"O homem que ri", de Victor Hugo

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Victor Hugo

O Homem que Ri

Tradução

Ivone Benedetti Introdução

Pierre Albouy Notas

Roger Borderie e Ivone Benedetti

Estação Liberdade

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Título original: L’ Homme qui rit © Éditions Gallimard, Paris, 2002, Pierre Albouy, para a introdução (“Rire Révolution”) © Éditions Gallimard, Paris, 2002, Roger Borderie, para as notas © Editora Estação Liberdade, 2014, para esta tradução

Preparação Revisão Assistência editorial Composição Ilustração de capa Editores

Aluizio Leite Huendel Viana Fábio Fujita Miguel Simon/Estação Liberdade Natanael Longo de Oliveira Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H889h Hugo, Victor, 1802-1885 O homem que ri / Victor Hugo ; tradução Ivone Benedetti. - 1. ed. - São Paulo : Estação Liberdade, 2014. 712 p. ; 21 cm.

Tradução de: L’Homme qui rit ISBN 978-85-7448-233-0

1. Romance francês. Benedetti, Ivone. II. Título.

14-15249

CDD: 843 CDU: 821.133.1-3

22/08/2014 27/08/2014

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia ou processos digitais) sem autorização expressa da editora, e em virtude da legislação em vigor. Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.

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Riso revolução — Introdução de Pierre Albouy, 11 PREFÁCIO DO AUTOR, 35 PRIMEIRA PARTE O mar e a noite, 37 DOIS CAPÍTULOS PRELIMINARES I. Ursus, 39 II. Os comprachicos, 60 LIVRO I — A NOITE MENOS NEGRA QUE O HOMEM I. A ponta sul de Portland, 75 II. Isolamento, 81 III. Solidão, 85 IV. Interrogações, 91 V. A árvore de invenção humana, 93 VI. Batalha entre a morte e a noite, 98 VII. A ponta norte de Portland, 105 LIVRO II — A URCA NO MAR I. Leis que estão fora do homem, 110 II. Fixam-se as silhuetas do começo, 114 III. Homens inquietos no mar inquieto, 119 IV. Entrada em cena de uma nuvem diferente das outras, 124 V. Hardquanonne, 135 VI. Acreditam ter ajuda, 138 VII. Horror sagrado, 140 VIII. Nix et nox, 144 IX. Incumbência confiada ao mar furioso, 147 X. Grande selvagem, a tempestade, 149 XI. Caskets, 153 XII. Corpo a corpo com o escolho, 156 XIII. Face a face com a noite, 160 XIV. Ortach, 162 XV. Portentosum mare, 164 XVI. Súbita brandura do enigma, 169 XVII. Último recurso, 172

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XVIII. Recurso supremo, 176 LIVRO III — A CRIANÇA NA SOMBRA I. Chess-Hill, 185 II. Efeito de neve, 190 III. Não há via dolorosa sem um fardo, 195 IV. Outra forma do deserto, 200 V. A misantropia faz das suas, 205 VI. O despertar, 220 SEGUNDA PARTE Por ordem do rei, 225 LIVRO I — ETERNA PRESENÇA DO PASSADO OS HOMENS REFLETEM O HOMEM I. Lorde Clancharlie, 227 II. Lorde David Dirry-Moir, 239 III. A duquesa Josiane, 246 IV. Magister elegantiarum, 256 V. A rainha Ana, 264 VI. Barkilphedro, 272 VII. Barkilphedro vai cavando, 279 VIII. Inferi, 285 IX. Odiar é tão forte quanto amar, 288 X. Chamas que seriam visíveis se o ser humano fosse transparente, 296 XI. Barkilphedro de tocaia, 304 XII. Escócia, Irlanda e Inglaterra, 309 LIVRO II — GWYNPLAINE E DEA I. Quando se vê o rosto de alguém de quem só tinham sido vistas as ações, 319 II. Dea, 324 III. Oculos non habet, et videt, 327 IV. Amantes que combinam, 329 V. O azul no preto, 332 VI. Ursus professor, e Ursus tutor, 336 VII. A cegueira dá lições de clarividência, 340

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VIII. Não só felicidade, mas também prosperidade, 344 IX. Extravagâncias que quem não tem gosto chama poesia, 350 X. Aquele que está fora de tudo lança um olhar sobre as coisas e os homens, 356 XI. Gwynplaine diz justiça, Ursus diz verdade, 362 XII. Ursus poeta arrasta Ursus filósofo, 370 LIVRO III — COMEÇO DA FISSURA I. Tadcaster inn, 373 II. Eloquência ao vento, 377 III. Onde o transeunte reaparece, 382 IV. Os contrários confraternizam no ódio, 388 V. Wapentake, 393 VI. O rato interrogado pelos gatos, 397 VII. Que razões pode ter um quádruplo de ouro para ir se abandalhar entre soldos de cobre?, 406 VIII. Sintomas de envenenamento, 413 IX. Abyssus abyssum vocat, 418 LIVRO IV — SUBTERRÂNEO PENAL I. A tentação de São Gwynplaine, 429 II. Do divertido ao sério, 437 III. Lex, rex, fex, 445 IV. Ursus espiona a polícia, 448 V. Péssimo lugar, 453 VI. Que magistraturas havia sob as perucas de outrora, 456 VII. Tremor, 460 VIII. Gemido, 462 LIVRO V — O MAR E O DESTINO SÃO AGITADOS PELOS MESMOS VENTOS I. Solidez das coisas frágeis, 477 II. O que erra não se engana, 488 III. Ninguém passaria bruscamente da Sibéria ao Senegal sem perder os sentidos (Humboldt), 500 IV. Fascinação, 503 V. Acreditamos lembrar e esquecemos, 509

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LIVRO VI — ASPECTOS VARIADOS DE URSUS I. O que diz o misantropo, 517 II. O que ele faz, 521 III. Complicações, 534 IV. Moenibu surdis campana muta, 538 V. A razão de Estado trabalha em tamanho pequeno e grande, 544 LIVRO VII — A TITÃ I. Despertar, 555 II. Semelhança de um palácio com um bosque, 558 III. Eva, 562 IV. Satã, 570 V. Reconhecem-se, mas não se conhecem, 582 LIVRO VIII — O CAPITÓLIO E ADJACÊNCIAS I. Dissecação das coisas majestosas, 585 II. Imparcialidade, 600 III. A velha sala, 608 IV. A velha câmara, 614 V. Altas conversas, 619 VI. A Alta e a Baixa, 628 VII. Tempestades humanas piores que as marítimas, 633 VIII. Seria bom irmão se não fosse bom filho, 650 LIVRO IX — EM RUÍNA I. É pelo excesso de grandeza que se chega ao excesso de miséria, 657 II. Resíduo, 661 CONCLUSÃO O mar e a noite, 679 I. Cão de guarda pode ser anjo da guarda, 681 II. Barkilphedro mirou a águia e acertou a pomba, 686 III. O paraíso reencontrado na terra, 694 IV. Não. Lá em cima, 701

