KAOS #1

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"NADA ESTÁ SOB CONTROLE." Com esse motto, damos início aos trabalhos da Kaos 1. O acaso, o acidental, o estranho, o bizarro, o inesperado. Cinco pontos de convergência, cinco qualidades, instâncias, subjetificações ou objetificações do que é a Sincronicidade, atuando como um protoplasma fagocitário da própria Realidade. O desregramento sistemático dos sentidos e uma escuta atenta, mas flutuante, dos mundos em colisão que fluem ao redor de atratores estranhos como via de acesso e ascese a uma ordem além da ordem e do caos, a busca de uma unidade que só se faz na e pela multiplicidade radical, o ponto surrealista, gnóstico, a-causal, de cujos choques se engendram sínteses disjuntivas, linhas de fuga e planos de consistência, zonas autônomas temporárias que se dissolvem no movimento mesmo que as constitui. Neste primeiro volume seguimos o acidente fazendo dele matéria prima para os textos. Acaso e sincronia foram convidados a 'desierarquizar' as inter-relações entre as imensas camadas de vida. Tudo aqui é (des)encontro e entrelaçamento. É a metafísica da dor tentando desesperadamente antecipar o efêmero.



O ACIDENTE Lúcio Manfredi

O acidente é o que emerge, ácido, ao mesmo tempo substantivo e adjetivo. O acidente é o que corrói, o que dissolve, o acidente desfaz. Por exemplo, um avião. E no que desfaz, dá forma, por meio de reverberações, às tentativas de abraçar o imprevisto, de prever o inabraçável. Não é um jogo de palavras. O avião é considerado o meio de transporte mais seguro do mundo, mas isso não quer dizer que seja seguro, é apenas menos inseguro do que os outros. Insegurança, porém, é uma palavra-chave, a etiqueta pendurada no dedão do pé de um ego todo cagado, o ego que jaz no morgue, o ego despedaçado. Ácido, não era o que dizíamos? E todas as providências que tomamos para conjurar o imprevisível, ah, se soubessemos que são o gesto mesmo pelo qual o imprevisto é conjurado, a anfibologia daimônica das palavras de que nos servimos como se fossem serviçais bem comportadas, e também isto é um acidente, a revolta das palavras, a equivocação que multiplica as vozes, também isto é um acidente, também isto é uma litania, uma conjura e uma cabala. E inventamos teorias conspiratórias porque precisamos exorcizar o acidente, precisamos acreditar que há caso e não acaso. No entanto, no entanto, só o acaso inspira o pranto, essa possibilidade absurda, escandalosa, de que o acaso não se oponha ao sentido, de que o acaso é o pai-mãe do sentido, yab-yum, o sentido como faísca gozada que emerge da fricção, da ficção, do estranho atrito entre atratores estranhos, o Pai Acaso e Nossa Senhora da Co-incidência. Há algo aqui profundamente meditável. 2


Acaso, mas também há caso, acredite em mim quando o digo. O caos não é tanto a negação da ordem, quanto a afirmação de uma ordem que transcende a mesquinharia míope do ego. E essa ordem além da ordem, é o acidente que a manifesta. Por exemplo, o avião que pulveriza a rede protetora das estatísticas, o conforto apotropaico das pesquisas eleitorais. E o arrepio na espinha, a nos lembrar que, etimologicamente, acidente é o que está a cair, ad cadere. A etimologia é o parque de diversões do filósofo. Talvez as grandes relações lineares de causa e efeito sejam nada mais do que miragens retrospectivas, e o princípio rotor da realidade resida de fato numa rede de pequenas coincidências sutis, tão pequenas e sutis que passam despercebidas, exceto quando invadem a janela com o escândalo de um escaravelho brotado do sonho, o que às vezes acontece, porque há momentos em que nem os deuses dispensam uma fanfarra, e Tyche também merece o seu quinhão nos altares do mundo. Tyche, a deriva significante, de onde o significado poreja como efeito de superfície. Terei ainda leitores, pergunta-se o texto ansioso, sabendo-se exilado das muletas da estrutura, sabendo-se a criança que grita que o rei está nu, sabendo que a criança que grita que o rei está nu não retém tantos olhares, não se lhe emprestam tanto os ouvidos, quanto as éguas que emprenham pelas orelhas. É um texto honesto, porém, assume-se processo primário, emissão acidental de uma teia estocástica, não tanto ensaio, ainda que pós-estrutural, quanto cadeia markoviana. Permitem-me um instante em que simulo uma adesão ao engodo ululante do óbvio? Pois então, façamos de conta que eu digo que o texto procura capturar no enunciado seu princípio de enunciação, precisava explicar a piada? Todas as orações, especialmente as orações que se rezam, são orações sem sujeito. É por isso que príncipes indianos passam fome debaixo das figueiras, para que o saibam todos: a morte acidental de um anarquista. 3


