Porque comer é central

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Porque comer é central Economia saudável altera cardápio do brasileiro

por Fábio Caldeira Ferraz

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nalisar a população de uma cidade, de um país ao longo do tempo, é uma perspectiva promissora para identificar como são saciadas as necessidades alimentares em diferentes locais e épocas. Mais do que o paladar, foram a geografia, a economia e a religião a nos compelir dietas, induzir à formulação de receitas e a determinar as culturas e animais a serem domesticados. Durante a maior parte da história, esses e outros fatores fizeram a moldagem constante das preferências ao meio, não o contrário. Está à mesa boa parte do registro do passado. Em nossa vida nutricional alguns aspectos foram de tal sorte determinantes que, ao constatá-los, revisitamos milhares de anos. A conservação dos alimentos tem início no uso do fogo, e a vanguarda na liofilização. Passa pelo uso das especiarias e pela pasteurização. Do homem das cavernas ao astronauta, da Pré-História à Modernidade. E se a mesa diz tanto sobre as contingências e possibilidades do passado, o que dirá sobre o Brasil contemporâneo? Ou mantida a ordem proposta anteriormente: o que diz a respeito da mesa o sétimo Produto Interno Bruto do mundo, dono de uma moeda forte,

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ABRIGADOS EM UM BAR DE UMA CIDADE TOMADA PELO SILÊNCIO E pelo SONO, OS NOTÍVAGOS DE NIGHTHAWKS TêM NA BEBIDA DAS XÍCARAS NADA MAIS DO QUE O PRETEXTO PARA UMA INTERAÇÃO DISTANTE. JÁ, AO LADO, EM AUTOMAT É A XÍCARA QUEM FAZ aS VEZES DE ACOMPANHANTE EM UM BAR VAZIO. NOVAMENTE, O CONSUMO DO ALIMENTO PARECE EXISTIR ALI PARA ATENDER a OUTRA FINALIDADE, EM NADA LIGADA À REFRESCÂNCIA PROPORCIONADA POR UM CHÁ FRIO OU CONFORTO DE UMa XÍCARA DE CAFÉ QUENTE. AMBOS OS QUADROS, O PRIMEIRO FEITO EM 1942 E O SEGUNDO EM 1927, SÃO DE AUTORIA DO PINTOR REALISTA AMERICANO EDWARD HOOPER (1882-1967).

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economia estável, às margens do pleno emprego e saudável, do tradicional arroz com feijão e da culináterceiro maior exportador agrícola — em verdade, se- ria étnica, da simplicidade e da alta gastronomia. Parte disso foi possível pela incorporação de equigundo, uma vez que os europeus são contabilizados em conjunto? Especialmente que o cenário é de rápida pamentos e processos que reduziram o tempo de feitura dos pratos. O Instituto Brasileiro de Geografia transição. Mantida a tendência, em poucos anos nossos e Estatística (IBGE) observou em estudo o que muihábitos serão compatíveis com os verificados em tos já perceberam — mesmo estabelecimentos mais países mais desenvolvidos, sobretudo nos Estados sofisticados minimizaram sensivelmente o tempo de espera. Nos 1970, a deUnidos. A exemplo dos pender da escolha no resamericanos, estamos coDuas décadas depois, o “bon taurante, o cliente podemendo mais fora de casa. ria aguardar por até duas No ano passado, de cada appétit” do garçom era dito horas a iguaria. Duas déR$ 100 gastos com alicadas depois, o “bon appémentação — “investidos”, 15 minutos após a escolha tit” do garçom era pronundirá o gourmand —, R$ 31 ciado 15 minutos após a referem-se à aquisição de refeições preparadas fora do lar ou no mercado de escolha — desempenho relativamente próximo ao de food service, como prefere a Associação Brasileira uma lanchonete ou restaurante por quilo. A boa performance econômica do food service endas Indústrias de Alimentação (ABIA). Nas contas da entidade, o faturamento praticamente dobrou nos contra causa e efeito também no barateamento relativo últimos anos. Na América de 2010, o food service che- dos ingredientes e na expansão das redes de atendigou a 48% dos dispêndios feitos pela população — um mento. Outro elemento externo com aparente influência sobre o tema é o aumento da participação das mutotal de vendas de US$ 529 bilhões. Para aquinhoar uma fração dos R$ 75 bilhões lheres na População Economicamente Ativa (PEA). A vendidos no Brasil de 2010, 1,4 milhão de estabeleci- Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), mentos — entre hotéis, restaurantes, bares, lanchone- de 1971, reconhece apenas 23% da PEA como do gênero tes, padarias, deliveries, cafés, sorveterias e pontos feminino. Em 2008, o percentual era de 43,6%. Motivada por quesdiversos de refeições rápidas — mantiveram Mercado de Alimentação no Brasil (em R$ bilhões)* tões materiais e culturais, a ida das mulheres 6 milhões de postos de 200 ao mercado de trabalho trabalho e investiram 180 parece ter sepultado a em produtos e servi160 ordem anterior, calcada ços condizentes com as 140 na pontualidade da reunecessidades do brasi120 100 nião familiar à mesa, leiro de hoje. Que é ma80 no preparo da refeição joritariamente urbano, 60 pelas mãos da principal com renda crescente, 40 figura feminina da casa acossado pela falta de 20 e na qual a opção “comer tempo, com muitas di0 2005 2006 2007 2008 2009 2010 fora” era entendida como ficuldades logísticas e Food Service Varejo luxo ao qual só eventualde hábitos alimentares mente se podia recorrer. amplos: apreciador do * Vendas da indústria de alimentação por canal. Fonte: ABIA. Na ordem atual, o mercajunk food e da comida

