CRONENBERG #2

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Carta aberta aos fãs de Paulo Becker, Vou começar pelo início. Eu li sobre o apocalipse durante o último final de semana do verão de 1997. A cada página meu coração soluçava apresentando inclusive alterações ECG. Era um esforço anormal virar as folhas. O livro em questão se chamava “Atrocidades Modernas”, de Paulo Becker, e certamente não agradou a crítica especializada, muito menos aqueles desinteressados pelos rocamboles narrativos desfigurados livremente. Mesmo assim, alguns leitores vorazes toparam criar um grupo de estudos e me convidaram para fazer parte. Achei ok e aceitei. Eu não tinha nenhuma razão para não me engajar nessa atividade. Além disso, eu considerava o livro especial e queria muito me aprofundar nas ideias do autor. Dessa forma, digamos, eu explicitamente entrei para o grupo “Fãs de Paulo Becker”. Segue um excerto do livro: “Você dorme uma noite inteira de sono. Acorda aceso como uma tocha. Como uma lâmpada. Você repete cem vezes o mesmo erro. Você erra tanto que não entende mais se existe algo certo ou errado. Você dorme cem vezes a mesma noite e erra cem vezes do mesmo jeito. Quando desperta você percebe que o mundo é a invenção de cem sonhos. Você acorda e da mesma forma que uma lâmpada que pisca cem vezes você dorme. Sempre uma noite de cada vez


até a centésima noite a última. Quando percebe que não há sonho nesse sono você é trazido de volta para dentro de outro sono. Tudo se parece com cem despertares, com cem noites mal dormidas. Daí você escova os dentes depois de quase doze horas dormindo um sono grosso. Intensas doze horas sem pregar o olho. Ruminando sobre uma vida repetida que erra. Diante desses códigos tranquilizadores ativados por cerca de cem horas trabalhando sem parar você vomita um sonho morto. A lâmpada inventa a sincronia de uma vida. Conforme acende e apaga define quem você/nós é/somos. Durante o sono a lâmpada já acendeu e apagou bem mais do que cem vezes. Talvez um milhão de vezes. Você sonha acordado que uma vida errante escorre pelos seus dedos como água da chuva. Você analisa os vestígios de cem dias encapsulados na vida. É noite. Enquanto você dorme você morre cem vezes um dia de cada vez depois todos ao mesmo tempo até agora.” O autor prossegue: “A sensação aquela, do mero estável e do lado inverso, de várias vidas sobrepostas requer paciência, pois sofre para estabelecer uma relação já morta. Esse tipo de estratégia, de re-e-encenar um indigesto mortífero axioma da vida [validado pela intenção] como se tudo estivesse desprovido de pulsação, mantém a reavaliação de todo o enredo passado e desfavorita o sentimento iminente de um futuro possível. Ao passo que trafegar no entremeio das camadas imensas de vida permite que tenhamos acesso a um longínquo percurso in progress, o real afunda nesse mesmo espaço de


troca. É típico de quem emborca dois litros de álcool (cachaça) de manhã. Tão peculiar. Remete a aspectos rituais de invocação em outros círculos de existência. Dá para notar nas mãos encaroçadas cheias de dutos sanguíneos dilatados vibrando forte debaixo do sol. O gorro enterrado na cabeça pressiona as orelhas de abano comidas e machucadas. Os olhos estão em chamas e atrás deles, lava. Enxergamos tudo por minúsculas fendas ingênuas horizontais guardadas por uma centena de fios ciliais protetores. O ser é inesgotável em termos descritivos e é irregular em sua vontade de fazê-lo. Os braços movem-se em concomitância esporádica com os estímulos mentais. Tudo aqui é governado por capítulos esponjosos construídos em cima de redes virtuais entrelaçadas.” Alguns do grupo pensavam que Paulo Becker era infantil, ou que estava querendo exercitar outra coisa, para além da literatura. Fui atrás e pesquisei. Entendi o que Paulo queria dizer, além de escritor alinhado com as discussões pósmodernas ele é um consultor de UFO, e especialista em abduções. É também um consagrado hipnólogo que viveu mais de 20 anos em diferentes tribos de índios aqui no Brasil a fim de adquirir novos conhecimentos. Ano passado eu fui encontrar Paulo Becker em Sapucaia do Sul, RS. Ele e sua esposa foram muito educados e solícitos para comigo. Na ocasião lembro de ter iniciado uma discussão sobre a hipnose e a abdução. E também sobre o fato da academia brasileira de ciências alegar que a hipnose regressiva não é um instrumento eficaz ou


mesmo apropriado para se investigar abduções. Paulo me olhou bem no grão do olho e respondeu: “Conheço as restrições feitas ao uso da hipnose regressiva e à sua eficácia. Inicialmente, quero dizer que os mais importantes casos da Ufologia mundial foram obtidos através do uso da hipnose. Os filmes com casos ufológicos reais são baseados em depoimentos obtidos pela hipnose. Erros humanos ocorrem em todas as profissões: os historiadores e os tradutores tradicionalmente erram. Os líderes religiosos erram e os maiores desentendimentos entre pessoas no mundo atual se devem às divergências religiosas. Erros legais têm levado inocentes à cadeia. Os erros de médicos, motoristas e pilotos costumam ter conseqüências dramáticas. Os hipnólogos também erram. Garanto que fiz todo o esforço possível para não errar, mas ninguém é perfeito. Há pessoas que por natureza são críticas. Das pessoas assistindo a um jogo de futebol muitas acharão que o juiz prejudicou sempre o seu time, nunca o adversário. Não há nenhum outro instrumento conhecido mais eficiente do que a hipnose para pesquisar os casos de amnésia provocada, ou tempo perdido, tão freqüentes na Ufologia. E digo mais, nossas vidas estão sendo editadas, muitos têm expectativas não realistas sobre as coisas. O que causa uma enorme resistência à aceitação de feedbacks negativos. Filho, nós somos essencialmente digitais, pombas! O mundo está cheio de oportunidades.” E riu, tragando fundo um taruguinho preto.






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