Figuras II - Gérard Genette

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Gérard Genette nasceu em 1930, em Paris. Tornou-se conhecido como crítico literário e teórico da literatura a partir de sua abordagem estruturalista do discurso narrativo. Em 1969 atuou como professor visitante na Universidade de Yale. Foi diretor de estudos e de pesquisas na École des hautes études en sciences sociales até 1994.

Tradução

Nícia Adan Bonatti

Em 1970 fundou, junto com Tzvetan Todorov, a revista Poétique e hoje dirige uma coleção de mesmo nome — especializada em teoria literária — na Éditions du Seuil. Junto com Roland Barthes, Genette é um dos grandes representantes da “nouvelle critique” dos anos 1960. Entre outras obras, publicou Palimpsestes: La Littérature au second degré [Seuil, 1982], Seuils [Seuil, 1987 / ed. bras.: Paratextos editoriais, Ateliê, 2009], Bardadrac [Seuil, 2006] e Épilogue [Seuil, 2014].

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ISBN 978-85-7448-217-0

9 788574 482170

Gérard Genette

to esgotado no mercado brasileiro [Perspectiva, 1972], a série Figuras, de Gérard Genette, tornou-se uma referência fundamental no campo da crítica literária francesa. As análises da literatura continuam aqui em duas direções principais, que se cruzam ou se encontram em algumas questões: na da teoria da narrativa e na da poética da linguagem. Alguns desses cruzamentos ou marcos se chamam Barroco, Balzac, Princesa de Clèves, Stendhal, Em busca do tempo perdido, entre outros; espaço do texto, narrativa e discurso, arbitrário e motivação, linguagem indireta. A crítica e a teoria literárias experimentam e manifestam assim seu necessário distanciamento e sua fecunda articulação: irredutíveis e complementares, em busca de uma nova poética. Genette se debruça, assim, em abordagens invariavelmente já bastante discutidas no âmbito da crítica literária, como a oposição entre prosa e poesia, além de se ater a estudos de caso mais específicos, como o “fetichismo de autor” no que se refere a Stendhal, ou a “linguagem indireta”, no que tange a Marcel Proust. Ambiciosa, a obra presente busca responder tanto quanto possível às necessidades e ao potencial da compreensão e do uso da literatura, configurando-se como leitura de validade atemporal e alcance universal para estudantes e estudiosos.

Juan Gris, Violino e gravura em metal pendurado

O ensino é uma rea­lidade histórica que jamais foi transparente ou passiva: as estruturas do saber e as do ensino jamais coincidem perfeitamente, uma sociedade jamais ensina tudo o que sabe e, ao contrário, continua a ensinar conhecimentos ultrapassados, já desatualizados no campo vivo da ciência (...).

Gérard Genette

Desde a edição do primeiro volume, há mui-

Figuras II

www.estacaoliberdade.com.br

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gérard genette

Figuras II

Tradução do francês

Nícia Adan Bonatti

Estação Liberdade

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Título original: Figures II © Éditions du Seuil, 1969 © Editora Estação Liberdade, 2015, para esta tradução

Preparação Tereza Lourenço e Augusto Rodrigues Revisão Huendel Viana Imagem de capa Juan Gris (1887-1927), Violino e gravura em metal pendurado, 1913 / © Akg-Images/Latinstock Editor de arte Miguel Simon Editores Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores. Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d’aide à la publication, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G29f Genette, Gérard, 1930 Figuras II / Gérard Genette ; tradução Nícia Adan Bonatti. - 1. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2015. 320 p. ; 21 cm.

Tradução de: Figures II Sequência de: Figuras

Continua com: Figuras III ISBN 978-85-7448-217-0

I. Título.

1. Literatura francesa - História e crítica. 2. Narrativa (Retórica). 3. Poética.

15-21851 CDD: 840 CDU: 821.133.1 14/04/2015

20/04/2015

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008. Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155­‑030 | São Paulo­‑SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br

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sumário

Razões da crítica pura, 9 Retórica e ensino, 25 A literatura e o espaço, 45 Fronteiras da narrativa, 51 Verossimilhança e motivação, 73 O dia, a noite, 103 Linguagem poética, poética da linguagem, 127 “Stendhal”, 157 A propósito de uma narrativa barroca, 197 Proust e a linguagem indireta, 227