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PREFÁCIO Tudo na Inglaterra é grande, mesmo o que não é bom, mesmo a oligarquia. A aristocracia inglesa é a aristocracia no sentido absoluto da palavra. Não há feudalidade mais ilustre, mais terrível e mais vivaz. Podemos dizer que aquela feudalidade foi útil no seu tempo. É na Inglaterra que o fenômeno do poder senhorial deve ser es‑ tudado, assim como é na França que cabe estudar o fenômeno da Realeza. O verdadeiro título deste livro seria A aristocracia. Outro livro, que virá a seguir, poderá ser intitulado A monarquia. Esses dois livros, se for dado ao autor terminar o trabalho, precederão e con‑ duzirão outro, que será intitulado: Noventa e três. Hauteville-House, 1869

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Nota dos editores As notas indicadas por asterisco e assinadas com [N.A.] são de Victor Hugo. Das notas numeradas, as assina‑ das com [N.T.] são da tradutora, Ivone Benedetti. Já as notas assinadas com [R.B.] são de Roger Borderie da edição de O Homem que Ri publicada pela Gallimard, série Folio Clas‑ sique, de 2002, adaptadas pela tradutora.

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PRIMEIRA PARTE O mar e a noite

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DOIS CAPÍTULOS PRELIMINARES

I Ursus

I

Ursus e Homo estavam ligados por estreita amizade. Ursus era um homem, Homo era um lobo. Seus temperamentos combinavam. O homem tinha batizado o lobo. Provavelmente escolhera também seu próprio nome; tendo achado Ursus bom para si mesmo, achara Homo bom para o animal. Da associação daquele homem com aquele lobo tiravam proveito as feiras, as festas de paróquia, as esquinas onde os transeuntes se aglomeram e a necessidade que em todo lugar o povo tem de ouvir patranhas e comprar mezinhas. Aquele lobo, dócil e graciosamente subalterno, agradava a multidão. Ver a domesticação é coisa que dá prazer. Nosso supremo contenta‑ mento é assistir ao desfile de todas as variedades de amansamento. Por isso há tanta gente na passagem dos cortejos reais. Ursus e Homo iam de cruzamento a cruzamento, das praças públicas de Aberystwith às praças públicas de Yeddburg, de província a província, de condado a condado, de cidade a cidade. Esgotado um mercado, eles passavam a outro. Ursus morava num casebre sobre rodas que Homo, suficientemente civilizado, puxava durante o dia e guardava durante a noite. Nos caminhos difíceis, nas subidas, quando havia rodeiras ou lama demais, o homem enrolava a correia ao pescoço e puxava frater‑ nalmente, lado a lado com o lobo. Assim, tinham envelhecido juntos. 39

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o homem que ri

Acampavam ao acaso em terrenos baldios, clareiras, encruzilhadas, entradas de povoados, à porta de burgos, mercados, passeios públicos, nos limites dos parques, em átrios de igrejas. Quando a carreta parava em algum arraial de feira, quando as comadres acorriam boquiabertas, quando os curiosos faziam uma roda, Ursus discursava, Homo aprovava. Homo, com uma gamela no focinho, fazia polidamente a coleta entre o público. Ganhavam a vida. O lobo era letrado, o homem também. O lobo tinha sido adestrado pelo homem, ou se adestrara sozinho, em diversas gentilezas de lobo que contribuíam para a receita. — Acima de tudo, não degenere em homem — dizia o amigo. O lobo nunca mordia; o homem, às vezes. Pelo menos morder era a pretensão de Ursus. Ursus era misantropo e, para ressaltar sua misantropia, fizera-se saltimbanco. Para sobreviver também, pois o estômago impõe suas condições. Além do mais, aquele saltim‑ banco misantropo, para se complementar ou completar, era médico. Médico é pouco; Ursus era ventríloquo. Falava sem mexer a boca. Arremedava com perfeição o sotaque e a pronúncia de qualquer um; imitava as vozes das pessoas, enganando qualquer um. Sozinho, fazia o murmúrio de uma multidão, o que lhe dava direito ao título de engastrimythos.1 Aceitou-o. Reproduzia todos os tipos de canto dos pássaros: tordo, cerceta, petinha, também chamada petinha­ ‑dos-prados, melro-de-peito-branco, todos viajantes como ele; de modo que, por alguns instantes, fazia ouvir, a seu bel-prazer, ou uma praça pública cheia de rumores humanos, ou uma pradaria cheia de sons de animais; ora tempestuoso como uma multidão, ora pueril e sereno como a aurora. Tais talentos, embora raros, existem. No século passado, certo Touzel, que imitava turbas de homens e animais misturados e reproduzia todos os sons dos bichos, estava ligado à pessoa de Buffon na qualidade de casa dos bichos. Ursus era sagaz, extravagante e esquisito, inclinado às explicações bizarras que chamamos fábulas. Dava a impressão de acreditar nelas. Esse atrevimento fazia parte de sua malícia. Olhava a mão das pessoas, 1.

Palavra grega que significa “ventríloquo”. [R.B.]

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dois capítulos preliminares

abria livros ao acaso e tirava conclusões, predizia a sorte, ensinava que é perigoso topar com uma égua preta, e mais perigoso ainda ouvir, no momento de partir para uma viagem, o chamado de alguém que não saiba aonde vamos, e intitulava-se “mercador de supersti‑ ção”. Dizia: “Entre mim e o arcebispo de Cantuária há uma diferença; eu confesso.” De tal modo que o arcebispo, indignado com razão, mandou um dia chamá-lo; mas Ursus, engenhoso, desarmou Sua Graça recitando-lhe um sermão dele, Ursus, sobre o santo dia do Natal, que o arcebispo, encantado, decorou, proferiu no púlpito e publicou como sendo dele, arcebispo. Mediante o quê, perdoou. Ursus, médico, curava querendo ou sem querer. Praticava as plan‑ tas aromáticas. Era versado nas ervas medicinais. Tirava proveito do profundo poder que há em várias plantas desprezadas, aveleira, bola­ ‑de-neve, amieiro, noveleiro, sandim, viburno, amieiro-negro. Tratava a tísica com orvalhinha; usava convenientemente folhas de titímalo, que, arrancadas por baixo, são purgativas e, arrancadas por cima, são vomitivas; punha fim à dor de garganta com uma excrescência vegetal chamada orelha-de-judas; sabia qual é o junco que cura o boi, e qual é a menta que cura o cavalo; estava a par das belezas e das bondades da erva mandrágora, que, como ninguém ignora, é homem e mulher. Tinha receitas. Curava queimaduras com lã de salamandra, da qual, segundo diz Plínio, Nero tinha uma toalha. Ursus possuía uma retorta e um matraz; fazia transmutação; vendia panaceias. Contava-se que tinha ficado algum tempo internado em Bedlam2; fizeram-lhe a honra de tomá-lo por insano, mas depois o soltaram, percebendo que não passava de poeta. Essa história provavelmente não era verdadeira; todos temos dessas lendas, e a elas nos submetemos. A realidade é que Ursus era metido a erudito, homem de requinte e velho poeta latino. Era douto sob as duas espécies, hipocratizava e pindarizava. Em empolação teria concorrido com Rapin e Vida.3 2.

