Anais COG 2014

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FORTALEZA, ABRIL DE 2014


Anais dos Simpósios Temáticos do III Seminários Internacional Gênero, Cultura e Mudança Copyright © 2014 -­‐ Fábrica de Imagens -­‐ Ações Educativas em Cidadania e Gênero Distribuição Gratuita. A reprodução de todo ou parte deste material é permitida somente para fins não lucrativos e com a prévia e formal autorização da Fábrica de Imagens -­‐ Ações Educativas em Cidadania e Gênero. Comissão científica dos Simpósios: Aline Maria Barbosa Domício Ana Rita Fonteles Duarte Fernando Altair Pocahy Juliana Fernandes Marcos Antonio Monte Rocha Projeto Gráfico: Thyago Nogueira Revisão textual: Juliana Justa Tiragem: 300 cópias Feito no Brasil Distribuição: Fábrica de Imagens – Ações Educativas em Cidadania e Gênero Rua Odilon Benévolo, 1133 – Maraponga 60710715 -­‐ Fortaleza – CE Tel: (85)34951887 E-­‐mail: fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br www.fabricadeimagens.org.br Fortaleza, 2014


Anais dos Simpósios Temáticos do III Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança

2014



APRESENTAÇÃO Que seria a liberdade? Diz-­‐se muito do sentimento ou estado daquela ou daquele que goza das possibilidades de pensar, agir e se expressar em condições de consciência, autonomia e igualdade. Mas, afinal, poderíamos dizê-­‐la uma ação prática, um direito, uma utopia? Onde está a liberdade, que cores assume, que imagens a conduzem? É com essas e outras inquietações que o Curta o Gênero chega à sua terceira edição, sendo realizado em Fortaleza entre os dias 7 e 11 de abril de 2014, convidando à transformação de mentalidades por meio do debate e difusão de obras audiovisuais, acadêmicas, fotográficas e musicais comprometidas com a denúncia das desigualdades de gênero, com a construção ou invenção de outras representações e interpretações simbólicas baseadas na equidade de gênero e na afirmação da diversidade sexual. As provocações supra partem da compreensão de que é necessário e urgente discutir o cenário das relações de gênero no país, não só porque ele aponta para graves violações de direitos das mulheres e das populações LGBT, por exemplo, mas também porque, por outro lado, a performatividade dos corpos, as teorias pós-­‐estruturalistas e os movimentos feministas têm desafiado os paradigmas estabelecidos sobre gênero e sexualidade, seja denunciando e interpretando este cenário, seja propondo alternativas insurgentes, afirmativas dos direitos e de uma democracia radical, convidando-­‐o a se reinventar, assim como a nós mesmos(as). Nesse sentido, o Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança integra mais uma vez a programação do Curta o Gênero, sendo um espaço de debate acadêmico e formação política que aborda temas relevantes do desse atual contexto histórico-­‐cultural das relações de gênero no Brasil e no mundo. É com alegria, portanto, que compartilhamos neste CD-­‐ROM uma compilação dos trabalhos selecionados para os Simpósios Temáticos do evento, os quais reuniram estudantes, pesquisadores(as), educadores(as) e ativistas em torno do debate e troca de experiências em pesquisa sobre Gênero, Sexualidades, Democracia, Violações de direitos, Liberdade e Feminismos na contemporaneidade. O Curta O Gênero é uma realização da ONG Fábrica de Imagens – Ações educativas em cidadania e gênero, com apoio da Casa Amarela Eusélio Oliveira/Universidade Federal do Ceará – UFC, do Laboratório Multiversos – Corpo, Gênero e Sexualidade nos Processos de Subjetivação (PPGP/UNIFOR) e patrocínio do Programa de Desenvolvimento e Cidadania da Petrobras. Esperamos que esta publicação possa contribuir com o debate político e acadêmico dos(as) leitores(as), fortalecendo a luta diária de afirmação da diversidade, da equidade de gênero e do combate ao machismo, à misoginia e à homo/lesbo/transfobia. Boa leitura!


SUMÁRIO 1. SIMPÓSIO 1 .............................................................................................................. 8 Eixo “Gênero, direitos sexuais e reprodutivos” Eixo “Gênero, corpo, identidades e diversidades” Coordenação: Aline Maria Barbosa Domício A experiência do aborto clandestino: Sobre motivações e justificativas envolvidas na decisão .................................................................................................................... 9 Jullyane Carvalho Ribeiro Cartografias do envelhecimento: Travestilidades e desejo ..................................... 15 Francisco Francinete Leite Junior; Fernando Altair Pocahy Olhares transitórios, corpos controversos: “Gênero” a partir de cenários sado-­‐ fetichistas ............................................................................................................... 21 Marcelle Jacinto da Silva Um olhar sobre as festas e interações afetivas de africanos e africanas no contexto da migração estudantil ........................................................................................... 27 Ercílio Neves Brandão Langa Musicoterapia como práxis teológica: Interseções entre gênero e deficiência no desenvolvimento da independência de crianças e adolescentes com deficiência em atendimento psicoterapêutico ............................................................................... 33 Luciana Steffen 2. SIMPÓSIO 2 .............................................................................................................39 Eixo “Gênero, educação, cultura e comunicação” Coordenação: Ana Rita Fonteles Duarte Uma análise de gênero através das charges do governo de Maria Luiza ............................................................................................................................... 40 Bárbara Rangel Venâncio Autoria Feminina e o Contorno de Si ...................................................................... 45 Camila do Nascimento Carmo “Fêmeas” Negras: construções da alteridade feminina nas fotografias oitocentistas brasileiras .............................................................................................................. 50 Danielle Rodrigues de Souza Valentim Da invisibilidade à estereotipização: a violação dos direitos das mulheres negras na mídia brasileira ...................................................................................................... 56 Érica Maria Santiago; Thaís Cristine de Queiroz Costa; Sara Rebeca da Mota Sales


“A pele que habito” e o enfoque queer de Almodóvar ............................................................................................................................... 62 Gláucio Barreto de Lima; Ana Maria Barreto de Lima Experiências no espaço escolar: debates de gênero, educação em direitos humanos, diversidade sexual e sexualidade ............................................................................ 70 Marcela Souza Santos A Representação da Homossexualidade na Televisão Brasileira: Uma análise descritiva dos personagens gays das telenovelas da Rede Globo ............................................................................................................................... 76 Rulio Jordan Barros Borges “Não é do interesse do Estado”: a censura às telenovelas, uma questão de gênero ............................................................................................................................... 82 Thiago de Sales Silva 3. SIMPÓSIO 3 ............................................................................................................ 87 Eixo “Gênero e violência” Coordenação: Juliana Fernandes Violência doméstica e gênero: algumas aproximações ........................................... 88 Yashmin Michelle Ribeiro de Araújo; Maria das Graças Almeida Valente; Rebeca Anastácio da Silva Gênero e violação dos direitos previdenciários ....................................................... 94 Thaís Cristine de Queiroz Costa; Flávia Rebecca Fernandes Rocha A importância do fortalecimento da rede de atendimento à mulher em situação de violência ............................................................................................................... 100 Alynne Alves Crispim; Suamy Rafaely Soares Problematizando as pedagogias da violência: A heteronormatividade também se ensina-­‐aprende na escola...................................................................................... 104 Marília Lincoln Barreira; Juliana Fernandes; Fernando Altair Pocahy A Igreja e a Violência Doméstica contra as Mulheres .............................................. Daniéli Busanello Krob Violência masculina e juvenil no interior do Estado do Ceará: A produção de sujeitos assujeitados pelo sistema de justiça ..................................................................... 111 Nayara Alinne Soares Mendonça Violência e morte social dos travestis na Penitenciária Industrial Regional De Sobral ............................................................................................................................. 123 Francisco Elionardo de Melo Nascimento Aspectos polêmicos do Projeto de Lei de Criminalização da Homofobia no Brasil ............................................................................................................................. 129 Bruno Alves de Sousa


SIMPÓSIO 1 EIXOS “GÊNERO E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS” E “GÊNERO, CORPO, IDENTIDADES E DIVERSIDADES”

Síntese da Proposta Este Simpósio engloba investigações relacionadas à interlocução entre os temas: (I) gênero, corpo, identidades e diversidades e (II) gênero e direitos sexuais e reprodutivos, com foco teórico e metodológico nos estudos culturais, interdisciplinares, pós-estruturalistas e marcadamente discursivo-desconstrucionistas. Neste cenário, objetiva divulgar a relevância acadêmica da ação investigativa crítica e avanços no conhecimento das cartografias performáticas presentes no gênero, através do intercâmbio de experiências de várias partes do Brasil. A originalidade das pesquisas vai desde a tutela e efetividade do direito ao aborto, dominação masculina, encarceramento feminino, musicoterapia e práxis teológica, interações afetivas africanas até às estratégias identitárias dos sentidos corporais no forró, transvestilidades e envelhecimento. Pretende-se fortalecer o ineditismo das experiências e as metodologias de apreensão da realidade de pesquisa propostas. Coodedação: Aline Domício Psicóloga (UFC), docente do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), sendo profissional colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas MULTIVERSOS / Corpo, gênero e sexualidade nos processos de subjetivação – vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma instituição. Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Minho, Portugal/Universidade de São Paulo, Brasil (UMINHO/USP). Psicoterapeuta com formação em gestalt-terapia, dinâmica de grupos e biodança. Autora do livro: “No Rastro das Marias – contribuições feministas para a psicologia comunitária latinoamericana” (Appris) e coautora em “Recortes e Vivências em Psicologia Comunitária” (HBM). Possui interesse nos temas: gênero, corpo, identidade narrativa e intervenções comunitárias. Leciona na graduação em Psicologia do Centro Universitário Estácio/FIC do Ceará e faz parte da equipe de profissionais do Centro Halasana de psicologia, yoga e terapias integradas.

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A EXPERIÊNCIA DO ABORTO CLANDESTINO: SOBRE MOTIVAÇÕES E JUSTIFICATIVAS ENVOLVIDAS NA DECISÃO1 RIBEIRO, Jullyane2 RESUMO/ ABSTRACT A necessidade de conhecer os relatos das mulheres que passaram pela experiência do aborto clandestinamente foi o ponto de partida desta pesquisa. Busquei verificar como as mulheres que realizaram o procedimento articulam seus relatos sobre a experiência vivida do aborto, as suas motivações e as suas justificativas para a prática. Para tanto, realizei um total de onze entrevistas em profundidade no Distrito Federal e entorno de Brasília. Inúmeras relações de poder e conflito se articulam e influem na decisão ou não pelo aborto. Neste contexto, as mulheres tomam suas decisões pesando as possibilidades materiais e emocionais, as expectativas com relação aos seus relacionamentos, os seus projetos de vida e perspectivas futuras. The need to know the stories of women who have experienced abortion clandestinely was the starting point of this research. I sought to identify how women who underwent the procedure articulate their reports on the experience of abortion, their motivations and their justifications for the practice. To do so, I conducted a total of eleven in-depth interviews in Distrito Federal and around Brasilia. Numerous power and conflict relations articulate and influence the decision whether or not to abort. In this context, women make their decisions by weighing the material and emotional possibilities, expectations regarding their relationships, their life projects and future prospects. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Aborto Reprodutivos (Reproductive Rights).

Clandestino

(Clandestine

Abortion).

Direitos

INTRODUÇÃO Neste trabalho, apresento parte dos resultados da pesquisa que realizei em minha dissertação de mestrado, cujo objeto são as experiências de abortamento clandestino3 relatadas por mulheres que realizaram um ou mais de um aborto nessas condições. Os relatos que escutei percorrem uma zona delicada e ambígua, a qual desafia a noção dominante da maternidade como um dom, como o mais natural dos destinos, inquestionável e inevitável. Com esta pesquisa, almejei verificar como as mulheres que realizaram o procedimento articulam seus relatos sobre a experiência vivida do aborto, as suas motivações e as suas justificativas para a prática. Pretendi ainda analisar de que forma essas mulheres processam as suas experiências emocionais perante o aborto clandestino e suas consequências e observar como a ilegalidade da prática atinge diferencialmente essas mulheres em suas especificidades de classe, raça, sexualidade, estado civil e geração, no que diz respeito tanto às suas 1

The Experience of Clandestine Abortion: on motivation and reasons involved in the decision. Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Brasília-DF. jullyaneribeiros@gmail.com Clandestino aqui entendido como ilegal, previsto pelo Código Penal brasileiro como um crime contra a vida. Pretendi observar também, durante a pesquisa, como a categoria da clandestinidade seria articulada pelas próprias entrevistadas. 2 3

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motivações e justificativas quanto às condições em que o procedimento foi realizado e aos recursos disponíveis. Minha intenção foi reconstituir as trajetórias dessas mulheres tendo como fio condutor a vivência da sua sexualidade e suas trajetórias reprodutivas. Para tanto, realizei um total de onze entrevistas em profundidade no Distrito Federal e entorno de Brasília. Outros importantes objetivos foram verificar como se deu a relação dessas mulheres com seus corpos e com sua autonomia reprodutiva após o procedimento, se houve alguma espécie de mudança em sua relação com os artifícios de controle de fertilidade ou na forma como percebem seus processos corporais e, por fim, se a experiência por que passaram coloca em perspectiva a possibilidade de mudança e ressignificação de seus valores morais. No presente resumo, entretanto, tendo em vista o espaço limitado, optei por apresentar o trecho do trabalho em que analiso os motivos e as justificativas fornecidas pelas mulheres no que se refere ao aborto realizado.

METODOLOGIA Buscando atingir os objetivos de pesquisa, realizei entrevistas semiabertas em profundidade no Distrito Federal e entorno de Brasília, com a finalidade de reconstituir as trajetórias de vida de mulheres que fizeram um ou mais abortos. Levando em consideração a clandestinidade da prática, a qual envolve uma situação de ilegalidade, além de uma carga emocional e de intimidade muito grande, o critério adotado, de chegar a essas mulheres por meio de minha rede de relações pessoais, mostrou-se como a maneira mais adequada de aproximação. Ao final do processo de recrutamento cheguei a um total de onze entrevistas, realizadas no período de junho a dezembro de 2013. Foram tomadas todas as providências para manter as identidades das participantes em sigilo, além de outros cuidados éticos necessários à realização da pesquisa, incluso um termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O fato de o abortamento ser uma prática ilegal demandou um cuidado ainda maior com relação ao sigilo das informações coletadas. A pesquisa passou pelo crivo do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, tendo sido aprovada pelo colegiado deste por obedecer aos requisitos éticos necessários à sua realização. DISCUSSÕES As pesquisas sobre o aborto já realizadas no Brasil apontam que os motivos relatados para a sua prática variam, em especial, segundo a idade, o contexto social e a situação conjugal

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das mulheres. Os estudos encontram como principais justificativas para a interrupção da gestação a necessidade de adiar a maternidade para a continuação de estudos ou trabalho, a falta de recursos financeiros e a natureza ou o grau de legitimidade da relação com o parceiro (MENEZES; AQUINO, 2009). Tais justificativas foram as principais citadas pelas entrevistadas quando questionadas sobre os motivos que as levaram a optar pelo abortamento. Foram relatados principalmente falta de apoio, tanto material quanto emocional, por parte da família e do parceiro, falta de estabilidade financeira, medo de perder o emprego, pressão de terceiros e ainda a inserção em relacionamentos violentos. Pedrosa e Garcia (2000) afirmam que está presente na decisão pelo aborto um dilema entre a moralidade prescrita socialmente e as condições materiais em que se encontram as mulheres no momento da gravidez. Observei também nos relatos que a justificativa em que as entrevistadas se apoiaram para tomar as suas decisões e solucionar este conflito foi a da falta de condições econômicas ideais e⁄ou incapacidade de enfrentar as consequências psicossociais da maternidade em um contexto de abandono. Na maior parte dos casos, a decisão pelo aborto envolve um intenso conflito e sofrimento. Entretanto, tal dilema moral não foi uma regra nas entrevistas, tendo sido secundarizado nos relatos de algumas mulheres sobre a sua decisão pelo aborto, pautada pela racionalidade e pelo pragmatismo. DiGiovanni (2008) chama a atenção para o fato de que é em relação ao projeto de vida elaborado que se define uma gestação como desejável ou indesejável. Ainda que a realização da maternidade não seja posta em questão para algumas mulheres, elas conscientemente estabelecem regras e formulam planos específicos para a sua concretização. Tais projetos, entretanto, não são estáticos, sendo constantemente reafirmados ou reatualizados. Foi manifestada, também, em algumas entrevistas a vontade de levar a gestação adiante apesar dos impedimentos de ordem prática ou material que se apresentaram naquele momento. Nesses casos, as informantes afirmaram buscar realizar o procedimento o mais rápido possível para evitar maiores conflitos que as levassem à dúvida ou a uma mudança de opinião tendo em vista o contexto desfavorável em que se encontravam. Alguns estudos indicam a importância que assume o papel da rejeição ou aceitação da gravidez pelos homens e das expectativas das mulheres em relação ao envolvimento destes no processo de decisão. Em pesquisas realizadas com homens sobre as questões reprodutivas observa-se que faz parte de seu discurso a noção de que compete às mulheres decidirem sobre a continuidade ou não das gestações (PINTO, 1998). Pude observar, na presente pesquisa, que tal abstenção implica em uma responsabilização unilateral das mulheres pelas consequências de sua decisão, em especial se esta decisão envolve levar a gestação adiante.

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Entretanto, em alguns casos, o parceiro age ativamente no sentido de influenciar e promover o aborto: 4

Alice : Quando eu fiz o teste ele estava junto e a reação dele foi: vou te apoiar em qualquer decisão que você tomar [...] Só que ele começou a me pressionar pra fazer, pra abortar e falou que se eu não fizesse ele ia desaparecer [...] A minha intenção era ter a criança. Se não fosse toda essa pressão do cara e eu tivesse alguma esperança de ter apoio na minha casa, eu não teria feito.

Nenhum dos abortos aqui retratados foi realizado em relações de matrimônio e poucos em relações de namoro estável. Há uma especificidade das entrevistadas que já tinham filhos anteriormente à experiência do aborto, pois estas já se encontravam em uma situação de criá-los sem um parceiro estável, recusando a gestação justamente por não querer repetir a experiência. Em alguns depoimentos fica explícita a autonomia da mulher no sentido de não levar a gestação a termo. Em um dos casos, apesar do parceiro ter demonstrado interesse em levar a gestação adiante, a possibilidade não foi cogitada pela entrevistada. A lógica nesta situação, entretanto, é a mesma dos casos anteriores, de que a decisão e as consequências da gestação são de responsabilidade exclusiva das mulheres, tendo em vista que a gravidez ocorre em seus corpos e o cuidado com os filhos é socialmente relegado a elas: Bárbara: Não, não teve nenhuma influência porque ele deixou meio que em aberto: “Olha se você quiser ter, a gente vai ter, e se você quiser abortar...” Aí eu falei: “Não, não tem essa de se você quiser ter, não existe essa possibilidade”. E aí ele: “Então tudo bem”. Os relatos das entrevistadas mostram que as relações de violência estão também imbricadas no drama no aborto clandestino. Bandeira e Almeida (no prelo) enfatizam que a violência de gênero originada na intimidade amorosa revela a existência do controle social sobre os corpos, a sexualidade e as mentes das mulheres, evidenciando a inserção diferenciada de homens e de mulheres na estrutura familiar e societal (BANDEIRA; ALMEIDA, no prelo). Pude observar nas entrevistas algumas nuances específicas em que esta violência se manifesta, sendo cruciais na decisão pela interrupção da gestação: Glória: Resolvi abortar por conta de violência do meu namorado [...] Todos os meus passos eram vigiados. Eu era perseguida direto por ele. E aí eu comecei a ver assim... “Se eu tiver um filho com esse homem, vou ficar amarrada o resto da minha vida com esse homem e brigando e minha vida vai ser horrível porque ele é uma pessoa quase psicopata”. Então eu resolvi fazer sem ele saber, sem avisar a ele.

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Os nomes das entrevistadas foram modificados, com o intuito de preservar suas identidades.

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Portanto, o planejamento reprodutivo e a decisão de interromper ou não a gestação parecem estar fortemente relacionados aos projetos de vida das mulheres em determinadas fases de suas trajetórias. O evento do aborto identifica-se, em especial, com a frustração de determinados planos e projeções, sejam elas econômicas, afetivas, emocionais, profissionais ou outras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A decisão pelo aborto significou, para a maior parte das mulheres entrevistadas, um dilema entre a convicção de que se trata de uma conduta moralmente condenável e a certeza de que as circunstâncias de vida em que se encontravam no momento em que engravidaram não lhes permitiria levar a gestação adiante. Tais circunstâncias envolveram principalmente falta de estabilidade financeira, falta de apoio material e⁄ou emocional, medo de perder o emprego, pressão do parceiro, situação de envolvimento em relacionamentos violentos, além da interrupção de planos pessoais, incompatíveis com a maternidade no contexto em que engravidaram. Pude observar que, na maior parte dos casos, a decisão pelo aborto envolveu um intenso conflito, motivado pelo medo do procedimento – tendo em vista os riscos envolvidos na realização de um aborto clandestino, pela projeção de uma maternidade idealizada e, muitas vezes, desejada, e ainda pela possibilidade de aceitação do parceiro. Em dois dos casos relatados a violência perpetrada pelo parceiro foi a principal responsável pela decisão das mulheres de recorrer ao aborto. Entretanto, ainda que estivessem em uma situação óbvia de vulnerabilidade, tendo em vista os relacionamentos violentos em que estavam inseridas no momento da interrupção da gestação, não é possível reduzir a sua decisão pelo aborto apenas a um contexto de falta de autonomia, em que seriam vítimas passivas de uma situação. Nesses casos, as mulheres pesam em suas decisões, principalmente as consequências de ter um filho com um homem violento, um vínculo que se recusam a assumir. Inúmeras relações de poder e conflito se articulam e influem na decisão ou não pelo abortamento. A materialidade da gestação no corpo feminino e a unilateral responsabilização das mulheres pelos cuidados com os filhos em nossa sociedade possibilita um cenário de evasão e exclusão dos homens do processo reprodutivo. As situações descritas, que envolvem recusa da gestação pelos parceiros, podem ser lidas pelo prisma da falta de autonomia feminina no sentido de decidir sobre as suas gestações, tendo em vista a pressão exercida para que abortassem. Entretanto, observa-se que as decisões dessas mulheres foram tomadas racionalmente, ainda que motivadas por questões emocionais. Estas levaram em consideração

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o contexto de falta de apoio do parceiro e demais familiares, além de suas perspectivas e planos de vida. As entrevistadas optaram pelo aborto, ainda que estivessem dispostas a continuar com as gestações, por não aceitar um cenário em que deveriam arcar com as responsabilidades de terem filhos sem pais. Portanto, se trata de um processo mais complexo, em que as mulheres tomam suas decisões pesando as possibilidades, as expectativas com relação ao relacionamento e os seus planos e perspectivas futuras.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Lourdes Maria; ALMEIDA, Tânia Mara Campos. Violência de gênero: um campo teórico e de investigação (prelo). DIGIOVANNI, Rosângela. Entre mulheres: considerações sobre aborto, religião e projetos de vida. Anais Fazendo Gênero 8: Corpo, Violência e Poder. Florianópolis. 25-28 ago. de 2008. MENEZES, Greice; AQUINO, Estela. Pesquisa sobre o aborto no Brasil: avanços e desafios para o campo da saúde coletiva. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.25, supl.2, p.193204, 2009. PEDROSA, Ivanilda Lacerda; GARCIA, Telma Ribeiro. “Não vou esquecer nunca!”: a experiência feminina com o abortamento induzido. Rev.latino-am.enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 6, p.50-58, dezembro 2000. PINTO, Elisabeth Aparecida. Aborto numa perspectiva étnica e de gênero: o olhar masculino. In: ARILHA, Margareth; UNBEHAUM, Sandra; MEDRADO, Benedito (org.) Homens e Masculinidades: Outras Palavras. São Paulo: ECOS/Ed. 34, 1998. p. 121-128.

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CARTOGRAFIAS DO ENVELHECIMENTO: TRAVESTILIDADES E DESEJO5 LEITE JR, Francisco Francinete6; POCAHY, Fernando Altair7

RESUMO/ ABSTRACT Este estudo busca compreender as formas de regulação e modulagem das performances de gênero e das experimentações da sexualidade na intersecção das travestilidades e envelhecimento, priorizando uma cartografia do desejo no social – no acompanhamento dos fluxos políticos e culturais de marcadores sociais de identidade e diferença. Tal estudo situa-se teórico-metodologicamente em perspectiva discursivo-desconstrucionista, influenciadas pelos estudos pós-estruturalistas de base foucaultiana, além de articulação com as teorizações queer. Para tanto, neste momento inicial fez-se uso de pesquisa bibliográfica sob uma orientação cartográfica. Os achados do estudo até o momento indicam uma articulação da intersecção de marcadores sociais consubstanciando e realocando os sujeitos das travestilidades no interior das zonas de exclusão. Acompanhamos movimentos na articulação de interseccionalidade gênero - idade como elementos produtivos para a compreensão das formas de experimentação da sexualidade, performatividades de gênero e, mais amplamente, dos modos de vida transcontemporâneos. This study aims to understand the forms of regulation and modeling performativities of gender and sexuality trials at the intersection of aging and travestilidade, prioritizing social cartography of desire - in monitoring the political and cultural flows of social markers of identity and difference. This study is located theoretical-methodological perspective discursive deconstructionist, poststructuralist influenced by the Foucault studies, and linkage with queer theorizing. Hence, in this initial moment made use of literature in a cartographic orientation. The study findings to date indicate an articulation of the intersection of social markers consolidating and relocating the subjects of travestilidade within the exclusion zones. We follow movements in the articulation of intersectionality gender - age as productive for understanding the forms of experimentation of sexuality, gender performativities and, more broadly, ways of life contemporary trans elements.

PALAVRAS-CHAVE/ KEYWORDS: Envelhecimento (Ageing). Travestilidade (Travestilidade). Desejo (Desire).

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta os delineamentos iniciais de uma pesquisa de Mestrado em curso, desenvolvida junto ao Laboratório de Estudos e Pesquisas Multiversos – Corpo, Gênero e Sexualidade nos Processos de Subjetivação, vinculado ao PPG em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Buscamos em nossa investigação compreender as formas de regulação e

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. Cartographies Aging: Travestilidades and Desire Psicólogo, Historiador e Mestrando em Psicologia, Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza - CE, freud.g@bol.com.br. 7 Doutor em Educação (UFRGS), Pós-Doutor em Antropologia Social (UFSC), Professor/Orientador – Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza – CE, pocahy@uol.com.br. 6

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modulagem das performances de gênero e das experimentações da sexualidade na intersecção das travestilidades e envelhecimento, junto a outros marcadores sociais de identidade e diferença. Ao nos dedicarmos à reflexão sobre os efeitos do dispositivo da idade (POCAHY, 2012) na sua articulação com a sexualidade e o gênero, procedemos a uma cartografia dos modos de subjetivação na experiência das travestilidades. Compreendemos que as relações estabelecidas entre os sujeitos e o envelhecimento são agenciadas de forma arbitrária nos sujeitos travestis, pois a condição de abjeção imposta pela sociedade posiciona estes sujeitos em experiências de vulnerabilidade social, a partir de certa experiência ‘antecipada’ dos efeitos sociais e culturais da velhice. De tal modo, percebemos movimentos em uma travesti de 40 anos de idade características comuns a sujeitos na faixa etária maior e já com status de sobrevivente, dada a condição de violência social imposta a tais indivíduos e ao seu reposicionamento nas relações sociais. Para tanto, a tênue e complexa relação entre travestilidade e envelhecimento suscita observar a ação do tempo sobre os corpos, construídos ao logo de toda uma existência na tentativa de afirmar-se ou borrar os traços que tendem a querer definir ao mesmo que desconstrói e reconstrói.

METODOLOGIA

Os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam tal estudo situam-se em perspectiva discursivo-desconstrucionista, influenciados pelos estudos pós-estruturalistas de base foucaultiana, além de articulação com as teorizações queer. Para tanto, fez-se uso neste momento de pesquisa bibliográfica (uma cartografia da literatura especializada), que nos ofereceram elementos produtivos no que informam e produzem representações sobre as travestilidades e envelhecimento. A Cartografia contribui com a ideia de movimento, permitindo acompanhar trajetórias, formando-se um mapa em movimento, permeado por desejos, percebidos enquanto fluxos que transbordam e que se desenvolve durante a caminhada. O limiar é algo sempre presente, em um constante reconstruir-se diante do objeto que atravessa o pesquisador. O provisório, o temporário, é uma marca. Conforme Rolnik (1989), o cartógrafo é um verdadeiro antropófago, vivendo de expropriar-se e se apropriar, devorar e desovar, numa constante desconstrução.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A possibilidade de aproximação com elementos trans/geracionais na experiência do envelhecimento nos oferecem condições de contribuir para o conjunto de estudos amplos sobre gênero e sexualidade, notadamente em sua relação com as políticas públicas. Ponderamos que a sexualidade é entendida como um “dispositivo histórico” e é através de suas formas de objetivação por onde buscamos analisar os discursos que regulam, normatizam, instauram prazeres e produzem “verdades” na experiência política e cultural das subjetividades. A compreensão de dispositivo sugere, assim, a direção e a abrangência dos meios de “vigia” e “coerção” social como formas de produção de abjeção. Foucault (1997, 2009) admite que a existência de um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder, e também escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta; pois o discurso é impregnado de (pré)conceitos e normatizações oriundas de todo um construto social constituído por instituições, regras e normas que caracterizam o conceito de dispositivo proposto por Foucault. O dispositivo envolve o dito e o não dito de forma a estruturar uma rede que se estabelece entre esses elementos. Ao considerarmos a produção abjeta em torno das performatividades de gênero e da sexualidade, o envelhecimento surge como mais um elemento na subjetivação transgênero. Memórias, corpos, suas formas de invenção e reinvenção da vida, provocam-nos o interesse de conhecer modos de vida posicionados à margem e com eles aprender algo da experiência política e cultural do que nossas sociedades contemporâneas definem como o envelhecimento e sua relação com a sexualidade, isto é, interessa-nos compreender algo dos modos de subjetivação que cercam e marcam as vidas (ditas) abjetas. Interessa-nos compreender os discursos que incorporam a multiplicidade de elementos discursivos, demonstrando a capacidade de manifestar-se na forma de produção de diferença. O envelhecer pode ser encarado como um processo inerente à condição humana, gerando inúmeras mudanças nos aspectos estéticos, físicos, psicológicos e sociais, reposicionando os sujeitos nos jogos culturais e sociais do que compreendemos do que uma determinada cultura e sociedade determinam como corpos que importam, vidas que valem a pena serem vividas (BUTLER, 2003) Compartilhando com o pensamento de Pocahy (2012), afirma-se que a idade apresenta-se como uma categoria política, histórica e contingente, assim como o são o gênero, a classe social, a sexualidade ou a raça. Mas não de forma isolada, pois o marcador etário e geracional, segundo o autor, dificilmente pode ser pensado sem essas intersecções. Isto

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significa dizer que a idade organiza a vida ao conferir status de ‘humanidade’ em diferentes formas e condições político-culturais, no mesmo instante em que gênero e sexualidade se tornam visíveis e possíveis nesta trama discursiva, estabelecendo possibilidades e limites para cada uma das idades da vida. Dialogando com Butler (2003), Antunes (2010) descreve as relações de norma e descontinuidades de gênero ao afirmar que existem espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência. Isto é, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual. Assim, a matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. (BUTLER, 2003) A travesti instaura um corpo distinto do masculino biológico: hormonização, silicone, roupas, saltos, perucas, maquiagem, o que se choca com os demais corpos revelando-se como um corpo que rompe com a genitália biológica e as ações esperadas a partir dela. Esse corpo apresenta-se sob a forma de fronteira que varia conforme a política reguladora em toda sua extensão permeável, o que implica num corpo como produto de uma performatividade, de um estilo corporal (ritualização de si), não como acaso, e sim dotado de intencionalidade, segundo uma construção dramática e contingente de sentido. (BUTLER, 2003). Desta forma, a genitália biológica não se resume a uma materialidade restrita ao domínio da natureza, e sim elemento semiótico que revela permeabilidade, a política, fluidez, revelando a postura de que os gêneros não são verdadeiros ou falsos, falaciosos ou reais, uma vez que sejam constructos sociais performativos, porém, detêm em si um caráter de algo incrível, dadas suas estratégias de rompimento com o binarismo essencialista de “masculinidade e feminilidade verdadeiras ou permanentes” (BUTLER, 2003). No tocante aos processos peculiares às travestis idosas, faz-se necessário compreender como se dá o envelhecimento a partir de experiências sociais que atuam de forma a sufocar a subjetividade – as coleiras normativas, as transfobias, o ´idadismo´. O envelhecimento não é uma etapa que se chega de imediato, mas um processo que se inicia com o nascimento, ou seja, o envelhecimento é um processo indissociável ao ser humano e revela conquistas que são feitas socialmente, gradativas e delimitadas por fronteiras da idade, como descreve Barros (1999).

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O processo de envelhecimento retira de algumas pessoas sua visibilidade social, oprime e regula seus desejos e lhes imprime a proximidade da morte, que ao máximo se tenta desvencilhar, figurando a cidade como palco desses processos. Existe uma negatividade que envolve o processo do envelhecer, constituindo-se como processo degenerativo, de definhamento, transfigura-se como incapaz, impotente, não produtivo, antes o contrário, um ser dependente (FÁVERO, 2010). A travesti envelhece segundo estas interpelações e representações de fase de vida e de cultura, ainda que seu corpo esteja submetido à busca constante da beleza e da recusa do tempo, elas têm a possibilidade e oportunidade de envelhecer vivenciando, em certos casos, os dilemas físicos comuns do envelhecimento, que também são ocasionados pelo uso excessivo de hormônios femininos, e outros relacionados ao uso do silicone industrial utilizados para ‘construir’ o corpo. Mesmo como objeto, é possível retardar o processo de envelhecimento com o uso de cosméticos, medicamentos, procedimentos cirúrgicos, entre outros, suscitando a questão sobre a existência de fato de um período da vida para que se considere uma pessoa como velha, [...] assim, tecnologias cada vez mais sofisticadas para o monitoramento desse corpo são criadas continuamente, em um mundo de espelhos, tanto no sentido literal como não literal, que revela esse corpo por inteiro e em detalhes, ao mesmo tempo em que a mídia expõe corpos seminus dentro de um padrão de perfeição que nega a idade e que defende uma magreza ideal (FÁVERO, 2010, p.245).