Acidente é também a existência, por oposição à essência, pelo menos desde que se traduziu os symbebekoi aristotélicos por "propriedades acidentais", aquilo que se agrega, que se acrescenta à substância essencial, o hypokemeinon, não fosse o diabo daquele príncipe indiano ensinar que, quando se retira os acidentes, um por um, não sobra substância nenhuma, tudo é symbebekos, tudo é acidente, e a substância mesma é propriedade acidental, sob a qual resta o vazio, essa Coisa freudiana que Heidegger resgatou do centro de um jarro, a origem da obra de arte. Somos, pois, acidentes, filhos não planejados do acaso e da circunstância. Não do acaso e da necessidade. Espécies inteiras morreram esmagadas pelo tacão de ferro da necessidade, apenas porque o acaso e a circunstância não se uniram para lhes engendrar os meios de sobrevivência. É bem verdade que a circunstância também tem a sua quota-parte na não sobrevivência das espécies, a menos que o asteróide tenha sido um míssil deliberadamente desviado em direção aos dinossauros aliterativos. Há uma hora em que o texto quase faz sentido, então é preciso intervir. Acidentes acontecem. Acidentes acontecem mesmo quando premeditados. Mesmo quando lançado em circunstâncias eternas, do fundo de um naufrágio, um lance de dados jamais abolirá o acaso, ainda que o naufrágio seja titânico, porque o naufrágio é o acidente, e o acidente é o evento, o acontecimento, a singularidade. Que também pode ser aquela singularidade, onde tudo começou. E tudo começou por uma flutuação quântica, portanto por acidente, e neste caso, o acidente é uma explosão inflacionária que engendra o que há por artes de sua própria superabundância criativa. Por que, perguntavase o filósofo, por que existe alguma coisa em vez do nada? E a resposta é: porque acidentes acontecem.

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UNI4ERSO Fabiano Gummo

O destino deste exercício textual não está no que você está lendo, nem no entrelaçamento dos personagens. Ele reside na esfera das imagens mentais proporcionadas. A escrita a seguir também não dirá nada daquilo que pode ser e sim do que não pode ser. Do visual não-ser, bem como do devir imagético. Dentro de 10 minutos restarão apenas algumas lembranças e o que você estará fazendo daqui a 15 minutos é o que de fato importa. Se quiser você pode parar de ler este texto e tentar prestar atenção em qualquer outra coisa – que é o que você já deve estar na iminência de fazer. Mas, existe algo de esquizoanalítico na casa 111 da Alameda Wamosy. Uma palmeira enorme cresce dentro de uma piscina entupida de terra. É como uma desestruturação incerta de um mundo inteiro de rachaduras e reentrâncias. É possível pensar um objeto tridimensional (a casa) como algo vivo no espaço? A vivência nos informa que não. Isso não é realizável, entretanto, parte dessa vivência só é resultado quando nos colocamos em confronto direto com o trauma do discurso.

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Da mesma forma que a história de uma vida a casa abisma o inconsolável. Na verdade, essa é sua maior virtude; é uma característica intra-corrosiva. Uma comoção d’almas cria estratagemas dentro das porosidades subcutâneas do porão. Escutamos um lamurio ruidoso orquestrado por morozumbis. Nos corredores da mansão/presente notamos a marca de múltiplos passados (marcas indestrutíveis do/no tempo). A parte externa é sólida e translúcida. Possui um rosto – e vários. Seu corpo, da casa, está sempre em perspectiva explodida. (O zipt da impressora jato de tinta. O flip-flap-flop do envelope no balcão dos correios. Hirrrrrrc. Logo abaixo, a assinatura do diretor do instituto e alguns códigos informando a data, o tipo de equipamento, a marca, o modelo e o número de série do rolo de negativos. Esta fotografia chegou dentro de um malote junto com outras correspondências, dívidas e boletos bancários.) Vista de cima, a casa é um mapping real precursor de inúmeros rastros existenciais acidentados na combustão do ir. Para enxergar a fumaça imediata, em alguns casos, é melhor se afastar. Nos dutos subterrâneos da casa são expelidos labirintos pictóricos de linhas que extravasam milhares de referências nucleares. Lembra um pouco os sintomas de alguém que precisa pesquisar infinitamente: reclusão, desaparecimento emocional, aposentadoria