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Índice Big Mac

Longe de minimizar os do de alimentação fora do US$ 8,31 problemas cambiais ou os lar assume a vanguarda ao preços no mercado mundial perseguir a massificação US$ 8,01 de commodities, em alta reda oferta, o rápido acesso e nitente desde 2008, comer satisfação do desejo do infora de casa por aqui implidivíduo, a celebrização de Dinamarca ca obrigatoriamente lidar personagens do segmento, Suíça com questões locais que encomo empresários e chefs, gordam a conta — e a lista e o enaltecimento acrítico US$ 7,64 de inflacionantes é enorme, de marcas. a despeito de quem a faça. Mesmo com todos os esUS$ 6,16 Acadêmicos, empresários e tímulos ao barateamento, representantes de entidades no Brasil, a coluna direita Suécia do segmento responsabilido cardápio continua desazam, no front externo, três gradando a muitos. Safras grandes grupos pelo cerne do recordes no campo, demanBrasil US$ 4,07 problema. Carga tributária, da aquecida e ampliação legislação e infra-estrutura da oferta têm se mostrado têm pressionado a subida incapazes de estabilizar os US$ 1,94 dos preços, ainda não ao ponpreços. Capitais como São to de fazer recuar as taxas de Paulo e Rio de Janeiro já Estados Unidos crescimento do food service, ostentam estabelecimenmas de impedir uma expantos com valores acima dos são mais rápida, na opinião praticados em países cuja Hong Kong da Associação Brasileira de renda per capita é bem suBares e Restaurantes (Abraperior à brasileira — e isso O índice big mac the economist, a partir de 2011, passou sel). Para a entidade, o ritmo vale tanto para restaurana analisar também a relação de valor entre as moedas médio de ampliação de 18% tes de primeira linha quandos mais de cem países pesquisados, tendo o dólar como divisa de referência, e não apenas o preço do lanche em ao ano, verificado entre 2005 to para lanchonetes. valores absolutos nesta moeda. O real é a moeda mais e 2010, poderia ser maior não Publicado todos os anos sobrevalorizada do mundo ante o dólar — 149% —, enquanto fosse o trio. pela revista semanal ingleo sanduíche brasileiro, nos cálculos da revista britânica, é o quarto mais caro do mundo, e o de Hong Kong, o mais barato. É dificílimo sustentar sa The Economist, o Índice O topo do ranking é ocupado pela Dinamarca. a viabilidade financeira de Big Mac, ao lado, compara um food service em grandes entre os países o valor do famoso sanduíche da rede americana McDonald’s, con- centros urbanos do País. O empreendedor precisa lisiderando o postulado pela teoria da paridade do poder dar com uma carga tributária que sorve anualmente de compra, que busca auferir quanto uma determinada de 35% a 40% de toda a riqueza produzida pelo setor moeda pode comprar globalmente. Em valores absolu- privado, um Estado sempre disposto a legislar. Dos tos, o lanche por cá só não é mais caro que na Suécia, locais nos quais as pessoas devem ou não fumar à Suíça e Dinamarca, respectivamente, US$ 7,64, US$ forma como é oferecido o couvert. Somado ao encare8,01 e US$ 8,31, contra US$ 6,16. O indicador de 2011 cimento dos imóveis, aos imprescindíveis gastos com aponta ainda o real como a moeda mais valorizada en- segurança, a uma logística que, para se viabilizar, se vale dos fretes mais caros do mundo e às dificuldatre os países em relação ao dólar — 149%.