No entanto, temos percebido que há uma nova postura diante do corpo envelhecido. As travestis idosas já podem se ‘dar ao luxo’ de sentirem-se livres de diversas expectativas negativas do próprio corpo: beleza eterna, agilidade, todavia, o mesmo corpo imprime sentimentos de insatisfação física, já que não poderão mais concorrer nos jogos de sedução e de conquistas amorosas, sendo constrangido por condutas sociais “interiorizadas pelos seus portadores” (BARROS, 1999).

(In)Conclusões

Ao chegar a este momento do estudo, compreende-se que o contexto vigente onde a norma configura-se como heteronormativa torna os indivíduos “desviantes” como abjetos, marginalizados e excluídos. Os achados do estudo até o momento indicam a articulação da intersecção de marcadores sociais consubstanciando e realocando os sujeitos das travestilidades no interior das zonas de exclusão. Depreende-se destas evidências que as

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relações sociais estabelecidas pelos sujeitos que, de forma particular, evidenciam na experiência e no trânsito de gênero as marcas da abjeção no contexto da biopolítica heteronormativa, reposicionando tais sujeitos nas margens da margem, dada à condição de violência social imposta a estes. Destaca-se a articulação de interseccionalidade idade e gênero como elementos produtivos para a compreensão das formas de experimentação da sexualidade, performatividades de gênero e, mais amplamente, dos modos de vida transcontemporâneos.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, P. P. S. Travestis envelhecem? 2010. Dissertação (Mestrado em Gerontologia) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. BARROS, M. M. L. de. A velhice na pesquisa socioantropologia brasileira. In: VELHO, Gilberto (org.). Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 45-64. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Ed., 2003. FÁVERO, M H. Psicologia do gênero: psicobiografia, sociocultura e transformações. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997. ______. Vigiar e Punir. Petrópoles: Editora Vozes, 2009. POCAHY, F. A Velhice como Performativo: Dissidências (Homo)Eróticas. Ex aequo [online]. 2012, n.26, pp. 43-56. ISSN 0874-5560. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

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OLHARES TRANSITÓRIOS, CORPOS CONTROVERSOS: “GÊNERO” A PARTIR DE CENÁRIOS SADO-FETICHISTAS.8 SILVA, Marcelle Jacinto da9; PAIVA, Cristian (Orientador)10

RESUMO/ABSTRACT Este trabalho é parte de uma pesquisa em processo desde abril de 2013. Os olhares transitórios mencionados no título remetem às experiências de pessoas que transitam entre “masculino” e “feminino” em “práticas sado-fetichistas”, e que relatam, “postam” imagens e vídeos pessoais na Internet. Os corpos que escrevem se inscrevem no real através de “processos de feminização”, “montando-se” para estar/ser coerente com determinadas idealizações do “feminino”. Transitoriedade e controvérsia estão imbricadas nas experiências e na prática da pesquisa de campo. São mobilizados campos de possibilidades para vivenciar uma “liberdade” de ser, de reinventar-se, é acionado outro tipo de realidade, que é limitada: desejos e sexualidades são rodeados de “segredos”. Práticas sado-fetichistas são um dos cenários para performances de gênero que são resultado e processo dessas “montagens” de corpos. Para além dos corpos que transitam, o “olhar-se” no espelho é momento fundamental, revela possibilidades de prazer e “realização pessoal”.

This paper is part of a research process since April 2013. Transitory views mentioned in the title refer to the experiences of people who move between "male" and "female" in "sado-fetish practices," they tell their stories and some "post" personal pictures and videos on the Internet. The bodies that write position themselves in the real by “processes of feminization”, “crossdressing” to be “like a woman”. Transience and controversy are embedded in experiences and practice of fieldwork. Possibilities are mobilized to experience a kind of “freedom”, to reinvent itself, to live another kind of reality, which is limited:desires and sexualities are surrounded by "secrets". Sado-fetish practices are some of scenes for performances of gender that are outcome and process of these “crossing-dressers” bodies. By the way the "look up" the mirror is critical moment, reveals possibilities for pleasure and "personal satisfaction".

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Corpo (Body). Sexualidade (Sexuality). Espelho (Mirror).

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de meu projeto de pesquisa de mestrado, em processo desde abril de 2013. Trabalhei com os temas BDSM11 e Blogosfera12 em outros momentos (SILVA, 2012; 2013), mas a atual pesquisa enveredou por outros caminhos, embora continue tendo como 8

Transitory views, controversial bodies: “Gender” as of sado-fetish scenes. Mestranda no PPGS /NUSS - Depto. Ciências Sociais/UFC, Fortaleza, CE. Email: marcelle.silva.cs@gmail.com. 10 NUSS/PPGS/Depto. Ciências Sociais/UFC, Fortaleza, CE. Email: cristianspaiva@gmail.com. 11 Sigla que se refere às práticas eróticas sadomasoquistas, o “B” significando Bondage, prática de amarração/imobilização, o “D” está relacionado à dominação e disciplina, o “S” ao sadismo e o “M” ao masoquismo. Essas práticas são baseadas no lema SSC – são, seguro e consensual. 12 Universo dos blogs, páginas virtuais. 9

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plano de fundo os dois temas. Gênero, corpo, sexualidade e “espelho” surgem em discursos e relatos disponibilizados em blogs pessoais e perfis de Facebook, nos quais homens de idades variadas relatam experiências relacionadas a vários tipos de “feminização”, relacionadas ou não ao sadomasoquismo erótico, mas sempre mencionando reflexões sobre sexualidade. Muitos dos relatos estão diretamente relacionados às práticas sadomasoquistas, como: fantasias de submissão, servidão, dominação e humilhação eróticas, mas outros delineiam fetiches e outras sexualidades, prazeres outros. Há relatos de travestis, crossdressers, sissies, gays, héteros ou bissexuais, homens que mantêm vida dupla, uma realidade “em segredo”, ou compartilham com conhecidxs e amigxs “reais” ou “virtuais”. Alguns se “montam” apenas para práticas sexuais com parceirxs que nem sempre são namoradxs e cônjuges, outros para masturbação e práticas solitárias, para exibicionismo online e/ou off-line. Os corpos dos sujeitos se inscrevem no real através de “processos de feminização”: “montando-se” com maquiagem, acessórios “femininos”, lingeries, vestidos, saias, saltos, perucas, uniformes de empregada doméstica para os submissos/escravos nas relações/sessões de dominação/submissão, o aprendizado de “trejeitos” femininos, comportamentos que devem estar em conformidade com determinados ideais de feminilidade, inclusive, a passividade na relação sexual, a “inversão de papéis” 13. Meu trabalho busca apreender tipos de sexualidades que vão de encontro com muitas ideias convencionais, de sexualidade, gênero, “normalidade”, partindo dos fetiches e sadomasoquismo erótico, como cenários para expressões de gêneros, que provocam o sujeito a transgredir a si mesmo. Nesse sentido, o estudo em questão representa um grande desafio para a pesquisadora, e se pretende ser um somatório para os estudos de gênero e sobre sexualidades. Acredito e desejo contribuir nas problematizações dos cenários atuais, inclusive sobre pesquisas realizadas em ambiente virtual.

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Esse termo aparece principalmente em situações nas quais o homem tem como parceira uma mulher.

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METODOLOGIA

A primeira fase da pesquisa foi a busca, na Internet, por sites e blogs sobre BDSM gay, feminização masculina, feminização forçada, sissies, crossdressers, e assim iniciei o período de mapeamento de páginas da web relacionadas ao tema (período que durou todo o mês de maio de 2013). A procura desses blogs foi um momento importante para pensar o “estar em campo”. Registrei em diário de campo aproximadamente 180 links, mas apenas oito blogs tiveram postagens lidas e algumas analisadas no diário de campo, até o momento. Salvei páginas de muitos dos blogs em formato PDF, organizando em pastas, identificando-os pelo tema. Considero que minha pesquisa possui dois campos, o online e o off-line. A Internet é campo, fonte e instrumento de pesquisa, local onde “descobri” o BDSM e a fecundidade do material disponível nos blogs. O segundo passo da pesquisa foi a busca por interlocutores. Já havia dois contatos que mantenho desde 2010, o casal Rainha Frágil e Escravo Roger RF; outros oito contatos surgiram dessa busca, iniciada após a primeira entrevista presencial com o casal, em junho de 2013. Eis meu campo off-line, a casa do casal, além de visitas em sexy-shops na cidade de Fortaleza, encontros esporádicos em ambientes diversos. Busquei por contatos através do meu perfil pessoal do Facebook, de um perfil criado para a pesquisa, de e-mails que as pessoas disponibilizavam em seus blogs pessoais, e também criei uma conta de e-mail especialmente para a pesquisa, no sentido de organizar os dados. A forma como eu me apresentei também foi padronizada em mensagens que mencionavam os objetivos da pesquisa e disponibilizava o link de acesso ao meu Curriculum Lattes. Ademais, preferi entrevistas via e-mail ao invés do Facebook. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, sem roteiros: duas pessoas presencialmente, seis via chat do Facebook e duas por e-mail. Três pessoas foram entrevistadas apenas uma vez, e mantenho contato constante com o casal mencionado, através do Facebook, principalmente. Apenas 4 pessoas moram em Fortaleza, incluindo o casal. Mantenho um diário de campo em arquivo do Microsoft Word, dividido em duas partes: a primeira contém 119 páginas, vai de 7 de maio de 2012 a 5 de dezembro de 2013; a

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segunda parte, iniciada em 5 de dezembro de 2013, está em processo, atualmente, com 17 páginas. Atualmente, tenho analisado anotações do diário de campo e de alguns blogs, na tentativa de organizar todo o material que já reuni e transformá-lo em texto, para partir para a terceira fase da pesquisa: a construção da parte teórica, referências que reuni no decorrer da pesquisa e, em paralelo, continuar em campo e com as entrevistas semiestruturadas. Muitos relatos e postagens de blogs remetem à questão da ética da/na pesquisa. Primeiro, há a questão do “segredo”. São várias as motivações para a manutenção desse segredo, um dos mais recorrentes, o medo do preconceito de familiares, amigos e colegas de trabalho. O nível e a forma como as experiências interferem na vida dessas pessoas variam. Portanto, quase todos se identificam por apelidos e raro disponibilizam fotos pessoais. Segundo, identificar as pessoas pelos apelidos das redes sociais ou não, já que estão disponíveis na Internet, é um grande dilema. Alguns blogs poderão aparecer no meu trabalho sem que eu tenha como conseguir a autorização dos autores. Para este artigo, tenho autorização de mencionar dois nomes, mas e os outros? Transitoriedade e controvérsia estão imbricadas nas experiências e na prática da pesquisa de campo, objetivadas nesses dois dilemas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Em meio a tantas controvérsias, olhares possíveis, cenários e ambiguidades, busco romper com a noção de “identidade”, me deixando conduzir pela noção de “performance” de gênero, ou ainda, “performatividade de gênero” (Butler, 2013), porque a concepção de uma ou múltiplas “identidades” me parece não dar conta das experiências. As práticas sadofetichistas são, por exemplo, um dos cenários para performances de gênero que são resultado e processo de “montagens” de corpos. Mas os cenários podem ser os mais diversos, foi o que percebi. Para além dos corpos que transitam, o “olhar-se” no espelho é momento fundamental, revela possibilidades de prazer e “realização pessoal”, é algo que aparece em muitos relatos. Pretendo desenvolver a ideia do “espelho” como metáfora, mas também no sentido literal.

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É interessante pensar a experiência da “feminização”, ou “crossdresser”, ou ainda, “travestismo” sob a ótica da “edição” do corpo (VILLAÇA, 2007). O sujeito está acostumado com seu corpo, pelo menos pressupomos isso, já que o corpo é, em algum sentido, uma “entidade” sob a qual dependemos diariamente para ir e vir, é nosso estar no mundo, essa é uma naturalização. Mas acontece que as pessoas têm a possibilidade, opção, de reinventar seu próprio corpo, online e off-line Há mobilização de “cuidados de si” (FOUCAULT, 1985) e as pessoas constroem para si determinadas “identidades” ou performances, e nessa construção, também agem determinadas construções de convenções, regras e maneiras de agir, ainda mais quando se tratam de “prazeres dissidentes” que transitam “entre a perversão e a dissidência” (FIGARI; DÍAZ-BENITÉZ, 2009), carregando estigmas (GOFFMAN, 1991).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível o desejo de experimentar, reinventar, de transitar, se perder, se encontrar, se misturar. Percebe-se diversidade, sexual, humana. O “olhar”, a forma como se olha, parece dar sentido a toda uma existência, uma realidade. Alguns olhares e corpos desestabilizam. Olhar-se no espelho pode não ser apenas visualizar um corpo modificado, ambíguo, mas perceber-se outro e realizar-se em suas multiplicidades transitórias e controversas. Mas também é deparar-se com o preconceito próprio e da sociedade. As “feminilidades” reconstruídas podem ser vistas como uma face desse preconceito. As experiências que surgem a partir desse estudo podem apontar para recusas de um “disciplinamento machista”, desejo de transgressão, mas também pode ser outra forma de reiterar, inconscientemente, as desigualdades entre gêneros. Um indício pode ser os modelos de “feminilidade” que são reforçados, reconfigurados. Mas a pesquisa continua, e os dilemas, controvérsias, questionamentos só aumentam. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. FIGARI, Carlos; DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Sexualidades que importam: entre a perversão e a dissidência. In: ______; ______. (orgs). Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1991. SILVA, M. J. Linguagens, experiências e convenções de gênero e sexualidade no BDSM. 2012. 107p. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2012. SILVA, M. J.; PAIVA, C., LIMA, L.C.B. de. Discursos online sobre BDSM e configurações identitárias na Blogosfera. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10: desafios atuais dos feminismos, 2013, Florianópolis, SC. Anais eletrônicos [recurso eletrônico] – Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/site/anaiscomplementares>. Acesso em: 29 jan. 2014. VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri, SP: Estação das Letras Editora, 2007.

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UM OLHAR SOBRE AS INTERAÇOES AFETIVAS DE HOMENS AFRICANOS NO CONTEXTO DE MIGRAÇÃO ESTUDANTIL EM FORTALEZA14

LANGA, Ercílio Neves Brandão15

RESUMO/ABSTRACT Este paper aborda as interações afetivas de estudantes africanos residentes em Fortaleza. No contexto dessa migração estudantil, os africanos não estão inteirados dos limites sociais tradicionais existentes na sociedade fortalezense. Sua presença e interações afetivas rompem com algumas fronteiras, socialmente estabelecidas nesta metrópole. Seus relacionamentos articulam dimensões como gênero, raça, classe, etnia, formato de corpo e de cabelo e outras interseccionalidades, que se sobrepõem e se intersectam como atributos desejáveis e/ou atraentes. Assim, indago-me sobre o que a experiência de migração produz nas suas identidades étnicoraciais e afetivo-sexuais? Desenvolvo essa pesquisa através de observações etnográficas, com recurso a conversas informais e entrevistas abertas com esses sujeitos. This paper approaches affective interactions related to male African students living in Fortaleza. Within the context of that student migration, the Africans are not aware of traditional social limits existing in the local society. The presence of those nationals and their affective interactions burst open some frontiers that were socially established in this metropolis. Their relationships articulate dimensions such as gender, race, social class, ethnics, body and hair configurations and other intersectionalities that overlap and intercept as desired and/or attractive features. What is it, then, the upshot of the migration experience on those identities characterized by ethnic, racial and sexual hues? This research is developed by means of ethnographic observations, informal dialogues and open interviews involving the subjects. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Migração estudantil africana (Migration of African Students). Interações afetivo-sexuais (Affective-Sexual Interactions). Interseccionalidades (Intersectionalities).

INTRODUÇÃO

A presença de estudantes africanos no estado do Ceará teve início na segunda metade da década de 1990, com o primeiro grupo oriundo de Angola. Nesse período, vinham somente estudantes de países africanos que falam a língua portuguesa para integrar-se na Universidade Federal do Ceará (UFC), através do Programa de Estudantes Convênio – de Graduação (PEC-G). A partir de 1998, inicia-se a imigração de estudantes bissau-guineenses e cabo-verdianos e, dois anos depois, estudantes são-tomenses, angolanos e moçambicanos. No início dos anos

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A view of affective interactions related to african males within the context of student migration in Fortaleza 15 Doutorando em Sociologia, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza-Ce. E-mail: ercilio.langa@gmail.com.

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2000, há um aumento significativo do número de estudantes africanos residentes no Ceará, cuja maioria vem estudar em faculdades particulares, com contratos firmados em seus países de origem, a partir de publicidade e vestibulares realizados em Guiné-Bissau. O aumento da imigração de estudantes africanos para o Brasil, no início do século XXI, também foi impulsionado pelo discurso governamental do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua política de cooperação e aproximação com a África. Tal política de cooperação, em curso, visa particularmente atingir o ensino superior, através de criação de distintos mecanismos, como estágios profissionais, bolsas de estudo e convênios, no sentido de viabilizar a vinda de africanos para estudar no Brasil. Nesse contexto da migração estudantil, nos encontros cotidianos, em diferentes situações e circunstâncias, cearenses e africanos, de ambos os sexos, olham-se de forma ambivalente, discriminando-se e sexualizando-se. Nas interações, os estudantes africanos, na condição de negros e imigrantes, portanto, sujeitos marginais, são colocados em posição inferior e de subalternidade, ocupando um lugar secundarizado em termos de preferências afetivas para relacionamentos estáveis. Ao mesmo tempo em que são objeto de estigma, os estudantes africanos são também objeto de desejo sexual para encontros fortuitos, sem compromissos afetivos. Por sua vez, africanos também desenvolvem olhares estigmatizantes em relação, sobretudo, à população composta por lésbicas, gays, bissexuais e travestis (LGBT). No entanto, no âmbito da presença africana, tem-se, ainda com menor expressão e visibilidade, trocas de olhares entre africanos(as) e brasileiros(as) do mesmo sexo que assumem distintas identidades como homossexuais, gays e lésbicas, em relações veladas, subterrâneas, não assumidas em público. Uma via investigativa fecunda é considerar o universo simbólico que circunscreve os negros no imaginário brasileiro. A rigor, os olhares que discriminam e, ao mesmo tempo, sexualizam negros e negras africanos têm raízes históricas no Brasil, remontando ao período da escravidão, com ressignificações contemporâneas. De fato, as relações afetivo-sexuais entre africanos(as) e brasileiros(as) são dominadas por representações hipersexualizadas acerca do “outro”, no tocante às performances, aptidão e tamanho dos órgãos sexuais, revelando desejo e fetiche sexual acerca do homem africano, tido, no imaginário social, como “bom de cama”, insaciável, com performances sexuais acima da média e sempre disponível para satisfazer fantasias de mulheres e homens cearenses. Entre os africanos, o Brasil é visto como um lugar exótico, país do carnaval e da sexualidade liberada, caracterizado pela diversidade sexual e de gênero. Durante os momentos de interação, há esforço de africanos e de brasileiros para encarnar estereótipos existentes acerca da sexualidade do outro, dominados por curiosidade e interesses mútuos nos quais a raça é peça fundamental da diferença cultural. Nesse tipo de busca e aproximações, a iniciativa pode partir

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tanto de africanos, assim como de brasileiros. Tais encontros articulam gênero, raça, etnicidade e são mediados por sexo, afetos, presentes e dinheiro (PISCITELLI et al., 2011).16 É fato inconteste que raça, sexo, formas corporais e cabelos apresentam-se como fatores de atração, existindo preferência de africanos por mulheres brasileiras corpulentas, de pernas grossas, de pele mais clara e, particularmente, por mulheres louras. Nesse mercado sexual, africanos têm preferência por mulheres brasileiras brancas em detrimento das brasileiras negras e das mulheres africanas. Nessas relações, as mulheres brasileiras bancam quase tudo, ou seja, pagam as contas no cotidiano, em supermercados, lojas, restaurantes, aluguel de apartamentos, mensalidades das faculdades e outras formas de ajuda. O fato de mulheres brasileiras não assumirem, publicamente, o relacionamento afetivo com africanos, o caráter descartável das relações, o ficar – relações fugazes e fluidas que podem durar de algumas horas a uma semana, ou um mês no máximo, são outras situações que representam violência simbólica17 que atinge os homens africanos na sua autoestima, ao mesmo tempo em que viabilizam melhores condições de vivência na diáspora. Nesse padrão de interação, são as brasileiras quem mandam e ditam os momentos, as circunstâncias e os lugares em que estas relações podem ocorrer. Nesses processos, os homens africanos terminam por experienciar posições inversas que as assumidas no contexto das suas terras de origem, perpassadas de configurações machistas, de dominância e mando.

PERCURSOS METODOLÓGICOS: UMA ETNOGRAFIA DE “PERTO E DE DENTRO” DA MIGRAÇÃO ESTUDANTIL

Na condição de estudante moçambicano integrante dessa migração, tenho observado as interações afetivas entre africanos e africana e entre africano(a) e brasileiro(a)s no cotidiano e nas festas africanas, bares, boates e discotecas. Tais locais constituem outro espaço privilegiado de observação, tornando possível fazer uma “etnografia das noites”, descrevendo os rituais, as interações e as performances dos atores envolvidos. Essa metodologia é inspirada em Magnani (2002), em estudos sobre a juventude, cidade e etnografia, que o autor designa de olhares “de fora e de longe” e “de perto e de dentro”. A partir desses olhares, Magnani analisa a dinâmica cultural e formas de sociabilidade nas grandes cidades. As situações

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Em seu trabalho, Piscitelli et al., (2011) interessam-se, particularmente, pelas interações afetivo-sexuais entre imigrantes do sexo masculino de países pobres com mulheres, gays e travestis de outros mais desenvolvidos, que envolvem estereótipos, relações de dominação, casamentos binacionais etc. 17 De acordo com Bourdieu (2002), a violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante quando ele dispõe – para pensar e para se pensar, ou para pensar a sua relação com ele- mais do que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, faz esta relação ser vista como natural. Assim, as classificações são incorporadas e naturalizadas, como por exemplo, alto/baixo, masculino/feminino, negro/branco.

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vivenciadas enquanto estudante africano, que pesquisa esse “pedaço” africano em Fortaleza nos termos de Magnani (2002), ou seja, a comunidade em que estou inserido permite-me privilegiar uma observação de “perto e de dentro”. Ao mesmo tempo, o fato de pesquisar o cotidiano desses sujeitos na sociedade cearense, com cultura, contexto e instituições diferentes das encontradas em África, proporciona um olhar “de fora e de longe”.

PREFERÊNCIAS AFETIVAS, INTERSECCIONALIDADES E A DOMINAÇÃO NAS INTERAÇÕES DOS AFRICANOS

As preferências afetivo-sexuais, fundadas em determinados atributos tidos como desejáveis e atraentes – raça, origem, cor do cabelo, formato do corpo, classe, posição social, renda e outras formas de afirmação e diferenciação – encarnam múltiplas expressões discriminatórias, configurando aquilo que Crenshaw (2002) e Piscitelli (2008) designam de “discriminação interseccional ou interseccionalidade”. Crenshaw (2002) argumenta que as discriminações de raça, etnia, gênero, classe, renda não são mutuamente excludentes e, assim, muitas vezes se sobrepõem e se intersectam, criando complexas conexões nas quais se juntam dois, três ou mais elementos. Assim, a autora propõe a noção de discriminação interseccional como uma ferramenta capaz de circunscrever hibridizações nos processos discriminatórios. Tomando como exemplo a discriminação racial, Crenshaw aponta que, em determinados contextos, esse fenômeno se apresenta de maneira específica e diferenciada para os indivíduos, atingindo, de formas distintas, homens e mulheres.

Piscitelli

(2008)

propõe a interseccionalidade como categoria analítica para apreender a articulação de múltiplas formas de diferenças e desigualdades, esclarecendo que em muitas situações não se trata somente de discriminação racial, étnica, sexual, de gênero ou de classe em esferas separadas, mas, sim, da diferença em seu sentido amplo a articular múltiplas expressões de discriminação. Tal noção se baseia na premissa de que as pessoas têm identidades múltiplas, derivadas das relações sociais, históricas e estruturas de poder, experimentando de forma diferente as várias formas de dominação e discriminação nas suas trajetórias. Cumpre salientar que as interações entre jovens africanos e mulheres e homens brasileiros também ocorrem em meio a tensões e choques culturais e alguns africanos e africanas sentem-se usados em relacionamentos permeados de poder e de dominação simbólicos (BOURDIEU, 2002).

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Em seu habitus (BOURDIEU, 2003), os estudantes tendem a gostar de “mulheres cheinhas”, com carne, com seios e bundas avantajadas, tal é tipo ideal de mulher gostosa, propalada pelos africanos. Já entre mulheres brasileiras, existe a atração por africanos de pele mais escura, pelos mais altos e de corpo atlético. Cabe considerar que essa migração assume expressões heterogêneas, com estudantes de diferentes países, regiões e culturas, embora, ao mesmo tempo, tais sujeitos apresentem aspectos comuns, um habitus africano, como princípio a estruturar modos de viver, no contexto de imigração (BOURDIEU, 2003). Normalmente, as brasileiras que se interessam pelos estudantes africanos são mulheres brancas mais velhas, coroas, mas também moças das classes populares, mulheres gordas, ou que não se enquadram no ideal estético e de beleza vigentes na sociedade brasileira. A noção de coroa configura uma categoria nativa brasileira com que se designam mulheres e homens mais velhos(as). Entretanto, essa categoria é ressignificada pelos estudantes africanos, que passam a chamar de coroas não somente às mulheres mais velhas, mas também àquelas que não se enquadram no ideal estético vigente no Brasil Algumas dessas mulheres possuem uma renda mediana ou alta, poder de compra e de consumo, carro, casa própria, carreira profissional, condições que, muitas vezes, atraem os caça-brasileiras,18 jovens estudantes africanos que somente se relacionam afetiva e sexualmente com mulheres brasileiras. Nesses processos, os homens africanos terminam por experienciar posições inversas que as assumidas no contexto das suas terras de origem, perpassadas de configurações machistas, de dominância e mando. Por fim, torna-se necessário ressaltar o papel da violência, que parece permear e estruturar suas relações afetivas com homens africanos, tidos como “brutos”. De fato, são notórias as queixas de mulheres africanas e brasileiras sobre a violência nos relacionamentos com homens africanos.19

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, analisei as interações afetivas vivenciadas por jovens africanos de ambos os sexos, no contexto da imigração estudantil em Fortaleza. Até ao momento, concluo que as festas e as relações afetivas abrem preciosas janelas para apreciar e compreender processos

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Termo inspirado em Cantalice (2009), na sua análise acerca das interações afetivo-sexuais entre jovens brasileiros e turistas do sexo feminino de países nórdico-europeus. 19 São incontestes os episódios de violência física de homens africanos em seus relacionamentos com mulheres africanas e brasileiras. Tal fato torna-se visível pela quantidade de denúncias feitas por amigos e vizinhos, assim como pelos Boletins de Ocorrência abertos por mulheres brasileiras, na única Delegacia da Mulher existente em Fortaleza. Se as mulheres brasileiras denunciam essas situações e dirigem-se à delegacia, as mulheres africanas parecem consentir tal violência. Assim, torna-se necessária uma pesquisa sobre a violência no namoro e no ficar com homens africanos e o diferencial nas reações entre mulheres africanas e brasileiras diante da violência.

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de negociações identitárias em relação à classe, raça, gênero, sexualidade e outros atributos, engendrados pelos estudantes africanos na diáspora. Durante as interações, tais atributos se sobrepõem e se intersectam criando correlações diversas que atingem homens e mulheres de formas distintas. Nesses processos, os rapazes experienciam posições inversas que as assumidas no contexto de suas terras de origem; já as moças, se envolvem em nítidas relações de submissão, a envolver dependência econômico-financeira, em seus relacionamentos tanto com africanos, como com brasileiros, em relações não isentas de choques culturais, assim como de relações de poder e dominação. Mesmo assim, esses padrões de interações não impedem os sujeitos de negociar suas posições sociais.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. 1ª reimp. São Paulo: Edusp, 2008. ______. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003. ______. A Dominação Masculina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CANTALICE, Tiago da Silva T. “Dando um Banho de Carinho!” - os caça-gringas e as interações afetivo–sexuais em contextos de viagem turística (Pipa-RN). 2009. 260 p. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Pernambuco- RE, 2009. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v.10, n.001, jan. 2002, p. 171-188. GEERTZ, Clifford. “Do Ponto de Vista dos Nativos”: a natureza do entendimento antropológico. In_______. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 85-107. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. MAGNANI, Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, n. 49, jun. 2002, p. 11-30. PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul./dez. 2008. p. 263-274. ______. Introdução: transitando através de fronteiras. In: ______ et al. (orgs.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas/São Paulo: UNICAMP/PAGU, 2011. p. 5-30.

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MUSICOTERAPIA COMO PRÁXIS TEOLÓGICA: INTERSEÇÕES ENTRE GÊNERO E DEFICIÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO DA INDEPENDÊNCIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA EM ATENDIMENTO MUSICOTERAPÊUTICO20 STEFFEN, Luciana21 RESUMO/ABSTRACT

A categoria analítica de gênero é raramente encontrada na Musicoterapia, estando também ausente nas discussões sobre Musicoterapia e Deficiência. Investigar se as relações de gênero têm influência no tratamento musicoterapêutico com meninas e meninos com deficiência, especialmente em relação ao desenvolvimento da independência, é o objetivo desta pesquisa. A pesquisa trata-se de uma pesquisa de campo qualitativa e quantitativa, com base na análise de questionários. As relações de gênero são relevantes na Musicoterapia. As expectativas de pais/mães e musicoterapeutas são influenciadas pelas relações de gênero, havendo mais expectativas para os meninos que para as meninas, e menos ainda para meninas com deficiência, especialmente em relação à independência, confirmando que desigualdades e discriminações de gênero são frequentemente praticadas e multiplicadas com a deficiência. Foi construído um suporte teórico teológico que oferece contribuições teórico e práticas para a construção de relações mais equitativas e justas dentro da Musicoterapia, desconstruindo gênero e deficiência. The analytical category of gender is rarely found in Music Therapy and is also absent in discussions about Music Therapy and Disability. Investigate whether gender relations influence the music therapist treatment with girls and boys with disabilities, especially in relation to the development of independence, is the objective of this research. The research is a field research qualitative and quantitative, based on the analysis of questionnaires. Gender relations are relevant in Music Therapy. The expectations of fathers/mothers and music therapists are influenced by gender relations, with more expectations for boys than for girls, and even less for girls with disabilities, especially in relation to independence, confirming that gender inequality and discrimination are often practiced and multiplied with the disability. A theological theoretical support that provides theoretical and practical contributions to build more equitable and fair relationships within Music Therapy was built, deconstructing gender and disability. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Deficiência (Disability). Musicoterapia (Music Therapy). Teologia (Theology). INTRODUÇÃO

A categoria analítica de gênero tem adquirido espaço em algumas áreas do conhecimento, mas é raramente encontrada na pesquisa e na prática da Musicoterapia, estando também ausente nas discussões sobre Musicoterapia e Deficiência. A pesquisa busca 20

Music therapy as theological praxis: intersections between gender and disability in the development of the Independence of children and teenagers with disabilities in music therapist attendance. 21 Bacharela em Musicoterapia, doutoranda em Teologia, Faculdades EST, bolsista da CAPES, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, lucianast@gmail.com.

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investigar se e de que forma as relações de gênero aparecem nas expectativas de musicoterapeutas, pais e/ou mães e de que forma isso influencia no desenvolvimento da independência de meninas e meninos com deficiência em tratamento musicoterapêutico, assim como investigar relações entre gênero e deficiência na Musicoterapia e como a Teologia pode contribuir como suporte teórico para a análise de gênero e feminista na Musicoterapia com meninas e meninos com deficiência. Estima-se que as relações de gênero influenciam o desenvolvimento da independência de meninas e meninos com deficiência na Musicoterapia, sendo esta, frequentemente, menos relacionada às meninas, e menos ainda às meninas com deficiência, havendo diferenças entre os corpos de meninas e de meninos com deficiência. Gênero e deficiência também não estão inseridos nas pesquisas de Musicoterapia, sendo também escassos no Brasil. Estima-se assim que a análise de gênero na Musicoterapia é relevante, e que as relações de gênero limitam a independência das e dos pacientes, principalmente das meninas, o que influencia a qualidade de vida. Serão investigadas as expectativas de gênero em relação a meninas e meninos com deficiência em tratamento musicoterapêutico, através de uma pesquisa de campo, com base no preenchimento de questionários por pais/mães e musicoterapeutas de crianças e adolescentes com deficiência. Investigar como as diferenças de gênero influenciam o desenvolvimento da independência de meninas e meninos com deficiência, como o suporte teórico da Teologia pode contribuir para a prática musicoterapêutica, refletindo no desenvolvimento das/os pacientes, e buscando relações mais justas e equitativas, questionando as desigualdades advindas pelas questões de gênero e deficiência.

METODOLOGIA

A abordagem da pesquisa será estudos culturais, de acordo com Robert Bogdan e Sari K. Biklen (1994). A pesquisa é interdisciplinar, tendo como principais áreas a Musicoterapia e Teologia, e também descritiva, que segundo Antonio Carlos Gil (2002, p. 42) objetiva a “descrição de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis”. Será realizada uma pesquisa de campo. Os dados serão avaliados de forma quantitativa e qualitativa, de forma complementar, auxiliando na tarefa de extrair as significações essenciais da mensagem (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 61). De acordo com Maria Minayo (2010, p. 22), a pesquisa qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”.