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precoce, clausura, distância da mídia, distanciamento da família, depressão e morte. A alameda inteira flutua na g-zero do espaço sideral consumindo patógenos do tamanho de bolas de basquete. Uma rua que assume formas de antigas embarcações. O tempo todo. Sua estrutura variável de microfilamentos e minitubos corrompe o tecido espacial, é parte dele e é todo ele – sem budismos. O espaço acima do espaço vazio da mansão é o ponto de culminância de uma imensa especulação evolucionária. O percurso ao redor da casa foi concebido conforme a teoria das redes que se interpenetram consolidando uma nuvem química de possibilidades em direção a lugar algum. Em dois dos principais quartos, em cima das camas, altamente elegantes, estão acontecendo ao mesmo tempo, duas orgias de Wolfenstein 3D e Duke Nuken 3D (e 2D, também). Além disso, no hall de entrada, o sexo místico-natural pode ser transformado em tática de guerrilha de extrema velocidade e imprevisibilidade. Tudo integrado com suor e lascívia. Nos becos perpendiculares à Alameda Wamosy, logo abaixo da torção, artistas relacionais lançam mão de seus diários esperando amigos homossexuais, heterossexuais e alguns crossdressers que tenham coragem de invadir a câmara de vereadores e atear fogo em tudo. Quando me vi perdido ali, no meio da casa, em 2004 (e em 2010 e 2014), com um canhão de elétrons apontado direto no meio da minha cara, com toda aquela possibilidade gráfica vertendo do nariz, juro

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que fiquei com medo. Fui para o alto da mansão, de onde eu podia ver a UTI neonatal, e desejei uma resolução para uma vida sem truques. Entendi que a Subcultura existe, funciona e até pode te aliviar, mas não é a saída. Estamos na praia. Diagramas da estrutura de usinas elétricas são atravessados por rabiscos e múltiplos pontos. Logotipos de postos de gasolina flutuam entre massas de cor lúgubres como se fosse algo hiperventilado. Frentes de ondas sonoras longitudinais se propagam golpeando a atmosfera, ressonando na molécula de ar. Personagens abduzidos perambulando perdidos sem pernas em becos construídos nos entremeios de caixas-pretas empilhadas dentro de cenários gráficos. Lavanderias e lancherias se confundem dentro de máquinas de lavar sanduíches. Rugido da rua. A ganância do sono. Viadutos. A mansão agora dorme, estamos a 11 minutos de distância da pirâmide. Leio a manchete no outdoor dinâmico que passa por nós a duzentos e trinta e quatro quilômetros por hora. O MUNDO MORRE. Depois de tanto tempo na clausura eu já nem pretendia mais abrir os olhos. E depois de pensar sobre múltiplas leituras de um mesmo alguém, percebo que não carregamos nada prefixado nem conseguiremos cancelar o drama do vivível. Eu não mentiria sobre esse assunto. Pois jamais voltaremos a nos ver. 9



