solitária e sofrida, interessou-se cedo pelos clássicos japoneses, que viriam a ser uma de suas grandes inspirações.

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Yasunari Kawabata

CONTOS DA PALMA DA MÃO

narrativa curta — ou mesmo brevíssima — de Yasunari Kawabata já se consolidou como um clássico do gênero. O autor de A casa das belas adormecidas, Mil tsurus e O país das neves atinge nestes Contos da palma da mão, pelos quais tinha expressa predileção, um grau de virtuosismo por muitos aclamado. Para tanto desenvolveu técnica própria, ampliando com precisão microscópica o tradicional pendor japonês por pureza e delicadeza. À sua leitura, abate-se sobre nós, discreta e súbita como uma brisa outonal, uma ferina desintegração do “eu”, mitigada por um distanciamento apenas aparente. Isso passou a levar um nome, shinkankakuha ou neo-sensorialismo, e Kawabata esteve à frente desse movimento de renovação literária que ocorreu no Japão nos anos 20 e 30 do século XX. Sobressai, na confluência de forma e conteúdo, um despojamento minimalista que deixa nus e crus sentimentos e sensações, convergindo ora para toques de surrealismo, ora para leituras do subconsciente à maneira psicanalítica. Entre muitos outros temas, especialmente prazerosos são os que põem em cena o bairro de Asakusa em Tóquio, com seu amálgama de teatros, cabarés musicais (com grande presença tanto do jazz quanto de formas teatrais japonesas clássicas) e casas de deleites carnais. Esse exercício de economia literária torna o trabalho de tradução bastante árduo, pois há a constante tentação de parafrasear algo aqui e ali, o que seria trair Kawabata logo de saída. A tradutora Meiko Shimon, que se especializou na obra do autor e se dedicou longamente ao estudo destes contos, manteve aqui uma criteriosa fidelidade ao mestre japonês. Quando necessário, foram inseridas notas, que um glossário complementa. A atual seleção abrange 122 contos, que Kawabata considerava, nos seus anos tardios, seus “contos que cabem na palma da mão”, e dos quais dizia com a candura que era de seu feitio: “entre eles há algumas peças não muito razoavelmente fabricadas, mas há algumas boas, que jorraram de minha pluma naturalmente, de seu próprio aval. [...] Vive neles o espírito poético de meus dias jovens.”

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tradução do japonês, glossário e notas

Meiko Shimon

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Copyright © herdeiros de Yasunari Kawabata, 1971 © Editora Estação Liberdade, 2007, para esta tradução Título original: Tenohira no shosetsu Preparação de texto Antonio Carlos Soares Revisão Estação Liberdade Composição Johannes Christian Bergmann / Estação Liberdade Ideogramas à p. 7 Hideo Hatanaka, título da obra em japonês Capa Obra de Midori Hatanaka para esta edição, acrílico s/ folha de ouro Editores-adjuntos Heitor Ferraz e Isabella Marcatti Editores Angel Bojadsen / Edilberto F. Verza CIP-BRASIL – CATALOGAÇÃO NA FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ K32c Kawabata, Yasunari, 1899-1972 Contos da palma da mão / Yasunari Kawabata ; tradução do japonês Meiko Shimon. – São Paulo : Estação Liberdade, 2008 496 p. Tradução de: Tenohira no shosetsu Contém glossário ISBN 978-85-7448-137-1 1. Conto japonês. I. Shimon, Meiko, 1940-. II. Título. 08-0397.

CDD 895.63 CDU 821.521-3

a edição desta obra contou com subsídios dos programas de apoio à tradução e à publicação da fundação japão

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br

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Sumário

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Nota da tradutora

17 23 29 32 34 36 39 44 47 49 51 53 54 56 59 61 64 66 68 70 74 77 83 87

Recolhendo ossos (Kotsu hiroi, 1949) Brincando na carroça (Otoko to on’na to niguruma, 1923) Um lugar ensolarado (Hinata, 1923) Frágil recipiente (Yowaki utsuwa, 1924) A mulher a caminho do fogo (Hi ni yuku kanojo, 1924) O serrote e o parto (Nokogiri to shussan, 1924) O gafanhoto e o suzumushi (Batta to suzumushi, 1924) O relógio (Tokei, 1924) O anel (Yubiwa, 1924) O cabelo (Kami, 1924) Os canários (Kanariya, 1924) O porto (Minato, 1924) A fotografia (Shashin, 1924) A flor branca (Shiroi hana, 1924) Os inimigos (Teki, 1924) A lua (Tsuki, 1924) O pôr-do-sol (Rakujitsu, 1925) O incidente com o rosto da morta (Shinigao no dekigoto, 1925) A castidade sob o telhado (Yane no shita no teisô, 1925) Os passos do ser humano (Ningen no ashioto, 1925) O mar (Umi, 1925) Vinte anos (Nijûmen, 1925) O vidro (Garasu, 1925) A estátua de Oshin Jizô (Oshin Jizô, 1925) 9