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des de manter um ponto Distribuição dos gastos com food service comercial em endereços com escassez de vagas 2% 7% para carros. De cem estabelecimentos abertos, Almoço e jantar na capital paulista, ape Refrigerantes, cervejas e outros nas três completam dez 26% Sanduíches e salgados 42% anos. Trinta e cinco fe Agregadas e outras cham em 12 meses, uma Café da manhã tragédia para um dos ramos que, atualmente, mais atrai novos empreendedores. 23% Outra lista de ingreFonte: IBGE/POF 2003 e ABIA. dientes ajuda, no front interno, a salgar os preços. “Falta de planejamento, falta de profissionalismo e, principalmente, seja, menos empregos e menor renda não têm feito as muitos empresários acham que abrir um restaurante pessoas voltarem, necessariamente, a comer em casa. é ter alguém que cozinhe bem, o que tem se comprova- Nos últimos três anos, houve um recuo de apenas 2% do bastante errado”, afirma Marcelo Traldi, professor nos gastos dos americanos com a alimentação fora do lar, o que sugere uma certa consolidação de Gastronomia do Centro Universitádos hábitos atuais. rio Senac e autor do livro Tecnologias Talvez estejamos diante de uma irreGerenciais de Restaurantes. Ele deversível mudança — a exemplo da incorfende a melhora do quadro a partir da poração ao cotidiano de computadores experiência da maioria dos bons chefs, domésticos e celulares. Como no passaque tem se associado a pessoas com vido, fatores externos hegemônicos molsão de gestão, dividindo assim as taredaram as “necessidades” alimentares — fas de acordo com a especialização de a novidade agora está no alcance global cada um. do modelo, que se mostra a expressão Não obstante o inadiável ganho de maior de uma conquista. Enriquecemos eficiência, os agentes do mercado de de subjetividade algo objetivo e primáfood service sabem que ainda há muito rio como o ato de comer. Hoje ele se espaço para expansão. A experiência mantém central não somente por que americana ensina que o crescimento desejamos ingerir um conjunto de nuda renda da população tende a ser reTRINTA E DOIS QUADROS COM UMA trientes que satisfaçam as demandas vertido em maior consumo no segmen- PINTURA DE LATA DE SOPA CAMPBELL’s to — exatamente o que ocorre por aqui. FORAM SUFICIENTES PARA SUSCITAR, EM do organismo, mas, sobretudo, porque perseguimos o prazer dos sabores, as A própria crise pela qual passam Euro- 1962, O DEBATE SOBRE ENALTECIMENTO ACRÍTICO DAS MARCAS PELA experiências dos locais onde fazemos pa e Estados Unidos tem sido bastante PUBLICIDADE E PELAS ARTES. A FAMOSA didática. A readequação dos hábitos OBRA DO ARTISTA ANDY WARHOL (1928- refeições e as relações com quem divi1987) FOI APOIADA FORMALMENTE dimos a mesa. Comíamos, no passado, alimentares não está acompanhando o PELA FABRICANTE DO ENLATADO, movidos pela fome; agora, por desejo. agravamento do cenário econômico. Ou CONTRIBUINDO PARA CONSOLIDAR A POP ART NOS ESTADOS UNIDOS DA CONTRACULTURA.

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