POR UM TRIZ Marco Silva

Quase-acidentes normalmente são desconsiderados pelas pessoas. Afinal, foi por um triz, não é mesmo? Já está tudo bem. Acontece que esses "quase-acidentes" podem - e talvez DEVAM - ser analisados com uma lupa, e das grandes, de preferência. E acabamos por encontrar aí mesmo camadas e mais camadas de circunstâncias fortuitas e outras nem tanto se enroscando numa promiscuidade digna de um conto de Sade pintado por Bosch. Um batidíssimo exemplo do uso desse conceito, normalmente abusado na literatura, é aquele que pergunta "o que aconteceria SE". O que aconteceria se os dinossauros não tivessem sido extintos. O que aconteceria se Colombo nunca tivesse descoberto a América. O que aconteceria se Hitler tivesse vencido a Segunda Guerra. O que aconteceria se mamãe tivesse dito 'não' a papai no baile em que se conheceram. O que aconteceria se eu não tivesse perdido o ônibus onde estava aquela ruivinha linda. Mas aí perdemos o foco. Porque você esquece que existe aquela célula meio esquisita no seu cérebro que em vez de disparar seu sinal para um lado, dispara para outro. E por um segundo você fica confuso e não atravessa a rua bem no momento em que uma jamanta desgovernada passa zunindo. Foi por um triz, não foi? Essa mesma célula pode te matar daqui a dez anos quando virar um câncer. Ou pode disparar de novo pro lado errado e te faz virar o rosto num instante crucial e perder o brilho único e fugaz de um meteoro roxo raríssimo. Que por um triz não cai verticalmente sobre uma casa onde nesse exato instante está nascendo a futura mãe do seu neto que irá fundar a Primeira Colônia Humana em Alfa do Centauro. Agora mesmo você tenta lembrar daquela música que cantou em 11


um sonho, e que poderia ser a que o lançaria numa meteórica - opa carreira musical. Um quase-acidente do Destino que mudaria a História da Humanidade, pois essa música seria usada como inspiração por um grupo de anarcopunks que seriam o estopim de uma nova revolução cultural mundial. Isso talvez fizesse a ruivinha linda gamar e dar origem ao pai do seu neto maluco explorador de novos mundos. O que só poderá acontecer se a garota de nariz empinado aceitar dançar com o gordinho e acabe dando à luz a você. Claro que isso só ocorreria se os pais de seu pai gordinho conseguissem se enroscar nos festejos do fim da Guerra, que nunca ocorreriam se Hitler não perdesse, e que Colombo peloamordedeus não afunde o navio nessas rochas! Nunca é por um triz. Mas por um triz esse texto não sai antes. E quase não sai. Qualquer coisa mensurável tem em si infinitos espaços entre os campos que delimitam suas partículas constituintes. Ah, uma dessas partículas, acelerada à velocidade da luz, atravessou o espaço interestelar desde Alfa do Centauro, nossa atmosfera, seu chapéu, cabelo e crânio e foi atingir um neurônio deixando-o meio esquisito e forçando-o a disparar de forma aleatória. E por um segundo, você ficou confuso e não atravessou a rua, bem no instante em que uma jamanta desgovernada passou zunindo. Entre aquela bendita partícula que salvou o Universo de seu colapso em milhares de Colombos que poderiam ter assassinado Hitler na frente do Edifício Dakota e as ruivas anarcopunks de Alfa do Centauro há miríades de miriápodes que adoram rastejar sobre gordinhos, afastando assim a garota de nariz empinado que viaja em meteoros roxos. Qualquer jamanta poderia nos salvar dos neurônios esquisitos que causam câncer, exceto se acidentalmente carregarem uma banda interestelar que, sadicamente, usa pinturas de Bosch como mantra psiquiátrico. Talvez fosse necessário, então, destruir todo esse Universo de pseudo-significâncias para parir um outro mais incompreensível. Acidentalmente, é claro. 12


Lúcio Manfredi é escritor e roteirista, com contos publicados nas antologias Intempol (2000), Novelas, Espelhos & Um Pouco de Choro (2001), Como Era Gostosa a Minha Alienígena (2002), Histórias do Olhar (2003), Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005), Dez Contos de Terror (2009), Paradigmas 3 (2009), Galeria do Sobrenatural (2009) e Sherlock Holmes – Aventuras Secretas (2012). Seu primeiro romance, Dom Casmurro e os Discos Voadores, foi publicado pela Ed. Leya em 2010.

Fabiano Gummo nasceu em 1978, em Canoas/RS. É um artista que transita em diferentes mídias e sentidos. Suas inquietações se expressam na narrativa visual, no desenho, no vídeo, na animação, no objeto, na pintura, em intervenções sonoras e no texto. Sua produção nos remete às estéticas singulares, conflitantes e ambíguas de sentidos irresolvidos e traços inebriantes, que criam narrativas perversas, absurdas e irônicas e nos conduzem aos percursos em fluxo, reinventados obcecada e incessantemente.

Marco Silva é dublê de escritor, performer e um barítono razoável. Biólogo, gosta de cozinhar enquanto oculta sua vida dupla como mutante alienígena exilado sem muito sucesso.


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