Referências bibliográficas, 303

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Razões da crítica pura Gostaria de indicar em traços amplos algumas das caracte‑ rísticas do que poderia ser uma crítica verdadeiramente atual, isto é, uma crítica que responderia tanto quanto possível às necessidades e ao potencial de nossa compreensão e de nosso uso da literatura, aqui e agora.1 Mas para confirmar que o atual não é necessária e simplesmente o novo, e levando em conta que não seríamos críticos sem o hábito e o gosto de falar fin‑ gindo que estamos deixando que os outros falem (se não for exatamente o contrário), tomaremos como texto deste breve discurso algumas linhas escritas entre 1925 e 1930 por um grande crítico dessa época, que também poderia figurar en‑ tre os grandes predecessores dos quais falou Georges Poulet. Trata­‑se de Albert Thibaudet, e é evidente que a escolha dessa referência não é desprovida de intenções erísticas, se conside‑ rarmos a antítese exemplar que une o tipo de inteligência crí‑ tica encarnada por Thibaudet e aquele que era representado na mesma época por Charles du Bos — sem esquecer, entre‑ tanto, a oposição muito mais profunda que podia separá­‑los, em conjunto, deste tipo de ininteligência crítica que levava, então, o nome de Julien Benda. Numa crônica publicada por Thibaudet na Nouvelle Revue Fran‑ çaise de 1o de abril de 1936 e retomada, depois de sua morte, nas Réflexions sur la critique, podemos destacar a seguinte passagem: Outro dia, na Europe Nouvelle, Gabriel Marcel indicava como uma das principais qualidades de um crítico digno deste nome a atenção ao 1. Comunicação apresentada no ciclo de palestras de Cerisy­‑la­‑Salle sobre “Os ca‑ minhos atuais da crítica”, em setembro de 1966.

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único, ou seja, “a atenção à maneira pela qual o romancista por ele tratado experimentou a vida e a sentiu passar”. Ele louvava Charles du Bos por ter sabido colocar esse problema em termos precisos... Lamentava que um outro crítico, tido como bergsoniano, não tivesse aproveitado suficientemente, ou melhor, houvesse cada vez menos tirado partido da lição do bergsonismo nessa matéria, e imputava essa fraqueza, esse rebaixamento de temperatura, a um excesso de espírito classificador. No fundo, é possível. Mas se não há crítica li‑ terária digna deste nome sem a atenção ao único — isto é, sem o sentido das individualidades e das diferenças —, será que existe uma fora de um certo sentido social da República das Letras, ou seja, de um sentimento acerca das similitudes, das afinidades, que é obrigado a se exprimir de vez em quando através de classificações? 2

Notemos em primeiro lugar que Thibaudet não tem nenhu‑ ma dificuldade para reconhecer em si próprio um “excesso de espírito classificador”, e associemos imediatamente esta con‑ fissão a uma frase de Jules Lemaitre sobre Brunetière — que Thibaudet citava em outra crônica, de 1922 — a qual, salvo uma só reserva, se aplicaria da mesma forma a ele mesmo: Ao que parece, Brunetière só é capaz de considerar uma obra, qual‑ quer que seja ela, grande ou pequena, correlacionando­‑a com um grupo de outras obras, cuja relação com outros grupos, através do tempo e do espaço, aparece­‑lhe imediatamente, e assim por dian‑ te... Enquanto lê um livro ele pensa, poderíamos dizer, em todos os livros que foram escritos desde o começo do mundo. Não há nada que ele to‑ que sem classificar, e para toda a eternidade.3

É claro que a reserva diria respeito a esta última parte da frase, pois Thibaudet, diferentemente de Brunetière, não era desses que pensam trabalhar pela eternidade, ou que a eterni‑ 2. A. Thibaudet, Réflexions sur la critique, Paris, Gallimard, 1939, p. 244. 3. Ibid., p. 136 (grifos nossos).