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A rocha-escorrega (Suberi-iwa, 1925) Obrigado (Arigatô, 1925) Viva! (Banzai, 1925) A ladra de frutinhas silvestres (Gumi nusubito, 1925) A mesa de bilhar (Tamadai, 1925) Sapatinhos de verão (Natsu no kutsu, 1926) A mãe (Haha, 1926) Por intermédio dos pardais (Suzume no baishaku, 1926) O ponto de vista do filho (Ko no tachiba, 1926) Pacto de morte (Shinjû, 1926) A princesa do Palácio do Mar (Ryûgû no Otohime, 1926) A oração das virgens (Shojo no inori, 1926) O inverno se aproxima (Fuyu chikashi, 1926) O carro funerário (Reikyûsha, 1926) A felicidade de alguém (Hitori no shiawase, 1926) Deus existe (Kami imasu, 1926) O caso do chapéu (Bôshi jiken, 1926) De mãos postas para orar (Gasshô, 1926) Os peixinhos dourados do terraço (Okujô no kingyo, 1926) O caminho de dinheiro (Kinsen no michi, 1930) Cortando as unhas pela manhã (Asa no tsume, 1926) A mulher (On’na, 1927) Amor terrível (Osoroshii ai, 1927) A história da aldeia (Rekishi, 1927) A bela amazona (Babijin, 1927) O lírio (Yuri, 1927) Maldições da minha primeira obra (Shojosaku no tatari, 1927) A jovem de Suruga (Suruga no reijô, 1927) Ossos de Deus (Kami no hone, 1927) Os sorrisos na banca noturna (Yomise no bishô, 1927) A senhora detetive (Fujin no tantei, 1928) Queima das decorações do Ano Novo (Kadomatsu o taku, 1928) O cego e a menina (Mekura to shôjo, 1928) Oração em língua materna (Bokokugo no kitô, 1928)

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A terra natal (Kokyô, 1928) O olho da mãe (Haha no me, 1928) A sala de espera da terceira classe (Santô machiaishitsu, 1928) A criança que bate (Tataku ko, 1928) Trovoadas do outono (Aki no kaminari, 1928) O lar (Katei, 1928) A estação numa tarde de chuva de outono (Shigure no eki, 1928) A amante dos pobretões (Hinja no koibito, 1927) O homem que não ri (Warawanu otoko, 1928) Descendentes de samurai (Shizoku, 1929) Na casa de penhores (Shichiya nite, 1929) Peônia negra (Kurobotan, 1929) Anna, a japonesa (Nihonjin Anna, 1929) Tornou-se buda na latrina (Setchin jôbutsu, 1929) O filho do divórcio (Rikon no ko, 1929) Mistérios do microscópio (Kenbikyô kaidan, 1929) Episódios de dançarinas em viagem (Odoriko tabifûzoku, 1929) O telescópio e o telefone (Bôenkyô to denwa, 1930) O galo e a bailarina (Niwatori to odoriko, 1930) Anjos maquiados (Keshô no tensi-tachi, 1930) Pó-de-arroz e gasolina (Oshiroi to gasorin, 1930) O marido amarrado (Shibarareta otto, 1930) Os sapatos de dança (Buyogutsu, 1931) Os seios no camarim (Gakuya no chibusa, 1931) Hábito de dormir (Nemuriguse, 1932) O guarda-chuva (Amagasa, 1932) A briga (Kenka, 1932) O rosto (Kao, 1932) Maquiagem (Keshô, 1932) Os quimonos da irmã (Imôto no kimono, 1932) A máscara mortuária (Desu masuku, 1932) A noite de apresentação de dança (Buyôkai no yoru, 1932) Começando pelas sobrancelhas (Mayu kara, 1932) As flores de glicínia e morangos (Fuji no hana to ichigo, 1933) 11

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A esposa da brisa outonal (Akikaze no nyôbô, 1933) O tranqüilo parto da cadelinha (Aiken anzan, 1935) A romã (Zakuro, 1943) Dezesseis anos (Junanasai, 1944) Alga-marinha wakame (Wakame, 1944) Os retalhos (Kogire, 1944) A casa natal (Sato, 1944) Água (Mizu, 1944) A moeda de prata de cinqüenta sens (Gojissen ginka, 1946) Sazanka (Sazanka, 1946) Kôbai (Kôbai, 1948) Tabi (Tabi, 1948) O gaio (Kakesu, 1949) O verão e o inverno (Natsu to fuyu, 1949) Barquinhos de folha de bambu (Sasabune, 1950) Ovos (Tamago, 1950) A cascata (Taki, 1950) Serpentes (Hebi, 1950) A chuva de outono (Aki no ame, 1962) A carta (Tegami, 1962) Os vizinhos (Rinjin, 1962) Em cima da árvore (Ki no ue, 1962) Traje de montaria ( Jôbafuku, 1962) Kassassagui (Kasasagi, 1963) Imortalidade (Fushi, 1963) Mandacaru (Gekkabijin, 1963) Terra (Chi, 1963) O cavalo branco (Hakuba, 1963) Neve (Yuki, 1964) Reencontros raros (Mezurashii hito, 1964)

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Glossário

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Nota da tradutora

A tradução de uma obra de literatura japonesa nunca é tarefa fácil. No caso destes Contos da palma da mão, é um desafio ainda maior, devido às peculiaridades de linguagem e estilo. Dentre os contos que aparecem neste livro, o mais antigo é de 1923 e o mais recente, de 1964. O fato de cobrir um período tão extenso, abrangendo quase toda a vida do autor, permite acompanhar a evolução do estilo narrativo de Kawabata, assim como da sua visão de mundo. Por outro lado, isso é um dos fatores que dificultam o trabalho de tradução, pois a variação estilística é muito grande e se torna para o tradutor tarefa árdua encontrar formas em português que exprimam cada uma delas. Percebe-se, nos primeiros anos de sua criação, a utilização de técnicas experimentais, sob a influência do modernismo europeu. Com essas experiências consolida-se a inclinação do autor à técnica narrativa neo-sensorialista, que se caracteriza pela utilização de expressões e imagens insólitas e arrojadas. Nessa época, início dos anos 1920, estava em moda entre os jovens escritores japoneses a produção de pequenos contos denominados “10 linhas”, “20 linhas”, etc. Kawabata encontrou nessa forma uma expressão mais adequada para seu estilo. Nos anos de 1924 a 1928, ele escreveu grande número desses contos, denominando-os Contos da palma da mão. Na época ele declarou: “A maioria dos escritores, quando jovens, escreve poemas, enquanto eu escrevia os ‘contos da palma da mão’.” A partir daí, começa a diminuir o volume de produção dos contos, mas aumenta a maturidade de seu estilo narrativo. Depois da Segunda Guerra, produz ainda menos contos, escrevendo apenas nos intervalos de grandes romances — o que parece explicar o tom ameno dessas últimas criações do gênero. 13

