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gérard genette
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Tradução do francês
Ana Alencar
Estação Liberdade
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Título original: Figures III © Éditions du Seuil, 1972 © Editora Estação Liberdade, 2017, para esta tradução Preparação Juliana Di Fiori Pondian Revisão Huendel Viana Assistência editorial Augusto Rodrigues e Letícia Howes Edição de arte Miguel Simon e Fábio Bonillo Imagem de capa Juan Gris (1887-1927), Jarro e pericarpo, 1919, óleo sobre tela, 65 x 50 cm / © Akg-Images/Latinstock Comercialização Arnaldo Patzina e Flaiene Ribeiro Administrativo Anselmo Sandes Coordenação de produção Edilberto F. Verza Editor responsável Angel Bojadsen este livro, publicado no âmbito do programa de apoio à publicação 2012 carlos drummond de andrade da mediateca da maison de france, contou com o apoio do ministério francês das relações exteriores e europeias. cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d’aide à la publication 2012 carlos drummond de andrade de la médiathèque de la maison de france, bénéficie du soutien du ministére français des affaires etrangères et européennes.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G289f Genette, Gérard, 1930 Figuras III / Gérard Genette ; tradução Ana Alencar. - 1. ed. - São Paulo : Estação Liberdade, 2017. 360 p. ; 21 cm.
Tradução de: Figures III Inclui índice ISBN: 978-85-7448-218-7
1. Literatura francesa - História e crítica. I. Alencar, Ana. II. Título.
17-38997 09/01/2017
CDD: 840 CDU: 821.133.1
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Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008. Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155‑030 | São Paulo‑SP Tel.: (11) 3660 3180 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br
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sumário
Crítica e poética, 11 Poética e história, 15 A retórica restrita, 25 Metonímia em Proust, 49 Discurso da narrativa — Ensaio de método, 79
Preâmbulo, 79
Introdução, 83
1. Ordem, 91
2. Duração, 151
3. Frequência, 181
4. Modo, 232
5. Voz, 288
Posfácio, 345 Obras consultadas, 351 Índice remissivo, 355
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Um outro dirá: — Aposto que ainda se trata aqui de uma figura. O primeiro responderá: — Ganhou. O segundo dirá: — Sim, mas infelizmente só no plano do símbolo. O primeiro: — Na realidade, não; simbolicamente, você perdeu.
Kafka
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Crítica e poética Há alguns anos, na França, a consciência literária parecia mergulhar num processo de involução um tanto preocupante: querelas entre a história literária e a “nova crítica”, obscuros debates, até mesmo dentro dessa nova crítica, entre uma “an tiga nova”, existencial e temática, e uma “nova nova” de ins piração formalista ou estruturalista, proliferação pouco sadia de estudos e pesquisas sobre as tendências, os métodos, as vias e os impasses da crítica. De cisão em cisão, de redução em redução, os estudos literários pareciam cada vez mais conde nados a ruminar o instrumental utilizado e a se fechar numa repetição narcísica, estéril e finalmente autodestruidora, rea lizando assim o prognóstico enunciado em 1928 por Valéry: “Para onde vai a crítica? Para sua perda, espero.” Essa danosa situação, entretanto, poderia ser apenas apa rente. De fato, como mostra bem, por exemplo, o movimento de Proust em seu Contre Sainte-Beuve, toda reflexão um pouco séria sobre a crítica inspira necessariamente uma reflexão so bre a própria literatura. Uma crítica pode ser puramente em pírica, ingênua, inconsciente, “selvagem”; uma metacrítica, ao contrário, implica sempre uma “certa ideia” da literatura, e o que era implícito não tardará muito em pedir explicitação. E assim, talvez, eis como de uma espécie de mal pode surgir uma espécie de bem: de alguns anos de especulações ou inte lecções sobre a crítica poderia vir à tona o que, há mais de um século, tanto vem nos faltando, quando até mesmo a própria consciência dessa falta parecia ter nos deixado; um aparente impasse da crítica poderia de fato conduzir a uma renovação da teoria literária.