Manicômio nas redondezas de Londres. [R.B.]

3.

René Rapin (1621-1687), teólogo e literato francês. Marco Girolamo Vida (1485­ ‑1566), bispo italiano e poeta latino. [R.B.]

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Teria composto tragédias jesuíticas numa maneira não menos triun‑ fante que o padre Bouhours.4 De sua familiaridade com os veneráveis ritmos e metros dos antigos resultavam imagens só dele e toda uma família de metáforas clássicas. Dizia que uma mãe precedida de duas filhas é um dátilo; um pai seguido por dois filhos é um anapesto ; e uma criancinha a andar entre o avô e a avó é um anfímacro.5 Tanta ciência não só podia dar em fome. A escola de Salerno diz: “Comei pouco e amiúde.” Ursus comia pouco e raramente; obedecia assim a uma metade do preceito e desobedecia à outra; mas a culpa era do público, que não afluía sempre e não comprava frequentemente. Ursus dizia: “Expectorar sentenças alivia. O lobo é consolado pelo uivo, o carneiro pela lã, a floresta pela toutinegra, a mulher pelo amor, e o filósofo pelo epifonema”.6 Ursus, se necessário, fabricava comédias e as representava não de todo mal; o que ajudava a vender remédios. Entre outras obras, compusera uma pastoral heroica em honra do cavaleiro Hugh Middleton, que, em 1608, trouxe um rio a Londres. O rio estava tranquilo no con‑ dado de Hartford, a sessenta milhas de Londres; o cavaleiro Middleton chegou e tomou-o; levou uma brigada de seiscentos homens armados de pás e enxadões, começou a revolver a terra, cavoucando aqui, elevando ali, às vezes vinte pés de altura, às vezes trinta pés de profundidade, fez aquedutos de madeira no ar, aqui e ali oitocentas pontes, de pedra, tijolos, pranchas, e uma bela manhã o rio entrou em Londres, que ca‑ recia de água. Ursus transformou todos esses detalhes vulgares numa bela poesia bucólica entre o rio Tâmisa e a ribeira Serpentina; o rio convidava a ribeira a ir a sua casa, e oferecia-lhe seu leito e dizia: “Estou velho demais para agradar às mulheres, mas sou suficientemente rico para pagá-las” — maneira engenhosa e galante de dizer que sir Hugh Middleton fizera todas as obras às suas próprias custas.

4.

Gramático, historicista e escritor religioso do século XVII. [N.T.]

5.

Termos que designam pés métricos na versificação greco-latina. Dátilo: consti‑ tuído por uma sílaba longa e duas breves; anapesto: duas sílabas breves e uma longa; anfímacro: uma sílaba breve entre duas longas. [R.B.]

6.

Exclamação sentenciosa com que se conclui uma narrativa ou um discurso. [R.B.]

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Ursus era notável no solilóquio. De uma constituição arisca e loquaz, tendo o desejo de não ver ninguém e a necessidade de falar com alguém, resolvia o problema falando sozinho. Qualquer um que tenha vivido solitário sabe até que ponto o monólogo está na natureza. A fala interior é uma comichão. Arengar o espaço é um exutório. Falar alto e sozinho produz o efeito de dialogar com o deus que há em cada um. Como todos sabem, esse era um hábito de Sócrates. Sermonava-se. Lutero também. Ursus tinha algo desses grandes homens. Tinha a capacidade hermafrodita de ser seu próprio auditório. Interrogava-se e respondia-se; glorificava-se e insultava-se. Da rua era ouvido a monologar em sua cabana. Os transeuntes, que têm uma maneira só deles de apreciar as pessoas de engenho, diziam: é um idiota. Às vezes se xingava, como acabamos de dizer, mas também havia horas em que se fazia justiça. Um dia, numa daquelas alocuções dirigidas a si mesmo, ouviram-no gritar: — Estudei o vegetal em todos os seus mistérios, no caule, no botão, na sépala, na pétala, no estame, na carpela, no óvulo, na teca, no esporângio e no apotécio. Aprofundei-me na cromacia, na osmo‑ sia e na quimosia, ou seja, na formação da cor, do odor e do sabor. Por certo nesse certificado que Ursus dava a Ursus havia alguma presunção, mas quem nunca tiver se aprofundado na cromacia, na osmosia e na quimosia que atire a primeira pedra. Felizmente, Ursus nunca tinha ido aos Países Baixos. Lá certamente iriam querer pesá-lo para saber se ele tinha o peso normal, além ou aquém do qual um homem é feiticeiro. Na Holanda esse peso era sa‑ biamente fixado por lei. Nada mais simples, nem mais engenhoso. Era uma verificação. Punha-se alguém num prato de balança, e a evidência saltava aos olhos caso o equilíbrio fosse rompido: pesado demais, a forca; leve demais, a fogueira. Ainda hoje, em Oudewater, pode-se ver a balança de pesar feiticeiros, mas agora serve para pesar queijos, a que ponto a religião degenerou! Ursus certamente teria de acertar contas com aquela balança. Em suas viagens, ele se esquivou da Holanda e fez bem. Aliás, acreditamos que ele não saía da Grã-Bretanha. 43

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Seja como for, sendo muito pobre e muito ríspido e tendo conhe‑ cido Homo num bosque, tomou gosto pela vida errante. Associou-se ao lobo em comandita e saiu com ele pelos caminhos, vivendo ao ar livre a grande vida do acaso. Tinha muita habilidade e premeditação, além de dominar a arte de tudo o que fosse curar, operar, livrar as pessoas da doença e realizar particularidades surpreendentes; era considerado bom saltimbanco e bom médico; era tido também, compreende-se, por mago; um pouco, não muito; pois não era sau‑ dável na época ser visto como amigo do diabo. A bem da verdade, por paixão à farmácia e amor às plantas, Ursus se expunha, pois ia com frequência colher ervas nos matagais agrestes onde ficam as hortaliças de Lúcifer e onde se corre o risco — como constatou o conselheiro De l’Ancre7 — de encontrar na bruma da noite um homem a sair da terra, “cego do olho direito, sem manto, espada no flanco, pés nus e descalços”. Ursus, de resto, apesar do jeito e do temperamento excêntricos, era elegante demais para chamar ou expulsar granizo, fazer aparecer rostos, matar alguém com a tortura de dançar sem parar, sugerir sonhos risonhos ou tristes e cheios de terror, fazer nascer galos de quatro asas; não tinha dessas malda‑ des. Era incapaz de certas abominações. Como, por exemplo, falar alemão, hebraico ou grego sem os ter aprendido, o que é sinal de perversidade execrável ou de doença natural procedente de algum humor melancólico. Se Ursus falava latim, é porque sabia. Ele jamais teria se permitido falar siríaco, visto que não o sabia; além disso, está comprovado que siríaco é língua de sabás. Em medicina, ele preferia corretamente Galeno a Cardano, pois Cardano, por mais douto que fosse, não passava de uma minhoca diante de Galeno.8

7.