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Quanto aos temas abordados, são tão variados que muitas tentativas de classificar os contos por esse critério falharam — já que muitos deles podem pertencer a mais de uma categoria simultaneamente. Apesar da forma breve, o conteúdo é denso e trata de questões que muitas vezes surgem através de fatos aparentemente insignificantes do cotidiano, mas que ocultam grandes dramas universais humanos. Entre os temas, poderíamos citar como principais: amor, ciúme, sensualidade e sentimentos juvenis; o surreal ou o mistério; rompimento dos laços de família; psicologia e conflito humano; o encanto pela amoralidade feminina; temas relacionados com a família do autor; com a sua exnoiva; com a península de Izu e suas águas termais; com o bairro Asakusa, e suas casas de espetáculos e artistas; e muitos outros. Quanto à peculiaridade da linguagem, percebe-se a presença de inúmeras repetições, de palavras e até de expressões inteiras. Essa repetição, no caso de Kawabata, é proposital e dá um ritmo próprio à narrativa. Por esse motivo, procurei mantê-las ao máximo, excetuando os casos em que se tornavam inaceitáveis em português. Outra característica forte do autor nesta obra é o uso de sentenças curtas e até de parágrafos curtos, criando, com isso, um efeito: ele traz as informações uma por uma, com certa pausa, como se abrisse uma gaveta e depois a outra — não oferece torrentes de informações de forma contínua. Por se tratar de importante traço do estilo do autor, também mantive, na medida do possível, a estrutura original. Surgem também muitas narrativas em terceira pessoa, protagonizadas por “ele” ou “ela”. Esse protagonista-foco da narrativa nunca é definido, como “um homem”, “um rapaz” ou “aquela garota”. Com esse recurso Kawabata aproxima o personagem do leitor e a terceira pessoa funciona na verdade como se fosse “eu” numa narrativa em primeira pessoa. Usando “ele”, o autor evita invadir a mente do protagonista. Se, para evitar a repetição em português, se usasse “um homem” ou “um garoto”, criar-se-ia uma imagem definida e concreta. Também criaria maior distância em relação ao leitor. Dramas e experiências de “um homem” não têm nada a ver com o leitor. No entanto, o mesmo drama “dele”, é assistido de perto, de um narrador colado a “ele”, mas que, sendo um observador, não consegue penetrar na sua mente. “Ele”

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pode ser alguém muito próximo ao leitor, um amigo, um vizinho, ou o leitor mesmo. Embora tenha sido difícil, me empenhei em manter essa peculiaridade narrativa. O leitor perguntará: “Quem é ele?” — e só ao longo do desenvolvimento da narrativa é que conseguirá formar, às vezes vagamente, a imagem do protagonista. Aproveito a oportunidade para agradecer ao professor Tetsuya Hatori, da Associação de Pesquisadores da Literatura de Kawabata, e meu amigo, que sempre esteve pronto para dirimir dúvidas de passagens particularmente obscuras durante a tradução desta obra. Meiko Shimon1 Porto Alegre, fevereiro de 2008

1. Meiko Shimon nasceu em Kyoto em 1940 e se mudou para o Brasil em 1953. Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela USP, é autora de Concepção estética de Kawabata Yasunari em Tanagokoro no shosetsu (Contos que cabem na palma da mão) (Editora da UFRGS, 2000). Atualmente é professora-colaboradora da UFRGS na área de literatura japonesa. Recebeu o prêmio O Sul, Nacional e os Livros de melhor tradução do ano por Kyoto (Estação Liberdade, 2006).

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Recolhendo ossos (Kotsu hiroi, 1949)

Havia dois lagos no vale. O lago inferior brilhava como se estivesse repleto de prata derretida, mas o de cima recolhia-se na quietude, tinha a sombra da montanha imersa no fundo d’água, e refletia um verde profundo como a morte. Senti meu rosto pegajoso. Voltei o olhar para trás e notei respingos de sangue no capinzal e nas folhas de bambu-anão por onde vim abrindo caminho. As gotas de sangue, prestes a se moverem, pareciam ganhar vida. Mais uma vez, o caldo morno de sangue saía borbulhando pelas narinas. Às pressas, tampei-as com a faixa do meu quimono. Deitei-me de costas. O sol não incidia diretamente, porém seus raios, filtrados pelo avesso das folhas verdes, me ofuscavam. O fluxo do sangue parou no meio das narinas e refluiu para dentro, causando uma sensação desagradável. Ao respirar, eu ouvia um ruído dentro do nariz. Os estridentes cantos das cigarras aburazemi soavam por toda a montanha. De repente, as min-min começaram a gritar como se tivessem levado um grande susto. Era uma manhã de julho, pouco antes do meio-dia, quando tive a sensação de que se deixasse cair uma simples agulha no chão algo iria ruir. Senti que não podia me mover. Fiquei deitado, deixando o suor brotar e umedecer a pele. Tudo o que me cercava — o barulho das cigarras, o verdor opressivo, o calor da terra e as batidas do meu coração — foi convergindo para 17