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É precisamente de renovação que se deve falar, pois, sob os nomes poética e retórica, a teoria dos “gêneros” e, de um modo mais geral ainda, a teoria do discurso remontam como se sabe à mais alta antiguidade, e, de Aristóteles a La H arpe, se mantiveram no pensamento literário do Ocidente até o advento do romantismo, o qual, ao deslocar a atenção das formas e dos gêneros para os “indivíduos criadores”, deixou de lado esse tipo de reflexão geral em proveito de uma psi cologia da obra, que, desde Sainte-Beuve e através de todos seus sucedâneos, sempre foi considerada o que hoje se chama crítica. Que essa psicologia se arme (ou se altere) com uma maior ou menor dose de perspectiva histórica, de psicanálise, freudiana, junguiana, bachelardiana ou outra, de sociologia, marxista ou não, que ela transmigre para a pessoa do autor ou para a do leitor (do próprio crítico), ou que ela tente ainda se fechar na problemática da “imanência” da obra, tais variações de acento nunca modificam fundamentalmente a função es sencial da crítica, que continua sendo a de manter o diálogo de um texto com uma psique, consciente e/ou inconsciente, individual e/ou coletiva, criadora e/ou receptora. Até mesmo o projeto estruturalista poderia acrescentar, fi nalmente, apenas uma nuance a esse quadro, uma vez que consistiria em estudar “a estrutura” (ou “as estruturas”) de uma obra, considerada, de modo um tanto fetichista, como um “objeto” fechado, acabado, absoluto: então, inevitavel mente, consistiria em motivar (“dando conta” pelos proce dimentos da análise estrutural) esse fechamento, e logo, a decisão (talvez arbitrária) ou a circunstância (talvez fortuita) que o instaura; esquece-se da advertência de Borges de que a obra acabada é fruto “do cansaço ou da superstição”. Em seu debate com a história literária, a crítica moderna vem, há meio século, se esforçando para separar as noções de obra e autor, com o objetivo tático e muito compreensível de opor a primeira à segunda, objetivo responsável por tantos excessos
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e por atividades muitas vezes inúteis. Começa-se a perceber, hoje, que elas se interligam, e que qualquer forma de crítica acontece necessariamente no âmbito da reciprocidade entre essas duas noções. Ora, verifica-se também que seu estatuto de obra não es gota a realidade, nem mesmo a “literariedade” do texto lite rário e, mais, que o fato da obra (a imanência) pressupõe um grande número de dados transcendentes a ela, que remetem à linguística, à estilística, à semiologia, à análise dos discur sos, à lógica narrativa, à temática dos gêneros e das épocas, etc. Quanto a estes dados, a crítica encontra-se na descon fortável situação de não poder, enquanto tal, nem dispensá -los nem dominá-los. Assim, terá que admitir a necessidade, na prática, de uma disciplina capaz de assumir esses modos de estudo não vinculados à singularidade de tal ou tal obra, que não poderá ser senão uma teoria geral das formas lite rárias — digamos, uma poética. Talvez seja uma questão secundária saber se tal disciplina deve ou não procurar se constituir como uma “ciência” da literatura, com as conotações desagradáveis que possa com portar o uso precipitado de tal termo em tal lugar; o que é certo, porém, ao menos, é que só ela pode pretender isso, pois, como se sabe (mas como nossa tradição positivista, que adora “fatos” mas é indiferente às leis, parece ter esquecido), só existe “ciência” do que é “geral”. Mas aqui se trata menos de um estudo das formas e dos gêneros, no sentido da retó rica e da poética clássicas, sempre levadas, desde Aristóteles, a erigir em norma a tradição e a canonizar o já estabelecido, do que de uma investigação dos diversos possíveis do discur so, cujas obras já escritas e formas já preenchidas aparecem como casos particulares para além dos quais outras combi nações previsíveis ou dedutíveis se delineiam. Este é um dos sentidos que se pode dar às célebres fórmulas de Roman Jakobson, que propõem como objeto, para os estudos
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literários, não a literatura, mas a literariedade, não a poesia, mas a função poética: em linhas gerais, o objeto da teoria seria aqui não apenas o real, mas a totalidade do virtual li terário. Essa oposição entre uma poética aberta e a poética fechada dos clássicos mostra bem que não se trata, como se poderia crer, de uma volta ao passado pré-crítica: a teoria lite rária, ao contrário, será moderna e vinculada à modernidade da literatura, ou não será nada. Ao apresentar seu programa de ensino de poética, Valéry declarava, com uma salutar e justificada insolência, que o ob jeto desse ensino, “longe de se substituir ou de se opor ao da história literária, seria então o de conferir a ela ao mesmo tempo uma introdução, um sentido e um objetivo”. As rela ções entre poética e crítica poderiam ser da mesma ordem, salvo que — e isso é capital — a poética valeriana não espe rava quase nada em troca da história literária, qualificada de “vasta embromação”, enquanto a teoria literária muito tem a receber dos trabalhos específicos da crítica. Se a história lite rária não é de modo algum uma “embromação”, ela aparece, entretanto, de maneira evidente, assim como as técnicas fi lológicas de decifração e de estabelecimento do texto (e no fundo mais ainda do que elas), como uma disciplina anexa no campo do estudo da literatura, da qual ela apenas explo ra (biografia, pesquisa das fontes e das influências, gênese e “fortuna” das obras, etc.) os arredores. A crítica, quanto a ela, é e continuará sendo um enfoque fundamental, e se pode pre ver que o futuro dos estudos literários está essencialmente na troca e no vai e vem necessário entre crítica e poética — na consciência e no exercício de sua complementaridade.