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Para a coleta de dados, foram entregues questionários a fim de investigar a opinião da população (LAVILLE; DIONNE, 1999), com perguntas abertas e fechadas para musicoterapeutas, pais ou mães de pacientes com deficiência de leve a moderada, até 18 anos de idade, atendidos em musicoterapia na clínica-escola. Os questionários visam investigar diferenças de gênero nas suas expectativas em relação ao desenvolvimento da independência, respeitando as normas estipuladas pela Resolução 196/96, após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CEP/EST. Foram incluídas na pesquisa cinco (5) pais ou mães de crianças e adolescentes com deficiência de leve a moderada, em atendimento musicoterapêutico na clínica-escola de Musicoterapia, e seus respectivos musicoterapeutas (5), em um total de dez (10) participantes. Inicialmente o questionário foi apresentado e explicado para todos/as pais/mães e musicoterapeutas, e após, entregues para serem preenchidos. Os dados serão analisados através da análise de conteúdo, segundo Laurence Bardin (1977). As respostas foram categorizadas, codificadas e analisadas segundo a sua frequência.

DISCUSSÕES

Aos papéis de gênero estão relacionados diversos preconceitos e estereótipos como, por exemplo, não ser esperado que as mulheres sejam independentes. A deficiência é também acompanhada por diversos preconceitos e estereótipos, sendo a dependência um deles. Assim, as expectativas para as mulheres com deficiência são de uma dupla dependência, sendo mínimas, havendo mais expectativas para os homens com deficiência. Há uma hierarquia de poder que gera desigualdades entre as pessoas, instituindo lugares diferenciados e hierarquizados para homens e mulheres, gerando os papéis normativos de gênero, com papéis, funções e valores atribuídos a cada pessoa de acordo com o sexo (GEBARA, 2001, p. 105). Tanto em relação ao gênero quanto à deficiência, discriminações ocorrem em relação aos corpos, ou pela lesão ou pelo sexo biológico, criando culturalmente a deficiência e o gênero, respectivamente (HALL, 2011, p. 1). Assim, “os significados construídos em torno de gênero e deficiência devem ser compreendidos como a relação entre o corpo com impedimento e a relação desigual de poder.” (MELLO; NUERNBERG, 2012, p. 638). As expectativas culturais das mulheres são: cuidar da casa, ser mãe, esposa e parceira sexual e, atualmente, trabalhadora, além de enfermeira, secretária, entre outras. Essas expectativas estereotipadas podem ser difíceis de alcançar para algumas mulheres com deficiência, tendo essas atividades negadas e sendo cotidianamente desencorajadas a essas

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atividades (HANNA; ROGOVSKY, 2006, p. 43-44, 48). Já para os homens, há expectativas maiores, um apoio de reabilitação maior, para que possam ao máximo realizar seu papel de trabalhador, de força, afirmando as identidades masculinas (ROGOVSKY, 2006). O maior número de meninos com deficiência atendidos em Musicoterapia de acordo com a pesquisa é um reflexo da maior expectativa que se tem para os homens, procurando mais terapia que as mulheres. A deficiência assim dificulta o processo de construção de gênero (FERRI; GREGG, 1998, p. 431). Segundo Adrienne Harris e Dana Wideman (1988, p. 115-138), as mulheres com deficiência têm acesso negado aos papéis de gênero. Já para os homens, há uma contradição entre ter uma deficiência e ser homem. Os papéis de gênero são expectativas fortes que se têm para as pessoas. Assim, as pessoas com deficiência são desestimuladas, com preconceitos de quem não conseguirão cumprir os papéis esperados enquanto homens ou mulheres. As expectativas de gênero foram confirmadas na pesquisa, sendo diferentes para homens e mulheres. Questiona-se, assim, os papéis normativos de gênero, sendo necessário desconstruilos para que as pessoas tenham liberdade, independência para fazerem suas próprias escolhas e usufruírem de suas habilidades, independente de pressões e discriminações da sociedade. Buscar o maior potencial das meninas e meninos com deficiência deve ser o objetivo da Musicoterapia, buscando sua independência. Nas perguntas fechadas, as/os musicoterapeutas apresentaram maiores expectativas de independência para as crianças e adolescentes. Mas, marcaram várias atividades acreditando que não farão de forma independente. Já, pais e mães salientaram mais a importância da independência e autonomia nas perguntas abertas, como expectativas que têm para seus/suas filhos/as. Contraditoriamente, nas perguntas fechadas, muitas respostas se referem à falta de expectativas de independência para essas crianças e adolescentes. Questiona-se se as crianças e adolescentes com deficiência são pouco estimuladas, se há poucas expectativas em relação ao potencial dessas crianças, se seu potencial está sendo subestimado ou não. Como as crianças e adolescentes com deficiência podem ter independência se pais/mães, musicoterapeutas fazem as escolhas por elas/eles? A pesquisa também apresenta a pouca expectativa que se tem para as meninas com deficiência, e a pouca expectativa para algumas habilidades especificas de meninas e meninos com deficiência. Musicoterapeutas mencionaram mais expectativas em relação às crianças, porém, os objetivos musicoterapêuticos não contemplam essas expectativas. Os objetivos mais citados pelos musicoterapeutas estão relacionados com a cognição. Questiona-se se essas habilidades cognitivas e comunicativas são as mais importantes para se trabalhar com crianças com deficiência comparando com aprenderem a fazer escolhas, conhecerem seus

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desejos, aumentarem sua autoestima, confiança e independência. Cabe questionar de que forma as expectativas de musicoterapeutas e desejos para as/os seus/suas pacientes estão contemplados nos objetivos traçados por eles/as, lembrando que essas expectativas e desejos devem ser os melhores possíveis considerando o potencial de cada pessoa e sua dignidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa apresentou que musicoterapeutas, pais ou mães de crianças e adolescentes com deficiência não percebem ou percebem pouco as desigualdades em torno das questões de gênero. A deficiência carrega também desigualdades e discriminações, que se multiplicam com as relações de gênero, limitando mais ainda sua independência, principalmente para as meninas com deficiência. Assim, a pesquisa confirmou que as relações de gênero são relevantes na Musicoterapia e que as expectativas de pais/mães e musicoterapeutas são influenciadas pelas relações de gênero, apresentando mais expectativas para os meninos que para as meninas com deficiência, especialmente em relação à independência. A independência foi mais salientada para meninos, menos expectativas aparecem para a menina. Tanto pais/mães quanto musicoterapeutas precisam ter mais expectativas em relação às crianças e adolescentes. A avaliação em Musicoterapia é fundamental para Musicoterapeutas pensarem e repensarem suas práticas, a fim de evitar desigualdades e promover uma maior humanização das/os pacientes, buscando uma maior qualidade de vida. Para tal, a Teologia e estudos mais recentes sobre Teologia e Deficiência podem promover esse suporte para a Musicoterapia, com a construção de relações mais equitativas e justas dentro da Musicoterapia, desconstruindo gênero e deficiência e suas desigualdades. Salienta a dignidade e o valor das crianças e adolescentes com deficiência, e seu direito por independência, buscando o máximo do potencial e do desenvolvimento, para que se tornem adultos/as de sucesso, que saibam fazer boas escolhas para si e serem respeitadas/os. A perspectiva

feminista

na

Teologia

reforça

assim

os

objetivos

de

aumentar

a

independência/autonomia, e autoestima das pessoas com deficiência. Elas/es têm direito a fazer amizades, namorar, conhecer seu corpo e sexualidade, constituir família, trabalhar, fazer suas compras, estudar, cuidar de si, das atividades domésticas, se locomover, ao lazer e ser autossuficientes, como qualquer outra pessoa, tendo o direito de fazer escolhas nessas áreas e em todas as áreas de suas vidas.

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REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari K. Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora LDA, 1994. FERRI, Beth A.; GREGG, Noel. Women with disabilities: missing voices. Women's Studies International Forum, v. 21, n. 4, p. 429-439, 1998. GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2001. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. HALL, Kim Q. (Ed.) Feminist Disability Studies. Bloomington: Indiana University Press, 2011. HANNA, William John; ROGOVSKY, Betsy. Women with disabilities: two handicaps plus. In: BARTON, Len. Overcoming Disabling Barriers: 18 years of Disability and Society. London: Routledge, 2006. HARRIS, Adrienne; WIDEMAN, Dana. The construction of gender and disability in early attachment. In: FINE, Michelle; ASCH Adrienne (Eds.). Women with disabilities: Essays in psychology, culture and politics, Philadelphia: Temple University, 1988. LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. MELLO, Anahi G; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, p. 635-655, 2012. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

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SIMPÓSIO 2 EIXO GÊNERO, EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO

Síntese da Proposta

O simpósio pretende reunir e discutir trabalhos que reflitam sobre o gênero como elemento central na construção das relações de poder e produção discursiva em práticas hegemônicas e contra-hegemônicas nos campos da educação, cultura e comunicação. O caráter interdisciplinar da proposta é evidente e abriga possibilidades de pesquisa e ação em várias áreas do conhecimento.

Coordenação: Ana Rita Fonteles Duarte

Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). É doutora em História da Cultura pela UFSC e mestra em História Social pela UFC, possui graduação em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Ministra disciplinas na área de Prática de Ensino na graduação e coordena o PIBID Educação em Direitos Humanos: Gênero e Sexualidade na Escola. Integra as linhas Cultura e Poder e Memória e Temporalidades no Programa de Pós-Graduação em História da UFC. Tem experiência nas áreas de História da Imprensa, Imprensa Feminina e Feminista no Brasil, História e gênero, História do Feminismo, memória e gênero, história das mulheres, gênero e ditadura no Brasil. Coordena o Grupo de Pesquisas e Estudos em História e Gênero (GEPEHG), na UFC.

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UMA ANALISE DE GÊNERO ATRAVÉS DAS CHARGES NO GOVERNO MARIA LUIZA22 VENÂNCIO, Bárbara Rangel23

RESUMO/ABSTRACT O trabalho aqui proposto tem como objetivo principal as reflexões de gênero que podem ser feitas a respeito do governo da ex-prefeita de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele, através da utilização da charge jornalística produzida no jornal “O Povo”, durante período contemporâneo a este governo, que compreende dos anos de 1986 ou ano de 1988, utilizando os desenhos humorísticos como fonte para o processo de construção histórica. Pretende-se, também, estabelecer um diálogo entre as produções feitas pelo jornal e a própria charge, tendo em vista a ideia de que a prática do humor gráfico está inserida no contexto do meio pelo qual é veiculada.

The work proposed here has the main goals, the reflections of gender that can be made about the government of former mayor of Fortaleza, Maria Luiza Fonetele, through the use of journalistic charge produced in the newspaper “O Povo”, during the contemporary period from this government, comprising the years 1986 or 1988, using the humorous drawings as a source for the historic building process. It is also intended establish a dialogue between the productions made by the newspaper and the charge itself, given the idea that the practice of graphic humor, this into the context, the means by which it is conveyed. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Charge jornalística (Journalistic charge). Politica (politics). Gênero (Gender).

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo principal refletir a respeito dos estudos desenvolvidos nas análises de gênero, através das charges jornalísticas, no governo da então prefeita de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele, o qual ocorreu de 1986 a 1988, em pleno período de redemocratização do nosso país. Destarte, é necessário deixar claro que o governo de Maria Luiza Fontenele, que foi denominado de Administração Popular na prefeitura de Fortaleza, ocorreu em um período marcado por diversas conturbações na política cearense, que ocorriam por fatores tanto econômicos quanto sociais, além de possuírem um fator de agravamento, por conta do período de redemocratização politica pelo qual o país passava, e que possuía um forte cunho

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An analysis of gender through the charges in government Maria Luiza. Graduação em História (UFC) - Fortaleza –CE / e-mail: barbaraa_rv@hotmail.com

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renovador. Uma das maneiras cabíveis para a discussão a respeito de um dado período é utilizando os jornais como fonte de pesquisa histórica, pois neles é perfeitamente cabível de se compreender a construção de determinados discursos a respeito dos mais variados episódios cotidianos. Nesse sentido, é minha intenção desenvolver o trabalho especificamente com as charges desenvolvidas pelo jornal ”O Povo”, tomando como base a reflexão de Rodrigo Motta (2006), ao afirmar que as charges geralmente ilustram o posicionamento politico do jornal nos quais é veiculada, deixando-nos entrever o prisma pelo qual os acontecimentos retratados são interpretados. Pretendo, portanto, problematizar questões a respeito do governo de Maria Luiza (1986 – 1988) a partir da prática do humor gráfico contido no jornal “O Povo”, visando sua trajetória como prefeita de Fortaleza, dando maior enfoque em como o gênero se fez presente durante todo seu governo, e é utilizado fortemente em suas representações.

METODOLOGIA

É minha intenção, no decorrer deste trabalho, refletir a respeito das relações de gênero que se construíram em torno do governo da então prefeita de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele, através da analise das charges jornalísticas publicadas no jornal ”O Povo” no período compreendido entre os anos de 1986 a 1988, por ser este o período do mandato da prefeita. Para tanto, a utilização das charges como fonte histórica necessita de determinados tratos teóricos e metodológicos específicos, que são inerentes a ela. Um ponto importante a ser considerado na utilização da charge é sua abrangência, pois por se expressa através de uma linguagem de fácil compreensão, a mesma possui um amplo raio de ação, ao utilizar signos que podem ser compreendidos por todos. Rodrigo Motta (2006, p. 18) diz que “a caricatura ajuda a traduzir os eventos, conflitos e grandes personagens políticos para a linguagem popular”. É, por tanto, necessária a atenção aos discursos que estão imbuídos nestas charges, discursos estes que são condicionados por diversos fatores, mas que existem inerentes aos seus fatores externos, pois considero aqui a exterioridade fundamental à interpretação de qualquer discurso. Neste ponto, então, pode se dar certa importância à semiologia no trabalho com a charge, pois esta, apesar de se utilizar de uma forma mais simplificada de discurso, nem por isto é simplória. A semiologia, por tanto, ajudar-nos-á a compreender certos arquétipos

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utilizados nas charges, como algumas presenças configuradas nos desenhos, ou mesmo na utilização de metáforas, metonímia e ironia, as quais podem configurar sentidos bastante dúbios às charges, como veremos mais adiante.

DISCUSSÕES

É praticamente indispensável a nos pensar em um estudo do governo da ex-prefeita Maria Luiza Fontenele e não pensar nas analise de gênero que podem ser inerentes a ele. Entendo que o gênero perpassa fortemente este governo (1986 - 1988). Levando em conta, então, o fato de que este trabalho pretende analisar a charge jornalística, produzida no período, porém sem dissociar suas significações do jornal onde é produzida, é minha pretensão mostrar como esta charge assimila, através de um sem número de formas, as atividades que ocorrem no cotidiano do chargista ou mesmo do próprio local onde o jornal é situado e suas ressignificações, podendo mostrar também de que forma a população se apropria dessas informações. Torna-se necessário, por tanto, dizer como primeiro fator para esta analise que Maria Luíza torna-se a primeira mulher a ser eleita como prefeita de uma cidade de tão grande porte quanto Fortaleza. Este fato, por si só, já poderia representar um grande empecilho para o desenvolvimento de seu governo, tendo em vista uma sociedade machista e patriarcalista como é a nossa, porém, para além disso, a então prefeita somava uma série de “adjetivos” que representavam um sério “agravamento” de sua situação para muitos em sua época. Maria Luiza era de esquerda e pretendia seguir diretrizes voltadas para o proletariado em seu governo. Além disso, existia também o fato de ela ser divorciada, fato que era visto com maus olhos por muitos, uma vez que acreditavam que ela jamais seria capais de representar um bom exemplo desta forma. Existia também a questão de sua vitória improvável ter angariado muito inimigos para seu governo, e isto era um problema enorme, principalmente em um período onde a verba não era repassada diretamente ao município. Contudo, esta mulher representava aos olhos da população do período mudança, a quebra com o paradigma das antigas politicas. Contudo, a então prefeita enfrentou fortes problema advindos do antigo governo, como lixo nas ruas e contas a pagar, problemas estes cuja solução foi dificultada por seus adversários políticos e que foram atribuídos inteiramente

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à sua responsabilidade. É neste ponto, então, que se faz importante pensar de que forma a influência da mídia agiu na população. É verificado na pesquisa que o período de “paz” entre governo do município e mídia dura aproximadamente os primeiros 15 dias da nova administração. Isso significa dizer que não somente não havia boa vontade com a nova gestão, como também houve um bombardeio por parte dos jornais locais ao governo, depreciando-o. Uma vez que estas informações passam a ser ventiladas para a população, a nova prefeitura inicia um gradual processo de desmoralização frente à grande massa populacional. Salvo pouquíssimas exceções, os chargistas têm o costume de se alinhar à linha de pensamento dos jornais onde são publicados e, no caso de Sinfrônio, chargista do jornal O Povo durante este período, isto não era diferente. Portanto, neste caso, basta lançar um breve olhar ao jornal para entender que o mesmo era contra a então prefeita de Fortaleza. As charges produzidas no jornal O Povo sobre Maria Luiza parecem querer criticá-la, traçando uma relação entre a “mulher pública” e a “mulher privada”, isto significa usar estereótipos de um dito padrão feminino para inferiorizá-la. Maria Luiza é com frequência retratada em veste de empregada ou com vassoura e espanador nas mãos, limpando a prefeitura. Tais imagens, além de desmerecer seu trabalho, ainda têm a pretensão de mostrar qual é o lugar aonde ela deveria estar, em casa, cuidando do lar, e não no espaço público, onde só faz besteira. O foco neste ângulo da prefeita torna-se ainda mais desmoralizante por chamar atenção par à falta de “feminilidade” da mesma. Maria Luiza, pelo cargo que passa a assumir, tenta quebrar com o paradigma político de uma política feita por e para homens, na qual uma mulher, mesmo que já envolvida com a política, só poderia se envolver caso estivesse relacionada a certos nichos específicos, engajada sempre em lutas como o feminismo, ou maus-tratos às mulheres etc. Enquanto que aos homens é dado o papel da “principal” da política, no qual um legado de políticas patriarcalistas anteriores torna a política um lugar essencialmente masculino, fazendo muitas vezes com que a mulher não pudesse agir como tal nessa esfera, tendo de se masculinizar, uma vez que qualquer característica feminina nela encontrada será utilizada contra ela como uma prova de sua fraqueza. Gostaria, no entanto, de ressaltar aqui o fato de que não é uma questão de considerar as pautas geralmente tratadas por mulheres de menor importância. Meu objetivo é apenas mostrar que, ao ser eleita como prefeita de Fortaleza, Maria Luiza já começa a quebrar uma das muitas barreiras enfrentadas pelas mulheres na política, e que a mulher deve ter o

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poder e o direito de tratar e de ser o que quer que ela deseje antes de ser discriminada apenas pelo seu sexo.

CONCLUSÕES FINAIS

Neste trabalho, busquei compreender questões referentes a como as situações politicas podem se transformar de acordo com a influência da mídia. Procuro, também, compreender de que forma a charge se imbui de significados próprios e os transmite para a sociedade. Através de elementos que me são dados no trabalho com as fontes, é possível ver como a politica se configura no espaço feminino e como as rupturas de paradigmas vão se desenvolvendo através do “personagem” principal desta pesquisa, que é a ex-prefeita de fortaleza Maria Luiza Fontenele, durante seu governo (1986 - 1988).

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AUTORIA FEMININA E O CONTORNO DE SI24 CARMO, Camila25

RESUMO/ABSTRACT Muitas vezes, somos arrastados pelo discurso de que é mais fácil ser mulher e expressar nossa sexualidade, sendo estas as sutilezas que nos levam a pensar o poder como aquilo que age sobre nós e não como algo que circula produzindo as interdições e os silêncios. Mesmo sabendo que o poder na contemporaneidade é exercido em múltiplos formatos, de forma tal que há uma falsa impressão de liberdade e autonomia dos corpos, é possível afirmar que a literatura transcende esse mecanismo, pois a medida do poder que nela circula é a certa para tentar impedir de nos pedagogizar, nos tornar dóceis e meninas boazinhas. Dessa maneira, buscar-se-á discutir e problematizar neste seminário de que modo a escritora baiana Kátia Borges proporciona à vida possibilidades distintas daquela vividas, permitindo-se um vir a ser outra ou outra coisa a partir da escrita. Além disso, buscar-se-á discutir de que maneira tais escritos consistem em narrativas de si, as quais apontam para exercícios do cuidado de si. Many times we are drawn by the speech that is easier to be a woman and express our sexuality, these being the subtlety that lead us to think of power as what about us and not as something that circulates producing bans and silences. Even though the power in the contemporaneity is exercised in multiple formats, such that there is a false sense of freedom and autonomy of the bodies, it is possible to affirm that literature transcends this mechanism, because the measure of power that runs it is right on trying to prevent pedagogizing us, makes us docile and good girls. Thus, seek to discuss and problematize this seminar so that the Bahian writer Katia Borges provides distinct possibilities that life lived, allowing it to come to be someone or something from the writing. Also, looking forward to discuss how these writings consist of narratives themselves, which point to exercise self care. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Autoria Contemporânea (contemporary literature).

Feminina

(female

authorship).

Literatura

INTRODUÇÃO No alinhavar dos textos de autoria feminina publicados em blogs, facebook e livros, o Projeto de Pesquisa “Sou mulher e escrevo: da escrita como cuidado de si”, ainda em andamento, nasce em busca do entendimento do por que e para que essas mulheres escrevem. Dentre tantas respostas existentes, destaca-se a escrita como um cuidado, um cuidado do si para consigo e, também, um cuidado do si para com o outro. Antes de discutir o conceito de cuidado de si e de comentar, ainda que sumariamente, em que medida os textos da escritora baiana Kátia Borges consistem em narrativas de si, as 24

Female authorship and Contour itself Graduando em Letras/Libras/Língua Estrangeira; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB; Amargosa, Bahia; camila.ncarmo@gmail.com. 25

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quais explicitam exercícios do cuidado de si, é importante salientar que a nossa tradição estética produziu discursos e mecanismos que tomam a criação artística como um dom essencialmente masculino, teorizando a mulher como um ser menor e inibindo sua produção literária. Dessa forma, há alguns anos, era desconsiderado, e em muitos casos ainda é, o intelecto e o uso de aspectos lógicos pelas mulheres, constituindo-se a ideia de ser o corpo feminino de caráter imitativo e emocional, o que, segundo esse pensamento, reflete-se no processo criativo levando as mulheres a escreverem textos “água-com-acúcar”, desprovidos de trabalho artístico e, sobretudo, simulacros dos textos produzidos pelos homens. No entanto, é/foi através da produção literária, do trabalho que a escrita exerce sobre a linguagem, que os sentidos produzidos por aquelas práticas discursivas são ressignificados, de maneira a problematizar o dom da criação assegurado ao gênero masculino. Assim, a produção literária de autoria feminina configura-se como discursos de resistências, de maneira a trazer a Mulher que Escreve a figurar na História Literária Brasileira, não em uma relação dicotômica entre homens e mulheres, mas, como afirma Del Priore (1998), para fazê-las existirem, viverem e serem. Desse modo, em consonância com o filósofo Gilles Deleuze, que em seu texto Literatura e a Vida afirma que “escrever não é impor uma forma” (1993, p.11-17), mas sim dar à vida possibilidades distintas daquelas vividas, nos permitindo um vir a ser outro ou outra coisa de forma que há visibilidade do fragmentado e informe. Entendendo que escrever é uma questão de devir, é possível, assim, uma invenção de uma vida que falta, de um sujeito que se faz e refaz enquanto escreve. Portanto, para esta comunicação, trago a literatura produzida pela escritora baiana Kátia Borges que, por entre os processos de captura, produz e desfaz territórios de maneira a provocar a multiplicidade.

METODOLOGIA Através da análise de poesias publicadas no facebook, em Madame K26 e no livro Ticket Zen, buscar-se-á engendrar uma leitura que evidencie a escrita de Kátia Borges como um exercício do cuidado de si ou uma (re)invenção de si por si mesma.

DISCUSSÕES Como homens e mulheres articulam-se para invisibilizar os sujeitos e suas subjetividades? Como discursos que categorizam a produção feminina criam alianças produzindo uma teia discursiva em relação à representação das mulheres e aos diversos

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Blog da escritora: http://mmeka.wordpress.com

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femininos formados por mulheres do campo, domésticas, acadêmicas que vivem os dias em combate com o “Anjo do Lar”, este que ainda insiste em enclausurar as mulheres na esfera doméstica? Os poderes que circulam fazem calar, mas também mobilizam e despertam resistências, por isso trago a escritora Kátia Borges que, por meio de narrativas de si, as quais apontam para exercícios do cuidado de si, (re)constrói um eu descentrado e diverso que resiste a forças que tentam invisibilizar sua existência. Ticket Zen é um livro que, desde a fotografia de janelas e bancos de um transporte coletivo ao seu título, nos oferece um bilhete para um embarque rumo à meditação repleta de enigmas ou para um outro lugar diverso daquilo que conhecemos. Ao embarcar nessa viagem, o primeiro aviso aos passageiros é de que o tempo está ao nosso lado, por isso a indicação: “leia ao som de Time is on my side, dos Stones”. Nesse passeio pelo baile de palavras proporcionado pelos tons da escritora Kátia Borges, notamos uma cidade onde os sujeitos são constituídos pela multiplicidade e em constante movimento, assim “meu corpo avança contra os faróis./ Alguém nasce, alguém morre, fecho os olhos *...+”. Os múltiplos sujeitos que passeiam por meio do Ticket Zen nos dão a certeza de que também somos palavras e é possível viver, amar e morrer em uma folha de papel ou, como depõe Michel Foucault, no documentário Foucault por ele mesmo: “nós vivemos, morremos e amamos num espaço enquadrado, recortado, matizado, com zonas claras e escuras” (FOUCAULT, 1966). E assim a literatura se apresenta como registro de um existir, onde se traduz o inefável no qual o real e o imaginário se imbricam de modo a constituírem uma nova possibilidade de existência. Ainda segundo Foucault, quando o mesmo analisa os exercícios de cuidado de si da antiguidade clássica, o papel da escrita constitui-se na apropriação das leituras realizadas por um indivíduo, o qual as transcreve e faz da verdade delas (das leituras) a sua própria verdade. Ao ler Ticket zen, é possível perceber que Kátia Borges dialoga com uma infinidade de textos e autores, fazendo de muitas das ideias desses autores suas próprias ideias. No poema “Como dizia o I Ching”, por exemplo, que traz em seus versos conhecimentos do Livro das Mutações, a poeta escreve: “Um dia, Deus olhou diretamente para mim / e, creio eu, não gostou muito daquilo que viu./ Logo, enviou alguém que me ensinou a nadar,/ e eu atravessei, ao lado dela, a grande água/ de que fala o I Ching *...+.” O hexagrama do I Ching transforma-se em versos onde a água, que movimenta-se em rios e correntezas, dando origem à vida, aplica-se ao homem, representando seu corpo, coração e alma. A poeta conclui: “É que o amor também é/ outra forma de oração-/ ele ensinou. Eu aprendi”, e assim o oráculo de água pura e cristalina constitui-se em uma personificação do amor.

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A partir da leitura de textos da antiguidade clássica dos três primeiros séculos do império, o filósofo Michel Foucault, interessado em compreender como os sujeitos foram estabelecidos em diferentes momentos e contextos históricos, procura analisar o conceito de “cuidado de si”. “Cuidar de si”, para a antiguidade clássica, consiste em uma prática de liberdade, não como uma ideia de que existe uma essência humana mascarada, mas como forma de ocupar-se consigo mesmo e ser gestor da sua própria vida. Dessa forma, entende-se que o cuidado de si configura-se como uma estética da existência, uma prática de liberdade que nos permite inscrevermo-nos no mundo, nos (des) construindo e (re) construindo, contando sobre nós mesmos, assim como faz a poeta Kátia Borges em seus textos. Dentre eles, destaco Como chuva forte e seus versos: “O temporal do amor, a chuva forte,/ deixou minha alma encharcada./ Ao pensar no que passou, pesam-me as pernas *...+”, que se apresentam como um bilhete lírico, onde o eu-poético desaba sobre um outro lembranças de uma viagem que, com uma forte chuva, apresenta o amor perdido. Em Ticket Zen encontramos narrativas de si apresentadas por um “eu” múltiplo, como em “A Cidade”, na qual o eu-poético nos conta a história do tempo móvel e imóvel personificado nas coisas. O cenário exposto é de uma imagem saudosista de um tempo vivido que se foi. Após a visita à Cidade, a viagem proporcionada por Ticket Zen nos leva à Saudade “sempre tão quieta... / Ela fica sentada num canto./ Em silêncio, como se nem existisse./ De repente, ponho os olhos nela e me assusto: a saudade ri *...+” e, assim, entendendo a literatura como aquela que aponta sempre para o que falta no mundo e em nós, ela empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz (PERRONE-MOISÉS, 1990). Segundo Foucault (1971, p.08), “os discursos produzidos são, ao mesmo tempo, controlados, selecionados, organizados e redistribuídos por certos procedimentos que possuem a função de incitar poderes e perigos”. Assim, o discurso constitui-se como local privilegiado para construção de verdades. O repertório discursivo cerceador da atuação feminina é ressignificado nas publicações da escritora Kátia Borges em páginas do facebook, esta que compõe versos a partir de manifestações efervescentes nas ruas e das lutas em defesa da democracia: “E eu aqui dentro de mim. Perdi tantas polêmicas. O rolêzinho, os presos decapitados, o rato na Barra, a morte de Sharon... E ainda nem sei se vai ter Copa. Aqui dentro de mim é o seguinte. Toca o tempo inteiro Gretchen: je suis la femme.” Esta voz que vai à cozinha e constrói com tamanho engenho poesia: “Posso dizer, sem falsa modéstia, que me orgulho do arroz que fiz hoje. Lindo, soltinho, delicioso, só água, um fio de azeite de oliva e uma pitada de sal.”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dispositivos de controle estão comprometidos em defender e manter a ordem estabelecida, colocando as mulheres em papéis definidos a fim de silenciá-las, fazendo delas seres aos quais somente cabe uma norma, onde as subjetividades devem ser excluídas. Desse modo, por entender a universidade como um importante espaço de construção coletiva e formação dos múltiplos sujeitos, trago ao cenário acadêmico e neste espaço de diálogo a mulher, escritora, nordestina, baiana que, em seus versos, produz outras verdades, deslegitimando a esfera do lar como único espaço de exercício do poder.

REFERÊNCIAS a) Livros BORGES, Kátia. Ticket Zen. 1ª ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2010. DELEUZE, Gilles. Literatura e a Vida. Crítica e Clínica. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 1997. DEL PRIORE, Mary. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 13ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3: o cuidado de si. 8ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. b) Página no Facebok: KÁTIA BORGES: http://www.facebook.com/katiamacces/

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‘FÊMEAS’ NEGRAS: CONSTRUÇÕES DE ALTERIDADE FEMININA NAS FOTOGRAFIAS OITOCENTISTAS BRASILIERAS. 27 VALENTIM, Danielle Rodrigues de Souza28

RESUMO/ABSTRACT Tendo como referência os temas representação, etnicidade e gênero, fotografias produzidas no Brasil do século XIX são aqui interpretadas como complexos discursivos, subordinados às estruturas de poder e dominação europeias. A proposta deste paper é, pois, a partir das fotografias de escravas (africanas e afro-brasileiras) oriundas da primeira metade do século XIX, analisar as estratégias de produção cultural do sujeito branco-europeu na construção de gênero e de identidades etno-raciais durante a expansão territorial europeia em continente americano. With reference to the themes of representation, ethnicity and gender, photography produced in Brazil in the 19th century is here interpreted as discursive complexes, which are subject to power structure and the European domination. The purpose of this work is therefore, based on the photographs of slaves (African and Afro-Brazilian) from the first half of the 19th century, analyze the strategies of cultural production of the white European subject in the construction of gender and ethno-racial identities during the European territorial expansion in the American continent.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Representação (Representation). Etnicidade (Ethnicity). Identidade (Identity). Gênero (Gender).

INTRODUÇÃO

As representações visuais das mulheres negras na cultura de massa vêm, desde a sua origem, atreladas à reprodução dos valores e estereótipos vinculados aos interesses hegemônicos europeus. Durante o século XIX, essas representações atendiam às demandas culturais da época, cujas regras eram pautadas por teorias racistas29 desenvolvidas na Europa e na América do Norte. Através da contemplação das fotografias do referido período, nota-se que tais teorias encontraram um forte pilar de sustentação na produção fotográfica, pois foi através das fotografias antropológicas e etnográficas que as teorias racistas propagaram seus ideais pseudocientíficos de uma hierarquia das raças (na qual a raça negra é inferior à branca).

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Black Females: female otherness constructions in 19th century Brazilian photography. Graduada em Com. Social – Radialismo e Televisão pela UFPE. Mestre em Ciências das Artes e dos Meios de Comunicação pela Universidade Carl von Ossietzky Oldenburg, Alemanha. 29 O termo teorias racistas refere-se às “práticas de visualização” (EDWARDS, 2003, p. 335) das pesquisas da antropologia e/ou da etnografia realizadas durante o século XIX. Nesse contexto, a fotografia foi utilizada no processo de legitimação destas teorias raciais como instrumento científico. CF. EDWARDS, Elizabeth, 2003, p.335 et. seq. 28

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Assim, pode-se afirmar que o olhar sobre negras e negros durante o século XIX era marcado por uma “curiosidade antropológica” (PESSANHA, 1992, p. 44) que se insere nos propósitos europeus de exotização da realidade local construindo personagens de marcada alteridade exótica. Fator que distancia as representações da imagem do(a) negro(a) de um caráter realista ou documental, ao passo que atua como uma construção social e exemplifica a ‘urgência’ das ciências antropológicas e etnográficas bem como a curiosidade dos europeus30 em terras distantes. As imagens produzidas pelos europeus, além de seguirem rigidamente as convenções dos gêneros fotográficos desenvolvidos na Europa do século XIX, promovem um certo “exotismo”31 dos seres retratados, ou seja, essas imagens apresentam uma realidade imaginada pelos artistas europeus. As relações de alteridade se somam a tal construção para criar um(a) personagem negro ou negra atemporal que habita a imaginação europeia oitocentista.