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um único ponto dentro da minha cabeça e se solidificando. Mal havia se solidificado, e tudo se esvaiu num instante. E, então, tive a sensação de que era içado ao céu, flutuava no ar. Patrãozinho! Oooi! Pa-trão-zi-nho! Levantei-me, assustado com a voz que me chamava do cemitério. Era a manhã do dia seguinte ao funeral de meu avô. Nós viéramos ao crematório recolher seus ossos. Eu estava remexendo as cinzas ainda mornas quando o sangue começou a escorrer do meu nariz. Antes que alguém percebesse, tentei estancá-lo pressionando as narinas com a ponta da faixa de meu quimono e, afastando-me do local da cremação, subi até esse morro. Quando me chamaram, desci correndo a encosta. O lago que brilhava como prata oscilou inclinado e desapareceu da minha visão. Escorreguei nas folhas secas caídas no último outono. — Ah, como é folgado este rapaz! Onde o patrãozinho estava? Há pouco recolhemos o osso do pomo-de-adão1 do seu avô. Veja isto! — disse a velha que trabalhava na casa do meu falecido avô. Descendo ruidosamente por entre as folhas do bambu-anão, eu disse: — É mesmo? Deixe-me ver. Aproximei-me da velha empregada, tomando o cuidado para que ela não reparasse nas minhas feições abatidas, pois perdera grande quantidade de sangue, nem na faixa do quimono ensangüentada. Em uma folha de papel branco sobre a palma da sua mão, que se assemelhava a papel machê amassado, uma espécie de pedra calcária de cerca de três centímetros atraía a atenção dos presentes. Deve ser o pomo-de-adão. Com certo esforço, poderia imaginá-lo com a forma de um ser humano. — Só agora, enfim, conseguimos encontrá-lo. Veja só! Seu avô ficou deste jeito. Coloque na caixa da urna, com cuidado.

1. No original, nodobotoke. Nodo = garganta e bokoke vem de hotoke (Buda) devido a sua forma. É comum no Japão se acreditar que a pessoa ao morrer se transforma em um buda, por isso o osso do pomo-de-adão é tratado com deferência.

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“Que coisa mais sem graça!” Eu continuava tendo a impressão de que vovô, como sempre, estaria esperando o ruído do portão da casa anunciando o meu retorno, cheio de alegria nos seus olhos cegos. Estranho era ver aquela mulher, que dizia ser minha tia, mas que eu nunca vira antes, aparecer vestida de quimono de crepe preto. Numa outra urna, os ossos das pernas, mãos, pescoço e todos os demais tinham sido colocados sem o menor cuidado. O crematório era apenas uma vala comprida escavada no solo, um lugar sem paredes nem cobertura. O calor dos restos queimados era muito forte. — Vamos até o túmulo. Aqui exala mau cheiro e a luz do sol é amarelada — eu disse, preocupado com a minha cabeça, que rodopiava, e com o sangramento que ameaçava recomeçar. Ao olhar para trás, vi que o servo da casa me seguia carregando a urna dos ossos. As cinzas que restaram da cremação, as esteiras onde ontem se acomodaram, após a oferenda do incenso, as pessoas que acorreram à cerimônia do funeral, tudo permanecia no mesmo lugar. Continuavam em pé também as varetas de bambu enfeitadas com papel prateado. Disseram que no velório, na noite anterior, como costuma acontecer nessas ocasiões, meu avô se transformou numa bola de fogo azul, alçou vôo sobre o telhado do santuário xintoísta, passou pelos quartos do sanatório, espalhando um cheiro fétido no céu do vilarejo. A caminho do túmulo me lembrava dos rumores sobre o acontecimento.2 O crematório estava localizado num recanto do cemitério do vilarejo. Os túmulos dos meus familiares ficavam em outro lugar fora dali. Chegamos ao cemitério da minha família, onde havia fileiras de pedras tumulares em forma de pequenas torres. Já não me importava mais com nada. Queria apenas me deitar no chão e respirar o céu azul. 2. Refere-se à crença popular de que a alma do finado deixa o corpo, transformando-se em fogo-fátuo.

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Fui buscar água no riacho do vale e a trouxe numa grande chaleira de bronze, que coloquei no chão. — As últimas palavras do falecido patrão foram um pedido para que ele fosse enterrado debaixo da lápide do mais antigo ancestral — disse a velha empregada, proferindo “as últimas palavras do falecido” com muita solenidade. Como quisessem se antecipar ao outro empregado, que era lavrador, os dois filhos da velha derrubaram a pequena torre de pedra mais antiga, situada no lugar mais elevado, e começaram a escavar. A cova parecia ter ficado muito funda. Escutei o som da urna bater lá embaixo. De nada adianta depositar, após a morte, essa “pedra calcária” no túmulo do seu ancestral, já que a pessoa está morta, e sua vida acaba caindo no esquecimento. A pequena torre de pedra foi colocada de pé em seu antigo lugar. — Vamos, patrãozinho, faça as despedidas. A velha empregada, então, despejou água abundantemente sobre a pequena torre.3 Os incensos queimados desprendiam muita fumaça, porém não se via sua sombra sob o sol forte. As flores ficaram esmorecidas. Todos os presentes fecharam os olhos, juntando as mãos em oração. Observando as feições amareladas das pessoas, senti novamente tontura. A vida de meu avô... e a morte. Como se tivesse sido impulsionado por uma mola, sacudi com vigor a mão direita. Os ossos chocalharam-se, produzindo um barulho seco. Eu tinha na mão a pequena urna dos ossos. Meu avô era uma pessoa muito sofrida. Foi um grande senhor dedicado à preservação da sua casa.4 Jamais será esquecido no vilarejo. No caminho de volta, todos falavam de vovô. Eu queria que parassem com isso. Quem mais poderia estar realmente triste além de mim? 3. Refere-se à lavagem da lápide. 4. Refere-se às casas de uma família tradicional em declínio.

