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CONSULTÓRIO COMPORTAMENTO
Com o apoio:
A embaixada do contra - filhos com o “não” na boca Ah! Férias à porta, que momento de puro descanso. Ou não. LUÍS MIGUEL FERNANDES Psicomotricista
Sempre acreditei que existem pessoas que têm palavras dentro da boca. Lembro-me do Ary dos Santos, das conversas vadias do Agostinho da Silva ou mesmo dos meus melhores professores. Aqueles que nas mais dolorosas aulas matinais me mantinham acordado, vá-se lá saber como. Que deleite poder ouvi-los falar com as palavras certas e urgentes. No trabalho com pais de crianças com problemas de comportamento, deparo-me com o mesmo fenómeno, de palavras junto à língua “não vou, não quero”, “a tudo responde do contra”, “parece que tem o não pronto”, ou até “o meu filho é o miúdo do não”, são apenas algumas das frases que os pais, cansados e preocupados, me confidenciam. E como as palavras não gostam de andar sozinhas, surgem com elas relatos de oposição e resistência - filhos que fogem, gritam, choram, batem, partem, protelam, argumentam, mentem…Uma lista tão infindável como desesperante e exigente de gerir. Nisto, a parentalidade parece uma tarefa impossível (e não se enganem, é quase), destinada a uns poucos, que consigam suportar estas autênticas embaixadas do contra. Porém, a verdade é que nos pais destas crianças, mais desafiantes e
desafiadoras, mora com frequência uma crença de insuficiência aflitiva de não serem suficientemente bons para cuidar dos filhos. Uma culpa que lhes carrega os ombros. Uma culpa que é uma térmita descontrolada, que guardada dentro das relações vai roendo o que de mais importante elas têm - a confiança, o afeto, a capacidade de ouvir e de ver o outro lado. Sentir o outro lado. Começar a apoiar os pais destas crianças é perceber que incompetência aprendida é importante desconstruir e onde está guardada a culpa. Como é que se volta a erguer o edifício da confiança e da capacidade, que os permite reaproximar dos filhos, voltar a lê-los de outra forma, sem a sombra constante da frustração? A tentativa de olhar para um “não” e percebê-lo para lá da raiva que ele nos deixa. Compreender o que é que um “não” pode querer dizer, muito além da oposição. A oposição é sempre a face visível de algo escondido. Tristeza, irritabilidade, preocupação, dificuldade em comunicar de outra forma. Tantos significados que só uma relação disposta a explorálos os pode descobrir. É essa a viagem que, lado a lado, podemos fazer com os pais. Saber que o “não” que vive na boca, nasce sempre noutros lugares.
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JUlHO 2021