Don Juan (narrado por ele mesmo) -- Peter Handke

Page 1

Ao reconhecer na presença silenciosa do hos­ pedeiro o ouvinte que sempre procurou, Don Juan finalmente revela seu segredo. O que o move à confidência é o impulso — não de enu­ merar suas conquistas, mas sim — de “soletrar” as mulheres que possuiu. Se ele é visto por elas como um salvador, são elas que o salvam do perigo de se alhear do tempo. “E para Don Juan, o tempo era um problema, o problema.”

Tradução de Simone Homem de Mello

Neste livro em torno das mulheres e do tem­ po, Peter Handke mostra mais uma vez seu domínio do ritmo narrativo, exercendo a sedução de um prosador cujo olhar — como o de seu Don Juan — age e contagia. O efeito é o de uma dança de dervis, “um girar de corpos em torno de si, um girar em geral lento que, nas fases de maior velocidade, dá a impressão inversa de desaceleração, uma lentidão pode­ rosa e dominadora. Êxtase?” Simone Homem de Mello Peter Handke, nascido em 1942 na Áustria, renovou a literatura de língua alemã do pós­guerra já com algumas de suas primeiras obras, como Insulto ao público (teatro, 1966) e O medo do goleiro diante do pênalti (1970). O experimentalismo da fase inicial se transformou — ao longo de sua extensa produção como romancista, dramaturgo, poeta e cineasta — em uma reflexão de poeticidade ímpar sobre o processo de escritura e sobre a linguagem como mediadora da percepção.

Sete mulheres, uma por dia, figuram as aven­ turas recordadas por Don Juan (o próprio), uma semana após o ocorrido, no jardim de uma hospedaria nas imediações do mosteiro de Port­Royal­des­Champs. Os bombardeiros que cruzam o vasto céu de maio da Île­de­ France indicam a proximidade dos aeroportos militares, numa época — se não de guerra — pelo menos de paz ameaçada. E de fato, Don Juan, foragido atrás dos muros do albergue, talvez esteja com os dias contados.

Peter Handke

tantâneo sobre o casal, e isso, sem nenhuma fonte visível de luz. Um azular no centro do céu negro. Um intenso esverdear no chão que rangia debaixo deles. No mundo em pânico, Don Juan sentia­se em casa. Se houvesse algum mundo seu, era esse. E foi ali que ele se en­ controu com ela, a mulher. Foi no mundo em pânico que eles se acharam.

ISBN 978-85-7448-133-3

Don Juan (narrado por ele mesmo)

Talvez o Don Juan de Peter Handke seja o que mais se aproxime do perfil que Albert Camus esboçou dessa persona em O mito de Sísifo: o ho­ mem que não se separa do tempo. Assim como Camus enxerga em Don Juan tanto a sedução como a ascese, sem excluir o ridículo, Handke oferece a seu conquistador o refúgio junto a um ermitão e a companhia cômica de um insólito serviçal. O escritor austríaco diverge, entre­ tanto, do francês ao atribuir a volubilidade de seu protagonista a um misterioso luto.

[...] o vermelho das cerejas irrompeu ins­

Foto: © Harry Gruyaert / Magnum. Imilchil, Alto Atlas, Marrocos, 1986

redemoinho das sementes de álamo no céu de maio. “Em tempo algum”: essa é a expressão que introduz suas aventuras amorosas, atempo­ rais por emergirem do mais intenso presente.

Peter Handke

Don Juan

(narrado por ele mesmo)

A noiva em plena festa de casamento no inte­ rior da Geórgia, a espectadora de uma apre­ sentação de dervises na mesquita de Damasco, a grávida ensandecida na cidadela de Ceuta, a ex­miss no bar da estação de ferryboat no Marrocos, a desconhecida numa duna holan­ desa ou aquela num fiorde norueguês — as mulheres de Don Juan se alternam como paisagens em movimento, até o sétimo dia, o da mulher sem nome e sem atributos em um lugar ignorado. Ao longo da narração do hospedeiro celiba­ tário, as histórias de Don Juan vão perdendo a definição e nitidez, igualando­se por fim ao

9 788574 481333

Capa_modelo_DonJuan3_Pier.indd 1

12/12/2007 11:34:27


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
Don Juan (narrado por ele mesmo) -- Peter Handke by Estação Liberdade - Issuu