Pierre de Lancre, demonógrafo que viveu no século XVII. Fez parte de uma comissão encarregada de investigar os pretensos crimes de feitiçaria, mandando para a fogueira mais de seiscentas pessoas. [R.B.]

8.

Cláudio Galeno, médico grego do século III. Fez importantes descobertas em anatomia. Girolamo Cardano ou Cardan, matemático, médico e filósofo italiano do século XVI. Inventou um tipo de junta que tem seu nome (cardan); encontrou a fórmula de resolução das equações de 3º grau. [R.B.]

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Em suma, Ursus não era uma pessoa molestada pela polícia. Sua cabana era suficientemente comprida e larga para que ele pudesse deitar-se sobre uma arca onde ficavam seus trastes, pouco suntuosos. Era proprietário de uma lanterna, várias peru‑ cas e alguns utensílios pendurados em pregos, entre eles alguns instrumentos musicais. Além disso, possuía uma pele de urso com a qual se cobria nos dias de grande espetáculo; chamava a isso vestir-se a caráter. Dizia: Tenho duas peles; esta é a verdadeira. E mostrava a pele de urso. A cabana sobre rodas era dele e do lobo. Além da cabana, da retorta e do lobo, ele tinha uma flauta e uma viola da gamba, que tocava agradavelmente. Fabricava ele mesmo seus elixires. De seus talentos extraía com que cear às vezes. No teto da cabana havia um furo por onde passava a chaminé de um fogão de ferro fundido que ficava ao lado da arca, o suficiente para tostar a madeira. O fogão tinha dois compartimentos; num, Ursus cozia alquimias; no outro, batatas. À noite, o lobo dormia debaixo da cabana, amigavel‑ mente amarrado. Homo tinha pelagem preta; Ursus, grisalha; Ursus tinha cinquenta anos, a menos que tivesse sessenta. Sua aceitação do destino humano era tal que, como acabamos de ver, comia batatas, imundície com que então se alimentavam porcos e forçados. Comia, indignado e resignado. Não era alto, era comprido. Era encurvado e melancólico. A altura arqueada do velho é o afundamento da vida. A natureza o fizera para ser triste. Era-lhe difícil sorrir, sempre lhe fora impossível chorar. Faltavam-lhe o consolo das lágrimas e o paliativo da alegria. Um homem velho é uma ruína pensante; Ursus era essa ruína. Loquacidade de charlatão, magreza de profeta, irascibilidade de mina carregada, isso era Ursus. Na juventude, fora filósofo na casa de um lorde. Isso foi há cento e oitenta anos, no tempo em que os homens eram um pouco mais lobos que hoje. Não muito mais. 45

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II Homo não era um lobo qualquer. No apetite por nêsperas e maçãs, poderia ser tomado por coiote; na pelagem escura, por um mabeco9; no uivo que vai morrendo em latido, por um culpeu10; mas ainda não se observou o bastante a pupila do culpeu para saber com certeza se ele é raposa, e Homo era um lobo de verdade. Tinha cinco pés de comprimento, o que é um bom comprimento de lobo, mesmo na Lituânia; era fortíssimo; tinha olhar oblíquo, mas não por culpa sua; tinha língua macia, e às vezes lambia Ursus; tinha uma faixa estreita de pelos curtos sobre a espinha dorsal e era magro, com uma boa magreza de floresta. Antes de conhecer Ursus e de ter de puxar uma carreta, fazia alegre suas quarenta léguas noite adentro. Ursus, assim que o encontrou numa brenha, perto de um riacho de águas borbu‑ lhantes, tomou-se de estima por ele, ao vê­‑lo pescar caranguejos com sabedoria e prudência, e reconheceu nele um honesto e autêntico lobo Koupara, do tipo chamado cão caranguejeiro. Ursus preferia Homo a um asno como animal de carga. Pôr um asno para lhe puxar a cabana seria repugnante; tinha considera‑ ção demais pelo asno. Além disso, notara que o asno, sonhador de quatro patas pouco compreendido pelos homens, às vezes tem um erguimento de orelhas preocupante quando os filósofos dizem asneiras. Na vida, entre nós e nosso pensamento, um asno é um ter‑ ceiro; é constrangedor. Como amigo, Ursus preferia Homo a um cão, considerando que o lobo vem de mais longe em direção à amizade. Por isso Homo bastava a Ursus. Homo era para Ursus mais que um companheiro, era um semelhante. Ursus dava tapinhas em seus flancos encovados, dizendo: Achei meu segundo tomo. Também dizia: — Quando eu morrer, quem quiser me conhe‑ cer só precisará estudar Homo. Eu o deixarei postumamente como cópia autenticada. 9.

Mabeco ou cão-caçador-africano (Lycaon pictus). [N.T.]

10. Culpeu ou colpeo, espécie de cachorro-do-mato do Chile. [R.B.]

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A lei inglesa, pouco afeiçoada aos animais dos bosques, poderia ter implicado com aquele lobo e chicaneá-lo por aquela ousadia de entrar familiarmente nas cidades; mas Homo tirava proveito da imu‑ nidade concedida por um estatuto de Eduardo IV aos “domésticos”. — Todo doméstico poderá seguir seu senhor e ir e vir livremente. — Além disso, certa tolerância em relação aos lobos era resultado da moda das mulheres da corte, que, no tempo dos últimos Stuarts, em vez de cães tinham umas raposinhas chamadas corsacos, do tama‑ nho de um gato, que elas mandavam trazer da Ásia a altos custos. Ursus transmitira a Homo uma parte de seus talentos: ficar em pé, diluir a cólera em mau humor, grunhir em vez de urrar, etc.; por sua vez, o lobo ensinara ao homem o que sabia: prescindir de teto, prescindir de pão, prescindir de fogo, preferir a fome numa floresta à escravidão num palácio. A choupana, espécie de cabana-reboque que seguia os itinerá‑ rios mais variados, mas sem sair da Inglaterra e da Escócia, tinha quatro rodas, mais um varal para o lobo e um balancim para o ho‑ mem. O balancim era para o caso de o caminho ser ruim. Era sólida, embora construída de tábuas leves como um enxaimel. Tinha na frente uma porta envidraçada com um pequeno balcão que servia para os discursos, tribuna suavizada em púlpito, e na parte de trás, uma porta maciça com uma abertura em postigo. Abaixando-se uma escadinha de três degraus que girava sobre dobradiças e ficava atrás da porta com postigo, entrava-se na choupana, bem fechada à noite com ferrolhos e fechaduras. Chovera e nevara muito em cima dela. Fora pintada, mas já não se sabia bem de que cor, visto que para as carretas as mudanças de estação são como as mudanças de reinado para os cortesãos. Na frente, por fora, numa espécie de frontispício de ripa, tinha sido possível outrora decifrar sobre fundo branco, em letras pretas que pouco a pouco se misturaram e confundiram, a seguinte inscrição: Com o atrito, o ouro perde por ano um catorze avos de seu volume; isso tem o nome de abrasão; donde se segue que, em um bilhão e 47

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quatrocentos milhões em ouro que circulam pela terra, perde-se todos os anos um milhão. Esse milhão de ouro se pulveriza, voa, flutua, é átomo, é respirável, carrega, dosa, lastra e torna pesadas as cons­ ciências; amalgama-se com a alma dos ricos e os torna soberbos; com a alma dos pobres e os torna ferozes.