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Poética e história Condena-se frequentemente a crítica chamada “nova” (seja ela “temática” ou “formalista”) por sua indiferença ou des prezo com relação à história, e até por sua ideologia anti -historicista.1 Essa condenação é irrelevante se formulada, ela própria, em nome de uma ideologia historicista cujas im plicações estão muito exatamente situadas por Lévi-Strauss quando este convida a “reconhecer que a história é um método ao qual não corresponde um objeto distinto e, portanto, a re cusar a equivalência entre a noção de história e a de huma nidade, que pretendem nos impor com o objetivo inconfesso de fazer da historicidade o refúgio último de um humanismo transcendental”.2 Tal condenação, porém, deve ser levada a sé rio quando formulada por um historiador em nome do fato, precisamente, de que a história é uma disciplina que se aplica a todo tipo de objeto e consequentemente também à literatu ra. Lembro-me de ter respondido aqui mesmo, faz três anos, a Jacques Roger, ao menos no tocante à chamada crítica “for malista”, que tal recusa aparente da história era apenas uma provisória colocação entre parênteses, uma suspensão metó dica, e que esse tipo de crítica (que chamaríamos mais adequa damente de teoria das formas literárias — ou mais rapidamente de poética) me parecia condenado, mais do que qualquer outro talvez, a encontrar um dia a história em seu caminho. Gostaria de tentar dizer brevemente por quê, e como. 1. Comunicação no encontro de Cerisy-la-Salle sobre “o ensino da literatura”, julho de 1969. Texto corrigido. 2. C. Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 347. [Ed. bras.: O pensamento selvagem, trad. Tânia Pellegrini, Campinas, Papirus, 1989.]
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É preciso distinguir várias disciplinas, existentes ou hipo téticas, que confundimos com frequência sob a denominação comum de história literária ou história da literatura. Deixemos de lado, para não mais retornar a ela, a “história da literatura” tal como praticada no ensino médio pelos manuais: trata-se no caso de sequências de monografias em ordem cro nológica. Que essas monografias sejam em si boas ou ruins não importa aqui, pois é evidente que uma sequência de monogra fias, por melhor que seja, não poderia constituir uma história. Lanson foi autor de uma delas em sua juventude, como se sabe, e disse mais tarde que bastava e que isso não era mais necessá rio. Sabe-se também, entretanto, que a fonte não secou: é cla ro que elas respondem, ora bem, ora equivocadamente, a uma função didática precisa e não desprezível, mas tais monografias não são essencialmente de ordem histórica. Uma segunda espécie a se distinguir é aquela que recebia precisamente o voto de Lanson, que propunha com razão cha mar não mais história da literatura, mas “história literária”: “Poder-se-ia escrever”, dizia ele, “ao lado dessa ‘História da literatura francesa’, ou seja, da produção literária de que te mos muitos exemplos, uma ‘História literária da França’ que nos faz falta e que é quase impossível de se tentar hoje: quero dizer com isso... o quadro da vida literária no âmbito da na ção, a história da cultura e da atividade da multidão obscura que lia, tanto quanto dos indivíduos ilustres que escreviam.”3 Trata-se aqui de uma história das circunstâncias, das condi ções e das repercussões sociais do fato literário. Essa “história literária” é na verdade um setor da história social, e enquan to tal, sua justificação é evidente; seu único defeito, grave porém, é que por mais que Lanson tenha esboçado seu pro grama, ela não conseguiu se constituir nessas bases, e o que 3. Programme d’études sur l’histoire provinciale de la vie littéraire en France, feverei ro de 1930, in: Essais de méthode, de critique et d’histoire littéraire, compiladas e apresentadas por Henri Peyre, Paris, Hachette, 1965, p. 81-87.