METODOLOGIA A pesquisa teórica qualitativa demandou um prévio levantamento bibliográfico acerca das imagens fotográficas das mulheres negras (africanas e afro-brasileiras) produzidas no Brasil durante o século XIX, capaz de situá-las em seus contextos históricos, políticos e geopolíticos. Para isto, considerou alguns fatores. O primeiro é a delimitação temporal, já que tem como pressuposto a ideia de que a escolha dessas imagens delimita-se ao período colonial, ou seja, às primeiras imagens de mulheres negras feitas por fotógrafos europeus (na primeira metade do século XIX), com o objetivo de enviar à Europa imagens dos Trópicos. Por isso, trabalhou-se com os retratos em plano médio curto, primeiro e primeiríssimo planos, uma vez que é mais nítida a encenação da imagem da mulher negra criada pelo sujeito hegemônico branco no momento de produção das imagens, enquanto que através dos retratos em planos médio e geral se percebe um caráter documental do cotidiano das escravas, as quais foram retratadas

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Na primeira metade do século XIX foram muitos os europeus, sobretudo franceses e alemães, que abandonaram as confortáveis certezas do cotidiano de sua terra natal e se instalaram no Brasil. Seja através das expedições científicas ou através do incentivo cultural de personalidades da polítca, como D. Pedro II, por exemplo, que esses artístas europeus se estabeleceram no Brasil. Eles se dedicaram à produção das primeiras imagens do país e de seus habitantes que seriam vendidas no mercado europeu, afim de que o „velho continente‟ pudesse tomar conhecimento sobre a vida „abaixo do Equador‟. 31 Segundo Ricón a definição do conceito “exótico/exotismo” é a seguinte: “O exotismo situa-se desde meados do século XIX como um dos conceitos das áreas de produção e representação estéticas, pois além de conceituar os contextos culturais da história européia, tal conceito representa ao mesmo tempo um sinal de contrariedade a pontos de vistas e experiências pré-existentes. Suas referências fundamentais remetem ao Romantismo liberal através das condições culturais que se baseiam em formas intensas e emocionais de percepção, assim como na formação da idéia do desconhecido e misterioso Mundo „não-europeu‟, „não-moderno‟; assim como remete às representações culturais, geradoras de emoções semelhantes nos consumidores de cultura. RINCÓN, Carlos. 2001. p. 338-366.Traduzido do texto em alemão.

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exercendo suas atividades laborais. Tendo em vista a preocupação em examinar a construção da alteridade feminina, a escolha pelos planos mais fechados se fez evidentemente necessária. A seleção das fotografias levou em conta ainda as citações dos títulos em publicações de referência do gênero (Fotografia Oitocentista), a menção em livros estrangeiros e/ou em jornais do período estudado que serviram à definição de uma dimensão panorâmica deste contexto editorial. A partir daí, uma seleção específica para fins de análise, que considera a representatividade (temática, regional e política), definiu o corpus submetido à análise teórica. A revisão bibliográfica do campo teórico de análise foi orientada pelo marco conceitual apresentado neste artigo, que parte dos estudos culturais, estudos de gênero, bem como da recente literatura acadêmica sobre fotografias brasileiras oitocentistas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A representação das mulheres escravas como um objeto do desejo revela que muitos dos retratos oitocentistas expõem a sexualidade da mulher fotografada. A preocupação em examinar com qual finalidade essas fotos foram produzidas, assim como quais efeitos elas produzem no observador/consumidor de imagens, é um dos principais pontos deste artigo. A historiadora alemã Katja Wolf analisou as representações da sexualidade feminina na pintura nos séculos XVIII e XIX cujo foco estava voltado para a temática das senhoras brancas e das serviçais negras. Wolf sugere algumas possíveis interpretações que podem ser aplicadas à análise das representações de mulheres negras nas fotografias oitocentistas brasileiras. A primeira observação da autora, fator já mencionado, é o fato de que a representação da mulher negra se dá por meio de uma imagem criada pelo desejo masculino. Além disso, os retratos (sejam eles pinturas ou fotografias) podem ser interpretados como uma indicação histórica quanto à realidade social da vida sexual feminina. Os contos eróticos e a “literatura galante” (BAKE; KIUPELS, 1996, p. 94) fundamentam a tese de Wolf, como explicam Rita Bake e Birgit Kiupels (p. 94 et. seq.): Todas as noções do sensual ‘século do galantismo’, como os muitos tratados sobre a história da erotização tentam nos fazer acreditar, podem ser apreciadas com certo ceticismo. [...] O que as mulheres realmente sentiam pelos cidadãos e/ou aristocratas, permanece em segredo.

Assim como a literatura foi um campo de projeção da fantasia masculina, a pintura e a fotografia foram utilizadas com a mesma finalidade. Uma outra possível interpretação é que

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tais representações visuais das mulheres desenvolveram um “conceito de feminilidade” (WOLF, 2004, p. 31) que relaciona a sexualidade como parte da existência feminina. Um conceito construído através da “determinação” (BHABHA, 2011, p. 97) do discurso colonial. Segundo Bhabha, a construção do sujeito colonial se dá através de uma “articulação” das formas de uma “diferença” étnico-sexual. O autor afirma que “o corpo sempre está subordinado às normas de um discurso econômico de poder e dominação” (BHABHA, 2011, p. 99), demonstrando, assim, que a ligação entre os fatores étnicos e sexuais promove uma forma específica de diferenciação causadora de uma repercussão estratégica. Esta, por sua vez, sugere uma ideia de diversidade étnico-cultural, ou seja, o discurso de raça e sexualidade (no contexto colonial) se situa num processo de “sobredeterminação funcional” (BHABHA, 2011, p. 109), no qual os sujeitos coloniais são vistos como “estereótipos étnicos” produzidos através do discurso colonial, ou seja, como uma forma de voyerismo e fetichismo por parte dos colonizadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações das escravas em geral podem ser vistas como o resultado de uma necessidade do sujeito branco-europeu pelo “exótico”. A já mencionada tradição sexualizada de representação feminina constitui uma fantasia europeia oriunda do período colonial. Nesse contexto criou-se uma ligação entre cor negra e sexualidade para formar uma imagem “exótica” das escravas africanas despertando “a fascinação por esse tipo de mulher de natureza animal, sexual, lânguida” (FRIEDLANDER, 2001, p. 125). A representação feminina que atenta para o corpo foi uma constante na produção de imagens de mulheres negras dos fotógrafos oitocentistas. É comum observar-se nas fotografias de escravas uma certa tensão erótica, produzida através do arranjo e disposição de suas roupas, onde o corpo feminino, diferentemente da representação da mulher branca, está parcialmente à mostra. A disposição da vestimenta aliada aos elementos da beleza clássica e o “exótico” do fenótipo negro, reforçam o ideal de fêmea negra. Esse tipo de representação atribui à imagem das escravas “o papel de fonte de atração e objeto de desejo” (WOLF, 2004, p. 29) masculino. A escrava é vista como uma mulher que irradia sexualidade. Sendo assim, pode-se afirmar que as roupas das escravas africanas nos dão indícios da forte “sensualidade da cor negra” (WOLF, 2004, p. 29), uma vez que a associação da cor de pele escura com prazer, divertimento etc. era uma constante nesse período.

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Geschlechtermythen des Kolonialismus (Olhar Branco. Mitos sobre o Feminino durante o Colonialismo), Marburg: Jonas Verlag, 2004, p. 19-36.

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DA INVISIBILIDADE À ESTEREOTIPIZAÇÃO: A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES NEGRAS NA MÍDIA BRASILEIRA32 SANTIAGO, Érica Maria33; SALES, Sara Rebeca da Mota34; COSTA, Thaís Cristine de Queiroz 35

RESUMO/ABSTRACT Inúmeros são os estudos que comprovam a invisibilidade e a estereotipização das mulheres negras nos meios de comunicação. Tal realidade torna-se ainda mais preocupante quando se observa que “*a+ televisão aberta, assistida cotidianamente por 94% da população brasileira, segundo recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo, coleciona programas campeões de violações” (BRITO; DANTAS; MELO, 2013, p. 01). A partir do exposto, este trabalho teve como principal objetivo analisar alguns conteúdos da mídia televisiva, (novelas, programas humorísticos e propagandas) que reforçam a imagem estereotipada das mulheres, sobretudo, das negras, que desde a escravidão, são alvos de inúmeras violações de direitos. There are many studies that prove the invisibility and stereotyping of black women in the media. This reality becomes even more disturbing when one notes that "broadcast television, assisted daily by 94% of the population, according to a recent survey by Perseus Abramo Foundation, collects champions programs of violations" (BRITO; DANTAS; MELO, 2013, p. 01). So, the main objective of this study was to analyze some content of broadcast media (soap opera, comedians and commercial), that reinforce the stereotypical image of women, especially of the black women that are the targets of numerous violations of rights since slavery. PALAVRAS-CHAVE/ KEYWORDS: Mídia (Media). Estereótipo (Stereotype). Mulher Negra (Black Woman). Violação de Direitos (Violation of Rights).

INTRODUÇÃO Ao olhar as desigualdades sociais e raciais historicamente construídas na sociedade brasileira, com os recortes de gênero e de etnia, percebemos que essas contradições são vivenciadas de forma diferente pelos diversos segmentos sociais. Dentre os mais atingidos negativamente por tais contradições estão, por exemplo, as mulheres negras. Favorecendo-se do trabalho escravo, durante mais de quatro séculos, o Brasil colocou à margem da sociedade o seu principal construtor: a população negra. Esta passou a viver em situações de desigualdade de direitos e oportunidades, alicerçadas no racismo.

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From invisibility to stereotyping: the violation of the black women rights in Brazilian media Graduada e Mestranda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, erica.santiago.ems@gmail.com. 34 Graduada e Mestranda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, rebecasales.a.s@hotmail.com. 35 Graduada e Mestranda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, thaisc_costa@hotmail.com. 33

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Inserida neste contexto, encontra-se a mulher negra que se depara constantemente com uma vulnerabilidade mais acentuada. Estas mulheres carregam duas marcas sociais, as quais as fazem sofrer duplamente nesta sociedade rigidamente hierarquizada e preconceituosa. A primeira deve-se ao fato de serem do sexo feminino, onde prevalece o machismo, e, a segunda é por serem negras numa sociabilidade em que a cor dificulta o acesso a espaços de poder e decisão. O estudo em tela problematiza a questão da imagem e da representação da mulher na mídia televisiva, sobretudo das mulheres negras, já que a televisão, como bem diz Watson (s.d., p.01) funciona como o espelho da sociedade brasileira. Partindo desse pressuposto, foram analisados alguns conteúdos televisivos, tendo como foco os programas humorísticos (Pânico na Band e Zorra Total), telenovelas e comerciais que foram ao ar no ano de 2013 e exploraram a imagem da mulher negra. Portanto, a discussão que é tecida no decorrer deste trabalho tenta entender como os padrões eurocêntricos veiculados pela mídia afetam o imaginário da mulher negra, bem como reafirmar a urgente necessidade de não somente existirem as pesquisas que abordam sobre o assunto e que, de certa forma, promovem reflexões, mas, além disso, ações que sejam concretizadas no intuito de mudar a realidade violenta em que estas pessoas vivem. Tais ações precisam ser pautadas no respeito à diversidade.

METODOLOGIA

Para atingir o objetivo já explicitado acima, realizou-se uma pesquisa de natureza qualitativa, cuja expressão, ao assumir diversos significados em ciências sociais, “compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados” (NEVES, 1996, p.01), tendo por principal finalidade a tradução e expressão dos sentidos do fenômeno social. Além da pesquisa bibliográfica – por meio da qual foram feitas as consultas aos materiais elaborados sobre o tema em questão –, utilizou-se da pesquisa documental que possibilitou uma aproximação com os conteúdos veiculados pela mídia televisiva, em 2013, onde se observou a exploração negativa da imagem da mulher negra. Recorreu-se, também, à análise de discurso, pois o objetivo essencial desta técnica de análise de dados qualitativos é, conforme Minayo (2010), a inferência dos processos e das condições em que o discurso é produzido. No caso dos fenômenos informacionais e comunicacionais, a autora acima referida expõe que tais meios, além de fazerem parte de um

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sistema de articulação entre lógica e vida social, possuem um papel de (re) produção do real nas sociedades modernas, interferindo, assim, na organização do espaço relacional.

DISCUSSÕES

Tendo como marco o Encontro Nacional de Direitos Humanos, a comunicação passa a ser considerada, a partir de 2005, como um direito fundamental, o que significou a garantia da pluralidade de opiniões e visões, bem como a representação dos diferentes setores da sociedade na mídia. Caso contrário, não só há uma violação de tal direito, mas também dos demais direitos – materializada no racismo, sexismo, homofobia, preconceito religioso, dentre outras formas de intolerância as quais, muitas vezes, são reproduzidas pelos meios de comunicação. Atualmente, a mídia é controlada por determinados grupos que detêm o domínio sobre os meios de comunicação. Os dados, por sua vez, apontam o monopólio empresarial da comunicação como uma realidade alarmante no Brasil: menos de dez empresas – Globo, SBT, RBS, Grupo Folha, Grupo Estado, Editora Abril e Rede Bandeirantes – exercem o domínio sobre as comunicações36. (Cf. COLETIVO INTERVOZES apud ALMEIDA, 2010). Além de serem monopolizados por grupos pequenos, os meios de comunicação de massa são utilizados como instrumentos difusores de opiniões e padrões estéticos dominantes (cabelos lisos, tingidos preferencialmente de loiro, cor e características fenotípicas de pessoas brancas, magreza, etc.) e, deste modo, as mulheres brasileiras negras, quando não são invisibilizadas, aparecem sob algum estereótipo (mulher ou parente de assassino, lasciva, pobre, analfabeta, domésticas no fundo da cena, alvos de violência sexual, dentre outras representações e situações negativas). As expressões, tais como “cabelo ruim”, “cor do pecado”, são vestígios de pensamentos racistas em toda a comunicação. O sexismo e o racismo são ideologias geradoras de violência e estão presentes no cotidiano das mulheres negras. Elas, quando são destaques na mídia, isso se dá no período do carnaval. Aí, infelizmente, aparecem como pedaços de carne e não como sujeitos de direitos. A prática de violação dos direitos da mulher negra já é marca registrada na história do nosso país. Gilberto Freyre (2004), em “Casa Grande e Senzala”, retrata o papel da mulher 36

A partir daí, questiona-se: liberdade de imprensa ou liberdade de empresas? “É o próprio constrangimento do direito à comunicação um dos principais dificultadores para que a comunicação cumpra o papel de promotora de direitos” (BARBOSA; BRANT, 2005, p. 01).

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negra no período escravocrata, no qual esta servia como objeto de trabalho doméstico e como objeto sexual para os senhores e seus filhos. É claro que a violência contra a mulher aparece sem distinção de cor ou classe. No entanto, as mulheres negras trazem uma carga a mais dessa violência, pois este segmento já traz consigo um estereótipo de que as negras são “fáceis”, quentes, “fogosas”, ou seja, seriam aquelas que estão sempre prontas para o ato sexual, partir de uma visão sempre ligada à sexualidade exacerbada. É oportuno destacar também que o Brasil é visto como uma das principais rotas do turismo sexual, no qual meninas, jovens e mulheres negras, predominantemente das regiões Norte e Nordeste, são os principais alvos deste problema. O elemento mais forte que constitui essa propaganda sexual acerca da mulher negra é a manipulação da identidade étnica e racial desta, uma vez que a mídia reproduz ordenadamente estereótipos e estigmas sobre as mulheres negras, os quais terminam por causar prejuízos à afirmação de sua identidade racial e valorização social. Algumas pesquisas trazem o debate sobre a invisibilidade e negatividade da imagem do negro na televisão, tais como: o documentário e o livro de Joel Zito Araújo, A negação do Brasil - o negro na telenovela brasileira (2000, 2004), que demonstram a ausência dos/as atores/atrizes afrodescendentes em de cerca de 30% das telenovelas produzidas em quase 50 anos e, quando presentes, as mulheres negras estavam sempre em papéis das esferas da subalternidade e da sensualidade; Onde está o negro da TV pública (2007), realizada pela Fundação Palmares, constatou que 82% da programação não apresentava temáticas sobre a cultura negra. Gabriela Watson (s.d., p.02) enfatiza que mesmo uma frase, uma piada não é algo simples e sem intenção, mas “*...+ influencia *...+ diretamente na construção de identidade que a mulher negra cria sobre si mesma, sobre seu papel e lugar na sociedade. É fato, a mulher negra, via de regra, não se crê bonita nem valorizada, pois não tem referência para isso *...+”. A conjugação de sexismo e racismo na mídia brasileira tem se constituído um grande impedimento para o desenvolvimento das potencialidades das mulheres negras. Crianças, adolescentes e jovens negras vivem o drama da exploração comercial e sexual cotidianamente, sendo fortalecido nos meios de comunicação através da estereotipização da mulher. As mulheres negras não se reconhecem e nem se autoafirmam como negras. Esse contexto de reprodução do racismo e do machismo veiculado pela mídia traz prejuízos para a afirmação da identidade racial e valorização social, bem como para a socialização e fortalecimento do pertencimento étnico-racial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, ainda persistem o racismo e o etnocentrismo que funcionam como fatores responsáveis pela invisibilização de temas específicos sobre a população negra nos veículos de comunicação. Dito isto, é urgente representar a mulher negra com imagens positivas, mostrálas como protagonistas de suas vidas. É preciso resgatar a imagem do que é ser uma mulher negra e cidadã. Porém, o cenário atual demarca a invisibilidade das mulheres negras, a partir da inexistência de referência positiva, das fragilidades dos dados estatísticos desta população, bem como da ausência de políticas públicas de ações afirmativas, o que é mostrado de forma clara na mídia: veiculação de um contexto de autonegação da identidade negra e naturalização da condição de desigualdade. Isso adquire um significado especial para o debate aqui empreendido. A mídia, sobretudo a televisiva, desempenha um papel duplo no que se refere aos Direitos Humanos. Potencialmente, é um espaço político, que pode atuar na construção de um contexto de respeito e proteção a tais direitos. Contudo, muitas das vezes, ela se utiliza de sua capacidade de formar valores e influenciar, de forma negativa, alguns comportamentos, reproduzindo e legitimando visões de mundo que desrespeitam a população e reforçam o racismo, o machismo, a homofobia, criminalização da pobreza, dentre outras formas de opressão. Logo, é importante reforçar a ideia de controle público sobre o que é veiculado nos meios de comunicação, a fim de combater a violação de direitos, visando à pluralidade e à diversidade dos conteúdos transmitidos. Faz-se desafiante, nesse sentido, mobilizar as mulheres negras e fortalecer a luta pela efetivação de seus direitos e consolidação de políticas estruturantes de combate às desigualdades raciais e de gênero. REFERÊNCIAS ALMEIDA, J. Mídia e direitos humanos. In: ANCED (Org.). Repensando a proteção jurídicosocial: intervenções exemplares em violações de direitos humanos de crianças e adolescentes. São Paulo: ANCED, 2010. ARAÚJO, J. Z. A. de. A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira. 2ªed. São Paulo: Editora Senac, 2004. BARBOSA, B.; BRANT, João. Direitos humanos e comunicação democrática: o que vem antes? Texto escrito para o XXIII Encontro Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Cuiabá-MT, 2005. BRASIL. “Onde está o negro na Tv Pública”. Goiás: Fundação Palmares, 2007.

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BRITO, T.; DANTAS, R.; MELO, P. V. Mídia e direitos humanos: um debate necessário. Carta Capital, [S.l.], 09 dez. 2013. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/midia-e-direitos-humanos-um-debatenecessario-9408.html. Acesso em: 10 dez. 2013. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 2004. MINAYO. M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. NEVES, J. L. Pesquisa qualitativa: características, usos e possibilidades. Caderno de Pesquisa em Administração, São Paulo, v. 1, n. 3, p.01-05, jul./dez., 1996. WATSON, G. Os desafios da militância negra em defesa das mulheres e pela superação da violência de gênero. Educafro, s.d., São Paulo, 03p.. Disponível em: <http://www.educafro.org.br/site/cariboost_files/desafios_militancia.pdf>. Acesso em 22 jan. 2014.

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“A PELE QUE HABITO” E O ENFOQUE QUEER DE ALMODÓVAR37 LIMA, Gláucio Barreto de38; LIMA, Ana Maria Barreto de39

RESUMO/ ABSTRACT A Teoria Queer influencia os estudos da contemporaneidade, tornando-se diretriz para novas concepções de ideias. O cinema queer apropria-se dos conceitos de alteridade da Filosofia, aplica-os no extrato da descrição fílmica e direciona-os para a alteridade dos sujeitos envolvidos na diversidade. A metodologia recorre à pesquisa bibliográfica e ao uso da proposta de análise qualitativa de filmes, neste caso, do filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar. O enfoque queer revela a categoria de transcorporalidade na obra de Almodóvar, ao mesmo tempo em que o jogo de punição e desejo estabelece a ambiguidade queer e desestabiliza a heterossexualidade, abrindo espaço para interrogações. A análise fílmica demonstrou que a encenação dos corpos é uma característica que ultrapassa os limites do cinema e está na dinâmica da vida real. O cinema como artefato discursivo da cultura, torna-se uma tecnologia, ao mesmo tempo fonte de informação sobre gênero e sexualidade. The Queer Theory influences the studies of the contemporaneity, becoming guideline for new conceptions of ideas. The queer film appropriates of the Philosophy's alterity concepts, applies these concepts in the extract of the film's description and directs them for the alterity of the individuals who are involved in the diversity. The methodology of this essay is based on the bibliography research and the qualitative analysis of films, in this case, the film “The skin I live in”, of Pedro Almodóvar. The queer approach reveals the category of transcorporality in Almodóvar's work, at the same time that the game of punishment and desire establishes the queer ambiguity and destabilizes the heterosexuality, opening the way for questions. The film analysis demonstrated that the performance of the bodies is a feature that overcomes the bounds of the cinema and is inside the real life dynamic. The cinema, as a discoursive artifact of culture, becomes technology, at the same time, information source about gender and sexuality. PALAVRAS-CHAVE/ KEYWORDS: Teoria queer (Queer Theory). Gênero (Gender). Análise fílmica (Film analysis). Informação queer (Queer information).

INTRODUÇÃO

Não há como negar que os meios de comunicação e as mídias visuais, em especial o cinema, foram os mecanismos que deram melhor visibilidade e abertura para que as problemáticas de gênero e sexualidade saíssem do discurso acadêmico e tornassem parte das discussões cotidianas da sociedade.

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"The skin I live in" and Almodóvar's queer approach Graduando em Filosofia pela UECE. Bacharel em Biblioteconomia pela UFC. Bibliotecário-Documentalista do IFCE com título de Especialista em Pesquisa Científica pela UECE. Fortaleza, CE. glaucioufc@yahoo.com.br 39 Graduanda em Letras com Habilitação Português/Inglês pela UFC. Bolsista PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, Subprojeto Letras – Língua Portuguesa. Fortaleza, CE. anambarreto92@gmail.com 38

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A informação queer representa um conjunto de suportes de informação com conteúdo queer agregado e carregado de grande impacto performativo, que demonstra uma maneira diferente de ser/estar no mundo. A informação queer é substancialmente composta pela produção cultural, comportamental, das ações e da linguagem que identifica e diferencia as minorias sexuais, mas que, ao mesmo tempo, torna-se um elemento de valoração, mesmo que sob a ótica de um grupo particular. Isso é o que lhe identifica, oferecendo o conforto do pertencimento social e imprimindo o registro de uma memória cultural, repleta de signos e significados exclusivos ou aparentemente direcionados ao(s) grupo(s) com o(s) qual (quais) se identifica(m). Neste sentido, a informação queer tem embasamento na Teoria Queer e [...] vem representar tudo que envolve as minorias sexuais em suas especificidades e pluralidades e colocar em prática uma cultura múltipla e específica de grupos como os gays, as lésbicas, os bissexuais, os travestis, os transexuais, as drags. (...) revistas, moda, bares, filmes, música, literatura, enfim todas as formas de expressão social que tornam visíveis as sexualidades não-legitimadas são alvo de críticas, mais ou menos intensas, ou são motivo de escândalo. Na política de identidade que atualmente vivemos serão, pois, precisamente essas formas e espaços de expressão que passarão a ser utilizados como sinalizadores evidentes e públicos dos grupos sexuais subordinados. Sendo assim, se trava uma luta para expressar uma estética, uma ética, um modo de vida que não se quer “alternativo”, mas que pretende, simplesmente, existir pública e abertamente, como os demais. (MIRANDA; GARCIA, 2012. p. 8 e 9).

Se informação é poder, o uso dos recursos informacionais que tratam sobre a temática de gênero tornam-se elementos primordiais para o protagonismo da cultura queer. O cinema torna-se um importante recurso para o estudo e a pesquisa em Gênero e Sexualidade, sendo “a pujança da teoria queer nos estudos de cinema atestada pelos numerosos congressos, festivais, eventos e publicações” (GARCIA, 2012, p. 460) que produzem informações e formam uma vasta documentação sobre o assunto.

METODOLOGIA

A metodologia deste artigo recorre à pesquisa bibliográfica e ao uso da proposta de análise qualitativa de filmes, especificamente o filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar. Ressalta-se a complexidade da descrição crítica do filme que “caminha à exemplificação intermitente da diversidade no cinema queer, enquanto uso de estratégias discursivas. O cinema queer devora as estratégias!” (GARCIA, 2012, p. 458).

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A Teoria Queer influencia os estudos da contemporaneidade, tornando-se diretriz para novas concepções de idéias. O cinema queer apropria-se dos conceitos de alteridade da Filosofia, aplica-os no extrato da descrição fílmica e direciona-os para a alteridade dos sujeitos envolvidos na diversidade. “A potência queer (re)apropria-se do sistema cinematográfico e se faz valer como instrumento de informação eficiente.” (GARCIA, 2012, p. 459).

A PELE QUE HABITO E O ENFOQUE QUEER: UMA ANÁLISE FÍLMICA

“A pele que habito” é um suspense dirigido pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Tendo como cenário a cidade de Toledo e produzido no ano de 2012, o filme representa todo o arcabouço de genialidade do cineasta. Suas obras costumam ser consideradas pelos conservadores de plantão como “polêmicas” e “ousadas”, características que identificam Almodóvar “pela maneira singular com o qual constrói as identidades de seus personagens nas narrativas, sem cair nas armadilhas do maniqueísmo nem na dualidade de identificação” (NEPOMUCENO, 2010, p. 20). O filme desenvolve-se ao apresentar a trajetória da(o) protagonista Vera/Vicente, que desde o início da película, revela ao espectador um deslocamento de gênero, representado pelas cenas iniciais da jovem rasgando os vestidos que recebera em seu cativeiro. A ação representa uma negação do corpo, a vestimenta seria a representação social do gênero. Esta trajetória está vinculada à de Robert, médico e cientista que realiza sua medicina e experiências na El Cigarral, local onde grande parte da trama se desenvolve. O lugar é uma espécie de chácara onde vive o personagem, mas que ao mesmo tempo abriga sua clínica e o laboratório onde realiza suas pesquisas em busca da invenção de uma pele especial, que seja resistente a cortes, perfurações e queimaduras. Desde as primeiras cenas, o queer aparece como “uma perspectiva anti-normativa, plural e performática de ver e estar no mundo” segundo a obra de Almodóvar. (NEPOMUCENO, 2010, p. 22). O corpo (pele) sofre intervenção, é objeto de estudo, é manipulado pela medicina. O corpo torna-se suporte de informação, pois: [...] a pele deixa de assumir este caráter de invólucro, desaparecendo assim o significado de limite diante das tecnologias invasivas. O corpo troca a pele como quem troca o chip. Mudanças radicais alegam o corpo como um construto obsoleto, devido a sua forma biológica limitada, frágil, perecível,

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pouco durável para a complexidade e velocidade de informação que acumulou. (NEPOMUCENO, 2010, p. 16).

O corpo em construção é utilizado para referenciar as diversas possibilidades que os Estudos de Gênero fornecem. Em analogia, Almodóvar cita o corpo manipulado, pois o Robert trabalha incessantemente na pesquisa da nova pele artificial, que seja resistente aos ferimentos, inclusive ultrapassando os limites da bioética, fazendo uso da transgenia. O trans é debatido como o elemento misterioso, desconhecido e ao longo do filme, o corpo trans vai sendo constituído. A noção de transcorporalidades destaca-se como categoria crítica ao agregar diferentes possibilidades às manifestações do corpo contemporâneo. Seja no cinema, na publicidade, na arte ou no cotidiano, essas transcorporalidades aparecem como performance, em que o corpo ressalta suas nuanças poéticas, estéticas, plásticas e evidenciam uma discursividade visual estratégica (GARCIA, 2005 apud GARCIA, 2012, p. 466).

Durante todo o percurso fílmico, Almodóvar utiliza a categoria das transcorporalidades e deixa no ar a atmosfera do desejo e da negação, reveladas através da troca de olhares entre os personagens e das falas. Além disso, explora com criatividade o jogo de relações de gênero, com as negociações estabelecidas nas esferas de poder e submissão, inclusive com referência à violência explícita, como nas cenas de estupro. Na primeira, Vera/Vicente é abusada(o) sexualmente pelo personagem Zeca, meio irmão de Robert, que fantasiado de tigre, aproveita o período de carnaval para transitar sem medo, já que é foragido da polícia por ter roubado uma joalheria. Zeca visita sua mãe que é empregada de Robert na El Cigarral e confunde Vera/Vicente com sua amante, Gal, ex-esposa de Robert, já falecida. Vera/Vicente é atacada(o) por Zeca, cuja vestimenta simboliza a violência de gênero e a sobreposição física do homem sobre a mulher. A cena do estupro representa a vulnerabilidade, embora a(o) protagonista tenha negociado e tentado esquivar-se do ataque de Zeca, que estava determinado. Ao dizer “o que você pode me dar, além de uma boa transa?”, Zeca violenta sexualmente Vera/Vicente de forma frenética e irredutível, restando apenas à vitima o choro, já que não tem forças para reagir ao ato de violência, demonstrando a subjugação e o posto de refém do feminino sob o masculino. Na inversão do jogo, Almodóvar volta no tempo 6 anos antes e apresenta o enredo da trama para o entendimento do expectador. Vera lembra do tempo em que era Vicente, um jovem que trabalhava no brechó da mãe, junto com Cristina, que é lésbica e sua grande paixão. Vicente corteja Cristina, mas não é correspondido. Vicente convida Cristina para uma festa de

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casamento e lhe oferece um lindo vestido de presente. Cristina rebate o flerte, “dá um fora” em Vicente e provoca-o referindo-se ao vestido: “se gosta tanto, usa você!”, insinuando um jogo de desejo e sedução, pois se Vicente se vestisse como mulher tornaria mais atrativo para ela. Vicente vai ao casamento sozinho. Lá encontra Norma, filha de Robert e Gal, a esposa já falecida. Ela tem distúrbios mentais desde o momento que presenciou o suicídio da mãe. Estando mais sociável, mesmo sob efeitos de medicamentos, Norma durante a festa cede aos olhares de desejo de Vicente e sai com ele para o jardim da mansão onde acontece a festa. Ela não entende o que está acontecendo e Vicente inexperiente, não percebe que ela tem problemas mentais e sob o efeito de drogas, abusa da jovem, que tem um surto e “apaga” retornando apenas quando seu pai, Robert a encontra e acorda, o que a fez julgar ter sido o próprio pai seu abusador. Almodóvar talvez aí faça uma analogia às práticas comuns de abuso sexual que muitas crianças e adolescentes sofrem no âmbito familiar pelo pai, padrasto ou irmão. Norma fica confinada a um hospital psiquiátrico e não aceita mais ver homens em sua frente, desenvolvendo uma fobia social que a afasta do convívio com o pai e o resto da sociedade. Logo ela comete suicídio. Robert se desespera e empreende um surpreendente e inusitado esquema de vingança. Descobre que Vicente foi o jovem que violentou sua filha e o sequestra, transformando-o em cobaia humana para seus projetos de pesquisa. O jogo se revela, no sentido de punição e desejo, através de “uma desestabilização da sexualidade centrada nos órgãos genitais” (SWAIN apud NEPOMUCENO, 2010, p. 15). Robert pune com a castração de Vicente, que sem consentimento, passa por uma vaginoplastia, para redefinição sexual e, além disso, deseja “ressuscitar” a figura de Gal no corpo de Vicente, que agora tem uma vagina e participa do processo de transgênese da pele, geneticamente modificada e mais resistente. Aos poucos, a pele de Vicente vai perdendo as características de masculinidade e sendo substituída por uma pele macia, delicada, mas ao mesmo tempo resistente. O corpo feminino vai sendo moldado, e recebe de Robert um novo nome, passando a ser chamado de Vera. Vicente/Vera tenta em determinado momento do filme se livrar do processo de transexualização. Apela para o suicídio, mas como sua pele está mais resistente e fora socorrido(a) imediatamente por Robert, se recupera do “acidente” e continua a ser forçado a exercer um papel de gênero, emblematizado no filme pela pele/corpo em que habita. Apesar da vaginoplastia, Vera ainda é essencialmente Vicente. A simbologia da insatisfação é marcada

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pela forma violenta com que Vera/Vicente rasga os vestidos que recebe de Robert, assim como a destruição dos estojos de maquiagem. A simbologia do corpo moldado/construído é visível na observação atenta de Vera/Vicente, ao se distrair observando a tv em seu cativeiro, que traz uma reportagem sobre uma exposição de esculturas sobre arte e corporalidades, com figuras de corpos identificados pela genitália, mas sem rostos que lhe imprimem uma identidade. O tempo do filme volta ao presente ano de 2012 e Robert contempla o estágio de adequamento do corpo de Vicente/Vera aos seus desejos, que é a transformação e semelhança à representação do corpo de Gal. Suas pulsões de desejo e afeto são direcionados à nova pele, [...] a partir do jogo do espelho das identidades variáveis (...) campo da subjetivação ou produção das subjetividades. Os queers neste sentido são produtos da idéia de uma subjetividade de natureza (...) essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida através de agenciamentos de enunciação. (NEPOMUCENO, 2010, p. 14).