Essa inscrição, apagada e expungida pela chuva e pela bondade da providência, felizmente era ilegível, pois é provável que, sendo ao mesmo tempo enigmática e transparente, a filosofia do ouro res‑ pirado não fosse do agrado de xerifes, prebostes, chefes de polícia e outros porta-perucas da lei. Naqueles tempos a legislação inglesa não brincava. Por qualquer motivo se era traidor. Os magistrados mostravam-se ferozes por tradição, e a crueldade era rotina. Pulu‑ lavam juízes da inquisição. Jeffreys11 tinha deixado cria.

III No interior da choupana havia outras duas inscrições. Acima da arca, na parede de tábuas lavada com água de cal, lia-se o seguinte, escrito a tinta e à mão: ÚNICAS COISAS QUE IMPORTA SABER: O barão par da Inglaterra usa seis pérolas no aro da coroa. A coroa começa no visconde. O visconde usa uma coroa de pérolas sem número definido; o conde, uma coroa de pérolas sobre hastes entremeadas de folhas de morango mais baixas; o marquês, pérolas e folhas de igual altura; o duque, florões sem pérolas; o duque real, um círculo de cruzes e de flores-de-lis; o príncipe de Gales, uma coroa igual à do rei, mas não fechada.

11. George Jeffreys (1645-1689), chanceler que se notabilizou pela política extrema‑ mente repressiva. Caiu com a revolução de 1688. [R.B.]

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O duque é altíssimo e poderosíssimo príncipe; o marquês e o conde são nobilíssimos e poderosos senhores; o visconde, nobre e poderoso senhor ; o barão, verdadeiramente senhor. O duque é Sua Graça; os outros pares são Senhorios. Os lordes são invioláveis. Os pares são câmara e corte, concilium et curia, legislatura e justiça. “Most honourable” é mais que “right honourable”. Os lordes pares são qualificados de “lordes de direito”; os lordes não pares são “lordes de cortesia”; lordes verdadeiros só os pares. O lorde nunca presta juramento, nem ao rei, nem à justiça. Sua palavra basta. Ele diz: pela minha honra. Os Comuns, que são o povo, quando convocados à barra dos lor‑ des, apresentam-se humildemente, de cabeça descoberta, diante dos pares cobertos. Os Comuns enviam aos lordes os bills por quarenta membros que apresentam o bill com três reverências profundas. Os lordes enviam os bills aos comuns por um simples amanuense. Em caso de conflito, as duas câmaras conferenciam na Câmara Pintada, os pares sentados e de cabeça coberta, os comuns em pé e descobertos. Segundo uma lei de Eduardo VI, os lordes têm o privilégio de homicídio simples. Um lorde que mate um homem simplesmente não é processado. Os barões têm a mesma posição dos bispos. Para ser barão par, é preciso receber o título do rei per baroniam integram, por baronia integral. A baronia integral é composta por treze feudos nobres e um quarto, sendo cada feudo nobre de vinte libras esterlinas, o que monta a qua‑ trocentos marcos. A sede da baronia, caput baroniae, é um castelo governado here‑ ditariamente como a própria Inglaterra; ou seja, só pode ser confiada às filhas na falta de filhos varões, e nesse caso cabe à filha mais velha, coeteris filiabus aliunde satisfactis *.

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O que equivale a dizer: provê-se às outras filhas como for possível. (Nota de Ursus à margem da parede.) [N.A.]

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Os barões têm a qualidade de lorde, do saxão laford, do alto latim dominus e do baixo latim lordus. Os filhos primogênitos e mais novos de viscondes e barões são os primeiros escudeiros do reino. Os filhos primogênitos dos pares têm precedência sobre os cava‑ leiros da Jarreteira; os filhos mais novos, não. O primogênito de um visconde caminha atrás de todos os barões e antes de todos os baronetes. Toda filha de lorde é lady. As outras moças inglesas são miss. Todos os juízes são inferiores aos pares. O serjeant usa um capuz de pele de cordeiro; o juiz, um capuz de pele de esquilo, de minuto vario, várias pequenas peles brancas de todos os tipos, menos o arminho. O arminho é reservado aos pares e ao rei. Não se pode outorgar um supplicavit contra um lorde. Um lorde não pode ficar em cativeiro. A não ser na Torre de Londres. Um lorde chamado à residência do rei tem direito a matar um gamo ou dois no parque real. O lorde mantém em seu castelo uma corte de barão. É indigno de um lorde andar pelas ruas com um manto seguido de dois lacaios. Só pode sair a público com grande séquito de fidalgos da casa. Os pares vão ao parlamento em carruagens em fila; os comuns, não. Alguns pares vão a Westminster em coches de quatro rodas. A forma desses coches e dessas carruagens armoriadas e coroadas só é permitida aos lordes e faz parte de sua dignidade. Um lorde só pode ser multado por lordes, nunca em mais de cinco shillings, exceto o duque, que pode ser multado em dez. Um lorde pode ter seis estrangeiros em casa. Qualquer outro inglês só pode ter quatro. Um lorde pode ter oito tonéis de vinho sem pagar direitos. Só o lorde está isento de apresentar-se perante o xerife do circuito. O lorde não pode ser tributado para a milícia. Quando aprouver a um lorde, ele formará um regimento e o dará ao rei; assim fazem Suas Graças o duque de Athol, o duque de Hamilton e o duque de Nortúmbria. 50

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O lorde só presta contas a lordes. Nos processos de interesse civil, ele pode solicitar prorrogação da causa se não houver pelo menos um cavaleiro entre os juízes. O lorde nomeia seus capelães. Um barão nomeia três capelães; um visconde, quatro; um conde e um marquês, cinco; um duque, seis. O lorde não pode ser levado à tortura, nem por alta traição. O lorde não pode ser marcado na mão. O lorde é funcionário, mesmo não sabendo ler. Por lei, sabe. Um duque tem direito a um dossel onde o rei não estiver; o vis­ conde tem um dossel em casa; o barão tem uma campânula que deve ser mantida sob a taça enquanto ele bebe; uma baronesa tem o direito de pedir a um homem que segure sua cauda em presença de uma viscondessa. Oitenta e seis lordes, ou primogênitos de lordes, presidem as oitenta e seis mesas de quinhentos talheres cada uma, que são servidas todos os dias a Sua Majestade em seu palácio, às expensas do território que circunda a residência real. O plebeu que agredir um lorde terá o punho cortado. O lorde é quase rei. O rei é quase Deus. A terra é uma lordship. Os ingleses dizem milord a Deus. Defronte a essa inscrição, lia-se outra, escrita do mesmo modo, que é a seguinte: SATISFAÇÕES QUE DEVEM BASTAR A QUEM NÃO TEM NADA: Henrique Auverquerque, conde de Grantham, que tem assento na Câmara dos Lordes entre o conde de Jersey e o conde de Greenwich, tem cem mil libras esterlinas de renda. É a sua senhoria que pertence o palácio Grantham-Terrace, todo feito de mármore e célebre por aquilo que se chama labirinto de corredores, que é uma curiosidade, onde há o corredor encarnado de mármore de Sarancolin, o corredor 51