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Podia-se imaginar um misto de compaixão e curiosidade por parte das pessoas que ficaram em casa ao pensarem como seria, de agora em diante, a vida do garoto que perdera o avô e ficara sozinho no mundo. Um pêssego caiu no chão. Rolou até meus pés. Na volta do cemitério, o caminho contornava o sopé da colina, onde se plantavam pessegueiros. *

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Este texto foi escrito quando eu tinha dezessete anos de idade (no quinto ano da Era Taishô) e narra um fato ocorrido quando eu tinha quatorze. Compilei-o agora, aos 51 anos5, revisando um pouco o seu estilo, pois senti certa curiosidade de rever um texto de minha juventude. Até porque ainda continuo vivo. A morte de meu avô aconteceu em 24 de maio. No entando, neste “Recolhendo ossos”, ela ocorreu em julho. Isto revela que havia alguma tentativa de dramatização. O texto original está no “Caderno de diários”6 editado pela Shinchosha, mas uma das páginas fora rasgada e se extraviara. Entre as frases “O calor dos restos queimados era muito forte” e “Vamos até o túmulo...”, nota-se a perda de duas páginas manuscritas do meu diário. Porém, compilei assim mesmo. Antes deste “Recolhendo ossos”, há um outro texto intitulado “À terra natal”. Nele, trato por “tu” o vilarejo onde vivera com meu avô, adotando o estilo de uma carta escrita por um interno do curso ginasial. Não passa de mero sentimentalismo infantil. Apresentarei alguns trechos desse “À terra natal” que possuem alguma ligação com o “Recolhendo ossos”.

5. Kawabata nasceu em 14 de junho de 1899. Em 1949, quando compilou este conto, tinha, pelos padrões ocidentais de contagem da idade, cinqüenta anos, completos ou a completar. Ele afirma ter 51 porque, até o final da Segunda Guerra Mundial, era costume no Japão atribuir um ano de idade para a criança ao nascer, o que explica a diferença. 6. Título original: Bunshô Nikki.

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* * * ...Apesar de ter-te jurado com toda convicção, concordei, não faz muito tempo, na casa de meu tio, em vender a casa e toda a propriedade. E, ainda outro dia, deves ter visto os baús e os armários antigos, guardados há gerações no grande depósito da casa, sendo entregues aos comerciantes. Desde que me distanciei de ti, comentam que minha casa se transformou em abrigo de um forasteiro, um homem pobre, e que, depois da morte da mulher dele por reumatismo, passou a ser usada como um cárcere para o louco da casa vizinha. Pouco a pouco, os objetos armazenados no depósito foram roubados, e os vizinhos rasparam as encostas da colina do cemitério de minha família e as anexaram às propriedades deles adjacentes aos pomares de pessegueiro. O terceiro aniversário da morte do meu avô se aproxima. Imagino, no entanto, que seu ihai esteja rolando no meio da urina dos ratos.

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Brincando na carroça (Otoko to on’na to niguruma, 1923)

Uns meninos e meninas brincavam em uma carroça que havia sido deixada na beira da estrada, sentados, quatro ou cinco em cada lado, em suas extremidades. Subindo e descendo, como uma gangorra, o eixo da carroça rangia; as crianças nem se lembravam da hora de ir para casa jantar. Um garoto enlaçava, com firmeza, os ombros de uma me­nina; ela apoiava sua mão ora no colo do dele, ora no estrado da carroça. Quando seus pés tocavam no chão, pisavam com força e se elevavam, quase flutuando no ar; depois mergulhavam novamente. A luz do crepúsculo do verão ia se tornando indefinida e realçava esse quadro de folguedo das crianças, que pairavam em sombras escuras. Eram raros os transeuntes, e sempre a passos apressados. — Sobe gangorra, desce gangorra; em cima é rei, embaixo é mendigo... — Sobre a carroça, as crianças cantavam ritmando os movimentos da gangorra. De repente, soltando os braços que enlaçavam as meninas sentadas ao seu lado e voltando-se para trás, um garoto de bonitas sobrancelhas, aparentando ter cerca de doze anos, elevou a voz: — Vamos trocar de parceiros! — Por quê? Não precisa, vamos balançar mais rápido! — disse um garoto do outro grupo, de costas para o primeiro. — Assim não tem graça. Quero trocar, porque quem está do lado do timão fica em desvantagem. Esse lado sobe pouco. — Fica nada! É mentira, é mentira! Olhe, sobe até a mesma altura! — contestou uma menina extremamente bela, que também aparentava ter cerca de doze anos, balançando seus cabelos cortados na altura dos ombros e virando-se para o primeiro garoto. 23