Depois que houve o estupro de Vera por Zeca, e de seu resgate por Robert, Vera empreende uma tentativa de libertação. Aproxima-se de Robert e simula um jogo de sedução para conquistar a confiança dele e sair do cativeiro. Ao sair, assume o papel de esposa, mas esquiva-se de todas as tentativas de ato sexual que Robert insiste em ter com ela/ele. Vera/Vicente alega dores por conta do processo de vaginoplastia e quando recebe a proposta de ceder o ânus para a cópula sexual, finge que vai ceder e aproveita a distração do parceiro para matá-lo e fugir. Almodóvar coloca a situação limite do roteiro, a penetração por trás, que simboliza a representação da violação da masculinidade em várias culturas. As entrelinhas do texto cinematográfico permitem um entendimento das subjetividades que envolvem as questões de gênero e sexualidade. Ao retornar para casa, mesmo ambiente do brechó, Vera/Vicente reencontra a mãe e seu grande amor, Cristina, a colega de trabalho lésbica. Vera/Vicente aparentemente perdida(o) pela nova condição de identidade imposta, encontra um ponto positivo em todo o processo de violência que sofreu. Agora no corpo de uma linda mulher, logo percebe o desejo no olhar de Cristina e vê a possibilidade de realizar o seu grande sonho, que é relacionar-se afetivamente com ela. Sabiamente, Almodóvar coloca no roteiro de seu filme o elemento que fora desprezado desde o início, para ser o elemento de prova de que Vera é Vicente. Vera/Vicente

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que ao longo da película desprezou os vestidos, rasgando-os, rejeitando-os, pois eles representavam a associação da feminilidade indesejada para si, lembrou-se do vestido que tentou presentear Cristina e o utilizou para ser o elemento de prova para Cristina e sua mãe que ela/ele era na verdade o Vicente. O vestido salvou Vera/Vicente do esquecimento e lhe possibilitou o reencontro com a família, o convívio social e a vivência do amor, possível agora por estar representando fisicamente uma mulher, embora permaneçam seus desejos heterossexuais.

CONSIDERAÇÕES

A análise fílmica demonstrou que a encenação dos corpos é uma característica que ultrapassa os limites do cinema e está na dinâmica da vida real. O cinema pode ser utilizado como um ótimo recurso midiático para abordar as diversas questões de gênero e sexualidade, de forma leve, transparente, mas sem perder a criticidade. O cinema como artefato discursivo da cultura, torna-se uma tecnologia, ao mesmo tempo em que é uma importante fonte de informação sobre gênero e sexualidade. Mesmo sendo uma obra de ficção, os jogos de poder entre o masculino e o feminino estão representados na linguagem simbólica e no uso de signos que demonstram o dualismo e multiplicidade de gêneros. Tendo como genealogia a crítica à matriz do sexo único, representada pelo fálico, másculo e viril, Almodóvar inverte o conceito do corpo único e substitui o modelo generalizado do enfoque no homem/masculino. Seu modelo desejado é o feminino. A análise fílmica revela o desejo silenciado socialmente.

REFERÊNCIAS A PELE que habito. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar. Intérpretes: Antonio Banderas; Elena Anaya; Marisa Paredes; Jan Cornet; Roberto Álamo. Roteiro Pedro Almodóvar e Agustín Almodóvar. Manaus: Paris Filmes; LK Tel, c2012. 1 DVD (120 min), fullscreen, color. GARCIA, Wilton. Introdução ao cinema queer no Brasil: anotações. In: ENCONTRO DE ESTUDOS DE CINEMA E AUDIOVISUAL, 7., 2005, São Leopoldo, RS. Anais... São Paulo: Socine, 2012. p. 457-466. Disponível em: <www.socine.org.br/livro/VII_Estudos_Cinema_Socine.pdf> Acesso em: 29 ago. 2013.

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LIMA, Gláucio Barreto de. Empoderamento através da imagem: formação e desenvolvimento de coleções com foco na educação para a diversidade sexual. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE DIREITOS CULTURAIS, 2., Fortaleza. Anais eletrônicos... Fortaleza: Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais; UNIFOR, 2013. Disponível em: <http://www.direitosculturais.com.br/ojs/index.php/ojs/article/view/362/251> Acesso em: 10 jan. 2014. LOPES, Denilson. Cinema e gênero. In: MASCARELLO, Fernando (Org.) História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. cap. 15. p. 379-394. (Coleção Campo Imagético). MIRANDA, Olinson Coutinho; GARCIA, Paulo César. A Teoria Queer como representação da cultura de uma minoria. In: ENCONTRO BAIANO DE ESTUDOS EM CULTURA, 3., 2012, Cachoeira, BA. Anais eletrônicos... Cachoeira, BA: UFRB, 2012. Disponível em: <www.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/A-teoria-queer-comorepresentaçao-da-cultura-de-uma-minoria.pdf> Acesso em: 10 jan. 2014. NEPOMUCENO, Margarete Almeida. A película do desejo: a subversão das identidades queers no cinema de Pedro Almodóvar. 2010. 280 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.

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EXPERIÊNCIAS NO ESPAÇO ESCOLAR: DEBATES DE GÊNERO, EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE SEXUAL E SEXUALIDADE.40 SANTOS, Marcela Souza.41 RESUMO/ABSTRACT Este trabalho busca expor as experiências da atuação do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) Educação em Direitos Humanos - Gênero e Sexualidade na Escola, realizados na E.E.F.M Dr. César Cals, localizada na Avenida Domingos Olímpio, Fortaleza, Ceará. Esse projeto é financiado pela CAPES, coordenado pela professora Ana Rita Fonteles Duarte – professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará e conta com bolsistas dos cursos de História e ciências sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). As atividades realizadas pelo programa têm como finalidade promover a formação de alunos de graduação nas temáticas de gênero, sexualidade e educação em direitos humanos e levar discussões relacionadas a essas temáticas para o espaço escolar, envolvendo principalmente os alunos do Ensino Médio. This work seeks to expose the experiences of acting PIBID (Institutional Scholarship Program Initiation to Teaching) Human Rights Education - Gender and Sexuality School, performed in EEFM Dr. César Cals, located at avenue Domingos Olímpio, Fortaleza, Ceará. This project is funded by CAPES, coordinated by teacher Ana Rita Duarte Fonteles - teacher, Department of History, Federal University of Ceará - and includes fellows from courses in history and social sciences at the Federal University of Ceará (UFC). The activities undertaken by the program are intended to promote the training of graduate students in gender, sexuality and human rights education and lead discussions related to these themes to the school environment, particularly involving high school students. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Educação (Education). Direitos Humanos (Human Rights). Sexualidade (Sexuality).

INTRODUÇÃO

Com o objetivo de relatar as experiências no PIBID Educação em Direitos Humanos: Gênero e sexualidade na escola, procuramos apresentar as intervenções e atividades desenvolvidas na escola Dr. César Cals, com bolsistas do curso de História e Ciências Sociais. Buscando levantar reflexões sobre o que são direitos humanos, como os alunos os entendem e como os direitos humanos estão relacionados com sexualidade e gênero, foram realizadas intervenções nesse sentido. Este trabalho procura expor que mecanismos foram utilizados para a inserção inicial da temática no ambiente escolar, a receptividade da comunidade escolar e quais as impressões do exercício de elaborar e executar atividades relacionadas à temática deste PIBID e à prática docente. Através dessas experiências do PIBID na escola, 40

Experiences in the school: debates on gender, education on human rights, sexual diversity and sexuality Aluna do curso de graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e bolsista do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) – Educação em Direitos Humanos: Gênero e Sexualidade na Escola, Fortaleza, Ceará, marcela.souzasantos@yahoo.com.br. 41

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procuramos refletir como as relações entre homens e mulheres são forjadas socialmente, procurando pensar como o que entendemos por homem e mulher e suas supostas características inerentes ao gênero de cada um são produtos sociais, construídos historicamente. Outro ponto de análise está voltado para a reflexão acerca da compreensão que os alunos da escola têm de gênero, sexualidade e diversidade, procurando pensar sobre a aceitação ou não dos debates relacionados a essas temáticas dentro do espaço escolar.

METODOLOGIA

Os meses iniciais das atividades do PIBID – Educação em Direitos Humanos: Gênero e Sexualidade na Escola foram marcados por formações para os alunos bolsistas e visitas de sondagens as escolas selecionadas para o projeto. A equipe de bolsistas remunerados constitui-se de vinte e um alunos de graduação, sendo dezessete bolsistas do curso de História e quatro alunos do curso de Ciências Sociais, incluindo mais dois bolsistas voluntários. Três escolas foram selecionadas para a realização das atividades do programa, sendo elas a escola Dr. César Cals, o Liceu de Messejana e o Liceu do Conjunto Ceará, todas escolas da rede pública estadual de ensino, localizadas na cidade de Fortaleza, no Ceará. Os bolsistas foram divididos entre as três escolas, cada uma com um supervisor e a coordenação do projeto ficava a cargo de Ana Rita Fonteles Duarte e Raquel Caminha da Rocha; a primeira, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará e a última aluna do doutorado em História Social do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará. Ao longo dos meses iniciais do programa os estudos foram dirigidos para os alunos bolsistas semanalmente, contemplando temáticas de direitos humanos, gênero, sexualidade, homofobia, mulheres, diversidade sexual e contando com convidados, pesquisadores, professores, ativistas e artistas envolvidos na temática, que ofereciam oficinas relacionadas às temáticas citadas. No início das atividades na escola, especificamente tratando da escola Dr. César Cals, à qual esse trabalho se refere, aplicamos um questionário com os alunos do ensino médio dos turnos manhã e tarde com perguntas direcionadas ao seu conhecimento sobre as temáticas relacionas ao PIBID, sobre seu interesse de participação e seus posicionamentos acerca de violências e violações a alguns grupos, inclusive mulheres. Segundo a leitura dos questionários, percebemos que os direitos humanos são compreendidos por esses alunos de uma forma pouco abrangente, mais relacionada a direitos comumente conhecidos. Alguns se demonstraram pouco respeitosos as liberdades de mulheres e apoiaram diretamente violências cometidas contra esse grupo.

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Contudo, entendemos a importância desses relatórios como uma sondagem que norteou nossas primeiras atividades e percebemos o interesse de participação da grande maioria dos alunos que responderam. Três intervenções merecem destaque na exposição metodológica das atividades realizadas. A primeira atividade com os alunos foi pensada para discutir a conceituação de direitos humanos. Para tanto, procuramos fazer perguntas que levassem os discentes a pensar quem são os sujeitos de direitos, se todas as pessoas têm os mesmos direitos, utilizando também um vídeo ligado à temática. Os resultados dessa primeira intervenção mostraram que os alunos ainda encaram a restrição de direitos a alguns sujeitos como algo que não se constitui numa violação e que percebem claramente que alguns indivíduos têm mais direitos que outros. Essa primeira intervenção levantava ainda discussões sobre algumas temáticas específicas como direitos das mulheres e dos homossexuais. As posições que inferiorizam e não encaram homossexuais como sujeitos de direitos foram presentes, comumente embasadas com argumentos religiosos. Contudo, encontramos posicionamentos de defesa por parte dos alunos. A segunda intervenção era sobre mulheres, lei Maria da Penha e inferiorização feminina através dos veículos comunicativos, onde procuramos observar propagandas e analisar a sua produção e inserção nos emissores de televisão da sociedade brasileira, marcada por nítidas desigualdades entre homens e mulheres. A atividade é uma parceira com outro PIBID atuante na escola, o PIBID Sociologia. A atividade tinha como objetivo promover o debate entre os alunos, permitindo a reflexão acerca dos temas e possibilitando uma maior compreensão dos mesmos. Inicialmente os alunos dos 2º e 3º anos do ensino médio foram questionados que compreensão tinham de juventude, diversidade e sexualidade. Nas temáticas de diversidade e sexualidade, fica claro a grande delicadeza de como o tema deve ser tratado. A empolgação e participação dos alunos foram intensas. Alguns alunos apresentaram discursos machistas e conservadores, outros se mostram mais compreensivos com a diversidade, respeitosos as sexualidades múltiplas. Analisando a participação dos alunos, a atividade foi muito positiva para o ambiente escolar. Além de promover discussões visando à inserção de temas transversais na escola, busca fomentar e divulgar o respeito ao outro e as diversas formas de existência e vivência.

DISCUSSÕES

As experiências no espaço escolar nos dão diversas possibilidades de análises. A reflexão dessas intervenções nos possibilita a construção de pesquisas históricas, através do

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exercício de análise dos contextos de expressões dos alunos e como suas impressões são produtos históricos. Os alunos, quando indagados sobre seu entendimento de gênero, sempre demonstravam desconhecimento ou confusão com termos como sexo e sexualidade. As construções do que é ser homem e mulher não são percebidas pelos alunos que participaram das atividades. Os alunos encaram as diferenças entre homens e mulheres como natural e suas supostas características, segundo a compreensão dos mesmos, inerentes a cada gênero, também são naturalizadas. No entanto, a compreensão dos gêneros como construtos sociais são fundamentais para romper com hierarquias desiguais existentes na sociedade, inclusive dentro do espaço escolar. A maior parte dos alunos acredita que sejam normais e/ou naturais às diferenças de gênero e alguns ainda justificam suas interpretações levando em consideração as diferenças biológicas/sexuais. Contudo, a suposta ordem “natural” das coisas merece uma revisão. As características biológicas/ sexuais existem isso é óbvio, contudo, que não são essas características apenas, que criam o que é ser masculino e feminino em uma determinada sociedade. Precisamos levar em consideração os fatores sociais, culturais e históricos da sociedade analisada e pensar em como essas diferenças são construídas. Para Guacira Lopes Louro (2010, p. 21): É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.

Observar os sexos e traçar o que é próprio do feminino e do masculino não dá conta das vivências e dinâmicas sociais. Para os alunos do ensino médio da escola Dr. César Cals que participaram da maior parte de nossas atividades, essas características sexuais são normais e naturais. Segundo Pierre Bourdieu (1999, p. 17): A diferença entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação.

As diferenças baseadas em aspectos sexuais são reforçadas por diversos discursos, inclusive pelo escolar. Situar no campo social as diferenças entre homens e mulheres inicia uma reflexão de como as relações são construídas e reproduzidas, desigualmente, entre os sujeitos e a explicações para as desigualdades dessas relações não podem ser baseadas apenas em diferenças biológicas, mas pensadas dentro do contexto social. Pensar nas relações desiguais entre homens e mulheres historicamente nos faz compreender melhor a dinâmica

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das relações. Historicamente a desigualdade dessas relações provocou a invisibilidade das mulheres, tanto no campo das relações como no campo dos discursos e estudos. Para Guacira Lopes Louro, uma das preocupações das estudiosas feministas contemporâneas é tornar visível àquela que fora ocultada e invisibilizada como sujeito histórico. Essa invisibilidade é produzida e reforçada por múltiplos discursos e instituições. Os grupos que não se encaixam na lógica masculino e feminino são vitimas de preconceitos das mais diferentes formas. A violência física nem sempre acontece no espaço escolar, mas a violência simbólica e psicológica é perceptível aos olhos de quem observa o espaço da escola mais atentamente. Essas violências também são naturalizadas e parte do princípio de que o outro é inferior e não está de acordo com a “norma”, as justificativas dessas violências vão desde explicações bíblicas a diferenças biológicas. Refletir como alguns grupos – mulheres, negros, homossexuais, travestis e transexuais- são desvalorizados socialmente é uma reflexão que têm que iniciar uma inquietação. Desnaturalizar essas ideias, levar a reflexão para o espaço escolar, visibilizar os grupos marginalizados e colocar no centro da discussão os direitos desses grupos foram alguns dos objetivos do PIBID Educação em Direitos Humanos: Gênero e Sexualidade na Escola, discutir essas questões na comunidade escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos lançar como resultados da atuação do PIBID na escola a participação dos alunos, sua inserção dentro das discussões, a demonstração de interesse pelos temas, o diálogo nos debates e a posição claramente tomada por alguns discentes pela defesa dos direitos humanos e afirmação dos grupos historicamente violentados e marginalizados. O PIBID proporcionou a formação nessas temáticas a alunos de graduação, estimulando produção de estudos e pesquisas dentro dessas questões e inserindo a discussão dentro do espaço acadêmico. Possibilitou leituras singulares e acabou por gerar alunos bolsistas militantes, atuantes na defesa dos direitos humanos, a criação do CINE-CIBORGUE, que exibiu filmes relacionados às temáticas do PIBID e seguiu-se de debate e a realização do 1ºSeminário Direitos Humanos e Gênero: Perspectivas para Educação e Pesquisa. Podemos destacar o pioneirismo de um PIBID, único no Brasil, a inserir essas temáticas dentro de algumas escolas públicas. Programas como esse, quebram com o silêncio diante das desigualdades e violências,

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silêncio que reforça e reafirma hierarquias desiguais, que torna alguns grupos mais visíveis e contribui para sua afirmação e, por outro lado, reitera a marginalização de outros. Discutir direitos humanos, gênero e sexualidade dentro das escolas é possibilitar espaços para grupos socialmente excluídos e possibilitar reflexão de como características biológicas e sexuais são tomadas para demarcar e construir territórios masculinos e femininos, objetivo central deste trabalho. REFERÊNCIAS LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 11ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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A REPRESENTAÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE NA TELEVISÃO BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DESCRITIVA DOS PERSONAGENS GAYS DAS TELENOVELAS DA REDE GLOBO42 BORGES, Rulio Jordan Barros Borges43

RESUMO/ABSTRACT Atualmente, a questão da homossexualidade está ganhando cada vez mais espaço no mundo midiático, principalmente na televisão. Recurso frequentemente utilizado e de grande repercussão, é quando a temática acaba sendo abordada por autores de teledramaturgia em suas novelas. Assim, o que interessa neste trabalho é analisar o modo como o tema é abordado, ou seja, como são representados os homossexuais nas novelas brasileiras, bem como a relação desses personagens com o horário de exibição da trama. Homosexuality has recently gained a lot of momentum in the media, especially on TV. The subject has frequently been brought up in soap operas, a genre that reaches a wide audience. This paper seeks to analyze the way homosexuality is used and how homosexuals are portrayed in Brazilian soap operas. It also seeks to demonstrate the importance of the time slot used to portray homosexual characters in these soap operas.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Representação (Homosexuality). Telenovela (Soap Opera).

(Representation).

Homossexualidade

INTRODUÇÃO

As telenovelas brasileiras passaram a desempenhar papéis importantíssimos em relação à sociedade e nelas são tratados vários assuntos. Porém, neste trabalho, nos caberá analisar apenas um: a representação homossexual nas telenovelas da Rede Globo, da trajetória do estereotipado/afetado/cômico para o discreto/sério identificando a alternância e a prevalência de determinados tipos a partir de uma análise descritiva dos personagens sem deixar de levar em consideração o horário de exibição da trama que tais personagens estão presentes.

METODOLOGIA

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The Representation of Homosexuality in Brazilian Television: A descriptive analysis of gay characters in soap operas of Rede Globo. 43 Graduando do 8ª período do Curso de Comunicação Social com habilitação em Rádio e Televisão, UFMA, São Luís, Maranhão, ruliojordan@hotmail.com.

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Por ser a emissora que mais produz novelas e por ter consolidado o gênero no Brasil, optou-se por escolher e analisar os personagens homossexuais que tiveram mais destaques na mídia desde 1995 até os dias atuais nas telenovelas da Rede Globo, nos horários das 18h, 19h e 21h44. Porém, isso não impede que sejam mencionados personagens de novelas de outras emissoras.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nos estudos de Peret (2005), pode-se identificar uma vasta gama de novelas que continham personagens gays, tenham sido eles caricatos ou não, com muita ou pouca visibilidade. Porém, seus estudos vão até a exibição da novela América, escrita por Glória Perez, em 2005. Já se passaram quase nove anos e outros personagens foram aparecendo em tramas da Rede Globo. Vale ressaltar que O Rebu (1974), de Bráulio Pedroso, foi a primeira novela a abordar a homossexualidade. Essa telenovela merece um destaque especial por ter sido a primeira a mencionar a homossexualidade [...] A homossexualidade foi retratada de maneira bastante clara para a época, e explorada do ponto de vista do crime passional e da relação de dependência financeira de um belo jovem por um homem muito mais velho. Esse fato marcou a entrada dos personagens homossexuais nas telenovelas brasileiras de uma forma considerada socialmente negativa, porém em conformidade com um dos vários estereótipos que representavam a forma como a homossexualidade era vista. (PERET, p. 80, 2005).

Mas é na década de 90 que os personagens homossexuais vão “saindo do armário” 45

, ganhando mais destaque na mídia. Quem não se lembra de alguns personagens marcantes

como Jeferson (Lui Mendes) e Sandrinho (André Gonçalves) na novela A Próxima Vítima, escrita por Silvio de Abreu em 1995. A trama exibida às 21h mostrava dois rapazes colegas de faculdade cuja relação evolui ao longo da novela e sem manifestações de afeto explícitas. Os personagens foram mostrados sem estereótipos. No mesmo ano e horário, na novela Explode Coração, a autora Glória Perez nos apresentou a travesti Sarita (Floriano Peixoto), que dizia ser uma mulher no corpo de um homem, sem afirmar que era um travesti, transexual ou transformista. Em 1998, o tema é abordado discretamente através do personagem bissexual e sem estereótipos, Rafael (Odilon Wagner), na novela Por Amor, de Manoel Carlos, exibida às 21h. Casado, e pai de família, no decorrer da trama descobre que sente atração por pessoas do mesmo sexo. No fim da trama 44 45

Denominada também de novela das seis, sete e nove. É uma expressão que descreve o anúncio público da orientação sexual. Assumir a homossexualidade.

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separa-se da esposa e inicia um romance com Alex, interpretado por Beto Nasci. Ambos os personagens foram tratados sem estereótipos, e de forma muito discreta. A bissexualidade foi principal tema abordado pelo personagem. Na novela Torre de Babel, de 1998, Silvio de Abreu volta a abordar o tema através da relação bem sucedida de um casal de lésbicas sem estereótipos, Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeiffer). Pela forma explícita como a história foi apresentada ao público, houve muita polêmica em torno das personagens e como consequência, elas tiveram que ser retiradas rapidamente da novela. O autor acabou matando- as durante a explosão de um Shopping Center. “No século XXI, a Globo parece consolidar a sua trajetória de alternar personagens gays caricatos e gays sem estereótipos com a narrativa da revelação para aqueles em que pesam dúvidas sobre as suas orientações sexuais" (COLLING, 2007, p. 9). Assim ocorreu na novela Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos, através das lésbicas, Clara (Aline Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli). As personagens eram sem estereótipos e diferente da novela Torre de Babel, foram aceitas pelo público. Em Senhora do Destino (2005), de Aguinaldo Silva, com o casal de lésbicas, Eleonora (Mylla Christie) e Jeniffer (Bárbara Borges), na qual ambas as personagens eram sem estereótipos. E no mesmo ano, em América, Glória Perez apresenta um personagem sem afetação, Junior (Bruno Gagliasso) que no decorrer da trama acaba se envolvendo com o peão de rodeios, Zeca (Eron Cordeiro), também sem estereótipo. Conflitos como assumir ou não homossexualidade foi um dos temas principais que giraram em torno dos personagens dessas três novelas, que acabaram revelando sua verdadeira sexualidade no meio da trama ou na ultima semana de exibição do folhetim. [...] no entanto, a diferença está na intensidade e o espaço em que estes personagens ocupam [...] Ao que parece, é nesta década que se intensifica uma tentativa de ampliar a narrativa da revelação e de apresentar um maior número de casais gays inscritos dentro de um modelo heteronormativo. Pelo menos, nestas personagens, desaparecem por completo as afetações e vigora o desejo de casar e de adotar crianças. (COLLING, 2007, p. 9).

O autor Manoel Carlos volta a tratar novamente o tema em 2006, na novela Páginas da Vida, com os personagens Rubinho (Fernando Eiras) e Marcelo (Thiago Picchi). Ambos eram sem estereótipos e a relação dos dois foi mostrada de forma reservada, leve e até mesmo despercebida. A trama que envolvia os personagens só se destacou quando abordaram a questão da adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Seguindo a mesma linha, outra trama do horário nobre que tratou o assunto sem grande destaque em 2007, foi Paraíso Tropical de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, através dos personagens Rodrigo (Carlos Casagrande) e Thiago (Sergio Abreu). Se assim pode-se dizer, o ponto positivo da história é que os personagens eram discretos e vistos como pessoas “normais”, como qualquer outro

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personagem da novela. Já Aguinaldo Silva, em Duas Caras de 2007, abordou o envolvimento de Bernadinho (Thiago Mendonça) e Carlão (Lugui Palhares). Ambos os personagens tinham o estereótipo de feminino e masculino, enquanto Bernadinho possuía trejeitos femininos, Carlão era visto como o “macho” da relação. Na novela Caras e Bocas, exibida às 19h, em 2009, o autor Walcyr Carrasco, aborda a homossexualidade através do personagem efeminado Cássio (Marcos Pigossi). Percebe-se que “por ser um homossexual caricato, Cássio foi sucesso com a audiência, principalmente com seus bordões” (GRIJO; SOUSA, 2011, p. 9). “Abominável criatura das grifes (assim se referem os demais personagens da trama quando criticam o afetado Cássio, imitando-lhes os trejeitos) [...] choquei, rosa chiclete, tô bege e bofe escândalo” (SILVA, p. 2, 2010) foram os principais bordões

criados pelo autor para o

personagem, na tentativa de cativar à audiência através da comédia. É visível que nas tramas exibidas às19h, os autores preferem abordar e representar os homossexuais de forma efeminada, a partir da comédia. Raramente, a abordagem nesse horário, não ganha essas características. Porém, Maria Adelaide Amaral ao adaptar a novela Titi-ti para o horário, não tratou a homossexualidade de forma cômica e estereotipada. Pelo contrario, mostrou a relação rápida entre Julinho (André Arteche) e Osmar (Gustavo Leão), que acaba morrendo no segundo capítulo após um acidente. O fato dos personagens terem sido bem recebidos pelo público e a história ser tratada com sutileza, mas com grande relevância, a autora resolveu inserir na trama o personagem Thales (Armando Babaioffe) para fazer par romântico com Julinho. Já o autor Walcyr Carrasco, em 2011, na novela Morde e Assopra, voltou a investir em personagens gays caricatos e cômicos para o horário das 19h com o personagem Áureo (André Gonçalves). Em 2011, às 21h, a trama Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, teve o maior número de personagens homossexuais visto em uma novela, no total foram seis. Isto já é um avanço, pois mostrou a diversidade de gays existentes, os vários tipos e dilemas homossexuais. Substituindo Insensato Coração no mesmo horário, Fina Estampa escrita por Aguinaldo Silva apresenta ao público o personagem cômico afetado Clô (Marcello Serrado). No ano seguinte, em 2013, na novela Aquele Beijo, veiculada às 19h, o autor Miguel Falabella insere em sua trama um personagem que geralmente não é abordado em novelas, a travesti Ana Girafa (Luís Salem). Em 2013, na novela das sete, Sangue Bom, escrita por Maria Adelaide Amaral e Vicentt Villar, Filipinho (Josafá Filho), um homossexual sem estereótipo, resolve se assumir para a mãe Rosemere (Malu Mader) e promove a discussão sobre a aceitação da sua sexualidade. Já em Amor à Vida, primeira novela escrita para o horário das 21h de Walcyr Carrasco, continha inicialmente três personagens gays. O primeiro é o antagonista, o vilão Felix

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(Matheus Solano), que se redimiu das suas vilanias no decorrer da novela. Em alguns momentos, o personagem tenta ser discreto e em outros é afetado. É perceptível uma mudança brusca no perfil do personagem, pois sua trama transitava entre o drama e a comédia. Já o casal gay aparentemente discreto, Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcelo Antony), inicia a novela juntos e, após Eron se envolver com Amarilys (Danielle Winits), Niko se interessa por Felix e os dois terminam juntos e a tão esperada cena do beijo gay acontece no último capítulo da trama. Já Eron acaba a novela com o médico André (Eriberto Leão), também discreto e sem estereótipo. Já na nova novela das 21h, Em Família vai abordar o relacionamento de Clara (Giovanna Antonelli) com Marina (Tainá Müller). E de acordo com o autor Manoel Carlos, as personagens serão um casal comum e sem estereótipos.

CONCLUSÃO

Pode-se dizer que os homossexuais estão sendo mostrados até certo ponto de forma fidedigna, mas a questão para na forma das relações amorosas desses personagens que muitas vezes nos é passado como um sujeito assexuado. Com relação às representações, constatamos que elas variam de acordo com cada autor e horário de exibição da trama. Os “homotemas”46, dependendo do horário, são focados em duas tonalidades distintas: primeiro, o gay caricato, pintoso, efeminado e cômico presente na maioria das vezes nas novelas das 19h. Segundo, o gay “perfeito”, leia-se discreto, sem afetações, que tem dificuldades para sair do armário, que não dá pinta, que geralmente é mostrado no horário nobre, às 21h. Quanto às novelas das 18h, da Rede Globo, percebe-se que personagens homossexuais até então não foram inseridos em tramas exibidas nesse horário. Percebe-se também que personagens transexuais, travestis ou transformistas em destaque nas tramas, sendo cômicos ou não, quase não aparecem.

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Temas homossexuais.

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REFERÊNCIAS COLLING, L. Personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: criminosos, afetados e heterossexualizados. Revista Gênero, v.8, n.1, 2º semestre de 2007.

______________. Homoerotismo nas telenovelas da Rede Globo e a cultura. In: III Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 2007, Salvador. Anais... Salvador, 2007. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2007/LeandroColling.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2014.

FERNANDES, Guilherme Moreira. FARIA, Maria Cristina Brandão de. A Folkcomunicação nos Estudos de Recepção: um estudo comparado sobre a representação da identidade homoafetiva nas telenovelas da TV Globo. Revista Cultura Midiáticas, São Paulo, v.3, n.2, 2010. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/cm/article/view/11725/6765>. Acesso em: 30 jan. 2014.

______________. A recepção das personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: uma leitura da teoria dos Usos e Gratificações realizada em um bar gay de Juiz de Fora-MG. In: Anais do XIV Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação (Celacom), 2010. Anais... Disponível em: <http://www2.metodista.br/unesco/1_Celacom%202010/trabalhos.htm>. Acesso em: 27 jan. 2014.

GRIJÓ, Wesley Pereira. SOUSA, Adam Henrique Freire. Homossexuais nas telenovelas: a representação nas produções da TV Globo na década de 2000. Revista entremeios,Rio de Janeiro, v.8, n.8, 2011. Disponível em: <http://pucposcom-rj.com.br/wpcontent/uploads/2011/11/homossexuais-nas-telenovelas-Wesley-Grij%C3%B3.pdf>. Acesso em: 29 de janeiro de 2014.

PERET, Luiz Eduardo Neves. Do armário à tela global: a representação social da homossexualidade na telenovela brasileira. 2005. Dissertação (Mestrado em Comunicação) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

CHAMUSCA, Tess. A ausência de categorias que incomoda: uma vivência trans representada na novela explode coração. Bahia, 201?[J1] . Disponível em: <www.cult.ufba.br/Artigos/A ausência de categorias que incomoda - Uma vivência trans representada na novela Explode Coração.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2014.

SILVA, Valdeci Gonçalves da. Bofe escândalo: a abominável criatura das grifes. O portal do psicólogo, 2010. Disponível em: <http://www.psicologia.pt/artigos/textos/AOP0200.PDF>. Acesso 01 fev. 2014.

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“NÃO É DO INTERESSE DO ESTADO”: A CENSURA ÀS TELENOVELAS, UMA QUESTÃO DE GÊNERO.47 SILVA, Thiago de Sales 48

RESUMO/ABSTRACT A presente pesquisa se propõe a investigar a ditadura militar brasileira sob o viés da censura à televisão, analisando os processos de censura às telenovelas. Nessa medida, entender o papel da televisão ao longo dos anos do regime, bem como seu alcance ao público é fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. Além das relações entre Estado e TV, trabalhamos também com a recepção de uma parcela da sociedade civil à mídia em questão, através de correspondências encaminhadas à Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP). Nosso principal objetivo é analisar as delimitações de gênero, a partir dos comportamentos, gestos e condutas consideradas aceitáveis ou reprovadas pelo regime militar brasileiro, especificamente através da leitura dos pareceres dos censores, percebendo suas justificativas no corte de cenas consideradas “impróprias à moral”. Para este trabalho, selecionamos processos referentes a distintas produções das décadas de 1970 e 1980.

This research proposes to investigate the Brazilian military dictatorship under censorship television bias , analyzing the processes of censorship of telenovelas . As such , understanding the role of television over the years the regime and its reach to the public is crucial to the development of this work . In addition to the relations between State TV and also worked with the receipt of a portion of the civil society in the media in question , through correspondence forwarded to the Division of Censorship and Public Entertainment (DCDP) . Our main goal is to analyze the boundaries of gender based behaviors , gestures and behaviors considered acceptable or disapproved by the Brazilian military regime , specifically by reading the opinions of the censors , realizing their justifications in the cut scenes deemed " unfit to morals." For this work , we selected cases concerning different productions of the 1970s and 1980s . PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Ditadura Militar (Military Dictatorship). Censura (Censorship). Telenovenas (Telenovelas). Gênero (Gender).

INTRODUÇÃO

A ditadura militar brasileira, consolidada em 1964 por setores civis e militares, preocupou-se, preponderantemente, com o âmbito da segurança nacional. Legitimado, dentre outros fatores, por um forte temor à chegada do socialismo ao poder, o regime concentrou seus esforços em estabelecer um governo forte, com a ampliação dos poderes estatais sobre os campos sociais, econômicos, políticos e culturais. Para tanto, diversos mecanismos institucionais passaram a ser criados ou reforçados com o intuito de promover um controle 47 48

"No interest of the State": the censorship telenovelas, a gender issue. Mestrando em História Social (UFC) - Fortaleza –CE / Email: thiago.sales7@gmail.com

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sistemático às áreas que, dentro do ideário do regime, estariam diretamente vinculadas à segurança nacional (REZENDE, 2001). A presente pesquisa se propõe a investigar a ditadura militar brasileira a partir da censura, especificamente aquela voltada para a televisão. Segundo o historiador Carlos Fico (2002), a censura a diversões públicas não é uma novidade da ditadura, pois foi criada ainda nos anos de 1940, a partir do Decreto n 20.493 de 24 de janeiro de 1946. No entanto, após o golpe militar, o órgão responsável pela liberação e corte de filmes, novelas e programas de um modo geral, a Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP), passa a atuar de modo mais enérgico na censura às questões morais. Quanto à censura política, esta era responsável por coibir publicações veiculadas na imprensa, estabelecendo o corte prévio de editoriais e demais notícias que de algum modo se opusessem às medidas estatais. Carlos Fico defende que não há uma distinção exata entre a censura moral e a política, pois, ambas, são atos políticos e atendem determinadas demandas governamentais. Entretanto, Fico (2002, p. 07) afirma prevalecer “no caso da imprensa a censura de temas políticos, tanto quanto os temas mais censurados no caso das diversões públicas eram de natureza comportamental ou moral”. Partindo do pressuposto de que a censura assumiu, mesmo que tênue, um duplo caráter ao longo dos anos de exceção, sejam eles políticos e morais, nos deteremos especificamente no segundo campo, buscando compreender de que modo se constituíam as preocupações do regime com as questões relativas à moral e os “bons costumes”. Para tanto, tomaremos como objeto de análise os processos de censura às telenovelas, datadas da década de 1970 e meados de 1980. Nesse sentido, nos questionamos: Que tipos de comportamentos, condutas e atos não são permitidos? Que elementos constituem as visibilidades indesejadas pelo regime? As tênues escolhas entre o que cabe e o que não cabe ser transmitido pela TV correspondem a uma forma específica de moral? Há uma padronização nos cortes feitos pelos censores? Nosso objetivo é compreender de que modo se delineiam os sujeitos sociais de gênero aceitáveis para o regime, na medida em que determinados comportamentos, atribuídos às feminilidades e às masculinidades foram considerados inadequados, no período em questão.