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castanho de lumaquela de Astracã, o corredor branco de mármore de Lani, o corredor preto de mármore de Alabanda, o corredor cinzento de mármore de Staremma, o corredor amarelo de mármore de Hesse, o corredor verde de mármore do Tirol, o corredor vermelho meio mármore cereja da Boêmia e meio lumaquela de Córdova, o corredor azul de turqui de Gênova, o corredor violeta de granito da Catalu‑ nha, o corredor luto, com veios brancos e pretos, de xisto de Murviedro, o corredor rosa de cipolino dos Alpes, o corredor pérola de lumaquela de Nonette, e o corredor de todas as cores, chamado de corredor cor‑ tesão, de brecha variegada. Richard Lowther, visconde Lonsdale, possui Lowther, em Westmo‑ reland, de grande magnificência, cuja escadaria de entrada parece ser um convite aos reis. Richard, conde de Scarborough, visconde e barão Lumley, visconde de Waterford na Irlanda, lord-lieutenant e vice-almirante do condado de Nortúmbria e Durham, cidade e condado, possui a dupla castelania de Stansted, a antiga e a moderna, onde se admira uma soberba grade em forma de semicírculo em torno de um tanque com incomparável repuxo. Também tem o castelo de Lumley. Robert Darcy, conde de Holderness, tem o domínio de Holderness, com torres baroniais e infinitos jardins à francesa onde ele passeia de carruagem de seis cavalos precedido por dois batedores, como convém a um par da Inglaterra. Charles Beauclerk, duque de Saint-Albans, conde de Burford, barão Heddington, grande falcoeiro da Inglaterra, tem uma casa em Windsor, régia ao lado da do rei. Charles Bodville, lorde Robartes, barão Truro, visconde Bodmyn, possui Wimple em Cambridge, que constitui três palácios com três frontões, um arqueado e dois triangulares. Na entrada há uma renque quádrupla de árvores. O mui nobre e poderoso lorde Philippe Herbert, visconde de Cardif, conde de Montgomery, conde de Pembroke, senhor par e mestre de Ken‑ dall, Marmion, Saint-Quentin e Churland, guardião das minas de estanho nos condados de Cornualha e Devon, visitador hereditário do colégio de 52

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Jesus, tem o maravilhoso jardim de Willton onde há dois tanques com repuxos mais belos que Versalhes do cristianíssimo rei Luís XIV. Charles Seymour, duque de Somerset, em Somerset-House às mar‑ gens do Tâmisa, igual à villa Pamphili de Roma. Observam-se sobre a grande lareira dois vasos de porcelana da dinastia Yuen, que valem meio milhão no dinheiro da França. Em Yorkshire, Arthur, lorde Ingram, visconde Irwin, possui Temple­ ‑Newsham, onde se entra por um arco do triunfo e cujos amplos tetos planos se assemelham a terraços mouriscos. Robert, lorde Ferrers de Chartley, Bourchieret Lovaine, em Leicester‑ shire tem Staunton-Harold, cujo parque tem, em escala, a forma de um templo com frontão; e, diante do lago, a grande igreja com campanário quadrado é de Sua Senhoria. No condado de Northampton, Charles Spencer, conde de Sunder‑ land, um dos membros do conselho privado de Sua Majestade, possui Althrop, onde se entra por uma grade de quatro pilastras encimadas por esculturas de mármore. Laurence Hyde, conde de Rochester, em Surrey tem New-Park, magnífico por seu acrotério esculpido, seu gramado circular cercado de árvores e suas florestas em cuja extremidade há uma pequena montanha artisticamente arredondada e encimada por um grande carvalho que se enxerga de longe. Philipp Stanhope, conde Chesterfield, possui Bredby, em Der‑ byshire, que tem um soberbo pavilhão de relógio, falcoarias, coutadas e belíssimos lagos longos, quadrados e ovais, entre os quais um em forma de espelho com dois repuxos altíssimos. Lorde Cornwallis, barão de Eye, possui Brome-Hall que é um pa‑ lácio do século XIV. O nobilíssimo Algernon Capel, visconde Malden, conde de Essex, possui Cashiobury em Hersfordshire, castelo que tem a forma de um grande H, onde a veação é opulenta. Charles, lorde Ossulstone, possui Dawly em Middlesex aonde se chega por jardins italianos. James Cecill, conde de Salisbury, a sete léguas de Londres, possui Hartfield-House, com seus quatro pavilhões senhoriais, sua atalaia 53

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no centro e seu átrio de honra, ladrilhado de branco e preto como o de Saint-Germain. Esse palácio, que tem duzentos e setenta e dois pés de frente, foi construído durante o reinado de Jaime I pelo grande tesoureiro da Inglaterra, que é bisavô do conde atual. Ali se vê o leito de uma condessa de Salisbury, de preço inestimável, inteiramente feito de uma madeira do Brasil que é uma panaceia contra a picada de cobra, chamada milhombres, o que significa mil homens. Acima desse leito está escrito em letras de ouro: Honni soit qui mal y pense.12 Edward Rich, conde de Warwick e Holland, possui Warwick Castle, em cujas lareiras são queimados carvalhos inteiros. Na paróquia de Seven Oaks, Charles Sackville, barão Buckhurst, visconde Cranfeild, conde de Dorset e Middlesex, possui Knowle, que é do tamanho de uma cidade e se compõe de três palácios, paralelos um atrás do outro como linhas de infantaria, com dez empenas em degraus na fachada principal e uma porta sob torreão de quatro torres. Thomas Thynne, visconde Weymouth, barão Warminster, possui Long-Leate, que tem quase o mesmo número de chaminés, lanternas, caramanchões, guaritas, pavilhões e torretas quanto Chambord na França, que é do rei. Henry Howard, conde de Suffolk, possui a doze léguas de Londres o palácio de Audley End em Middlesex, que em grandiosidade e ma‑ jestade não fica atrás do Escorial do rei da Espanha. Em Bedforshire, a West House and Park, que é todo um território fechado por fossos e muralhas, com bosque, rios e colinas, pertence a Henry, marquês de Kent. Hampton-Court, em Herefordshire, com seu poderoso torreão amea­do e seu jardim delimitado por um lago, que o separa da floresta, é de Thomas, lorde Coningsby. Grimsthorp, em Lincolnshire, com longa fachada recortada de altos torretes em pala, parques, lagoas, criações de faisões, apriscos, relvados,