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— Fique de boca fechada, Yuriko! A gente fica de costas e não pode saber, mas eu vi. O lado do timão tem desvantagem, sim! — Você também não pode saber, Tatsuo! — replicou a menina. — Se a gente não trocar, eu não brinco mais. — Não é tão ruim no lado do timão — interveio o segundo garoto. Vai ser uma chatice trocar. Vamos balançar mais rápido! — Não quero! — Se não quer brincar, então pode parar! Eu sei por que você não quer. Você quer ficar junto da Yuriko — disse com malícia Haruzô, que abraçava o ombro da menina chamada Yuriko. Tatsuo saltou da carroça, agarrou-se ao timão e, ruborizado, trocou um rápido olhar com a garota, que se virou para ele no mesmo instante. E rebateu cheio de raiva, expressa nas sobrancelhas límpidas: — Você também! É você que quer ficar com ela! É por isso que não quer trocar de lugar! Yuriko, ruborizada, levantou-se e se afastou da carroça. Mas, revelando seu gênio forte, assumiu um ar de determinação e anunciou, inesperadamente, ao garoto com quem Tatsuo discutia: — Eu não gosto de quem fala como Haruzô. Mas, tudo bem. Vou ficar junto com Tatsuo. — E o que você tem com isso?! Garota que brinca de gangorra é sapeca! — disse Haruzô, encarando-a. — Ah! não posso? — Não, não pode! Se chegar o dono do riquixá, uma menina não consegue fugir. E se você levar uma surra, eu não posso fazer nada. — Quem vai bater em mim? Você sabe que o tio, dono deste riquixá, trabalha para a nossa casa? — E que importância tem isso, de trabalhar para a sua casa?! Eu também já andei de riquixá! — É mesmo? Quando? Ouvindo o bate-boca entre Haruzô e Yuriko, Tatsuo sentiu-se apaziguado e falou com a brandura de uma criança que não se cansa da diversão: — Grupos não importam. Vamos, vamos brincar de novo. 24


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— Está bem — disse Yuriko —, está bem, mas eu fico no grupo do Tatsuo. Criança que era, Haruzô sentiu-se ferido com a provocação da menina. Na realidade, esmagado por completo. — Mulheres, que graça têm?! Não quero ser parceiro de garotas. Ninguém quer ser parceiro de garotas! Tatsuo, vamos formar um grupo só de homens, vamos. — Ah, tudo bem! Vamos logo então. Com a autoconfiança recuperada, Tatsuo aceitou a proposta de Haruzô sem hesitar. — Então está bem — declarou Yuriko. — Não vou ficar com Tatsuo. Vou fazer o grupo com qualquer um. — Mas não dá para fazer um grupo só de homens — recomeçou Haruzô. — Mulheres são mais leves, fica sem graça. Como se dissesse “olhem só como Haruzô é bobo!”, Yuriko lançou as faíscas do seu olhar cheio de significado para Tatsuo; mas, como ele não retribuiu com o olhar que ela esperava, replicou: — Não somos tão leves assim. — Não diga bobagem! São leves, sim! Vocês, fraquinhas, são leves! — Ainda se sentindo ofendido, Haruzô volveu seu olhar irado. — Não somos leves, não! Vamos ver agora quem é mais pesado. — Você não quer dar o braço a torcer, Yuriko — interveio Tatsuo com serenidade. — Não seja teimosa. Está na cara que vai perder. — Você é medroso, Tatsuo! Nós vamos ganhar, não é, meninas? Ela olhou para as meninas. Ao todo, havia cinco meninos e cinco meninas, mas as outras eram crianças menores do que ela e os dois garotos, dois ou três anos mais novas. — Fique dizendo desaforos! Vamos lá, Tatsuo, vamos! Vamos mostrar a elas quem é mais pesado. Um pouco pensativa, Yuriko estreitou os olhos com graça, mas logo abriu um sorriso ingênuo de criança e, balançando-se alegremente, disse: — Está bem, está bem. Nós vamos ganhar, vocês vão ver... Vamos, meninas! 25


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Ela correu e segurou-se na barra dianteira do timão. Então, rindo baixinho, segredou alguma coisa nos ouvidos das garotinhas que a cercavam. — Não vale, não vale, Yuriko! Vocês não podem fazer assim! Não podem segurar a ponta do timão! — gritou Tatsuo, como se o céu desabasse sobre ele. — Vocês têm que segurar no estrado! — Mas assim a gente perde! Eu não ligo de perder, mas as outras são muito pequenas. Haruzô também reclamou. — Se você roubar, a gente não brinca. Mulheres são safadas mesmo! — Mas vocês são homens. E, apesar de serem garotos, desse jeito não conseguem ganhar de nós, seus fracotes! — Ganhamos sim! Não cante vitória antes, sua sapeca! Haruzô não perdia no bate-boca. Porém, quando começou, com os meninos segurando a traseira da carroça, seus pés se soltaram do chão com facilidade e ficaram no ar. Mais distantes do eixo central, Yuriko e as meninas não cabiam em si de contentamento. — Ganhamos! Ganhamos! Estão vendo? Homens fraquinhos, homens fraquinhos! — Não é verdade, não perdemos, não! — vociferou Haruzô; depois, segredou algo aos meninos, e gritou de repente: — Atenção! Um, dois e... três! Os cinco garotos, todos ao mesmo tempo, concentraram as forças nos braços e no abdome, conseguindo descer e firmar a traseira da carroça no chão. Yuriko recebeu uma forte pancada nas mãos que seguravam o timão e, no impacto, soltou-o, estatelando-se de costas no chão. A frente da sua yukata, de vistosas estampas, se abriu como se inflasse ao vento. Juntando rápido as barras da yukata e virando-se para o chão, ela cobriu o rosto com as mangas e chorou baixinho. As outras garotas nada sofreram porque não soltaram as mãos. Surpresos, todos correram para junto de Yuriko. Haruzô, espiando o rosto da menina, viu que ela levara apenas uma pequena queda, e disse: 26