METODOLOGIA

Analisaremos os processos de censura a cinco telenovelas: “Gabriela Cravo e Canela” (1975), “Roque Santeiro” (1975), “Marrom Glacê” (1982), “Vereda Tropical” (1984) e “Transas e Caretas” (1984). Nosso enfoque será nos pareceres dos censores, a partir de suas justificativas no corte das cenas consideradas “impróprias à moral”, além da análise dos

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scripts, textos que passavam por apreciação da censura, sofrendo, não raro, supressões significativas às tramas. Problematizar o papel desta nova mídia, seu alcance no cotidiano dos brasileiros e as novas formas de visibilidade que ela vai possibilitar se faz necessário nesta investigação. É justamente ao longo do regime militar que a televisão ganhou espaço no cotidiano dos brasileiros, por isso, nos debruçaremos sobre as transformações técnicas e estéticas as quais a TV passou, consolidando-se “como um empreendimento, um negócio bem-sucedido no campo da produção cultural e do entretenimento”. (RIBEIRO; SACRAMENTO, 2010, p. 132). Além das relações entre Estado e TV, trabalharemos também com a recepção de uma parcela da sociedade civil à mídia em questão, que encaminhavam correspondências ao órgão de censura, muitas vezes se posicionando a favor do regime. Nesse sentido, outro conjunto documental relevante para o desenvolvimento dessa pesquisa é aquele que concentra as “Manifestações da Sociedade Civil”49, também localizado no Arquivo Nacional de Brasília. Constituído por uma série de correspondências de grupos religiosos, associações de moradores e iniciativas individuais, tal acervo nos faz refletir acerca do modo como alguns segmentos da sociedade civil se relacionavam com as programações televisivas. Percebemos que, neste momento, havia um forte interesse do Estado em investir na censura, por um lado, objetivando a invisibilidade de possíveis atentados à moral, mas, por outro, através das cartas encaminhadas à DCPD, notamos uma forte preocupação dos missivistas com aquilo que era exibido, no que iria de encontro com os “bons costumes.” Esta documentação nos permite refletir em torno do alcance da televisão enquanto meio de comunicação de massa. Uma parcela significativa das cartas encaminhadas à DCDP denunciava programações exibidas em rede nacional, solicitando, inclusive, recrudescimento da censura.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Esta pesquisa se fundamenta, sobremaneira, a partir do diálogo com áreas como sociologia, antropologia e comunicação social, que também vêm produzindo importantes trabalhos em torno do período do regime militar, bem como das temáticas relacionadas à televisão, telenovelas e produções midiáticas de um modo geral. A dificuldade de encontrar pesquisas historiográficas que tangenciem tais objetos de maneira relacional nos proporcionou uma aproximação mais profícua com tais campos, enriquecendo proposições e abordagens.

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Nome da subsérie da seção Administração Geral do Arquivo Nacional de Brasília. Documentação constituída por cerca de 200 correspondências de populares, encaminhadas à Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) ao longo dos anos do regime militar.

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Partindo do princípio de que a censura promovida pela Divisão de Censura e Diversões Públicas era, sobretudo, de temas relacionados à moral e às condutas, delinearemos as preocupações do regime através das justificativas elaboradas pelos censores na supressão de determinadas cenas ou expressões de comportamento. Desse modo, procuraremos compreender como o gênero passa a ser objeto de constante vigilância, controle, delimitação, normalização e regulação por parte do regime militar. O gênero é entendido nesta pesquisa, nos termos de Judith Butler (2010, p. 194), como algo performativo “no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos”. Assim, a categoria de gênero é trabalhada enquanto eminentemente histórica, pois desconsidera qualquer naturalização de gestos e condutas baseadas na diferença sexual. O gênero entendido como performativo denuncia a existência de possíveis essências femininas ou masculinas, passando a considerá-las fabricações construídas ao longo do tempo, desnaturalizando-as. Concordamos com a historiadora Joan Scott (1991) quando esta formula que as relações de gênero são uma primeira forma de dar significado às relações de poder. Ter a dimensão de que as preocupações com as questões comportamentais e referentes à sexualidade estão inseridas dentro de um projeto para o país, articulado com aspectos da segurança nacional, evidencia que “o poder se exerce sobre o gênero como forma de domínio político” (TORRÃO FILHO, 2005, p. 148). Nesse sentido, entendemos que os meios de comunicação vão passar a constituir-se, seguindo as reflexões de Preciado (2008), como tecnologias de produção de subjetividade, pois difundem uma pluralidade de hábitos, gestos e condutas; são, por isso, tecnologias de representação. A censura terá um papel crucial neste período, procurando estabelecer os elementos indesejados, os separando e suprimindo, sejam eles os corpos erotizados, os novos modelos de família, as homossexualidades, o divórcio e a sexualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender a questão da moral e dos “bons costumes” como objetos relevantes dentro de uma concepção de uma sociedade ideal; investigar o papel da TV ao longo dos anos de 1970 e 80 como um dispositivo de produção de subjetividade, e que, por isso, precisava ser concisamente controlada, vigiada, atendendo às expectativas do regime; analisar as delimitações de gênero, a partir dos comportamentos, gestos e condutas consideradas aceitáveis ou reprovadas pela censura, atentando também para uma inquietação proveniente da própria sociedade civil no que concerne a uma suposta eminente “desagregação da moral”,

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percebidas nas cartas encaminhadas à DCDP. Estes são alguns dos principais objetivos desta pesquisa, bem como seu caminho a ser trilhado.

REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. FICO, Carlos. “Prezada Censura”: Cartas ao Regime Militar. In: Topoi – Revista de História, Rio de Janeiro: UFRJ. n. 5, p. 251-286, set. 2002.

REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: Repressão e pretensão de legitimidade (1964-1984). Londrina: Editora UEL, 2001. RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor. A renovação estética da TV. In: GOULART, Ana Paula; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. (orgs). História da televisão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010. PRECIADO, Beatriz. Texto Yoqui. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2008. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Trad. Christine Rufino Dabat, Recife, 1991, (mimeo). TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. In: Cadernos Pagu, Janeiro-junho de 2005.

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SIMPÓSIO 3 EIXO GÊNERO E VIOLÊNCIA Síntese da Proposta A partir dos estudos de gênero de vertente pós-estruturalista, da Teoria Queer e dos estudos foucaultianos, este Simpósio Temático agrega pesquisas com abordagens feministas e/ou transgênero. Busca reunir trabalhos e pesquisas sobre gênero e violência relacionadas ao comprometimento de refletir e dialogar sobre diferentes questões de violência vivenciadas por mulheres, homens e travestis. Este ST estabelece debates entre pesquisador#s de diferentes regiões a partir de trabalhos que dialoguem criticamente com as teorias de gênero e sexualidade e procura reunir trabalhos com foco nestas práticas, uma vez que, se constituem espaços de produção de corpos, identidades e subjetividades. Através de interseções multidisciplinares, objetiva-se mapear as produções contemplando os seguintes eixos: pedagogias da violência, religiosidade, violência doméstica, violação de direitos de travestis/mulheres/homens, heteronormatividade e homofobia. Essa proposta problematiza os processos de pedagogização da violência no cotidiano, na política, cultura e história.

Coordenação: Juliana Fernandes

Doutoranda em Psicologia na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), bolsista CAPES / PROSUP. Mestre e Graduada em Psicologia pela UNIFOR. Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Pós-Graduada em Psicopedagogia Clinica e Institucional. Atualmente, é professora da graduação em Psicologia no Centro Universitário Estácio do Ceará – FIC/Fortaleza. Coordenadora do Grupo de Estudo em Envelhecimento e Diversidade Sexual (UNIFOR). Coordenadora do Núcleo de Estudo em Psicologia, Gênero e Envelhecimento – NUPEX (Estácio). Integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas Multiversos Corpo, Gênero e Sexualidade nos Processos de Subjetivação, vinculado ao Programa de Pós Graduação da UNIFOR. Psicoterapeuta. Tem experiência em Psicologia Clínica, Psicologia Social, sexualidades e violência.

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E GÊNERO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES50 ARAUJO, Yashmin Michelle Ribeiro de51; VALENTE, Maria das Graças Almeida52; SILVA, Rebeca Anastácio da53.

RESUMO/ABSTRACT Conforme pesquisas recentes, as brasileiras são agredidas principalmente em casa, tornando os dados estatísticos referentes à violência doméstica, alarmantes. Teóricos defendem que esta forma de violência tem origem na questão de gênero, isto é, nas formas criadas por cada cultura para cada sexo, definindo papéis e status diferentes para estes. Nesse processo, o gênero feminino foi o gênero segregado à inferioridade, segundo Gregori (1993), Osterne (2008), Saffioti (1987; 2004), Frota (2011), assim, legitimando-se os princípios da educação sexista e as raízes socioculturais de opressão-dominação de um sexo sobre o outro. Este trabalho utiliza a pesquisa documental e bibliográfica, bem como a entrevista semiestruturada com duas mulheres que referiram sofrer violência em seus lares, com a finalidade de apresentar seus discursos e percepções no que concerne à agressão sofrida. Desse modo, acreditamos poder conhecer suas realidades e o que consideram os motivos principais que levaram às agressões.

As recent research, brazilian are abused mainly at home, making the statistical data regarding domestic, alarming violence. Theorists argue that this form of violence stems from gender, that is, the forms created by each culture for each sex, defining roles and different status for these. In this case, females were segregated gender inferiority, according to Gregori (1993), Osterne (2008), Saffioti (1987, 2004) Frota (2011), thus legitimizing the principles of sexist education and sociocultural roots of oppression and domination of one sex over the other. This work uses documentary and literature, as well as semi - structured interviews with two women who reported experiencing violence in their homes, in order to present their speeches and perceptions regarding the aggression suffered interview. Thus, we believe we can meet their realities and considering the main reasons that lead to aggression. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Violência doméstica (domestic violence). Gênero (Genre). Mulher (Woman).

INTRODUÇÃO

Observa-se que os dados sobre a violência doméstica contra as mulheres são alarmantes, apesar dos avanços da nossa era e da divulgação midiática pelo respeito às diferenças e os direitos humanos. A pesquisa do Instituto Avon/Ipsos intitulada “Percepções sobre a violência doméstica contra a mulher no Brasil” (2011, p. 5) apontou, entre outras 50

Domestic violence and gender: some approaches. Estudante do Curso de Graduação em Serviço Social (UECE), Fortaleza – Ceará/ <yashminmichelle@yahoo.com.br> . 52 Assistente Social do Instituto de Prevenção do Câncer do Ceará - IPC. Especialista em Gestão (UECE), Fortaleza Ceará. 53 Estudante do Curso de Graduação em Serviço Social (UECE), Fortaleza – Ceará. 51

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coisas, que 80% dos homens e mulheres entrevistados assinalaram como violência doméstica os diversos tipos de agressão física sofridos pela mulher no ambiente familiar – do empurrão até atos extremos que culminem em morte. Também, 62% relacionaram violência às agressões verbais, à humilhação, à falta de respeito, aos ciúmes e às ameaças. Apenas 6% das menções dos entrevistados se relacionaram à violência moral (calúnia, difamação, injúria etc.) e outros 6% se relacionaram à violência sexual (estupro, obrigar a mulher a fazer sexo contra sua vontade, etc.). Do mesmo modo, o Mapa da Violência de 2012, coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, em seu Caderno Complementar 1: “Homicídios de Mulheres no Brasil”, apontou que o Brasil é o sétimo país com maior índice de homicídios de mulheres, entre um conjunto de 84 países. A violência doméstica contra a mulher, se bem apresenta dados alarmantes, também vem ganhando espaço nos recursos midiáticos como tópico de debate, juntamente com a visibilidade dada à Lei Maria da Penha - Lei 11.340/06, que garantiu uma série de equipamentos e amparos legais às agredidas. O debate que gira em torno da violência doméstica contra as mulheres hoje a entende como expressão das relações de gênero, reflexo da segregação histórica do gênero feminino, à subalternidade. O presente trabalho discute a violência praticada contra a mulher dentro de casa, tomando-a como expressão das relações de opressão entre os gêneros. Para alcançar o referido objetivo, realizamos pesquisa documental e bibliográfica, juntamente com entrevista semiestruturada com duas mulheres que afirmaram sofrer agressão dentro de seus lares.

METODOLOGIA

O trabalho se constituiu mediante pesquisa documental e bibliográfica, precipuamente, no que diz respeito às estatísticas atuais sobre a violência doméstica contra a mulher e no que os autores discutem no momento como o lugar para o gérmen da violência doméstica, respectivamente. A partir da revisão de literatura, percebeu-se que a categoria de gênero é entendida como explicativa para as relações de segregação e opressão que, historicamente, colocam o gênero feminino e outras minorias, em situações de desigualdade frente o masculino. A pesquisa tem cunho qualitativo, uma vez que através das duas mulheres entrevistadas, buscamos compreender e analisar em seus discursos, suas percepções sobre as agressões sofridas e o fenômeno da violência. A pesquisa qualitativa “traz à tona o que os participantes pensam a respeito do que está sendo pesquisado. Os dados ganham vida com os depoimentos, com as narrativas que os sujeitos nos trazem”. (MARTINELLI, 1999, p. 21).

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Baptista (1999, p. 33) também coloca que “os dados da pesquisa qualitativa se dão em um contexto fluente de relações. São colhidos interativamente em um processo de ida e vinda e na interação com os sujeitos”. Estas qualidades da pesquisa qualitativa se encaixam com nossos objetivos investigativos. A entrevista semiestruturada foi a técnica escolhida para contato empírico com os sujeitos, uma vez que “favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...], além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). Referida entrevista foi realizada durante uma manhã e de modo informal, com duas mulheres que saíam da Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza (DDM-F), localizada na Rua Manuelito Moreira, 12, Centro, Fortaleza-CE. Foram gravadas com consentimento das participantes.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Estudos atuais consideram que a origem da violência doméstica e familiar contra a mulher se encontra na questão de gênero. O gênero corresponde às formas criadas por cada cultura para cada sexo, definindo papéis e status diferentes, portanto, é construído culturalmente pela sociedade, variando historicamente entre culturas e religiões. Percebe-se, então, que sexo e gênero são coisas diferentes. O primeiro não é uma construção cultural, e sim faz referência aos aspectos físicos e biológicos do macho e da fêmea: às diferenças corporais. É importante ressaltar, por isso, que as sociedades criam padrões para o que é ser homem e ser mulher, gerando representações de gênero, que irão definir o modo como seremos educados. Aponta Lourenço que (2004, p. 70):

No que concerne ao feminino e ao masculino, há o processo de formatação do homem e da mulher, que desde a gestação são orientados a agir, sentir e pensar conforme os preceitos sociais. A normatização social procura determinar, inclusive as cores das roupas dos bebês, o comportamento do sujeito, suas opções de vida pessoal e profissional, etc. [...].

As representações de gênero acabaram por valorizar um gênero em relação ao outro e na maioria das sociedades, o gênero valorizado foi o masculino, originando uma condição de desigualdade, que colocou a mulher numa conjuntura de opressão e subalternidade. Desse modo, Gregori (1993), Osterne (2008), Saffioti (1987, 1999, 2004), Frota (2011), entre outros, defendem que a violência contra as mulheres se justifica numa desvalorização ou ideia

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incrustada na humanidade de que elas sejam seres subservientes e inferiores, devendo obediência ao homem. A violência de gênero aparece, assim, como uma das formas de afirmação da dominação histórica do homem sobre a mulher, alicerçada na hierarquia e desigualdade socialmente estruturadas ao longo dos tempos, justificando as relações de poder, que elevam o homem e submetem a mulher a punições quando esta apresenta comportamentos inadequados ao gênero feminino. Frota e Santos (2012) assinalaram que a desigualdade de gênero em nosso país se deu devido aos resquícios e à herança da cultura patriarcal, exigindo que pensemos sobre os papéis sociais de homens e mulheres e as balizas colocadas sobre os estereótipos de gênero. Tais estereótipos masculinos e femininos foram transmitidos às crianças ainda na infância, projetando no homem a ideia de ser o ser inteligente, que usa o cérebro, a razão lúcida, a capacidade de decidir, o espaço público e o poder e às mulheres sendo indicado que agem com o coração, pela sensibilidade e o sentimento, tornando-as dependentes e segregando-as ao espaço privado e à subordinação. Santos (2004, p. 75) apresenta considerações importantes sobre as relações que envolvem gênero e poder:

O caráter relacional do gênero permite ainda colocar em relevo a questão de poder. E sua compreensão tem levado algumas feministas a adotar o conceito de Foucault, no qual poder é concebido como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social (grifo da autora). Nesse sentido, poder não é compreendido apenas como um poder global unitário (o qual geralmente caracteriza o Estado e seus aparelhos), mas como prática social constituída no âmbito das micro-relações, que se expande por toda a sociedade, assumindo formas mais regionais e locais, penetrando em instituições, corporificando-se em técnicas, munindo-se de instrumentos de intervenção material [...].

Como se observa, a autora defende que nas relações de gênero há lugares, espaços definidos para homens e mulheres, que constroem hierarquias, mas que não por isso, eliminam a mulher de exercer algum poder: este tem suas especificidades e limitações. Saffioti (2004, p.17-18) discute o conceito de violência, afirmando que esta: "[É] a ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral". O art. 5º da Lei 11.340/06 conceitua violência doméstica e familiar contra a mulher, in verbis, como: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial *...+”. Saffioti (1999, p. 85), deixa entrever em seus estudos, a concordância com o referido conceito, apontando, um aspecto relevante: o que associa à violência em ambiente

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doméstico a um ciclo de difícil ruptura. A Lei Maria da Penha, 11.340, de 7 de agosto de 2006, classifica em cinco, os tipos ou formas de expressão da violência doméstica e familiar contra a mulher, em seu artigo 7º, capítulo II, incisos de I a V: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial, e violência moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No mundo ocidental, a violência apareceu culturalmente muitas vezes banalizada, pela lógica sexista de sociabilidade. Hoje, a violência é vista como algo absurdo e que deve ser eliminado. E, por isso, vem-se buscando a conscientização sobre sua natureza de problema social, ainda mais, tratando-se da violência de gênero, que se dá preferencialmente, nos lares, tendo proporções não só estatísticas, mas de natureza psicológica, física, econômica, política etc., para os envolvidos. As agressões dirigidas contra a mulher vão além dos assassinatos, estupros, etc., incluindo as piadas, frases de caminhões, discursos políticos, músicas, entre outros. Nota-se que os autores elencados concordam com relação à gravidade da violência contra a mulher, que quando direcionada ao olhar sobre o ambiente doméstico, alcança peculiaridade e formas de apresentação singulares. A desigualdade de gênero, construída culturalmente e apontada como a razão para práticas violentas contra as mulheres é, por outro lado, nem sempre perceptível aos olhos de algumas vítimas. Nas entrevistas realizadas, pudemos perceber a partir das falas das entrevistadas: a associação entre a prática de violência contra ela(s) e o uso de álcool e ou razões referentes à personalidade do companheiro; a reincidência de agressões para efetuar-se a primeira denúncia; a situação financeira, os filhos ou o amor como justificativas para a permanência convivendo com o agressor; a perpetuação em seus lares da divisão de papeis; bem como de traços de uma educação sexista exercida pelas próprias mulheres na educação dos filhos, entre outros aspectos que demonstram desconhecimento das relações que perpassam a opressão entre os gêneros.

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REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Lei Maria da Penha. Lei nº. 11340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em: 22 set. 2012. FROTA, Maria Helena; SANTOS, Vívian. O femicídio no Ceará: machismo ou impunidade? Fortaleza: Eduece, 2012. GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e Terra, 1993. LOURENÇO, Sandra. Gênero: acepções e considerações. Paraná: Revista Capital Científica Eletrônica (RCCe). Abordagens das Ciências Sociais Aplicadas – II. v. 2, n. 1, 2004. Disponível em: <http://revistas.unicentro.br/index.php/capitalcientifico/article/view/601/737>. Acesso em: 13 jun. 2012. MARTINELLI, Maria Lúcia. O uso de abordagens qualitativas na pesquisa em serviço social. In: MARTINELLI, Maria Lúcia. Pesquisa qualitativa: um instigante desafio. São Paulo: Veras Editora, 1999. p. 19-28. OSTERNE, Maria do Socorro. Violência nas relações sociais de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: EDUECE, 2008. PERCEPÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NO BRASIL. Pesquisa INSTITUTO AVON/IPSOS. 2º Estudo. 2011. Disponível em: <http://www.institutoavon.org.br/wpcontent/themes/institutoavon/pdf/iavon_0109_pesq_portuga_vd2010_03_vl_bx.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2012. SAFFIOTI, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo, Moderna, 1987. ______. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo: São Paulo Perspec., v.13, n.4, oct/nov. 1999. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S010288391999000400009> Acesso em 19 mai. 2012. ______. Gênero, patriarcado, violência. Coleção Brasil Urgente. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. SANTOS, Maria Inês Detsi de Andrade. Gênero e Representação: uma contribuição para os estudos de representação à luz do conceito de gênero. In: FROTA, Maria Helena; OSTERNE, Maria do Socorro. (Orgs.). Família, gênero e geração: temas transversais. Fortaleza: Eduece, 2004. p. 69-93. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. 1 ed. São Paulo: Instituto Sangari, 2011. Disponível em: < http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf>. Acesso em 20 jun. 2012.

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GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS54 COSTA, Thaís Cristine de Queiroz55; ROCHA, Flávia Rebecca Fernandes56

RESUMO/ABSTRACT Este artigo pretende apontar as perdas sofridas com as mudanças realizadas nos benefícios previdenciários, especialmente para as mulheres. A inclusão obrigatória do uso do FAP – Fator Previdenciário – para as Aposentadorias por Tempo de Contribuição, por exemplo, prejudicouas particularmente em detrimento aos homens devido a diferença de tempo de contribuição, gerando como consequência um valor de aposentadoria mais baixo. Um direito conquistado pelo reconhecimento das singularidades do gênero feminino, como a dupla jornada de trabalho, acaba sendo desvirtuado, punindo com redução de valor do benefício justamente os segmentos historicamente excluídos, ou seja, mulheres e pobres.

This article points to the losses suffered by the changes in social security benefits, especially for women. The mandatory inclusion of the use of FAP - Social Security Factor - for Retirement by time contribution, for example, harmed the particular detriment to men due to time difference of contribution, generating as a result a value lower retirement. A right won by the recognition of the uniqueness of the feminine gender, as the double workday ends up being distorted, punishing with reduced benefit amount precisely those segments historically excluded, ie, women and the poor.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Previdência Social (Social Welfare). Fator Previdenciário (Social Security Factor).

INTRODUÇÃO

Verifica-se que a história da previdência social é marcada por embates, algumas conquistas foram feitas com a Constituição de 1988, porém, as Emendas Constitucionais e leis feitas posteriormente vêm tentando modificar o caráter protetivo, cujo principal sentido é a solidariedade da sociedade para com os seus, substituída pela lógica da privatização e do equilíbrio fiscal. Desta forma, o objetivo deste trabalho é apontar como a mudança na forma de cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição, através da aplicação obrigatória da alíquota do Fator Previdenciário, prejudicou as mulheres de maneira especial.

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Gender and welfare rights violation. Mestranda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará, thaisc_costa@hotmail.com. 56 Mestranda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará, rebeccarocha.as@gmail.com. 55

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A mulher, mesmo tendo acesso ao trabalho e à escola, continua inserida na lógica patriarcal de outrora, que configura na atualidade um modelo de autoridade consubstanciada no homem (Sarti, 1992). Apesar das inúmeras conquistas das mulheres - conseguiram minimizar sua situação de subjugada à vida doméstica, passando a “ganhar as ruas”, inserindose no mercado de trabalho, ocupando cargos prioritariamente masculinos, dando à sociedade atual uma nova “maquiagem” -, ainda assim não foi o bastante, pois a mulher continuou responsável pelas atividades no âmbito doméstico, realizando mais de uma jornada de trabalho.

METODOLOGIA A metodologia utilizada para este trabalho foi a investigação explicativa, através de pesquisa documental e bibliográfica de livros e artigos, o que proporcionou o embasamento para a discussão apresentada a seguir.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Dentro da atual sociedade, assistimos o passado se refletindo no futuro, situação em que o patriarcado, embora com configurações diferentes das originárias, encontra-se, ainda, alicerçado nas relações cotidianas, uma vez que os homens e a sociedade que os cercam tratam a mulher como um ser de natureza inteiramente doméstica e propensa a opressões. Mesmo que muitos aspectos tenham se transformado e conquistados pelo universo feminino, muito dos resquícios ainda permeiam as relações sociais. Assim, “a categoria gênero é entendida como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos *...+ uma forma primordial de dar significados às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 11). As mulheres, historicamente, vivem uma opressão específica estruturada por uma relação social entre homens e mulheres. Essa desigualdade é anterior à sociedade de classes, mas foi incorporada por todas as sociedades classistas nas quais homens e mulheres foram redistribuídos conforme sua classe social. A partir da consolidação do capitalismo, existe a ideia de que ocorre uma divisão entre as esferas pública e privada, sendo que a esfera privada é considerada como o lugar próprio das mulheres, do doméstico, da subjetividade, do cuidado. A esfera pública é considerada como o espaço dos homens, dos iguais, da liberdade, do direito. Essa

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complementaridade, porém, é permeada por hierarquias, com fortes resquícios de uma organização familiar patriarcal. Uma conquista em reconhecimento dessas diferenças e, especialmente, do ônus da dupla jornada de trabalho que a mulher passou a ter depois que deixou de pertencer exclusivamente à esfera privada, foi a criação de distintos tempos de contribuição previdenciária para os gêneros feminino e masculino. Esta foi ancorada no princípio constitucional da isonomia, em que é necessário tratar de maneira igual os iguais e desigual os desiguais. A regra para o usuário acessar o benefício da Aposentadoria por Tempo de Contribuição, por exemplo, é ter como requisito 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem, e 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher. Há redução de 5 (cinco) anos não somente para mulheres, mas para professor que comprove, exclusivamente, tempo de exercício em função do magistério na educação infantil, no ensino fundamental ou ensino médio. Porém, a vinculação obrigatória do Fator Previdenciário à Aposentadoria por Tempo de Contribuição através da Lei 9.876/9957, tornou desvantajosa a aposentadoria com baixa idade neste benefício, incentivando o seu adiamento, pois é progressivamente maior a cada ano de postergação. A consequência imediata foi o aumento da idade média de concessão desse benefício e, posteriormente, a redução do valor médio deste tipo de aposentadoria. O fator previdenciário fez com que os segurados, independentemente de entrar precocemente no mercado de trabalho, passassem a ser obrigados a trabalhar mais tempo para aposentar-se com o mesmo valor; ou seja, os trabalhadores de baixa renda – (e entre eles, sobretudo as mulheres), que são os que começam a trabalhar mais cedo – foram os principais afetados (SOARES, 2003, p. 123).

Segundo Fortes (2003, p. 191), para o segurado que pretender aposentar-se com o tempo mínimo de contribuição, a renda mensal inicial somente corresponderá à média de seus 80% maiores salários-de-contribuição caso a ida para a inatividade dê-se a partir dos 60 anos, devido à aplicação da alíquota do FAP58. Deste modo, seria mais vantajosa a filiação ao regime previdenciário para os homens somente a partir dos 25 anos, que somado aos 35 anos de

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Lei que alterou a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários. Além do substancial aumento do período básico do cálculo, uma das principais mudanças inseridas por esta lei na sistemática de apuração do salário-debenefício foi a criação do denominador Fator Previdenciário, cujo cálculo leva em conta a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao aposentar-se. Utilizado obrigatoriamente para o cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição e facultativamente na aposentadoria por idade (FORTES, 2003, p. 182). 58 O fator previdenciário será calculado considerando-se a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição previdenciária de segurado ao se aposentar mediante a fórmula abaixo. A expectativa de sobrevida é atualizada anualmente conforme a tábua de mortalidade calculada pelo IBGE, o que ajusta o cálculo do benefício à dinâmica demográfica.

[1 +

] Onde: F= fator previdenciário; Es= expectativa de sobrevida no momento da

aposentadoria; Tc= tempo de contribuição até o momento da aposentadoria; Id= idade no momento da aposentadoria; a= alíquota de contribuição, correspondente a 0,31 (IBRAHIM, 2009).

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contribuição atingiria a “idade ideal”, e não aos 16 (idade mínima permitida pela Constituição para o trabalho). Ou seja, aqueles que ingressam mais cedo no mercado de trabalho são prejudicados com a nova regra, pois quando atingirem o tempo mínimo para aposentadoria terão idade reduzida, o que diminuirá o fator previdenciário e, em decorrência, a renda mensal inicial do benefício. O que já é ruim para os trabalhadores consegue tornar-se pior para as trabalhadoras. O fator previdenciário deveria ser neutro em relação ao gênero do segurado, porém, para Fortes (2003), no caso das mulheres, a situação é ainda mais grave: como o tempo mínimo que se exige para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição é menor (30 anos), e na fórmula do fator previdenciário são somados 5 anos somente em seu tempo de contribuição e não também em sua idade. Se a mulher ingressar no mercado de trabalho aos 16 anos, quando adquirir o direito à aposentadoria, com 46 anos, terá um fator previdenciário ainda menor que o do homem em idênticas circunstâncias, pois sua idade será menor, consequentemente o valor a receber também. De modo que seria mais vantajosa a filiação ao regime previdenciário somente a partir dos 30 anos, que somado aos 30 anos de contribuição obrigatórios atingiria a “idade ideal”. O mesmo raciocínio se aplica aos professores e professoras da educação infantil, ensino fundamental e médio, em que é diminuído cinco anos ao tempo de contribuição mínimo. Em razão da diferença no tempo de contribuição necessário para se requerer aposentadoria, o impacto da aplicação do fator previdenciário repercute diferentemente no valor das aposentadorias concedidas, com perdas muito maiores para as mulheres do que para os homens. Além de tudo isso, há algum tempo já se pode observar a inclusão nas discussões previdenciárias da necessidade de se alterar a diferença de tempo de contribuição e de idade para concessão de aposentadoria entre homens e mulheres. A abertura dessa discussão, que objetiva igualar as condições de aposentadoria de homens e mulheres, é motivada por questões fiscais, na tentativa de reduzir as despesas da previdência social. Justificam a opção pelo aumento do tempo de contribuição e da idade para aposentadoria, com base no fato da expectativa de sobrevida das mulheres ser maior que a dos homens. Dessa forma, argumentam que seria um contrassenso, em um sistema atuarial, manter a situação atual. Em contrapartida, a defesa clássica para manter a diferenciação no tempo de contribuição e na idade é de que essa diferença é uma resposta compensatória em razão não somente da dupla jornada de trabalho das mulheres, mas das particularidades imputadas pela natureza que geram maiores desgastes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A afirmação de direitos necessários ao desenvolvimento capitalista tentou fazer parecer que a histórica opressão feminina já não existia e que todos eram iguais enquanto indivíduos. Porém, mesmo depois de todos os avanços, o Censo de 2010 do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - demonstrou que as mulheres continuam ganhando menos do que os homens ao executar as mesmas funções. Várias pesquisas feministas apontam temas relacionados com as consequências de se subestimar o trabalho remunerado das mulheres e de se excluir o trabalho não remunerado das estimativas de renda nacional e da análise de políticas específicas. Pesquisas econômicas também abordam discussões sobre a inclusão do trabalho doméstico não remunerado em cálculos de renda, na estimativa da distribuição de renda, na consideração da jornada de trabalho e na avaliação da produção do capital humano doméstico. O fato de desconsiderarem as atividades não remuneradas como trabalho ou de desdenharem fatores como a dupla jornada de labor escondeu a maior carga de trabalho que grande número de mulheres suporta comparada com a dos homens (FLORO, 1995), daí a importância de benefícios com acesso diferenciado para sujeitos diferenciados.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Odília Sousa. A instituição previdenciária e o Serviço Social: uma discussão de sua trajetória – setembro de 1944 a julho de 1986. 1987. Dissertação (Mestrado), UFRJ, Rio de Janeiro, 1987. FLORO, Maria (1995). Women's well-being, poverty, and work intensity. Feminist Economics, 1 (3), (Fall), p. 1-25. FORTES, Simone Barbisan. A reforma previdenciária e seu reflexo na sistemática de cálculo da renda mensal inicial dos benefícios previdenciários. In: ROCHA, Daniel Machado da; MARINHO, Eliana Paggiarin (Org.). [et al]. Temas atuais do direito previdenciário e assistência social. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 14ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. LIRA, Izabel Cristina. Trabalho informal como alternativa ao desemprego: desmistificando a informalidade. In: SILVA, Maria Osanira da; YAZBEK, Maria Carmelita (orgs.). Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: EDUECE, 2007.