12. Lema da Ordem da Jarreteira. Sua tradução costuma ser: “Envergonhe-se quem nisto vê malícia.” [N.T.]

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quincunces, aleias, florestas, canteiros bordados, com quadriláteros e losangos de flores, semelhantes a grandes tapetes, pistas de corrida de cavalo e majestoso círculo no qual as carruagens giram antes de entrar no castelo, tudo isso pertence a Robert, conde Lindsay, lorde hereditário da floresta de Walham. Up Park, em Sussex, castelo quadrangular com dois pavilhões simétricos em atalaia dos dois lados do átrio principal, pertence ao honorabilíssimo Ford, lorde Grey, visconde Glendale e conde de Tankarville. Newnham Padox, em Warwickshire, que tem dois viveiros quadran‑ gulares de peixes e uma empena com vitral de quatro painéis, é do conde de Denbigh, que é conde de Rheinfelden na Alemanha. Wytham Abbey, em Berkshire, com seu jardim francês onde há qua‑ tro caramanchões entalhados e sua grande torre ameada acostada por duas altas naves de guerra, é do lorde Montague, conde de Abiegdon, que possui também Rycott, do qual é barão e em cuja porta principal se lê o lema: Virtus ariete fortior.13 William Cavendish, duque de Devonshire, tem seis castelos, entre os quais Chaltsworth, que tem dois andares da mais bela ordem grega; além disso, Sua Graça tem o palacete de Londres onde há um leão de costas para o palácio do rei. O visconde Kinalmeaky, que é conde de Cork na Irlanda, possui Burlington House em Piccadilly, com vastos jardins que vão até os campos fora de Londres; também possui Chiswick, onde há nove corpos de casas magníficas; possui também Londesburgh, que é um palacete novo ao lado de um velho palácio. O duque de Beaufort possui Chelsea, que contém dois castelos gó‑ ticos e um castelo florentino; também possui Badmington em Glocester, que é uma residência da qual se irradia um sem-número de avenidas, como de uma estrela. O nobilíssimo e poderoso príncipe Henry, duque de Beaufort, é ao mesmo tempo marquês e conde de Worcester, barão Raglan, barão Power e barão Herbert de Chepstow. 13. “A virtude é mais forte que o aríete.” [R.B.]

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John Holles, duque de Newcastle e marquês de Clare, possui Bolso‑ ver, cujo torreão quadrado é majestoso; possui também Haughton em Nottingham, onde, no centro de um tanque, há uma pirâmide redonda que imita a torre de Babel. William, lorde Craven, barão Craven de Hampstead, possui em Warwickshire uma residência, Combe Abbey, onde se vê o mais belo repuxo da Inglaterra; em Berkshire possui duas baronias, Hampstead Marshall, cuja fachada apresenta cinco lanternas góticas incrustadas na parede, e Asdowne Park, que é um castelo situado no ponto de intersecção de uma encruzilhada de estradas numa floresta. Lorde Linnaeus Clancharlie, barão Clancharlie e Hunkerville, marquês de Corleone na Sicília, com pariato derivado do castelo de Clancharlie, construído em 914 por Eduardo, o Velho, contra os dinamarqueses, mais Hunkerville House em Londres, que é um palácio, mais, em Windsor, Corleone Lodge, que é outro, e oito castelanias, uma em Bruxton às mar‑ gens do Trent, com direitos sobre as jazidas de alabastro, e Gumdraith, Humble, Moricambe, Trenwardraith, Hell-Kerters, onde há um poço maravilhoso, Pillinmore e suas turfeiras, Reculver perto da antiga cidade de Vagniac, Vinecaunton sobre a montanha Moil-enlli; mais dezenove burgos e aldeias com bailiados, e todo o território de Penneth-chase, o que em conjunto rende a Sua Senhoria quarenta mil libras esterlinas. Os cento e setenta e dois pares que reinam sob Jaime II possuem em bloco um rendimento de um milhão, duzentos e setenta e duas mil libras esterlinas por ano, que é a undécima parte do rendimento da Inglaterra.

À margem do último nome, lorde Linnaeus Clancharlie, lia-se a seguinte nota do punho de Ursus: Rebelde; no exílio; bens, castelos e domínios em sequestro. Bem feito.

IV Ursus admirava Homo. Sempre admiramos nas proximidades. É lei. 56

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Estar sempre surdamente furioso era a situação interior de Ursus, e grunhir era sua situação exterior. Ursus era o descon‑ tente da criação. Na natureza, ele era aquele que faz oposição. Levava o universo a mal. Não dava satisfação a ninguém nem a coisa alguma. Fazer o mel não absolvia a abelha de picar; uma rosa desabrochada não absolvia o sol da febre amarela e do vômito negro. É provável que na intimidade Ursus fizesse muitas críticas a Deus. Dizia: — Evidentemente, o diabo é movido à mola, e o erro de Deus é ter soltado o disparador. — Pratica‑ mente só aprovava os príncipes e tinha uma maneira peculiar de aplaudi-los. Certo dia, quando Jaime II deu um candeeiro de ouro maciço à Virgem de uma capela católica irlandesa, Ursus, que passava por lá com Homo, mais indiferente, manifestou sua admiração diante de todo o povo, exclamando: — Está claro que a Santa Virgem tem bem mais necessidade de um candeeiro de ouro do que estas criancinhas descalças têm necessidade de sapatos. Tais provas de “lealdade” e a evidência de seu respeito para com os poderes estabelecidos provavelmente não contribuíram pouco para a tolerância dos magistrados a sua vida errante e sua aliança espúria com um lobo. Algumas noites, por fraqueza de amigo, ele deixava Homo esticar um pouco os membros e vagar em liberdade ao redor da cabana; o lobo era incapaz de abusar da sua confiança e comportava-se “em sociedade”, ou seja, entre os homens, com a discrição de um caniche; no entanto, se aparecesse algum alcaide de mau humor, poderia haver inconvenientes; por isso, Ursus mantinha o máximo possível o distinto lobo acorrentado. Do ponto de vista político, seu letreiro a respeito do ouro, que se tornara indecifrável e pouco inteligível, não passava de garatujas de fachada e não o denunciava. Mesmo depois de Jaime II, sob o reinado “respeitável” de Guilherme e Maria, as pequenas cidades dos condados da Ingla‑ terra podiam ver sua carreta trafegar pacificamente. Ele viajava com liberdade de um extremo ao outro da Grã-Bretanha, distribuindo filtros e garrafadas, fazendo à meia com seu lobo pantomimas de 57