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chamamos de história literária hoje aparece, salvo algumas exceções, como uma espécie de crônica individual, de biogra fia dos autores, suas famílias, seus amigos e conhecimentos; em resumo, permanece no plano de uma história anedótica, de um relato de acontecimentos, forma ultrapassada e repu diada pela história geral há mais de trinta anos. Ao mesmo tempo, o propósito de história social foi normalmente aban donado: ali onde Lanson pensava a história literária de tal nação, pensa-se hoje a história literária tout court, o que dá ao adjetivo uma função completamente diferente, e um outro tom. Lembremos que já em 1941, Lucien Febvre lamentava que o programa ainda não tivesse sido cumprido: era num artigo intitulado, não sem razão, “De Lanson à Mornet: un renoncement?”. Eis algumas frases tiradas desse artigo que é pertinente citar aqui, pois definem com maior precisão do que as de Lanson o que devia ser a “história literária” anun ciada por este: Uma história histórica da literatura, isso significa ou poderia sig nificar a história de uma literatura, a uma determinada época, em suas relações com a vida social dessa época [...]. Para escrevê-la, seria preciso reconstituir o meio, se perguntar quem escrevia, e para quem; quem lia, e por quê; seria preciso saber que formação tinham recebido, no colégio ou alhures, os escritores, e que for mação, igualmente, tinham seus leitores [...] seria preciso saber que sucesso obtinham esses e aqueles, qual era a extensão desse sucesso e sua profundidade; seria preciso associar as mudanças de hábito, de gosto, de escrita e de preocupação dos escritores com as vicissitudes da política, com as transformações da mentalidade religiosa, com as evoluções da vida social, com as mudanças da vida artística e do gosto, etc.4 4. Lucien Febvre, “Littérature et vie sociale. De Lanson à Daniel Mornet: un re noncement?”, Annales d’histoire sociale, III, 1941, in: Combats pour l’histoire, p. 263-268.
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Mas é preciso lembrar também que, em 1960, num artigo intitulado “História ou literatura”5, Roland Barthes cobrava ainda a execução do programa de Lucien Febvre, ou seja, do programa de Lanson: após mais de meio século, não se avan çara. E hoje ainda se está quase no mesmo ponto, sendo esta a primeira crítica à história “literária”. Há ainda outra sobre a qual voltaremos em breve. Uma terceira espécie a se distinguir é não mais a história das circunstâncias, individuais ou sociais, da produção e da “consumação” literárias, mas o estudo das próprias obras consideradas como documentos históricos que refletem ou expressam a ideologia e a sensibilidade particulares de uma época. Tal estudo faz parte, evidentemente, da chamada his tória das ideias ou das sensibilidades. Por razões que seria preciso determinar 6, esse tipo de história foi muito mais bem realizado que o precedente, com o qual não deve ser confun dido. Para citar apenas autores franceses, lembremos aqui os trabalhos de Hazard, Bremond, Monglond ou, mais recente mente, os de Paul Bénichou sobre o classicismo. É também nesta categoria que se pode alinhar, com seus postulados es pecíficos bem conhecidos, a variante marxista da história das ideias, outrora representada na França por Lucien Goldmann, e talvez hoje pelo que se começa a designar sob o termo de sociocrítica. Esse tipo de história tem ao menos o mérito de exis tir, mas me parece, no entanto, que suscita um certo número de objeções, ou antes, talvez, provoque certa insatisfação. Em primeiro lugar, há o que remete às dificuldades de inter pretação no caso dos textos literários, dificuldades que têm 5. Annales ESC, maio-junho de 1960, retomado em Sur Racine, Paris, Seuil, 1963, p. 147-167. 6. Sem dúvida entre outras, pois este tipo de leitura ideológica dos textos é mais da alçada dos “literários” que o gênero de pesquisa sócio-histórica programada por Lanson e Febvre. É característico que um dos raros trabalhos que respondem a esse programa, Livre et Société au XVIIIe siècle (2 vols., Haia/Paris, Mouton, 1965-1970), tenha sido dirigido por um historiador, F. Furet.