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PRIMO, Wagner. Previdência social, mais do que uma questão fiscal. In: VAZ, Flávio; MARTINS, Floriano. (orgs). Orçamento e políticas públicas: condicionantes e externalidades. Brasília: ANFIP, 2011. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Descobertas da área das perfumarias. In: ______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Perseu Abrano, 2004. p. 52-139. SARTI, Cynthia A. Família patriarcal entre os pobres urbanos. São Paulo: Caderno de Pesquisa, n. 82, p.37-41, ago. 1992. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, Faculdade de Educação – UFRGS, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, p. 5-22. SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez, 2003.

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A IMPORTÂNCIA DO FORTALECIMENTO DA REDE DE ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA59

CRISPIM, Alynne Alves60; SOARES, Suamy Rafaely61

RESUMO/ABSTRACT

O presente artigo tem como objetivo analisar a importância do fortalecimento da rede socioassistencial de proteção às mulheres em situação de violência. Tal debate faz-se necessário pelo o fato de estarmos inseridos em uma sociedade embasada em moldes patriarcais e machistas, sendo, pois, necessário destacar a necessidade de enfrentamento da violência praticada contra as mulheres enquanto expressão máxima das desigualdades de gênero. Neste contexto evidencia-se a importância do fortalecimento da rede de atendimento a mulher para que haja a superação deste fenômeno, assim como a disseminação de ações igualitárias e dos valores éticos com o intuito de promover transformações societárias.

This articleaims to analyze the importance of strengthening the social assistances afety net women in situations of violence. This debate is necessary by the fact that we entered in to a society grounded in patriarchal and sexist manner, being there fore necessary to highlight the need to deal with violence against women while maximum expression of gender inequalities. In this context, highlights the importance of strengthening the service network for women there to overcome this phenomenon, as well as the spread of egalitarian actions and ethical values in order to promote societal transformations.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Mulher (Woman). Violência (Violence).

INTRODUÇÃO

Ao passo que as relações sociais se acirram, temos o agudizamento das expressões das desigualdades de gênero. Estas se tornam cada vez mais visíveis e camufladas, tanto pela mídia, em suas mais variadas formas, quanto pela própria sociedade, que em sua grande maioria é reificada e acomodada. Nesta perspectiva, o fenômeno da violência acaba se expandido e sendo naturalizado, havendo uma receptividade acrítica e apática desta situação em que a mulher, por muitas

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The importance of the strengthening of service network the woman in situation of violence. Graduanda em Bacharelado em Serviço Social, FAFIC, Cajazeiras-PB, alynne_l04@hotmail.com. 61 Mestre em Serviço Social (UFPE), suamy_soares@hotmail.com. 60

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vezes, é culpabilizada ou até mesmo induzida a permanecer nesta condição de violação de direitos, devido aos padrões machistas da sociedade. Em face disso, o presente trabalho tem o objetivo de fornecer embasamento teóricometodológico para que haja um melhor entendimento no que está relacionado aos serviços que são garantidos à mulher em caso de violência, proporcionando uma análise crítica e reflexiva sobre os limites e possibilidades para que haja o funcionamento, efetivo e coerente, da rede de serviços de atendimento às mulheres que estão inseridas nesta situação.

METODOLOGIA

A pesquisa de natureza bibliográfica e documental buscou informações e conceitos outorgados por autores especializados no assunto, a fim de tornar possível o maior entendimento a cerca da temática proposta, com o intuito de promover questionamentos de caráter crítico e reflexivo no que se relaciona à necessidade de fortalecimento da rede de atendimento à mulher em situação de violência, tendo como pressuposto a ideia de que a responsabilidade de enfrentar esse fenômeno não é só da mulher, mas sim de toda a sociedade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Desde os tempos mais remotos, dentro das mais diversas sociedades, a dominação masculina encontra inúmeras maneiras de se perpetuar, promovendo a naturalização das desigualdades, o aumento da violência e a reificação dos indivíduos. Levando em consideração que a base da nossa organização social ainda está submetida aos padrões patriarcais, entendemos que a mulher se torna alvo fácil e vulnerável, devido aos inúmeros condicionantes que acabam sendo postos e impostos dentro do ambiente social na qual ela está inserida. Dentro da nossa sociedade - seja no âmbito religioso, político, doméstico ou econômico -, a mulher segue ocupando lugares de menor prestígio, o que nos faz concluir que a violência (física, psicológica, patrimonial, moral e sexual) acaba se tornando expressão máxima das desigualdades de gênero. Assim, para que haja o real enfrentamento desta situação, é imprescindível o desenvolvimento de ações que sejam, principalmente, educativas

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para que se promova uma mudança radical nos comportamentos e padrões culturais machistas que são ensinados e transmitidos de geração em geração. Nesta perspectiva, é essencial que haja a ampliação dos setores de atendimento à mulher em situação de violência a partir da promoção de serviços de abrigamento; apoio para a ampliação, financiamento e contratação de profissionais especializados para os Centros de Atendimento a Mulher; assim como o fortalecimento e implementação dos serviços que são prestados nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), nas Defensorias Especializadas e principalmente nos Serviços de Saúde Especializados para o Atendimento aos Casos de Violência praticada contra as mulheres (dando ênfase a questões que estejam ligadas a promoção dos seus direitos sexuais e reprodutivos). Também é imprescindível que sejam realizados seminários, campanhas de mobilização, panfletagem com material informativo e oficinas que tenham como foco sensibilizar e conscientizar a sociedade na tentativa de promover uma nova cultura das relações humanas e a consequente difusão dos direitos das mulheres e das diversas formas e instrumentos que existem para que haja a proteção e efetivação destes direitos. Com relação à produção de pesquisas e estudos com esta temática, há a necessidade de construir meios que possibilitem um maior e mais coerente monitoramento, avaliação e elaboração para as ações e até mesmo as políticas de enfrentamento a essa situação de violência. Neste contexto, os profissionais que estão diretamente ligados ao atendimento das mulheres devem passar por processos de formação e esclarecimento com temáticas que estejam embasadas nas relações de gênero e violência, para que seja evitada e abolida qualquer prática que possa ser considerada discriminatória e contrária à legislação vigente (principalmente quando nos referimos a juízes e promotores em situação de garantia e cumprimento da Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha). Os desafios para o enfrentamento deste fenômeno são muitos, porém não são inelutáveis, podendo ser superados a partir da incorporação da legislação ao cotidiano dos serviços de atendimento à mulher, proporcionando o rompimento com a manutenção do status quo. Com isso, se faz importante que a tendência de os serviços funcionarem de forma isolada e independente seja revertida, sendo essencial a articulação entre as esferas estadual, municipal, federal e a sociedade civil, buscando interferir nos determinantes da violência contra as mulheres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, podemos entender o quanto se faz importante o desenvolvimento e a efetivação das ações que venham proporcionar a redução das desigualdades entre homens e mulheres, para que haja uma considerável minimização nos índices de violência. Essas mudanças serão resultado de uma percepção multidimensional deste fenômeno que será realizada através da implementação dos serviços que são oferecidos pela rede de atendimento à mulher em situação de violência. Assim, é necessário não só punir os que auxiliam e praticam os atos violentos, mas sim por em prática ações que venham proporcionar o efetivo empoderamento feminino através da prestação dos devidos serviços e atendimentos a essas mulheres que se encontram em situação de violência, assegurando seus direitos e tendo como principal objetivo promover mudanças nos padrões que são impostos pela sociedade até então vigente.

REFERÊNCIAS CASTILLO, Márcia; OLIVEIRA, Suely de. (Org.) Marcadas a Ferro. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Gênero e desigualdade. São Paulo: SOF, 1997. (Coleção Cadernos Sempreviva). SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. (Coleção Brasil Urgente).

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PROBLEMATIZANDO AS PEDAGOGIAS DA VIOLÊNCIA: A HETERONORMATIVIDADE TAMBÉM SE ENSINA-APRENDE NA ESCOLA 62 FERNANDES Juliana63; BARREIRA, Marília Maia Lincoln64; POCAHY, Fernando Altair65 RESUMO/ABSTRACT O presente trabalho problematiza a violência como efeito da heteronormatividade, através das práticas disciplinares presentes no contexto escolar. Objetiva discutir a violência, mais especificamente, com relação à(s) identidade(s) de gênero e sua etiologia, percebendo modos possíveis de sua manifestação na educação escolar. Fundamentado metodologicamente em revisões de literatura, buscou-se possibilitar espaço de discussão sobre as origens e os efeitos da violência e da heteronormatividade no cotidiano escolar. Deste modo, consideramos a necessidade de novas tecnologias e políticas públicas que enfrentem a proliferação da violência de gênero na escola. This paper discusses violence as a result of heteronormativity, trough disciplinary practices that are present in the school context. It aims to study violence, more specifically, regarding to gender identity, and its etiology, perceiving possible ways of its manifestation in school education. Methodologically based on literature reviews, it seeks to create space for debate about the origins and effects of violence and heteronormativity in school life. Thus, it is considered the need for new technologies and public politics that address to the proliferation of gender violence in school. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Violência de gênero (Gender violence). Heteronormatividade (Heteronormativity). Educação (Education). Escola (School).

DEMARCAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Quando as relações adoecem, se enfraquecem e se perdem na ausência do respeito, emergem atos de dominação em múltiplos espaços, seja na rua, no trabalho e até o lar tornam-se consequentemente, mais um espaço constituinte da violência entrelaçada nas interrelações. As relações por sua vez, são inerentes à cultura e não há adoecimento exterior aos processos sociais, uma vez que é na cultura e na vivência das relações sociais que os processos de subjetividade se presentificam como tramas da linguagem. Frente a esta condição, a psicologia tem a incumbência de problematizar a violência em seus diferentes contextos, e, aqui, especificamente, problematizamos em contextos educacionais.

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Questioning pedagogies of violence: Heteronormativity is also teached in school. Psicóloga, Pedagoga, Doutoranda em Psicologia na Universidade de Fortaleza – UNIFOR. (julianaf.jf@gmail.com) 64 Psicóloga, Mestranda em Psicologia na Universidade de Fortaleza – UNIFOR. (mariliamlbarreira@gmail.com) 65 Doutor em Educação, Professor do PPG em Psicologia da UNIFOR. (pocahy@uol.com.br) 63

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A violência é um fenômeno tão antigo quanto atual. Portanto, possui significados e manifestos de múltiplas formas em distintas épocas e culturas, ou seja, para compreender a violência, é preciso discutir sua configuração histórica, suas expressões e contextos pessoais envolvidos em sua ocorrência para podermos de fato, incentivar a prevenção das violências. Contraditoriamente e como que, por sobressalto, a violência ainda se mantém enraizada no cotidiano social com índices alarmantes. Sua extensa complexidade limita as possibilidades de sua erradicação mesmo diante de distintas propostas de intervenção. Deste modo, no sistema competitivo que circunda nossa sociedade, as produções de valores, o anseio pela nota, aprovação, liderança e autoridade, maculam as relações e transgridem os direitos de existência em sociedade. É no processo de sociabilização dos sujeitos que se apreende as informações necessárias para a vivência em coletividade. Contudo, é no contexto escolar, que a produção das verdades se reproduzem e as práticas disciplinares elaboram estatutos sobre modos de expressão de subjetividade. As práticas disciplinares do sistema social instigam a não aceitação de comportamentos que fogem a regra. A intolerância diante da diferença e da/do diferente passa a ser normatizada nos discursos da linguagem e as escolas se distanciam de temas que emergem em meio às inúmeras tentativas de silenciá-los. A sexualidade é um destes temas, mas escapa os portões do silêncio escolar, e quase que obrigatoriamente finge-se sua inexistência, torna-se segredo, assunto abafado, destinado a viver entre as alunas e alunos, mas não comentado, nunca percebido. Deste modo, o “assunto oculto”, calado pelas regras e normas educacionais, elabora-se em jogos padronizados a partir de concepções binárias, heteronormativas, em que sujeitos devem seguir seu corpo, básico e biológico, e os que fogem a esta regra tornam-se excrementos entre “pessoas”, tornam-se o assunto revelado, o escândalo da/na escola. O alvo, o culpado por revelar publicamente o indizível, expressar os desejos, as vontades, as cores e as secreções do pecado é digno do mal, da humilhação, do desprezo e da violência, e a escola mesmo assim, permanece silenciada, agora mais do que nunca cúmplice da estruturação das normas da violência, pois em meio a sua passividade nunca foi desavisada. A situação da violência se concretiza entre gerações, da infância a velhice, em todas as classes sociais e independentes dos gêneros que possuem. O fenômeno compreendido como violência traz em sua etiologia o termo latim violentia, significando em sua origem radical a força, a bravura e a transgressão. A esta terminologia esta relacionada a palavra vis, que significa força em ação, força vital, isto é, força que se manifesta com bravura sem negativismo ou positivismo, apenas força de vida (OSTERNE, 2008). Mas esta mesma força para a vida é brava, eleva a estreita relação com o significado da palavra potência e então

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recebe uma característica positiva e negativa. Quando negativa, esta potência se assume enquanto objetiva no agravar dos danos, da dor, desastres e tragédias. Todavia, esta relação linguística se relaciona diretamente com a potência negativa da vida, em que a vivência não está livre da melancolia, estando enraizada ao rancor, ao ressentimento e ao desprezo por si e pelo outro. Se recorrermos às palavras violatio, onis, violo e are, que estão associadas ao termo violentio, veremos, porém, que o termo revela um sentido negativo e maléfico, indesejável. As palavras violatio e onis, significam dano, prejuízo, profanação, violação, perfídia, e a palavra violoeare indicam fazer violência, maltratar, danificar, devastar, desonrar, transgredir, infringir, ferir, lesar, ofender, macular. (INÁCIO, 2003, p. 126).

Assim, a violência é um fenômeno complexo, atemporal e cultural (MINAYO, 2006), situação que dificulta seu estudo, sua explicação, consequentemente dificultando sua compreensão, pois a vida em sociedade exige cada vez mais forte a expressão e a aceitação da violência como componente habitual entre as relações humanas, nos fazendo questionar sobre a possibilidade de este fenômeno estar tipicamente mais atrelado ao desenvolvimento social da época atual (ODALIA, 2004). Neste sentido, percebemos que através do incentivo a competitividade, da geração de renda e a violenta cultura de consumo, aspectos biopsicossociais se inflamam e provocam o mal-estar na sociedade. A produtividade é cobrada a ferro e fogo, tornamo-nos ferramenta engendrada em jogos de manutenção do sistema econômico e os discursos do cotidiano pouco se importam com a ontologia ou a compreensão da manutenção da vida. O que é importante e significativo é o quanto vale sua palavra, ou melhor, as relações objetivaram-se em territórios, trabalhos, dinheiro e vaidades. Assim, compreendemos a violência como consequência da desvalorização das relações sociais, fundamentada no individualismo que se reproduz nos processos educacionais ainda na infância onde a escola é reduto formalizador e corresponsavel pela sistematização da violência de gênero. Ao falar de violência de gênero, comumente, refere-se à violência contra a mulher. Piscitelli (2002) refere-se que nos dias atuais há, ao mesmo tempo, certa oposição entre estudos sobre gênero e estudos sobre mulher, porém, há também alguma confusão ao diferenciar o termo gênero da conceituação de mulher. Isto, pois, o conceito de gênero nasce a partir dos estudos feministas, porém, tenta superar questões sobre algumas categorias presentes nos estudos feministas. A partir das concepções pós-modernas, os estudos em gênero pensam neste conceito não mais como algo definido a partir do sexo biológico, mas, sim, como algo plural, que é de ordem pessoal, mas, também, de ordem social e política. Sendo assim, Meyer (2004,

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p. 15 apud PETRY; MEYER, 2011), argumenta que os estudos em gênero “remetem a todas as formas de construção social, cultural e linguísticas implicadas com processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade”. Nesta perspectiva, a violência de gênero se define, segundo Saffioti (2001, p. 115116), como: [...] o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exigem que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência (p.115-116).

Piscitelli (2002) reitera que nada impede que mulheres façam uso da violência de gênero para demarcar algumas fronteiras impostas pela normatividade e reforçadas pelo aspecto cultural e social. Apesar de muitas vezes, vítima deste tipo de violência, a mulher pode comportar-se de forma condizente às ordens da sociedade patriarcal e ser a violadora de direitos. O presente trabalho busca compreender a violência de gênero instigado pela lógica da heteronormatividade na relação com as experiências sociais e culturais de crianças e adolescentes em ambiente escolar. Portanto, a partir da revisão de literatura, compreendendo o ambiente escolar como uma instituição/local (re)produtor de conceitos heteronormativos, em que são somente meninas e meninos são violentada/os, preocupa-nos a realidade de crianças e adolescentes que sofrem vulnerabilidades sociais em decorrência de sua orientação sexual. A menina ou menino que ousa assumir a diferença, seja ela a respeito da identidade de gênero e/ou sexual, é visto como alguém desviante e, que, por consequência, é marginalizado/a e/ou violentado/a. A realidade educacional se mostra intolerante e inerte frente aos desafios culturais que enfrentam acerca da presentificação da violência de gênero em seus corredores. Mas de que adiantam os corredores, se para muitos eles são intransitáveis? Será a sexualidade demarcada e determinada pelos aspectos biológicos? Não. Estes aspectos também são transitórios. É a normatização dos corpos que inscrevem na pele e nos atos o que é sexualidade, doença e anormalidade. Nesta lógica, a criança e a/o adolescente são por sua vez, são

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somente restos de exigências culturais de prescrevem o abuso, e determinar a heterossexualidade compulsória (Rubin, 1993). Segundo Warner (2003 apud JUNQUEIRA, 2010), a heteronormatividade define-se pelo conjunto de valores sociais em que a heterossexualidade é autorizada como a única forma de expressar-se nos quesitos sexualidade e gênero. A atitude normativa é consequência do patriarcado, conceito este que se popularizou de maneira rasa na década de 60 e que de acordo com Piscitelli (2002) universalizou o mito que revelava o uso do poder pelo homem de oprimir as mulheres excedendo a historia e a cultura. O patriarcado implicou na universalização da subordinação das mulheres, mas os estudos de mulheres e de gêneros insistiam/em que a subordinação da mulher não era natural, portanto, eliminável. O patriarcado impõe regras de comportamentos aos sexos e nas relações de poder surge à dominação, situação que gera conflitos e ressignificação de processos de autonomia dentro da ambiência escolar. Dessa forma, o poder da dominação se efetiva e se manifesta na divisão de atitudes e de opiniões em volta do comportamento dominante e agressivo (GUARESCHI, 2005). O poder funciona por meio da imposição, às vezes, sem alternativa. Sua função é definir espaços e configurações, e se instituir nas estruturas amplas da economia, da religião e da sociedade. A soberania masculina foi construída e lançada, ou melhor, foi executada, vivida, constituída na relação de desigualdade intencional e na demarcação dos espaços do poder, transformados ao longo da história e efetuados nas diferentes culturas e sociedades (FOUCAULT, 2005), gerando ambivalências, pensamentos discordantes e a percepção das pessoas como seres ativos e passivos, divididos entre chefes e subordinados, poderosos e fracos, homens e mulheres. Como uma forma de resistência ao aparecimento de identidades sexuais e de gênero antes invisíveis, cria-se o conceito de homofobia, que age “entre outras coisas, instaurando um regime de controle e vigilância não só da conduta sexual, mas, também, e, talvez, sobretudo, das expressões e das identidades de gênero.” (JUNQUEIRA, 2010, p. 212). Assim, percebemos que a violência de gênero na escola por motivos normativos não se resume apenas às piadas com tom machista ou sexista, mas, de alguma forma, esta acaba sendo uma realidade presente no cotidiano escolar daqueles que se desviam das normas. Em distintos graus, na escola podemos encontrar homofobia no livro didático, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras. Ela aparece na hora da chamada (o furor em torno do número 24, por exemplo; mas, sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu “nome social”), nas brincadeiras e nas piadas “inofensivas” e até usadas como “instrumento didático”. Está nos

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bilhetinhos, carteiras, quadras, paredes dos banheiros, na dificuldade de ter acesso ao banheiro. Aflora nas salas dos professores/as, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motiva brigas no intervalo e no final das aulas. Está nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc. (JUNQUEIRA, 2010, p. 212).

Esta realizada não será modificada sozinha, ela carrega em si histórias, cabeças injustas, bocas cheias de ódio, cílios da crueldade, olhos que queimam fogos e coração sem gozo/vida e fazem rastejar crianças e adolescentes por serem diferentes. Enquanto a educação estanca na própria deficiência, atrofia-se na impotência e corpos são maltratados, humilhados, assassinados pela ignorância do poder disciplinador e castrador da heteronormativida obrigatória. Fundamentadas na revisão de literatura em que estruturamos leituras que circundavam as produções acerca da violência de gênero e heteronormatividade no ambiente escolar, consideramos pertinente ressaltar a carência de novos olhares acerca das epistemologias e práticas educacionais, que pedagogizam verdades inalcançáveis e que ferem os direitos sociais dos sujeitos. O Brasil suplica por transições, que elas sejam alcançáveis não somente em novas normas, mas neste mesmo cotidiano que demarca a dor. Portanto, que novas tecnologias e políticas públicas possam ser estruturadas para alcançar a violência que escorrega da educação (escolar) – um dos espaços por onde também se ensina-aprende a heteronormatividade.

REFERÊNCIAS

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A IGREJA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES66 KROB, Daniéli Busanello67 RESUMO/ ABSTRACT A religião está popularmente associada com a paz, com o amor, com a proteção daqueles e daquelas menos favorecidas. Os tabus religiosos podem colaborar para manter a mulher que sofre violência em seu relacionamento. A falta de preparo teológico para lidar com situações de violência doméstica também pode contribuir e alimentar os mitos religiosos que compactuam com esta realidade. As Igrejas compactuam com a reprodução e manutenção dos mitos e da violência contra as mulheres no momento em que se tornam cúmplices da cultura do silêncio e da omissão, recusando-se a denunciar os atos de violência e seus autores, além das estruturas institucionais e sociais injustas que perpetuam essa prática. Religion is popularly linked with peace, love, and protection for the underprivileged people. Religious taboos can influence to keep women, who suffers violence, on her relationship. Deal with scenarios of domestic violence without teological prepare also can contributte and feed religious myths that condone this reality. Churhes collaborate to reproduction and maintence of myths and violence against women at the moment that became accomplices of silent and omission culture, refusing to denouce acts of violence and perpetrators, beyond institutional and social unfare frameworks that perpetuate this practice. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Mulheres (Women). Igrejas (Churches). Violência Doméstica (Domestic Violence). Religião (Religion). INTRODUÇÃO

A religião está popularmente associada com a paz, com o bem comum da humanidade, com o amor, com a proteção daqueles e daquelas menos favorecidas, o que “dificulta a percepção do potencial de violência que subjaz em seu discurso e em sua prática, sobretudo em relação às mulheres.” (CITELI; NUNES, 2010, p. 5) Os tabus religiosos, muitas vezes, colaboram para manter a mulher que sofre violência em seu relacionamento. A falta de preparo teológico para lidar com situações de violência doméstica contra as mulheres também pode contribuir e alimentar os mitos religiosos que compactuam com esta realidade. Um dos maiores mitos da Igreja Cristã é o lar como local seguro e sagrado, devendo ser mantido acima de tudo. As famílias com experiências religiosas também podem ser afetadas pela problemática da violência doméstica:

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The Church and the domestic violence against women. Musicoterapeuta. Mestra em Teologia. Doutoranda em Teologia pelas Faculdades EST, São Leopoldo/RS. danielibusanello@gmail.com 67

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[...] os aconselhadores pastorais precisam reconhecer a realidade de que a família é o grupo mais violento ao qual mulheres e crianças pertencem. Mesmo que haja um desejo de ver a família como um grupo que vive os valores cristãos, onde há conforto, amor e alegria, é necessário reconhecer que a família é um lugar onde não apenas a violência, mas também a tragédia pode ocorrer. (BERGESCH, 2008, p. 125).

Os valores religiosos atuam com grande força no plano simbólico e subjetivo. “A inferiorização das mulheres veiculada por discursos religiosos é uma forma de violência simbólica, implementada através de representações sociais.” (TOMITA, 2004, p. 175). Um exemplo que está configurado e sustentado nos valores religiosos é o modelo tradicional da configuração familiar patriarcal, com relações heterossexuais, chefias masculinas e submissão dos filhos e filhas e da mulher ao pai e marido. (CITELI; NUNES, 2010, p. 6) As mulheres estão submetidas a uma violência simbólica tão incrustada na sociedade, que muitas vezes nem percebem o que acontece. Essa violência é tão sutil que pode estar disfarçada com o nome de liberdade feminina, mas na verdade, não passa de escravidão. Ou seja, quando as mulheres buscam o mercado de trabalho, ainda é comum que o serviço doméstico e o cuidado com as crianças, pessoas idosas e demais dependentes, quando o caso, não sejam compartilhados com seus companheiros, o que faz, consequentemente, com que elas tenham jornadas duplas, triplas de trabalho. Quando a religião ensina que as mulheres devem ser obedientes, passivas e submissas, acaba contribuindo com a produção e reprodução das diversas formas de violências que as acometem. Os discursos religiosos, os textos sagrados e suas interpretações, as práticas de exclusão e discriminação sexista da Igreja em relação às mulheres colaboram para a manutenção desta violência. (STRÖHER, 2009). A história de violência contra as mulheres dentro da Igreja, como na caça às bruxas, nas discriminações biológicas e nas omissões em relações conjugais violentas, contribuiu para que sociedade e cultura discriminassem as mulheres. “A Igreja é um lugar de formação e influência sobre indivíduos que passam a agir socialmente.” (Bergesch, 2006, p. 114). A caça às bruxas foi uma das formas mais cruéis de violência contra as mulheres, e o que é mais agravante, foi perpetrada pela própria Igreja. Segundo Karen Bergesch (2006), a tortura era considerada o meio mais eficaz para conseguir a confissão. Os torturadores procuravam por qualquer sinal de anormalidade, o que seria um sinal claro de pacto com o demônio. Por isso, as vítimas eram despidas e depiladas. Se a mulher não confessasse ser bruxa, isso também era considerado uma importante prova de bruxaria, pois “sua suposta inferioridade biológica não permitiria resistência, a menos que recebesse auxílio do mal.” (BERGESCH, 2006, p. 112) Em 1694, os responsáveis religiosos pelas perseguições, agressões e

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execuções de milhares de mulheres consideradas bruxas, elaboraram um documento baseado em uma leitura manipulada da Bíblia para justificar tais atos. Entre outras coisas, constava no documento: a) toda maldade é pouca comparada com a da mulher; b) quando (as mulheres) usam bem suas qualidades, são boas, porém quando usam mal são o próprio demônio; c) uma mulher é perversa por sua natureza e é fácil para ela renunciar sua fé, o que é a raiz da bruxaria; d) deve-se dizer que houve um defeito quando se fez a primeira mulher, já que foi feita de uma costela dobrada, ou seja, a do peito, que está feita ao contrário da costela do homem e, deste então, por este defeito, é um animal imperfeito. (CALABRESE et al., 1998, p. 51).

MITOS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

As Igrejas compactuam com a reprodução e manutenção dos mitos e da violência contra as mulheres no momento em que se tornam cúmplices da cultura do silêncio e da omissão, recusando-se a denunciar os atos de violência e seus autores, além das estruturas institucionais e sociais injustas que perpetuam essa prática. “Ignorar as mulheres, não levá-las em conta, não referir-se a elas é uma forma de menosprezá-las e negar-lhes o lugar que lhes corresponde na sociedade e nas Igrejas.” (CALABRESE ET AL., 1998 p. 38). Ao comportarem-se frente à violência contra as mulheres como algo natural e banalizado socialmente, as Igrejas acabam legitimando sua prática no íntimo familiar, reforçando assim a visão de mundo patriarcal na qual o homem pode e deve exercer seu poder e autoridade sobre a mulher e sobre seus filhos e filhas. (Cavalcante; Soares, 2009). As mulheres foram afirmadas como naturalmente inferiores aos homens por vários teólogos cristãos que, influenciados pela filosofia clássica, argumentavam a partir de bases teológicas uma suposta superioridade masculina, legitimando assim, a dominação sobre as mulheres. Agostinho, por exemplo, em De Trinitate, afirmava que a mulher estaria privada de ser a imagem de Deus simplesmente pelo fato de ser mulher. Tomás de Aquino, na Summa Teologica, defendia que as mulheres possuíam uma natureza inferior e que, por isso, deveriam sujeitar-se aos homens. Para Lutero, a autoridade do marido representava uma autoridade sagrada, tendo as mulheres que se submeterem sem questionamentos. Calvino, por sua vez, afirmava que as mulheres deveriam permanecer no casamento mesmo havendo violência física, pois o marido possui autoridade sobre a esposa. (LEMOS; SOUZA, 2009). Até hoje, os argumentos que a Igreja Católica usa para negar às mulheres o direito à ordenação dizem respeito à natureza supostamente inferior das mulheres e também se baseiam em Efésios 5.23

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– o homem é a cabeça da esposa e da casa, assim como Cristo é a cabeça da Igreja. (BERGESCH, 2006). O conjunto das representações sociais que se constituíram no decorrer da história sobre a subordinação e a inferioridade das mulheres, marca a sua autopercepção e a percepção dos outros sobre elas. São essas representações sociais que trazem significados que têm provocado nas mulheres a permissão resignada da violência, e o discurso religioso tem participação no processo de produção e reprodução dessas representações. (LEMOS; SOUZA, 2009, p. 59).

A Igreja geralmente passa a ser o refúgio, o local onde a mulher que sofre violência busca auxílio e acolhida. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que este é um espaço permitido a ela pelo homem que a agride. Outro fator relevante é que este espaço religioso e seus líderes são considerados sagrados e sagradas, livres de sentimentos profanos. No entanto, não podemos esquecer que as instituições religiosas e seus representantes estão inseridos e inseridas no sistema patriarcal, e suas políticas, ideologias e atitudes contribuem, na maioria das vezes, para a manutenção desta organização social. Um exemplo que deixa isto claro é que os pecados dos homens são sempre diminuídos e até mesmo justificados, enquanto as mulheres são a causa deste pecado. Quando uma mulher é estuprada, é muito comum presenciarmos atitudes que a coloca no papel de culpada pelo estupro. Se o estuprador cometeu este ato foi porque a mulher se insinuou, provocou, permitiu e pediu para ser violentada. Esta culpabilização da mulher também está presente dentro das instituições religiosas.

CONCLUSÃO

A teologia tradicional, apesar de considerar abranger o ser humano como um todo, deixa as mulheres à margem, pois não trata, pelo menos não o suficiente, de questões fundamentais que atravessam suas vidas, tais como a violência doméstica e sexual. “A mulher é desrespeitada, pois a teologia tradicional não considera o sofrimento feminino em sua reflexão. Pelo contrário, a mulher recebe a culpa sobre si por ter introduzido o pecado no mundo.” (BERGESCH, 2006, p. 119). Para esta teologia, há apenas duas opções para as mulheres: ser Eva, a pecadora, ou ser Maria, a santa. A vida e a posição social das mulheres hoje não é a mesma que em dez anos atrás e, muito menos, que em séculos. No entanto, o discurso religioso nunca acompanhou esta mudança dos paradigmas femininos. “Há uma mistificação religiosa e cultural da mulher, do feminino, um culto ao materno, ao feminino virginal, sagrado, divinizado.” (Roese, 2009, p.

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189) Em relação à família, o discurso religioso defende que esta é sagrada, intocável e, consequentemente, não é possível questionar estrutura, hierarquia e até mesmo relações violentas. Assim cria-se a cultura de não meter a colher. A violência torna-se estrutural e institucionalizada, sendo sustentada por uma moral conservadora. (Roese, 2009). Muitas vezes, as mulheres que sofrem violência pedem a Deus para livrá-las deste calvário, porque creem em seu poder. No entanto, não acreditam em si próprias. Buscam na religião apoio não apenas para o casamento, mas para a separação também, quando o ciclo da violência torna-se insuportável. “Uma legitimação religiosa para a não permanência em situações de violência.” (Lemos; Souza, 2009, p. 19). Deus nos dá a possibilidade de alcançar os meios para superar a violência. “Temos o poder interior para vencer toda enfermidade (conforme Romanos 5. 10-17).” (CALABRESE et al., 1998, p. 190). A essas mulheres, apenas falta o reconhecimento de que têm capacidade para tal. Deus nos cuida com amor e nos estimula a fazer uso deste poder interior, nos abrindo portas para entendermos quem somos e o quanto somos importantes no mundo: “Posso enfrentar qualquer coisa com a força que Cristo me dá.” (Filipenses 4. 13) No entanto, é fundamental entender que crer somente em Deus não é o suficiente. É preciso confiar que Deus também crê em nós. As mulheres que passam por situações de violência, geralmente, têm uma autoestima tão prejudicada que demoram a perceber sua própria força. Aos poucos, podem recuperar a dignidade humana que lhes foi roubada, descobrindo-se como mulheres criadas por Deus para a felicidade, a solidariedade e a vida plena. E então, estarão livres para cultivarem, antes de mais nada, o amor próprio. “A mulher que se ama anda sempre com a cabeça erguida, o olhar seguro, e a cada dia cresce sua confiança em si mesma e em seu poder como filha de Deus.” (Calabrese et al., 1998, p. 193). REFERÊNCIAS BERGESCH, Karen. A dinâmica do poder na relação de violência doméstica: desafios para o aconselhamento pastoral. São Leopoldo: Sinodal, 2006. BERGESCH, Karen. «Falas de violência e o imaginário religioso». In: NEUENFELDT, Elaine; BERGESCH, Karen; PARLOW, Mara. Epistemologia, violência e sexualidade: Olhares do II Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião. São Leopoldo: Sinodal, 2008. p. 115-127. CALABRESE, Cora Ferro et al. Mujer, Sexualidad y Religión: Hasta Cuándo..., Señor? Equador: CLAI, 1998. CAVALCANTE, Arthur; SOARES, Ilcélia A. (2009). «Violência de gênero contra mulheres e meninas: desafio e compromisso das igrejas». In: OROZCO, Yury Puello (org). Religiões em

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Diálogo: Violência contra as Mulheres. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2009. p. 51-67. CITELI, Maria Teresa; NUNES, Maria José F. Rosado. Violência simbólica: a outra face das religiões. Cadernos Católicas Pelo Direito de Decidir, Vol./No. 14. São Paulo: Católicas Pelo Direito de Decidir, 2010. LEMOS, Carolina Teles; SOUZA, Sandra Duarte de. A Casa, as Mulheres e a Igreja: gênero e religião no contexto familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. ROESE, Anete. «A subjetividade do discurso patriarcal sobre o lugar da mulher e da natureza: uma leitura ecofeminista.» In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de; SOUZA, José Carlos Aguiar de. Consciência Planetária e Religião: desafios para o século XXI. São Paulo: Edições Paulinas, 2009. STRÖHER, Marga J. «O que espero da religião? Palavras que me tragam para a vida! Mulheres tomam a palavra sobre religião e o discurso religioso na produção e na reprodução da violência sexista». In: Orozco, Yury Puello (org). Religiões em Diálogo: Violência contra as Mulheres. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2009. p. 101-118. TOMITA, Luiza Etsuko. Corpo e Cotidiano: a experiência de mulheres de movimentos populares desafia a teologia feminista da libertação na América Latina. 2004. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo – Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, São Paulo, 2004.