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dade trabalha por eles. Ele provavelmente teria de bom grado adotado esta divisa de Teste — Transiit classificando — que, em suma, e se colocamos a ênfase no verbo principal ou no gerúndio, significa simultaneamente: “Ele passou (sua vida) classificando”, mas também: “Ele classificou incidentemen‑ te”. E, jogo de palavras 4 à parte, há nessa ideia a concepção de que uma classificação pudesse valer de outro modo que não pela eternidade, que uma classificação pudesse passar com o tempo, pertencer ao tempo que passa e carregar sua marca. Há nessa elaboração intelectual, certamente estranha a Brune‑ tière, mas não a Thibaudet, algo que nos importa hoje em dia, na literatura e fora dela. A história também transiit classificando. Mas não nos afastemos de nossos textos, e deixemo­‑nos condu‑ zir pela referência a Valéry em outra página das Réflexions sur la critique, que data de junho de 1927. Nós aí encontraremos essa falta de atenção ao único, que Gabriel Marcel reprovava em Thi‑ baudet, atribuída desta vez, e mais legitimamente ainda, àquele que fazia seu herói dizer: “O espírito não deve se ocupar das pes‑ soas. De personis non curandum”. Eis o texto de Thibaudet: Imagino que uma crítica de filósofo refrescaria nossa inteligência acerca da literatura, pensando mundos lá onde a crítica pensava operários de arte que trabalham, como o demiurgo do Timeu, sobre modelos eternos dos gêneros, e onde a crítica do século XIX pensou homens que vivem em sociedade. Aliás, possuímos uma amostra‑ gem não aproximativa, mas paradoxalmente integral, desta crítica. É o Léonard de Valéry. De Léonard, Valéry excluiu deliberadamente tudo o que era o Léonard homem, para só reter o que fazia o Léo‑ nard mundo. A influência de Valéry sobre os poetas é muito visível. Já percebo uma influência de Monsieur Teste sobre os romancis‑ tas. Não poderia uma influência de Léonard sobre nossos jovens 4. Em francês, “Il a passé (sa vie) en classant” e “Il a classé en passant”. A este jogo, no qual a primeira letra das palavras é trocada, formando um novo sentido, dá­‑se o nome de “contrepèterie”. [N.T.]

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críticos­‑filósofos ser racionalmente desejável? Em todo caso, eles não perderiam nada em lê­‑lo uma vez mais.5

Declinemos polidamente o nome de críticos­‑filósofos, sobre o qual imaginamos sem dificuldade o que teria pensado o pró‑ prio Valéry, e completemos essa citação com uma outra, que será a última e a mais longa, emprestada desta vez à Physio‑ logie de la critique. Thibaudet acaba de citar e comentar uma página de William Shakespeare, e adiciona: Lendo estas linhas de Hugo e o comentário que se segue, talvez pensemos em Paul Valéry. Com efeito, a Introduction à la Méthode de Léonard da Vinci é concebida de maneira análoga a William Shakes‑ peare e tende ao mesmo fim. Só que o partido é ainda mais livre. Valéry previne seu leitor que seu Léonard não é Léonard, mas uma certa ideia do gênio para a qual ele emprestou somente alguns tra‑ ços de Léonard, sem se limitar a eles e compondo­‑os com outros. Aqui e em outras partes, o cuidado de Valéry é com essa álgebra ideal, essa linguagem não comum a várias ordens, mas indiferente a várias ordens, que poderia cifrar­‑se tanto em uma quanto em outra e que, aliás, assemelha­‑se ao poder de sugestão e de variação obtido por uma poesia reduzida a essências. A Introduction à la Méthode de Léonard, assim como outras obras de Valéry, provavelmente não te‑ ria sido escrita se não lhe fosse dada a chance de viver com um poe­ ta que também tinha especulado durante toda sua vida sobre essa impossível álgebra e essa inefável mística. O que estava presente na meditação de Valéry e de Mallarmé também se fazia presente na de Hugo. A crítica pura nasce aqui das mesmas fontes geladas que a poesia pura. Compreendo por crítica pura aquela que diz respeito não aos seres, não às obras, mas às essências, e que não vê na contemplação dos seres e das obras senão um pretexto para a meditação das essências.6