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a ver com a natureza desses textos. Nesse domínio, a noção clássica de “reflexo” não é satisfatória: há no pretenso reflexo literário fenômenos de refração e de distorção muito difíceis de dominar. Já se perguntou, por exemplo, se a literatura apresentava uma imagem completa ou inversa do pensamen to de uma época: trata-se de uma questão bem embaraçosa em que os próprios termos não são dos mais claros. Há dificul dades referentes à tópica dos gêneros, há fenômenos de inér cia próprios da tradição literária, etc., que nem sempre são percebidos e que geralmente se desconhece em nome deste princípio cômodo e muitas vezes preguiçoso: “não é por acaso se na mesma época...”: segue a consideração de uma analo gia qualquer (às vezes batizada de homologia por sabe-se lá qual pudor), discutível como todas as analogias, e da qual não se sabe bem se traz solução ou problema, pois tudo se passa como se a ideia de que “não é por acaso” dispensasse procurar seriamente o que é; em outras palavras, de definir com preci são a relação pela qual se contenta em afirmar a existência. O rigor científico recomendaria que se ficasse muitas vezes aquém dessa afirmação, e se pode observar que um dos suces sos do gênero, o Rabelais de Lucien Febvre, é essencialmente uma demonstração negativa. A segunda objeção é que, mesmo supondo-se por um ins tante esses obstáculos ultrapassados, esse tipo de história continuará necessariamente exterior à própria literatura. Essa exterioridade não é a da história literária segundo Lan son, que depende explicitamente das circunstâncias sociais da atividade literária. Aqui, trata-se antes de considerar a li teratura, porém, atravessando-a para buscar por trás dela as estruturas mentais que a ultrapassam e que, hipoteticamente, a condicionam. Jacques Roger já afirmava com clareza: “A his tória das ideias não tem por objeto primeiro a literatura.”7 7. G. Poulet (org.), Les Chemins actuels de la critique, Paris, Plon, 1967, p. 355.
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Resta então uma última espécie que teria por objeto primei ro (e último) a literatura: uma história da literatura tomada em si (e não nas suas circunstâncias exteriores) e por si (e não como documento histórico), considerada, para retomar os termos propostos por Michel Foucault na Arqueologia do saber, não mais como documento, porém como monumento. Aqui aparece imediatamente uma pergunta: qual poderia ser o objeto verdadeiro de tal história? Parece-me que não podem ser as obras literárias em si mesmas, pela razão de que uma obra (que se entenda por isto o conjunto da “produção” de um autor, ou, a fortiori, uma obra isolada, livro ou poema) é um objeto singular demais, pontual demais para ser verda deiramente objeto de história. A “história de uma obra” tanto pode ser a história de sua gênese, de sua elaboração, quanto pode ser também a história do que se chama a evolução — de obra em obra — de um “autor” ao longo de sua carreira (por exemplo, o que René Girard descreve como passagem do “es trutural” ao “temático”).8 Esse gênero de pesquisa pertence ao campo da história literária biográfica tal como praticada atualmente, e constitui um de seus aspectos críticos mais positivos, mas não faz parte do tipo de história que procuro definir. Pode ser também a história de sua acolhida, de seu su cesso ou insucesso, de sua influência, de suas interpretações sucessivas ao longo dos séculos, e isso, certamente, perten ce plenamente à história literária social tal como a definiam Lanson e Febvre: entretanto, aqui ainda, vê-se que não esta mos no que eu chamava de história da literatura considerada em si mesma e por si mesma. Das obras literárias consideradas a partir do texto, e não de sua gênese ou difusão, diacronicamente, não se pode dizer nada a não ser que elas se sucedem. Assim, a história, parece ‑me, na medida em que ultrapassa o nível da crônica, não é 8. R. Girard, “A Propos de Jean-Paul Sartre: Rupture et création littéraire”, in: G. Poulet, op. cit., p. 393-411.