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— Chorona! Por isso que mulher é fraquinha. Chora por qualquer coisa. Ao ouvir isto, Yuriko se levantou ligeiro, sem afastar as mangas que cobriam o rosto, e replicou com a voz embargada, entrecortada em soluços: — Eu vou contar tudo, tudinho pro papai... A mamãe me disse... “Não brinque com o Haruzô... de uma família como aquela...” E Tatsuo também foi horrível, horrível comigo. Yuriko virou-se e correu até o portão da casa de estilo semiocidental, onde se avistavam muitos pés de palóvnia verdejantes, e colou o rosto na porta. Seus ombros tremiam ligeiramente. — E o que tem a sua casa?! Não passa de uma casa caipira! A gente lá em casa nem sabe quem é o seu pai. Falando assim, Haruzô tentou encorajar as outras crianças, esforçando-se para que continuassem a brincar de gangorra, ou de outra coisa. No entanto, tanto Tatsuo como as outras crianças estavam preo­ cupados com Yuriko, que chorava agarrada ao portão da sua casa. Então, lembraram-se de suas casas. Com uma expressão desapontada, no entanto, Haruzô parecia adivinhar o que se passava no coração de Yuriko, que, apesar de estar encostada ao portão, não fazia menção de abri-lo. Ele correu até ela e, enquanto a garota retorcia o corpo e virava o rosto para o outro lado, quase a abraçou, e, colando a boca no seu ouvido, sussurrou algo de modo insistente. Por fim, Yuriko fez que sim com a cabeça, de leve, e encarou de frente os olhos de Haruzô. Sorriu um pouco encabulada e, depois, assentiu mais uma vez. Assim, Haruzô e Yuriko voltaram à carroça. Desta vez, Tatsuo, Haruzô e Yuriko, com mais uma garotinha, formaram um grupo; e no lado oposto da carroça sentaram seis crianças menores. Tatsuo e Haruzô pousaram seus braços nos ombros de Yuriko e recomeçaram a balançar a gangorra. Passaram-se cinco minutos, quando, de repente, grossas gotas de chuva começaram a cair, dançando nas folhas de cerejeira, salpicando e pintando o chão, tamborilando a carroça. As crianças não perceberam o céu enegrecido. 27


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— Olhe a chuva! Que frio! Nós vamos nos molhar! — gritou Yuriko. — Que chuva, que nada! E se molhar, qual o problema? Pressionando com os braços os ombros da menina, que procurava levantar-se, debatendo-se como podia, os dois garotos aceleraram o ritmo de balanço da gangorra. — Não quero, estou dizendo que não quero mais! É muito gelada! Meus pais vão ficar bravos comigo! O temporal foi ficando mais e mais forte, tingindo as ruas ruidosamente. — Está choven-do-o-o-o! Va-a-a-mos embora! Com esse grito de Haruzô, as crianças saltaram da carroça e se dispersaram em rápida disparada. — Ai, que maldade! Deixada para trás na carroça atingida pela chuva incessante, Yuriko gritou.

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Um lugar ensolarado (Hinata, 1923)

Num dia de outono, quando eu tinha 23 anos, estava com uma garota numa hospedaria situada à beira da praia. Era o começo de um amor. Ela suspendeu, de repente, uma manga do seu quimono e cobriu o rosto, embora mantivesse o pescoço ereto. Ao vê-la assim, dei-me conta de que mais uma vez comportara-me de um jeito que incomodava as pessoas. Constrangido, senti meu rosto se contrair. — Eu estava olhando demais seu rosto, não é? — eu disse. — Sim... mas não muito. A voz era meiga, e, achando graça em sua fala, fiquei um pouco aliviado. — Você não gosta? — perguntei. — Me incomoda um pouco... Mas tudo bem. Ela abaixou a manga e ficou com a expressão de que pretendia fazer um pequeno esforço para enfrentar os meus olhos. Desviei então o olhar para o mar. Tenho o hábito de encarar com insistência o rosto da pessoa que está junto a mim, a ponto de causar constrangimento na maioria das vezes. Penso em corrigir essa mania, mas me causa angústia não olhar o rosto de quem está perto de mim. Sempre que percebo essa minha mania, sinto um profundo desgosto por mim. Desconfio que adquiri esse hábito porque, quando era criança, perdi meus pais, inclusive a minha casa, e fui viver sob a proteção de parentes; e, lendo fisionomias, talvez tenha aprendido a perscrutar o pensamento dos outros. 29


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Certa vez, refleti seriamente se eu adquirira essa mania depois de ter ido morar com estranhos, ou então, bem antes, quando vivia na minha própria casa; porém, não me ocorria nenhuma lembrança em especial que esclarecesse essa questão. Naquele momento, no entanto, a areia da praia que eu olhava, evitando fitar a garota, estava iluminada, aquecida pelos raios do sol outonal. E esse lugar ensolarado evocou em mim uma velha recordação, há muito apagada da memória. Depois da morte dos meus pais, passei a viver com o meu avô por cerca de dez anos. Vivíamos, apenas nós dois, em uma casa do interior. Meu avô era cego. Durante todos aqueles anos, ele passava os dias sentado no mesmo lugar e na mesma sala, virado para o lado leste, diante de um grande braseiro. De tempos em tempos, balançava a cabeça e virava para o sul. Nunca virava o rosto para o norte. Desde que percebi esse seu hábito, fiquei bastante curioso pelo fato de ele virar a cabeça sempre para o mesmo lado. Por várias vezes, eu ficava sentado à sua frente, por longo tempo, observando seu rosto para ver se, ao menos uma única vez, ele se voltaria para o norte. No entanto, como um boneco elétrico programado para virar a cabeça para a direita a cada cinco minutos, meu avô só se virava para o sul. Isso me entristecia e ao mesmo tempo me causava arrepios. O lado sul era onde o sol batia. Imaginei que, apesar de cego, ele podia perceber um pouco a claridade daquele lado. Era esse calor do sol esquecido há muito tempo que me veio à memória naquele instante. Eu fitava o rosto de vovô com o forte desejo de que ele se voltasse para o norte. Por ele ser cego, era natural que eu analisasse longamente o seu rosto. Compreendi, por causa dessa recordação, que foi por isso que acabei adquirindo essa mania de fixar o olhar no rosto das pessoas. Essa mania vinha, então, desde o tempo em que eu vivia na minha própria casa. Não era resquício de um coração mesquinho. Assim, eu podia tranquilamente sentir compaixão por mim mesmo pelo fato de ter adquirido tal mania. Ao me dar conta disso, senti-me tão feliz que tive vontade de dançar. A alegria foi ainda maior pois desejava ardentemente manter meu coração puro para essa garota que eu amava. 30