5. Ibid., p. 191. 6. Grifos meus.

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Percebo três dessas essências. Todas elas ocuparam e inquietaram Hugo, Mallarmé, Valéry, e lhes pareceram o jogo transcendente do pensamento literário: o gênio, o gênero, o Livro. É ao gênio que são consagrados William Shakespeare e a Introdu‑ ção. Ele é a mais alta figura do indivíduo, o superlativo do indivi‑ dual, e entretanto o segredo do gênio é fazer a individualidade se manifestar, ser Ideia, representar, para além da invenção, a corren‑ te de invenção. O que em literatura traduz, acima do próprio gênio individual, esta Ideia — e sob ele a corrente que o porta — são estas for‑ mas do élan vital literário a que chamamos gêneros. Brunetière teve razão em ver aí o problema capital da grande crítica, para a qual uma teoria dos gêneros deve permanecer como a mais alta ambição. Seu erro foi confundir o movimento com uma evolução calcada sobre uma evolução natural, cuja ciência mal aprendida lhe fornecia os elementos arbitrários e sumários... Mas é certo que os gêneros são, vivem, morrem, se transformam; e os artistas, que trabalham no próprio laboratório dos gêneros, o sabem ainda melhor que os críticos... Mallarmé só fez poesia para precisar a es‑ sência da poesia, foi ao teatro para buscar esta essência do teatro, que lhe aprazia ver por trás do brilho aparente. Enfim, o Livro. A crítica e a história literária frequentemente co‑ meteram o erro de misturar em uma mesma série, de jogar em uma mesma ordem aquilo que se diz, aquilo que se canta, aquilo que se lê. A literatura completa­‑se em função do Livro, e apesar disso não há nada em que o homem dos livros 7 pense menos do que no Livro... Sabemos a que paradoxos Mallarmé levou a aluci‑ nação do Livro.8

7. Aqui, trata­‑se de uma crítica. 8. A. Thibaudet, Physiologie de la critique, Paris, Nizet, 1971, p. 120­‑124.

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Interrompamos aqui a citação e tentemos encontrar o mo‑ vimento de meditação que emana desses textos e que pode nos ajudar a definir uma certa ideia da crítica para a qual re‑ teremos, de bom grado, ainda que fosse por seu valor de pro‑ vocação para o uso das almas simples, os termos “crítica pura” e a tutela de Valéry: Valéry, de quem nunca será demais lem‑ brar que propunha uma história da literatura compreendida como uma “História do espírito, na medida em que produz ou consome literatura”, e que poderia se fazer “sem que o nome de um escritor aí fosse pronunciado”. Notemos entretanto que Thibaudet, menos absoluto que Valéry, de modo algum repudia a atenção ao único (que ele interpreta, aliás, de modo muito característico, como o sentido das individualidades e das diferenças, o que já é sair da unicidade e entrar, pelo jogo das comparações, naquilo que Blanchot chamará de “infinito literário”). Ele vê nisso não simplesmente um termo, mas o ponto de partida de uma pesquisa que deve enfim se aplicar não sobre as individualidades, mas sobre a totalidade de um universo — sobre qual ele frequentemente sonhou em se fa‑ zer o geógrafo (o geógrafo, insistamos nisso, e não o histo‑ riador) — a que chama, aqui e fora daqui, de República das Letras. Há nessa denominação algo que marca época e que, em nossa opinião, conota, um pouco pesadamente, o aspec‑ to “social”, portanto humano demais, disso que hoje em dia chamaríamos de modo sóbrio por uma palavra cuja curiosa modernidade ainda não se dissipou: Literatura. Retenhamos sobretudo esse movimento característico de uma crítica tal‑ vez “impura”, que também poderíamos dizer crítica paradig‑ mática, no sentido em que as ocorrências — isto é, os autores e as obras — ainda figuram nela, mas somente como casos ou exemplos de fenômenos literários que os ultrapassam e aos quais servem, por assim dizer, de index, um pouco como esses poetas hepônimos, por exemplo Hoffmann ou Swinburne, a quem Bachelard confia a função e a ilustração de um com‑