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uma ciência das sucessões, mas uma ciência das transforma ções: ela só pode ter por objeto realidades que respondam a uma dupla exigência de permanência e de variação. A obra, em si mesma, não responde a essa dupla exigência e, sem dúvida, é por isso que ela, enquanto tal, deve permanecer como objeto da crítica. E a crítica, fundamentalmente — isso foi mostrado de modo muito claro por Barthes no texto ao qual eu fazia alu são há pouco —, não é, não pode ser histórica, porque consiste sempre em uma relação direta de interpretação, prefiro dizer de imposição do sentido, entre o crítico e a obra, e porque tal relação é essencialmente anacrônica, no sentido forte (e, para o historiador, redibitório) desse termo. Parece-me então que em literatura o objeto histórico, ou seja, ao mesmo tempo du rável e variável, não é a obra, são os elementos transcenden tes às obras e constitutivos do jogo literário que chamaremos apressadamente de formas: por exemplo, os códigos retóricos, as técnicas narrativas, as estruturas poéticas, etc. Existe uma história das formas literárias, como de todas as formas esté ticas, bem como de todas as técnicas, devido ao fato de que através dos tempos tais formas duram e se modificam. Infe lizmente, aqui ainda, essa história, quanto ao essencial, falta ser escrita e me parece que sua fundação seria uma das tarefas mais urgentes hoje. É surpreendente que não exista, pelo me nos no campo francês, alguma coisa como a história da rima, ou da metáfora, ou da descrição: e eu escolho propositada mente “objetos literários” bem triviais e tradicionais. É preciso se interrogar sobre as razões dessa lacuna, ou an tes, dessa carência. Elas são múltiplas, e a mais determinan te no passado foi sem dúvida o preconceito positivista que queria que a história não se ocupasse senão com os “fatos”, e por consequência negligenciasse tudo o que lhe aparecia como perigosas “abstrações”. Mas insistirei sobre duas outras razões sem dúvida mais importantes na atualidade. A pri meira é que os próprios objetos da história das formas não
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foram suficientemente delineados pela “teoria” literária que, ao menos na França, ainda balbucia: a redescobrir e redefinir as categorias formais herdadas de uma tradição muito antiga e pré-científica. O atraso da história reflete aqui o atraso da teoria, pois, em ampla medida e contrariamente a um precon ceito constante, nesse campo ao menos, é a teoria que prece de a história, pois é ela quem determina os seus objetos. Uma segunda razão, mais grave talvez, é que na análise das formas em si, tal como vem se constituindo (ou se recons tituindo) hoje, reina ainda outro preconceito que é — para retomar os termos de Saussure — o da oposição, até da in compatibilidade do estudo sincrônico e do estudo diacrônico. A ideia é que só se pode teorizar numa sincronia que é pensa da de fato, ou pelo menos praticada como acronia: teoriza-se em demasia sobre as formas literárias como se essas formas fossem seres, não trans-históricos (o que significaria dizer precisamente históricos), mas intemporais. A única exceção notável, sabe-se, é a dos formalistas russos que distinguiram muito cedo a noção do que chamavam de evolução literária. Foi Eichenbaum quem, em 1927, quando resumia a história do movimento, escreveu a propósito desta etapa: “A teoria re clamava o direito de se tornar história.” 9 Parece-me existir ali um pouco mais que um direito: uma necessidade nascida do próprio movimento e das exigências do trabalho teórico. Para ilustrar essa necessidade, citarei simplesmente o exemplo de uma das raras obras “teóricas” publicadas até hoje na França, o livro Structure du langage poétique, de Jean Cohen. Entre outras coisas, Cohen mostra que, do século XVII ao século XX, há na poesia francesa um crescimento concomitante da agramaticalidade do verso (quer dizer, do fato de que a pausa sintática e a pausa métrica não coinci dem) e daquilo que chama de impertinência da predicação, 9. B. Eichenbaum, “La Théorie de la méthode formelle”, 1925, in: T. Todorov, Théorie de la littérature, Paris, Seuil, 1966, p. 66.