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médico de esquina, passando com facilidade pelas malhas da rede da polícia, estendida na época por toda a Inglaterra para investigar bandos nômades e, em especial, para prender “comprachicos” de passagem. Aliás, nada mais justo. Ursus não pertencia a nenhum bando. Ursus vivia com Ursus; um face a face de si consigo, no qual um lobo metia delicadamente o focinho. A ambição de Ursus era ter sido caraíba; não conseguindo, ele era aquele que está só. O solitário é um diminutivo do selvagem, aceito pela civilização. E ser errante é ser mais sozinho. Por isso, seu deslocamento perpétuo. Ficar em algum lugar parecia-lhe domesticação. Ele passava a vida a passar. A visão das cidades duplicava nele o gosto por mato, balcedos, espinheiros e grutas em rochedos. Na floresta estava em casa. Não se sentia muito desterrado no murmúrio das praças públicas, bem parecido com a algazarra das árvores. A multidão satisfaz em certa medida o gosto pelo deserto. O que lhe desagradava naquela ca‑ bana era o fato de ter uma porta e janelas e parecer uma casa. Teria concretizado seu ideal se tivesse conseguido pôr uma caverna sobre quatro rodas e viajar num antro. Não sorria, como dissemos, mas ria; às vezes, frequentemente até, com um riso amargo. Há consentimento no sorriso, ao passo que o riso muitas vezes é uma recusa. Seu grande negócio era odiar o gênero humano. Era implacável nesse ódio. Estando claro para ele que a vida humana é uma coisa medonha, tendo observado a sobreposição dos flagelos — os reis sobre o povo, a guerra sobre os reis, a peste sobre a guerra, a fome sobre a peste, a imbecilidade sobre tudo —, tendo constatado certa quantidade de castigo no mero fato de existir, tendo reconhe‑ cido que a morte é uma libertação, quando alguém lhe levava um doente, ele o curava. Tinha cordiais e beberagens para prolongar a vida dos velhos. Punha os clunâmbulos em pé e lhes lançava o se‑ guinte sarcasmo: — Pronto, já está sobre suas próprias patas. Espero que ande durante muito tempo pelo vale de lágrimas! Quando via um pobre morrendo de fome, dava-lhe todos os tostões que tinha, 58

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resmungando: — Vive, miserável! Come! Dura muito tempo! Não sou eu que abreviarei o teu martírio. — Depois disso, esfregava-se as mãos e dizia: — Faço aos homens todo o mal que posso. Pelo buraco do postigo de trás, os transeuntes podiam ler no teto da cabana o seguinte letreiro, escrito no interior, mas visível do ex‑ terior, rabiscado com carvão em letras grandes: URSUS, FILÓSOFO.

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Uma mulher o quer.

E quem é essa mulher? Uma feia? Não. Uma bela. Uma cigana? Não. Uma duquesa.

Tradução de Ivone Benedetti Introdução de Pierre Albouy

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Notas de Roger Borderie e Ivone Benedetti

VICTOR HUGO

Uma mulher que viu seu rosto! Uma mulher que não é cega!

VICTOR HUGO O Homem que Ri

Nome luminoso do romantismo francês, Victor Hugo evidencia aqui os paradoxos que confe‑ rem a seus personagens sua mais verossímil humanidade: a violência e a ternura, o horror e o sublime, a humilhação e a dignidade, em meio ao tradicional cenário social que opõe a aristocracia opressora e a plebe oprimida, só que desta vez ambientado na Inglaterra dos sé‑ culos XVII e XVIII. O “Homem que Ri” é como passará a ser cha‑ mado o personagem Gwynplaine. Por ser filho de um inimigo político do rei, ele fora entregue ainda pequeno aos comprachicos, uma trupe de facínoras que faziam do crime uma indús‑ tria, ao deformar crianças para explorá-las em atrações de bizarrices. Abandonado depois pelos próprios comprachicos, Gwynplaine se vê va‑ gando sozinho pelo mundo até deparar-se com Dea, uma criança órfã e cega.

Natanael

pronuncie a palavra inacreditável. Uma mulher o quer!

Natanael

Uma mulher o quer! Nesse caso, que ninguém nunca mais

Pierre Albouy, que assina a introdução à obra, define o romance como “o drama da alma”, e observa até um flerte com o surrealismo: “Sua própria coerência o recomenda: coerência em todos os níveis entre a temática, a estrutu‑ ra, a ideologia e a escrita. Apesar de bizarro, sua autenticidade também o recomenda: quer se trate da dança assustadora do enforcado co‑ berto de alcatrão e entregue aos ventos, quer se trate da própria imagem do Homem que Ri, nele a imaginação está munida da mais robusta evidência onírica.”

Victor Hugo nasceu em 26 de fevereiro de 1802, em Besançon. Foi educado por vários tutores e estudou em escolas privadas, sempre demons‑ trando uma inteligência precoce. Tornou­‑se escritor aos 15 anos, e logo assumiu um lugar excepcional na história da literatura ocidental, dominando todo o século XIX graças a sua fe‑ cunda genialidade e à diver­sidade de sua produ‑ ção. Escreveu desde poesia lírica, satírica e épi‑ ca, até romances e dramaturgia em prosa e em versos. Chegou a ser considerado poeta oficial da nação francesa. Em 1827 redigiu o famoso prefácio de Cromwell, tido como o manifesto do movimento romântico na França. Outras de suas obras fun­damentais são O último dia de um condenado (1829), Notre-Dame de Paris (1831) — ambas também publicadas por esta casa —, Os miseráveis (1862) e Os trabalhadores do mar (1866). No final da carreira, passou um longo período no exílio, por oposição ao império de Napoleão III. Faleceu em 22 de maio de 1885, em Paris.

Da vasta produção literária do francês Victor Hugo, são muitas as obras que perduraram para sempre como clássicos mundiais, como é o caso deste O Homem que Ri, romance de 1869, há muito aguardado por leitores brasileiros.

O Homem que Ri

egresso do romantismo, o autor mostra aqui marcas um tanto destoantes, sobretudo a iro‑ nia e o sarcasmo velados: os chistes, por exemplo, nem sempre são percebidos de imediato. Quando redescoberto, o livro logo passou a fascinar gera‑ ções de leitores, também em função das adap‑ tações cinematográficas — a mais recente, de 2012, com Gérard Depardieu dando vida a Ursus.

Ambos, Gwynplaine e Dea, são acolhidos pelo velho Ursus, um artista saltimbanco, de cora‑ ção generoso. Os três se tornam uma espécie de família, e passam a ganhar a vida apresentando­ ‑se em espetáculos populares. Nessa cruzada, eles enfrentam uma série de dramas e prova‑ ções, incluindo aí o amor que Gwynplaine, ao longo do tempo, começa a nutrir por Dea. Quando se descobre que aquela verdadeira aber‑ ração humana é, na verdade, um lorde, novas consequências folhetinescas se sucedem, fazen‑ do movimentar a engrenagem dos jogos de in‑ teresse que envolvem a aristocracia britânica. Por muito tempo, O Homem que Ri se manteve como um livro esquecido, à margem na pro‑ dução de Victor Hugo. Até por sua singeleza:

ISBN 978-85-7448-233-0

9 788574 482330

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