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plexo, sem deixá­‑los ignorar que um complexo nunca é muito original. Estudar a obra de um autor, digamos Thibaudet, para tomar um exemplo completamente imaginário, seria então estudar um Thibaudet que não seria mais Thibaudet, assim como o Léonard de Valéry não é Léonard, mas uma certa ideia do gênio para a qual se emprestaria alguns traços de Thibau‑ det, sem se limitar a esses traços e compondo­‑os com outros. Não seria estudar um ser, nem mesmo estudar uma obra, mas, através deste ser e desta obra, perseguir uma essência. Precisamos agora considerar um pouco mais de perto os três tipos de essência de que nos fala Thibaudet. O primei‑ ro recebe um nome cujo uso perdemos um pouco, em sua aparente indiscrição, mas que não soubemos substituir por nenhum outro. O gênio, diz Thibaudet de uma forma um pouco enigmática, é ao mesmo tempo o superlativo do in‑ dividual e a manifestação da individualidade. Se quisermos encontrar o comentário mais esclarecedor desse paradoxo, é talvez em Maurice Blanchot (e em Jacques Lacan) que deve‑ mos buscá­‑lo, nessa ideia hoje familiar à literatura, mas so‑ bre a qual a crítica provavelmente ainda não assumiu todas as consequên­cias: que o autor, o artesão de um livro, como dizia ainda Valéry, não é positivamente ninguém — ou ainda, que uma das funções da linguagem, e da literatura como lin‑ guagem, é destruir seu locutor e designá­‑lo como ausente. O que Thibaudet chama de gênio poderia ser então, aqui, essa ausência do sujeito, esse exercício da linguagem descentra‑ do, privado de centro, do qual fala Blanchot a propósito da experiência de Kafka, que descobriu “que entrou na literatura a partir do momento em que pôde substituir o ‘eu’ pelo ‘ele’... O escritor”, prossegue Blanchot, “pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela”.9 Evidentemente, a substituição do 9. M. Blanchot, L’Espace littéraire, Paris, Gallimard, 1955, p. 17.

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Gérard Genette nasceu em 1930, em Paris. Tornou-se conhecido como crítico literário e teórico da literatura a partir de sua abordagem estruturalista do discurso narrativo. Em 1969 atuou como professor visitante na Universidade de Yale. Foi diretor de estudos e de pesquisas na École des hautes études en sciences sociales até 1994.

Tradução

Nícia Adan Bonatti

Em 1970 fundou, junto com Tzvetan Todorov, a revista Poétique e hoje dirige uma coleção de mesmo nome — especializada em teoria literária — na Éditions du Seuil. Junto com Roland Barthes, Genette é um dos grandes representantes da “nouvelle critique” dos anos 1960. Entre outras obras, publicou Palimpsestes: La Littérature au second degré [Seuil, 1982], Seuils [Seuil, 1987 / ed. bras.: Paratextos editoriais, Ateliê, 2009], Bardadrac [Seuil, 2006] e Épilogue [Seuil, 2014].

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ISBN 978-85-7448-217-0

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to esgotado no mercado brasileiro [Perspectiva, 1972], a série Figuras, de Gérard Genette, tornou-se uma referência fundamental no campo da crítica literária francesa. As análises da literatura continuam aqui em duas direções principais, que se cruzam ou se encontram em algumas questões: na da teoria da narrativa e na da poética da linguagem. Alguns desses cruzamentos ou marcos se chamam Barroco, Balzac, Princesa de Clèves, Stendhal, Em busca do tempo perdido, entre outros; espaço do texto, narrativa e discurso, arbitrário e motivação, linguagem indireta. A crítica e a teoria literárias experimentam e manifestam assim seu necessário distanciamento e sua fecunda articulação: irredutíveis e complementares, em busca de uma nova poética. Genette se debruça, assim, em abordagens invariavelmente já bastante discutidas no âmbito da crítica literária, como a oposição entre prosa e poesia, além de se ater a estudos de caso mais específicos, como o “fetichismo de autor” no que se refere a Stendhal, ou a “linguagem indireta”, no que tange a Marcel Proust. Ambiciosa, a obra presente busca responder tanto quanto possível às necessidades e ao potencial da compreensão e do uso da literatura, configurando-se como leitura de validade atemporal e alcance universal para estudantes e estudiosos.

Juan Gris, Violino e gravura em metal pendurado

O ensino é uma rea­lidade histórica que jamais foi transparente ou passiva: as estruturas do saber e as do ensino jamais coincidem perfeitamente, uma sociedade jamais ensina tudo o que sabe e, ao contrário, continua a ensinar conhecimentos ultrapassados, já desatualizados no campo vivo da ciência (...).

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