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ou seja, principalmente, o desvio na escolha dos epítetos em relação a uma norma ditada pela prosa “neutra” científica do fim do século XIX. Tendo demonstrado esse crescimento, Cohen o interpreta imediatamente não como uma evolução histórica, mas como uma “involução”: uma passagem do vir tual ao atual, uma realização progressiva, pela linguagem poética, daquilo que desde sempre foi sua essência escondi da. Três séculos de diacronia se encontram, assim, relegados ao intemporal: a poesia francesa não teria se transformado nesses três séculos, teria simplesmente levado todo esse tempo para se tornar o que virtualmente era, e com ela toda poesia, desde sempre: reduzir-se, por purificações sucessi vas, a sua essência. Ora, se estendermos um pouco para o passado a curva evidenciada por Cohen, observamos, por exemplo, que a “taxa de impertinência” que ele considera no século XVII como em seu ponto zero, se encontrava muito mais alta na Renascença, e mais alta ainda na época barroca, e que, assim, a curva perde sua bela regularidade para cair num traçado um pouco mais complexo, aparentemente caó tico, de um curso não previsível, que é precisamente aquele da empiricidade histórica. Este é um resumo grosseiro do de bate10, mas suficiente, talvez, para ilustrar o meu propósito, o de saber que, num certo ponto da análise formal, a passagem à diacronia se impõe, e que a recusa dessa diacronia, ou sua interpretação em termos não históricos, prejudica a pró pria teoria. Não há dúvida de que essa história das formas literárias, que talvez seja a história da literatura por excelência, não pas sa de um programa após muitos outros, ao qual poderia advir o que adveio ao programa de Lanson. Admitamos, no entan to, por hipótese otimista, que ele se realize um dia e termine mos com duas observações de pura antecipação. 10. Cf. “Langage poétique, poétique du langage”, in: Figures II, Paris, Seuil, 1969, p. 123-153.
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GÉRARD GENETTE nasceu em 1930, em Paris. Tornou-se conhecido como crítico literário e teórico da literatura a partir de sua abordagem estruturalista do discurso narrativo. Em 1969 atuou como professor visitante na Universidade de Yale. Foi diretor de estudos e de pesquisas na École des hautes études en sciences sociales até 1994. Atualmente, é professor de literatura francesa na Sorbonne.
Gérard Genette
Discurso cuja dualidade de abordagem pretende ser exemplar: “A especificidade proustiana é irredutível, ela não é indecomponível. Como toda obra, como todo organismo, a Busca é feita de elementos universais que ela reúne em uma totalidade singular. Analisá-la é, portanto, ir não do geral ao particular, mas do particular ao geral.
UM ENSAIO DE TEORIA E MÉTODOS DE ANÁLISE LITERÁRIA
Tal paradoxo é o de toda poética, sem dúvida também o de toda atividade do conhecimento, sempre dilacerada entre estes dois lugares-comuns incontornáveis, que têm que os objetos só podem ser singulares, ao passo que a ciência diz respeito tão somente ao geral; sempre, no entanto, reconfortada e como que magnetizada por esta outra verdade um pouco menos corrente, a de que o geral está no âmago do singular, e que, então — contrariamente ao preconceito comum —, o compreensível está no âmago do mistério.”
Tradução
Ana Alencar
Em 1970 fundou, junto com Tzvetan Todorov, a revista Poétique e hoje dirige uma coleção de mesmo nome — especializada em teoria literária — na Éditions du Seuil. Junto com Roland Barthes, Genette é um dos grandes representantes da “nouvelle critique” dos anos 1960. Entre outras obras, publicou Palimpsestes: La Littérature au second degré [Seuil, 1982], Seuils [Seuil, 1987 / ed. bras.: Paratextos editoriais, Ateliê, 2009], Bardadrac [Seuil, 2006], Épilogue [Seuil, 2014] e Postscript [Seuil, 2016].
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lume da série Figuras, de Gérard Genette, se articulam em uma sequência rigorosa: Crítica e poética, Poética e história, A retórica restrita (ou metáfora e metonímia), Metonímia em Proust (ou o nascimento da narrativa), e, por fim, Discurso da narrativa (por uma tecnologia do discurso narrativo), que é um ensaio de método “aplicado” a Em busca do tempo perdido.
ISBN 978-85-7448-218-7
9 788574 482187
LAMINAÇÃO BRILHO
Juan Gris, Jarro e pericarpo
“É surpreendente que não exista, pelo menos no campo francês, alguma coisa como a história da rima, ou da metáfora, ou da descrição: e eu escolho propositadamente ‘objetos literários’ bem triviais e tradicionais. É preciso se interrogar sobre as razões dessa lacuna, ou antes, dessa carência.”
Gérard Genette
Os estudos que compõem o terceiro vo-
Figuras III
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