contos da palma da mão

Ela tornou a falar: — Já estou me acostumando, mas fico um pouco encabulada. Havia em sua voz um certo tom de consentimento para eu voltar a olhar o seu rosto. Pareceu-me que estava arrependida do seu gesto anterior. Com o coração leve, olhei a garota. Ela ficou um pouco ruborizada, mas, depois, lançou-me um olhar malicioso. E disse com um jeito infantil: — Não vou me incomodar, já que você vai poder olhar o meu rosto todos os dias e todas as noites. Assim, logo, logo isso vai deixar de ser interessante. Dei uma risada. Percebi que nossa intimidade cresceu de repente. Tive vontade ir até a praia aquecida pelo sol em companhia dessa garota e das recordações do meu avô.

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Kawabata estudou literatura na Universidade Imperial de Tóquio e foi um dos fundadores da Bungei Jidai, revista literária influenciada pelo movimento modernista ocidental. Acompanhado de jovens escritores, defenderia mais tarde os ideais da corrente neo-sensorialista (shinkankakuha), que visava uma revolução nas letras japonesas e uma nova estética literária, deixando de lado o realismo em voga no Japão em prol de uma escrita lírica, impressionista, atravessada por imagens nada convencionais. Ao contrastar o ritmo harmônico da natureza e o turbilhão da avalanche sensorial, Kawabata forjou insólitas associações e metáforas táteis, visuais e auditivas que surpreendem por revelar os processos de fragilização do ser humano diante do cotidiano, numa composição surrealista de elementos da cultura e filosofia orientais, personagens acuados e cenários inóspitos. Sua obsessão pelo mundo feminino, sexualidade humana e o tema da morte (presente em sua vida desde cedo, sob a forma da perda sucessiva de todos os seus familiares) renderam-lhe antológicas descrições de encontros sensuais, com toques de fantasia, rememoração, inefabilidade do desejo e tragédia pessoal. Desgastado por excesso de compromissos, doente e deprimido, Kawabata suicidou-se em 1972.

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Yasunari Kawabata Ela, que vivera

sempre perseguindo amores intensos, mesmo agora que estava enferma, não conseguia conciliar o sono sossegado sem sentir, no seu pescoço ou no peito, o braço de um homem. Entretanto, quando seu estado se agravou, ela implorava: — Segure meus pés! Não posso suportá-los tão tristes.

Tradução de Meiko Shimon

ISBN 978-85-7448-137-1

9 788574 481159

contos da palma da mão

Yousuf Karsh / National Gallery of Australia

Prêmio Nobel de 1968, Yasunari Kawabata é considerado um dos representantes máximos da literatura japonesa do século XX. Nascido em Osaka em 1899, após uma infância solitária e sofrida, interessou-se cedo pelos clássicos japoneses, que viriam a ser uma de suas grandes inspirações.

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Yasunari Kawabata

CONTOS DA PALMA DA MÃO

narrativa curta — ou mesmo brevíssima — de Yasunari Kawabata já se consolidou como um clássico do gênero. O autor de A casa das belas adormecidas, Mil tsurus e O país das neves atinge nestes Contos da palma da mão, pelos quais tinha expressa predileção, um grau de virtuosismo por muitos aclamado. Para tanto desenvolveu técnica própria, ampliando com precisão microscópica o tradicional pendor japonês por pureza e delicadeza. À sua leitura, abate-se sobre nós, discreta e súbita como uma brisa outonal, uma ferina desintegração do “eu”, mitigada por um distanciamento apenas aparente. Isso passou a levar um nome, shinkankakuha ou neo-sensorialismo, e Kawabata esteve à frente desse movimento de renovação literária que ocorreu no Japão nos anos 20 e 30 do século XX. Sobressai, na confluência de forma e conteúdo, um despojamento minimalista que deixa nus e crus sentimentos e sensações, convergindo ora para toques de surrealismo, ora para leituras do subconsciente à maneira psicanalítica. Entre muitos outros temas, especialmente prazerosos são os que põem em cena o bairro de Asakusa em Tóquio, com seu amálgama de teatros, cabarés musicais (com grande presença tanto do jazz quanto de formas teatrais japonesas clássicas) e casas de deleites carnais. Esse exercício de economia literária torna o trabalho de tradução bastante árduo, pois há a constante tentação de parafrasear algo aqui e ali, o que seria trair Kawabata logo de saída. A tradutora Meiko Shimon, que se especializou na obra do autor e se dedicou longamente ao estudo destes contos, manteve aqui uma criteriosa fidelidade ao mestre japonês. Quando necessário, foram inseridas notas, que um glossário complementa. A atual seleção abrange 122 contos, que Kawabata considerava, nos seus anos tardios, seus “contos que cabem na palma da mão”, e dos quais dizia com a candura que era de seu feitio: “entre eles há algumas peças não muito razoavelmente fabricadas, mas há algumas boas, que jorraram de minha pluma naturalmente, de seu próprio aval. [...] Vive neles o espírito poético de meus dias jovens.”

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