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VIOLÊNCIA MASCULINA E JUVENIL NO INTERIOR DO ESTADO DO CEARÁ: A PRODUÇÃO DE SUJEITOS ASSUJEITADOS PELO SISTEMA DE JUSTIÇA.68 MENDONÇA, Nayara Alinne Soares69

RESUMO/ABSTRACT A construção das representações sociais contemporâneas a respeito da juventude brasileira, enquanto fenômeno sócio-histórico, é marcada por diversas e diferenciadas considerações ao longo da história. No entanto, se esses sujeitos são especialmente do sexo masculino, moradores do interior do estado do Ceará, negros ou pardos, e pertencentes a classes sociais menos favorecidas economicamente, lhes é imputada a incumbência de representarem o baluarte dos problemas sociais. Esse trabalho se propõe a, através de uma exposição que recorre a elementos etnográficos, principiar considerações relativas ao sistema de justiça juvenil em município do interior cearense, menos como conjunto garantista dos direitos dos adolescentes a quem se atribui a prática de delitos, e mais como órgão produtor e reprodutor de sujeitos assujeitados criminalmente. A violência masculina e juvenil deverá ser abordada a partir das explanações dos encontros em audiências judiciais, de forma que sejam identificados os elementos próprios da construção da masculinidade transgressora.

The construction of contemporary social representations about the Brazilian youth, while sociohistorical phenomenon, is marked by a number of different considerations throughout history. However, if these subjects are especially males , residents of the state of Ceará , black or mixed race, and belonging to lower social classes economically, is imputed to them the task of representing the bulwark of social problems. This work proposes, through an exhibition that uses ethnographic elements, begin considerations relating to the juvenile justice system in the municipality interior of Ceará, less like garantista all the rights of adolescents who is credited for crime, and more like agency producer and reproducer subjects devoid criminally. The male and youth violence should be approached from the explanations of meetings in court hearings, so that the proper elements of the construction of transgressive masculinity are identified. PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Gênero (Gender). Juventude (Youth). Violência (Violence).

INTRODUÇÃO

A construção das representações sociais contemporâneas a respeito da juventude brasileira, enquanto fenômeno sócio-histórico, é marcada por diversas e diferenciadas considerações ao longo da história. No entanto, se esses sujeitos são especialmente do sexo masculino, moradores do interior do estado do Ceará, negros ou pardos, e pertencentes a classes sociais menos favorecidas economicamente, lhes é imputada a incumbência de representarem o baluarte dos problemas sociais.

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Male juvenile violence within the state of ceará: the production of subjects devoided by justice system. Assistente Social e aluna do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS, pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará, e-mail: nayaraalinne@bol.com.br. 69

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O sistema de justiça juvenil, órgão com competência legal para a administração dos conflitos, mas também para a garantia de direitos dos adolescentes a quem se atribui a prática de delitos, dado seu caráter central quando o assunto é o enquadramento dos jovens, deverá ser aqui problematizado em seus aspectos mais basilares. Esse trabalho se propõe a, através de uma exposição que recorre a elementos etnográficos, principiar considerações relativas ao sistema de justiça juvenil em município do interior cearense, menos como conjunto garantista dos direitos dos adolescentes a quem se atribui a prática de delitos, e mais como órgão produtor e reprodutor de sujeitos assujeitados criminalmente.

METODOLOGIA

Para estudar as interações estabelecidas entre os jovens autores de ato infracional e os atores componentes do sistema de Justiça juvenil, utilizamo-nos de elementos com inspiração etnográfica, através da observação atenta, descrição densa (GEERTZ, 2008), registro detalhado e análise dos fenômenos, de forma a compreender as relações e as interações dos sujeitos intermediados pelo aparato institucional. Os dados da pesquisa foram coletados no período entre os meses de novembro a janeiro de 2013. O presente estudo dar-se-á a partir de uma pesquisa de natureza qualitativa, tendo em vista que os aspectos essenciais a este tipo de abordagem permitirão ao pesquisador aprofundar-se nos significados e compreensões dos pesquisados acerca do assunto em questão. Tal afirmativa corrobora com as considerações de Gaskell (2002, p. 65) relativas aos fundamentos da pesquisa qualitativa, quando este dispõe que “a compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos sociais especificados é a condição sine qua non da entrevista qualitativa”. De modo a manter a prerrogativa do sigilo nas pesquisas envolvendo seres humanos e, em especial, adolescentes a quem se atribui a prática de delitos, a quem, legalmente, é vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que lhes digam respeito, optamos por não identificar a cidade em que os dados foram coletados. Além disso, temos a preocupação em não expor os representantes da Justiça que colaboraram para que esta pesquisa fosse realizada.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Numa cidade do interior do estado do Ceará, em setembro de 2013, numa quintafeira, eram exatas 10 horas da manhã quando se realizaria a décima primeira audiência judicial para instrução de medida socioeducativa. Entram na sala dois fortes policiais militares, um deles segurava pelo braço, fazendo uso de força notória, um adolescente, que aparentava cerca de 15 ou 16 anos. “Tá aqui, doutor!”, um dos policiais afirma para o Juiz. Um militar direciona o adolescente para uma das cadeiras que estava em frente à mesa em formato de T. Jogam-no na cadeira. A mãe do adolescente senta-se ao meu lado (nas cadeiras que estavam fora da circuncisão da mesa em formato de T). Ela sussurra para mim: “Ele ainda apanhou! Tentou fugir, aí deram foi muito nele...” Seu aspecto era o de quem conta uma história com naturalidade, até com certa satisfação, pois nesse momento, seu rosto estava munido de um sorriso inexplicável. O jovem estava com o rosto bastante vermelho. Tive dúvidas se aquilo era em decorrência de ter levantado da cama bruscamente, ou se seriam de supostas agressões físicas em seu rosto ou ainda se era um sinal de que o mesmo estava chorando. Seu semblante era a materialização do ódio. Não olhava para ninguém, os olhos estavam direcionados ao chão da sala. “Tava dormindo, rapaz? Sabia que você tá tomando nosso tempo? Porque você tava dormindo uma hora dessas? Quer ficar internado? Todo dia eu vou dormir 2 horas e me acordo 6 horas da manhã. E tu tava era dormindo era?” dispara o Juiz, aos gritos. Um silêncio absoluto se instaura. “Tu tá estudando?”, retoma o magistrado. O adolescente balança a cabeça positivamente e, em seguida, olha firmemente para um dos policias, que ainda permanece na sala, de forma como quem deseja intimidar, ameaçar, vingar-se de algo. “Mas tem que tá frequentando também. Ou tu faz isso querendo ou vai pra Fortaleza. Você sabe quem é o Juiz? Sabe o que é Justiça?”. Todos no ambiente permanecem em silêncio. “Doutor (risos irônicos), ele correu, quis se esconder, aí a gente pegou ele na cozinha... É bom é botar ele logo na cadeia, pra já saber como é...”, afirma o policial.

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Assim que os policiais deixam a sala, o adolescente começa a chorar intensamente. Como se estivesse se segurando até aquele momento. “Ele me bateu... (choro) Bateu na minha cara!”. O olhar mais uma vez estava em direção ao chão, a entonação da voz aumentara, como que em tom de denúncia, semelhante a um pedido de socorro. “Se acalme aí! Se acalme! Entendeu ou tem que repetir?”. Retruca o Juiz, com a intenção de que o adolescente parasse de chorar. “Como é que um menino desses (fazendo menção ao tamanho do adolescente) apanha de um policial desse tamanho e não fica uma marca? Porque se fosse eu ou o Promotor a gente já tava com o rosto todo inchado...”. Ressalte-se que, de fato, o jovem estava com o rosto bastante inchado. É interessante salientar que, apesar do diálogo travado entre o adolescente e o Juiz, ambos não olhavam diretamente um para o outro. Enquanto o adolescente olhava em direção ao chão da sala, o magistrado observava se a secretária estava digitando o termo de audiência com presteza, de forma a acelerar o procedimento que ali se instaurava. Todos assinam o termo de audiência e o adolescente se compromete a cumprir a medida socioeducativa. Ele e sua mãe se retiram da sala. Não se passam mais do que 20 minutos. As formas de linguagem que se estabelecem entre os jovens e os representantes do sistema de Justiça são marcadas por aquilo que Bourdieu (2011) denominou como efeito de universalização, assim como tem uma apresentação invertida do que o autor considera como efeito de neutralização. O efeito de neutralização se traduz por meio das interações imbuídas de construções impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciador normativo, aquele que faz da fala um instrumento dotado da capacidade agentiva, ao mesmo tempo imparcial e objetiva. O magistrado que, através da fala, se utiliza como um exemplo a ser seguido no tocante ao cumprimento de regras e disciplina própria à vivência em coletividade, não interpela o outro com a ideia de que o campo jurídico é uma construção neutra e/ou autônoma, em vez disso, ele se mune enquanto sujeito dotado de um cânone jurídico, algo “*...+ como que o reservatório de autoridade que garante, à maneira de um banco central, a autoridade dos atos jurídicos singulares” (p. 219). Somando-se a inversão do efeito de neutralização, as audiências judiciais representam ainda um evento característico da materialização do efeito de universalização, que se constitui como uma tentativa de tornar as formas de linguagens estabelecidas como um mecanismo obtido por meio de vários processos convergentes como:

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[...] o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado (aceita, confessa, compromete-se, declarou, etc.); o uso de indefinidos (todo o condenado) e do presente intemporal – ou do futuro jurídico – próprios para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjetivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, “como bom pai de família”); o recurso a fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar ás variações individuais. (BOURDIEU, 2011, p. 215216)

Com isso, os eventos de audiências judiciais se caracterizam preponderantemente como lócus performáticos da ausência de narrativas juvenis sobre a prática de ato infracional e do recurso à linguagem como dispositivo de poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo aponta para a construção de uma leitura sobre as dinâmicas de relações sociais interativas entre os jovens autores de ato infracional e os atores componentes do sistema de Justiça, mais especificamente quando da realização das audiências judiciais de instrução, julgamento e remissão de medidas socioeducativas. Quando Foucault (1996) afirma que todo sujeito é constituído no campo das práticas, inclusive discursivas e não-discursivas, por meio da mútua percepção entre os indivíduos, é que aí podemos pressupor que consiste a relevância da problematização das relações interativas entre os sujeitos, haja vista que, até mesmo nos aspectos linguísticos, eles estão, a todo instante, sendo formados e formando novas formas de ser, estar e perceber-se no mundo. Apesar disto, não concluímos absolutamente que os jovens autores de ato infracional estejam determinantemente fadados a tornarem-se sujeitos assujeitados, algo como uma massa de manobra, corpos dóceis no estilo foucaultiano, longe disto. Esperamos aproximar o leitor da compreensão que o contexto interacional e linguístico entre os atores do processo de incriminação juvenil não aniquilam por completo a capacidade agentiva dos sujeitos, entretanto, exigem novos atos de resistência e capacidade de negociação, numa pressuposição recíproca entre discursos e acontecimentos.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. FOUCAULT, Michell. A Ordem do Discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.

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GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas, Rio de Janeiro, 1999.

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VIOLÊNCIA E MORTE SOCIAL DOS TRAVESTIS NA PENITENCIÁRIA INDUSTRIAL REGIONAL DE SOBRAL70 NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo71

RESUMO/ABSTRACT

A violência da qual estão sujeitos os travestis no sistema prisional brasileiro é uma realidade a ser analisada. A pesquisa aqui apresentada tem como objetivo verificar as condições dos travestis no cumprimento de pena de prisão em regime fechado na penitenciária industrial regional de Sobral. Bem como identificar o desrespeito e violências às travestis que cumprem pena em penitenciárias masculinas. Consequentemente ao cumprimento da pena de prisão, relatam estarem sujeitas a: violências físicas, sexuais, psicológicas e trabalhos forçados, entre outras. Concernente aos fatos, a pesquisa esboça a promoção de políticas que garantam as condições mínimas de respeito aos travestis nas prisões, bem como o respeito as suas subjetividades.

ABSTRACT

The violence which are subject transvestites in the Brazilian prison system, is a reality to be analyzed. The research presented here aims to determine the conditions of transvestites in execution of a sentence of imprisonment in a closed system in regional industrial Sobral prison. As well as identify the disrespect and violence to transvestites serving time in men's prisons. Consequently the performance of imprisonment report being subject to: physical violence, sexual, psychological and forced labor, among others. Concerning the facts, the research outlines the promotion of policies that guarantee the minimum conditions of respect for transvestites in prisons, as well as respect their subjectivities.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Sistema Prisional (Prison System). Travestis (travesties). Violência (Violence).

INTRODUÇÃO

As Prisões continuam sendo “instituições completas e austeras” (FOUCALT, 1987, p.207). A Lei de Execução Penal rege o funcionamento do sistema prisional brasileiro, embora tenha mais de três décadas de sua aprovação, essa carece de uma efetivação em seu cumprimento perante o estado. Dentre elas: as situações precárias de estrutura, assistências 70

Violence and death of social shemale in prison Industrial Regional Sobral. Graduado em Gestão da Produção Industrial, Faculdade de Tecnologia Internacional (FATEC), graduando em Serviço Social, Faculdades INTA, Sobral, Ceará, elionardomelo@gmail.com 71

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material e psicológica, violências de profissionais, superlotação. Essas dificuldades são latentes, e junto a elas florescem outras com a condição de ser travesti. Welzer-Lang (2001, p. 460) considera que as prisões reproduzem a imagem hierarquizada das relações entre homens e mulheres, o que pode ser observado na forma como alguns segmentos de homens (considerados mais femininos) são tratados por outros (tidos como mais masculinos) o que faz com que [...] os jovens homens, os homens localizados ou designados como homossexuais (homens ditos afeminados, travestis...), homens que se recusam a lutar, ou também os que estupraram mulheres as mulheres, dominadas, são tratados como mulheres, violentados sexualmente pelos ”grandes homens” que são chefões do tráfico, roubados, violentados. Frequentemente, eles são apenas colocados como “empregada” e devem assumir o serviço daqueles que os controlam, particularmente o trabalho doméstico (limpeza da célula, da roupa...) e os serviços sexuais (p.460).

Observar as condições “estigmatizantes” impostas às travestis no ambiente carcerário nos remete à condição de opressão imposta à mulher, construída historicamente. Ao procurar pela definição da palavra travesti, é possível encontrar uma variedade de significados, o que talvez reflita o incômodo e a perplexidade frente a esse “algo” que parece ser impossível enquadrar. De “travestismo” a “travestilidade”, passando por "homem que se veste de mulher ou mulher que se veste de homem”, ocupando um lugar cativo nos Transtornos da Identidade Sexual ou “fisiologicamente um homem, mas que se relaciona com o mundo como mulher...” (COELHO, 2006). Buscamos, no presente trabalho, apresentar alguns aspectos das condições dos travestis que cumprem pena de prisão em regime fechado nos estabelecimentos prisionais brasileiros, com intuito de ampliar o conhecimento sobre esse segmento, mas também buscando demonstrar como as questões relativas a gênero no ambiente carcerário, dão possibilidade de contribuição ao recrudescimento do preconceito e desrespeito a condição sexual dos travestis. As travestis da referida pesquisa cumprem pena de prisão em regime fechado na penitenciária industrial regional de Sobral, onde trabalho como Agente Penitenciário. A pesquisa aconteceu na forma de observação participante e com a utilização de entrevista semiestruturada com os travestis reclusos. Foi realizada no período aproximado de onze meses. As informações colhidas foram examinadas numa abordagem qualitativa, tendo como base a análise de conteúdo e considerações através da observação. Nesta dimensão, é possível considerar a carência de políticas públicas voltadas à humanização

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do tratamento dos travestis no ambiente prisional, bem como o respeito ao principio da equidade.

METODOLOGIA

Na referida pesquisa, utilizou-se uma abordagem essencialmente qualitativa, tendo como técnicas a observação participante e entrevista semiestruturada. A observação participante é uma técnica de investigação social em que o observador partilha, na medida em que as circunstâncias o permitam, as atividades, as ocasiões, os interesses e de afetos de um grupo de pessoas ou uma comunidade (MARCONI; LAKATOS, 2007). Para Triviños (1987, p. 146), a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. Os questionamentos dariam frutos a novas hipóteses surgidas a partir das respostas dos informantes. O foco principal seria colocado pelo investigador-entrevistador. Complementa o autor, afirmando que a entrevista semiestruturada “*...+ favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade *...+” além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). A pesquisa foi realizada na Penitenciária Industrial Regional de Sobral – PIRS, em Sobral – CE. A escolha da instituição é justificada por ser o ambiente rico de singularidades suprimidas e disciplina rígida dos profissionais. Vale ressaltar que a inserção no campo de pesquisa começou com o exercício funcional como Agente Penitenciário na Penitenciária Industrial Regional de Sobral, e o contato inicial com as travestis foi nos corredores e outros espaços com conversas informais. Dando continuidade, a pesquisa utilizou a participação de três travestis que cumprem pena de prisão em regime fechado na referida unidade prisional. Sendo explanado a elas o objetivo da pesquisa, bem como o sigilo dos nomes sociais e de registros/identidades das participantes. Tendo duração de onze meses, a pesquisa foi analisada nos três passos propostos por Minayo (1999): 1) ordenação dos dados: está etapa refere-se ao momento de transcrição das entrevistas, releitura do material coletado e organização dos relatos, dos relatórios e dos dados da observação, separadamente, a partir das categorias; 2) classificação dos dados: este passo tem como início a leitura exaustiva e repetida dos textos, mantendo com eles uma relação questionadora, para que em seguida se realize a classificação do material teórico e

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empírico em torno das categorias; 3) análise final: esta é etapa corresponde ao movimento incessante que se eleva do empírico para o teórico e vice-versa, que dança entre o concreto e o abstrato, entre o particular e o geral é o verdadeiro movimento dialético visando o concreto pensado (Minayo, 1999, p. 236), ou seja, é análise dos dados coletados para a produção de uma síntese.

DISCUSSÕES

A pesquisa iniciou com o delineamento das discussões nas palavras de Foucault (1987, p. 208), conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. Entretanto, não “vemos” o que pôr em seu lugar. “*...+ ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. As prisões nascem como uma alternativa para a humanização das penas, que eram infamantes e degradantes. O contexto prisional em geral, carece de políticas públicas voltadas à reconfiguração de trajetórias desviantes, e respeito às subjetividades. Nesse contexto, destaco como o ápice das “sufocações do eu”72 a trajetória dos travestis no ambiente prisional. Esses desde a entrada para o cumprimento de pena de prisão em regime fechado iniciam a sua morte social. A rigidez da disciplina na penitenciária masculina obriga-o a cortar o cabelo, tirar as roupas femininas e adereços (brincos, pulseiras, batom, maquiagem e outros). Ao adentrarem as celas, começam as torturas físicas, psicológicas e exploração sexual. As travestis são obrigadas por outros presos a realizar atividades ditas femininas (limpeza das celas, espaços de convivência, lavar roupas e outras) e a vivenciar relações sexuais contra sua vontade com outros presos. Com o decorrer do tempo, elas afirmam a diminuição dessas agressões. Porém, as travestis já antecedem um abandono familiar e encontram um estado omisso quantos às assistências básicas de higiene e vestimentas, como relata uma delas: J. Eles pararam de me pegar à força com o tempo... Mas eu precisava escovar os dentes, de um sabonete para banhar, sabão pra lavar minhas roupas, tomar um gole de refrigerante, um biscoito... Então comecei a me prostituir, tinha dias que eu faziam de dez a quinze programas. Ai eles me dava uma fileira de biscoito, sabonete, pasta de dente, um copinho de sabão, e assim eu ia vivendo...

O fato que J. refere-se é o descaso da assistência material aos presos que está previsto na lei 7.210 de 11 de julho de 1984, os presos da referida penitenciaria passam até 8 meses sem receber roupas e material de higiene. Assim resta aos familiares a incumbência de tal 72

Conceito empregado no livro “Manicômios, Conventos e Prisões”, de Erving Goffman, dada aos indivíduos que adentram as Instituições Totais. Esses sofrem uma série de rebaixamentos, humilhações, degradações, a seus traços identitários, a fim de uma possível obediência e sujeição às normas empregadas pela instituição.

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assistência, sendo que a maioria dos travestis já havia sido abandonada por seus familiares anteriormente à entrada no mundo do crime, isso por conta da não aceitação de sua condição sexual, por isso a maioria não recebem visitas. Outro fato de preconceito são as visitas intimas. Os homens héteros recebem a visita de suas companheiras duas vezes por semana (quartas e domingos) de 08:00 às 16:00 , já aos homens na condição gays e travestis, é impossibilitada a visita de seus companheiros na mesma proporção, sendo visitados apenas no ultimo sábado de cada mês no período de 09:00 as 12:00, reafirmando ainda mais o preconceito dos órgãos gestores a outras orientações sexuais como gays e travestis nos ambientes prisionais cearenses. Teço ainda considerações em relação ao tratamento de uma das travestis, essa é portadora do vírus HIV/AIDS. Relata que a contaminação do vírus ocorreu no período que se prostituia em troca da obtenção de itens para sua subsistência, sendo que o setor de saúde da unidade não promove campanhas de distribuição e orientação ao uso de preservativos nas relações sexuais. Esboça, ainda, as dificuldades que encontra para o tratamento da AIDS, seja para a obtenção de coquetéis do tratamento ou para o deslocamento ao Centro de Orientação e apoio Sorológico – COAS. A partir das informações supracitadas, foi notória a situação de abandono do sistema prisional quanto às assistências básicas, educacionais, médicas, psicológicas, farmacêuticas e estruturas físicas de trabalho e lazer. E ainda o desrespeito e sufocação da percepção feminina dos travestis reclusos, sem o mínimo de empatia à condição sexual e subjetividades dos mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa evidenciou a carência da efetivação da Lei de execução penal, bem como de políticas públicas voltadas à humanização do sistema prisional em suas formas diversas de percepção de gênero. Mas especificamente a das minorias e suas condições diferenciadas de vida, sendo de extrema urgência a consideração dessas diferenças nas formas singulares de viver travestilidade no ambiente de cárcere. Em suma, a pesquisa propõe como amenização das condições sub-humanas já citadas anteriormente, a promoção de uma ala especifica para travestis e gays, onde possam viver/conviver com suas subjetividades e anseios a sua condição sexual. Garantindo a eles detalhes mínimos, mas de extrema importância como o uso de sutiã, cabelo longo, maquiagem, adereços e roupas femininas e ainda a mesma frequência de visitas íntimas dos

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presos ditos héteros. Dando assim, condições de respeito aos gays e travestis no cumprimento de pena em regime fechado.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2005. BRASIL. Lei de Execução Penal. nº 7.210 de 1984. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 abr. 2013.

em:

COELHO, J. F. da Justa. Justo quando a lagarta achava que o mundo tinha acabado, ela virou uma borboleta: uma compreensão fenomenológica da travestilidade, a partir de narrativas. 2006. 108f. Monografia. Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2006. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987. GOFFMAN, E. Manicômio, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001. MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisas, elaboração, análise e interpretação de dados. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. MINAYO, M. C. de S. (Org.). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999. cap. 4, p. 197-248. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

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ASPECTOS POLÊMICOS DO PROJETO DE LEI DE CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA NO BRASIL73

SOUSA, Bruno Alves74 de RESUMO/ ABSTRACT A violência contra os LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) tem aumentado. Em alguns países do mundo a homossexualidade continua ilegal. A sociedade brasileira tem começado a se preocupar com a homofobia. Recentemente foi proposta uma lei que criminaliza a homofobia, o Projeto de Lei 122/2006. Este trabalho tem o objetivo de analisar os reais impactos desse projeto no combate à discriminação em relação à orientação sexual. Suscita questionamentos sobre uma suposta ofensa aos princípios da liberdade de crença e de expressão em respeito ao princípio da laicidade estatal. Indaga ainda se é possível a solução do problema pela via penal. Violence against LGBT (lesbian, gay, bisexual, transsexual and transgender) has increased. In some countries of the world homosexuality is still illegal. Brazilian society has begun to worry about homophobia. Recently a law criminalizing homophobia, Bill 122/2006 was proposed. This study aims to analyze the real impact of this project on combating discrimination in relation to sexual orientation. Raises questions about an alleged offense to the principles of freedom of belief and expression of respect for the principle of state secularism. Still wonders whether we can solve the problem by means of criminal law.

PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS: Homofobia (Homophobia). Criminalização (Criminalization). Estado Laico (Secular State).

INTRODUÇÃO Imortalizada na autoria de Oscar Wilde, a frase “Sou o amor que não ousa dizer o nome” tem adquirido contornos trágicos. Faz referência ao preconceito existente contra as formas de amar que são consideradas diferentes. Se na Grécia Antiga era considerada uma forma de aquisição do saber em capítulos de histórias mitológicas, hoje tem ingressado com dados cada vez mais alarmantes em páginas policiais de noticiários, demandando uma olhar especial das políticas criminais. A conduta de hostilizar socialmente aquele ou aquela que supostamente realize relações sexuais ou tenha desejo por outrem do mesmo sexo recebe o nome de “homofobia”, assim como dar o mesmo tratamento discriminatório a quem não desempenhe o papel socialmente exigido de acordo com o sexo biológico. 73 74

Controversial Aspects of the Bill of Criminalization of Homophobia in Brazil. Bacharel em Direito, UFC, Fortaleza, Ceará. E-mail: brunoalves.ufc@gmail.com

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No Brasil, o itinerário legiferante de uma lei que torne crime a homofobia começa com a proposição do projeto de lei n° 5003/01, elaborado pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais) e outras 200 organizações. Posteriormente, a deputada federal Iara Bernardi propôs um projeto de lei mais condensado, que altera a Lei n° 7716/89 (Lei Caó) e veio a ser o famigerado PLC n° 122, passando pela aprovação unânime no Plenário da Câmara dos Deputados. Em 2006, foi encaminhado para o Senado Federal. Em 2011, a então senadora Marta Suplicy pediu seu desarquivamento e propôs um novo texto. Atualmente, esse projeto deposita esperanças na comunidade LGBT. Paralelamente, foi elaborado o Estatuto da Diversidade Sexual, um projeto de lei de iniciativa popular que, no momento, recolhe assinaturas suficientes para sua proposição ao Congresso Nacional. Também foi elaborada uma PEC pela OAB incluindo na Constituição Federal a proibição de preconceito em razão da orientação sexual e de gênero. Ao passo que encontra barreiras, a exemplo da homofobia institucional (v.g., a vedação de doação de sangue por pessoas que se declarem homossexuais, segundo a portaria n°153/2004 da ANVISA) e da oposição de uma bancada cristã conservadora no Congresso Nacional. Em meio a esse quadro de indefinições de processos em andamento é que se insere a pesquisa. O objetivo geral do trabalho é verificar se há a importância da existência de uma lei que tornem criminosos os atos que tenham fundamentação homofóbica, dignos de sanção penal. Procura acessoriamente: questionar o porquê de a lei no sentido estrito ser necessária nesse processo; saber por que e como criminalizar resolveria ou atenuaria o problema, abordando experiências de países que viveram um vácuo legal e adotaram a criminalização e analisando seus impactos; investigar se sempre se matou homossexual na história da humanidade ou foi a partir de alguma determinada época que isso começou, bem como compreender suas motivações; e por fim analisar se a aprovação da lei ameaça a liberdade de crença e culto ou se é a sua ausência que ameaça o Estado laico. METODOLOGIA O trabalho foi dividido em duas partes: pesquisa bibliográfica e estudo de campo. A pesquisa bibliográfica se deu através de estudos dos aspectos sociológicos e psicológicos (estudos das diferentes visões sobre a homossexualidade, conceituação de homofobia) e dos aspectos normativos (análise dos tipos penais da lei em si e seus efeitos na política criminal recorrendo ao direito internacional e à criminologia crítica). Valendo-se da rede mundial de computadores para busca de artigos científicos de revistas especializadas ou não, artigos de opinião, sites de associações e organizações LGBT e de diversidade sexual,

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como a ABEH e a ILGA, bem como portais de notícias em geral. Também recorreu a filmes, vídeos de curta duração e livros de literatura que ilustrassem o tema. Quanto ao estudo de campo, parte final do trabalho, saliente-se que não teve finalidade estatística, mas caráter exploratório, voltando-se para aprofundamento de opiniões, visões de mundo sobre o tema do ponto de vista histórico, social, cultural, entre outros. Por essa razão, fez-se uso da amostra intencional (escolha de sujeitos específicos que tenham liderança). A coleta de dados ocorreu via aplicação de questionários num roteiro semiestruturado. Foram entrevistados membros de igrejas inclusivas, organizações não governamentais, partidos políticos, núcleos de pesquisa acadêmica e entidades do Poder Público e do Judiciário. DISCUSSÕES Inegavelmente, a sociedade brasileira tem passado por transformações políticas. E como toda decolagem tem seu preço, as turbulências cedo ou tarde acabam aparecendo. Nosso país durante muito tempo tentou ocultar o seu lado branco: as fortes desigualdades sociais e os preconceitos sejam raciais, de classe social, de gênero ou orientação sexual. Aplicou o botox da tese da “democracia racial” e se anestesiou durante muito tempo a vender essa falsa imagem da inclusão, que mais se viu no “Brasil de fora” do que no “Brasil de dentro”. Ruga por ruga, vê-se o desenho da cara de um país a mostrá-la timidamente, talvez cabisbaixo. Uma dessas ranhuras é o preconceito contra os LGBT. Nosso país acompanhou em alguns vagões da história mundial a perseguição aos homossexuais seja pela religião, seja pela medicina, seja pelo Direito. Até comparada com pedofilia e zoofilia ela tem sido. A homossexualidade já foi até crime por aqui durante séculos. Muito embora essa punição não encontre assento legal em nosso ordenamento, a cruzada gay parece não ter findado. As estatísticas tanto oficiais quanto dos movimentos sociais apontam que o país lidera o ranking de homicídios homofóbicos. Desde 1980, ONGs registram assassinatos de homossexuais no Brasil. A principal organização nacional responsável pela coleta e difusão dos dados é o GGB (Grupo Gay da Bahia), com destacada atuação em defesa dos direitos dos homossexuais. De 1980 a 2002, alcançou-se a cifra de 2218 assassinatos de gays. Desde 1995, é feito um levantamento anual com base em notícias, internet e informação de militantes. Em 2010, o Brasil registrou a cifra vexatória de 260 mortes homofóbicas, tornando – se o país onde mais se mata LGBT no mundo. Alguns setores imprimiram duras críticas à pesquisa, uma vez que ONGs promotoras dos direitos de gays é que eram as responsáveis pela pesquisa. A suspeição recaiu sobre a

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possibilidade de vício na coleta de dados e parcialidade nos resultados. Ocorre que em 2012, foi divulgado o primeiro relatório oficial do governo, experiência inédita na América Latina, que apontou o índice de 278 mortes homofóbicas no Brasil no ano de 2011. Alguns instrumentos normativos internacionais e nacionais atuam em defesa da população LGBT. No plano internacional, destacam-se os Princípios de Yogyakarta (2006), documento elaborado numa reunião de especialistas no assunto, que asseguram alguns direitos como nome social, transgenitalização entre outros. Já no plano nacional, há, por exemplo, o Plano Nacional LGBT (2009), documento resultante de conferências municipal, estadual e nacional, que prevê revisão da legislação para combate à homofobia, distribuição nas escolas de material didático educativo na rede pública básica de promoção da diversidade sexual, além de outras disposições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Entende-se que o Direito Penal não serve para a resolução de conflitos sociais. No entanto, no atual estágio de escalada da violência, é necessária uma lei que incrimine condutas homofóbicas inaceitáveis. Nesse sentido, o PL nº 122/2006 deve ser aprovado. Aceite-se ou não o fato, a lei penal goza de uma legitimidade, um sentimento social que outras leis não possuem. Às vezes até em demasia quando muitos veem na reprimenda estatal a saída para a resolução de conflitos de toda ordem com endurecimento de penas, cogitando-se até pena de morte. É uma estratégia penal dada a eficácia social da norma. Por compreender que há um débito histórico com essa parcela da sociedade, defendese a criminalização da homofobia. Frise-se que crime não é sinônimo de prisão, de privação de liberdade. Há casos em que ela talvez seja realmente necessária para prevenção da própria sociedade. Mas deverão ser excepcionais e justificadas. Não se pode perder de vista o caráter ultima ratio da lei penal. O projeto atual já prevê que muitas condutas são passíveis de mera restrição de direitos ou de pagamento de multas por serem de menor gravidade. Não faz mais do que equiparar às tipificações já previstas para o crime de racismo. Propõe-se, por fim, uma espécie de transexualização do Direito em detrimento de uma transgenitalização, uma redesignação de seu papel ao invés de uma mera readequação que cheira a prestação de satisfação com o dominante. Propõe-se uma superação desse paradigma heterossexual masculino tão presente nas normas jurídicas. Ou não seria ingenuidade pensar que o “homem médio” lá do Direito Penal tomou por moldura uma mulher negra, pobre, lésbica, idosa e candomblecista? Nesse ínterim, defende-se a dessexualização das normas jurídicas com o escopo de alcançar uma experiência real de convivência social.

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REFERÊNCIAS BORILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: o ano de 2011. Brasília, 2012. DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade: A vontade de saber. 12ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997. MOTT, L.; CERQUEIRA, M. Matei porque odeio gay. Salvador: Editora GGB, 2003. RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Esmafe, 2001.

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