INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO Nº 17 MAIO-JUNHO 2014
POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA LGBTT página 6
ARTIGO BRICS
Sonia Corrêa fala sobre o que aparece na pauta dos poderes emergentes página 5
FÁBRICA ENTREVISTA MARCIA SPRANDEL
DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA
Exploração sexual e megaeventos
As possibilidades e os desafios de uma nova política de segurança pública
página 8
página 10
EDITORIAL
M
aio e Junho são meses marcados por comemorações conhecidas de todas e todos, como o Dia das Mães e as festas juninas. Mas, datas alusivas importantes não são facilmente lembradas ou difundidas culturalmente, vide a pouca importância que lhe dão no cotidiano, uma vez que não são, nem podem ser, exploradas pelo mercado. 03 de maio é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 17 do Combate internacional à Homofobia, 28 é dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher; em junho, dia 21 é Internacional da Educação Não Sexista, 26 é Dia Mundial de Combate à Tortura e 28, Dia Internacional do Orgulho LGBTT. São parte do
calendário dos tão fragilizados Direitos Humanos. Nesta edição, a reverberação dessas datas de luta é que nos inspira, pois temos pouco o que comemorar e muito a lembrar. Com base em diversas pesquisas e entrevistas, destrinchamos as políticas públicas LGBTT, desmistificamos o processo de democratização da Comunicação, questionamos a desmilitarização da Polícia e discutimos sobre a gestão compartilhada entre Pontos de Cultura e o Ministério da Cultura. E vamos além. Com o acontecimento de eventos internacionais em Fortaleza, muitas questões são
trazidas à tona. A Copa do Mundo no Brasil evocou diversas problemáticas até então invisíveis à maioria da população. Uma delas é a visibilidade que o turismo sexual adquire na mídia e pouca profundidade na discussão em si. É justamente o foco da entrevista do Informativo. A cúpula dos BRICs, em julho, provocou-nos a convidar Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Brasil), para escrever um artigo sobre o que direitos humanos e sexualidade têm a ver com a política dos BRICs. Confira nas próximas páginas. Boa leitura!
CULTURA VIVA E GESTÃO COMPARTILHADA Por Marcos Rocha | Diretor da Fábrica de Imagens | Membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura/GT Gênero
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 17
D
esde 2004 que, nos primórdios do Programa Cultura Viva,a ideia de gestão compartilhada é amplamente difundida para definir o relacionamento entre o Ministério da Cultura e os Pontos de Cultura. No entanto, é pertinente pela forma como este relacionamento vem se dando, que nos perguntemos sobre a profundidade e a amplitude dessa gestão compartilhada. Célio Turino, em seu livro Ponto de Cultura – o Brasil debaixo pra cima, assinala que a “gestão compartilhada e transformadora se realiza nesse processo de aproximação e compartilhamento de responsabilidades entre o Estado e a sociedade, no qual gestores públicos e movimentos sociais estabelecem canais de diálogo e aprendizado mútuo. Este é um caminho que repensa o Estado e amplia suas definições e funções ao escancarar as portas para partilhar poder e conhecimento com tradicionais e novos sujeitos sociais, dividindo espaços e buscando novas possibilidades” (pág. 77). Do conceito acima assinalaria, primeiramente, que a referida aproximação e compartilhamento de responsabilidades entre Estado e sociedade não caracterizam em tese uma gestão compartilhada. Esta, para se definir de tal forma, precisaria, no mínimo, assegurar a sociedade civil um lugar nesse processo; que sua voz tivesse impacto e de fato interferisse nos processos de gestão, entendidos aqui como todos aqueles envolvidos desde a proposição de ideais, debates 2
e implantações até os momentos de avaliação e os consequentes surgimentos de novas ideias e novas implementações, configurando um processo infinito. Parto assim do princípio, que gestão compartilhada sem a participação da sociedade civil, juntamente com o Estado, num nível formal e deliberativo, é mero arremedo, mero discurso populista. Há de se garantir, portanto, mecanismos claros que garantam essa participação, o nível e a forma dessa participação e compartilhamento. Mecanismos estes não apenas apalavrados, mas devidamente e legalmente homologados, garantindo orçamento, estrutura, funcionalidade e uma segurança jurídica ao processo que ele nunca teve, sobretudo quando se fala dos próprios Pontos de Cultura. Caso isso não se processe, o Ministério da Cultura, as Secretarias Estaduais de Cultura e, sobretudo, os órgãos de controle do Estado continuarão produzindo inadimplentes aos borbotões. Ainda sobre o conceito enunciado acima, cabe destacar que essa gestão compartilhada é um conceito e uma prática em construção e que precisa sim ser perseguida pela sociedade civil e pelos atores estatais comprometidos sociopoliticamente com a constituição de uma democracia participativa. Nesse ínterim, é inegável a contribuição que o Programa Cultura Viva e, sobretudo, o movimento nacional dos Pontos de Cultura têm dado ao Estado brasileiro tanto por questionamentos, quanto por proposições realizadas através,
principalmente, do Ministério da Cultura, para o avanço da ideia de gestão compartilhada. De toda sorte, o grande desafio que enfrentamos hoje, como outrora, é o mesmo. Enfrentarmos um Estado que não tem preparo para se relacionar com os atores sociais de modo participativo e democrático, um Estado que ainda alimenta e se alimenta de uma cultura de privilégios e dentro de marcadores capitalistas, coloniais e patriarcais. No dizer de Célio Turino, “a burocracia é uma necessidade, mas as leis e as normas que regulam (a relação entre Estado e sociedade) são de um tempo em que a maior parte da sociedade estava excluída do exercício da cidadania” (pág. 38). Nesse cenário, e para que se possa continuar avançando na recriação de um Estado que, efetivamente, esteja a serviço do povo, faz-se urgente e necessária a defesa de leis como o Cultura Viva e a Política Nacional de Participação Social, esta última duramente criticada pelos setores mais conservadores da política e da imprensa. No âmbito específico do Cultura Viva ainda é necessário o reconhecimento, por meio de portaria governamental, da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura – CNPdC – como instância formal e legítima de representação dos Pontos de Cultura brasileiros, bem como a criação de um Conselho Nacional Cultura Viva que oriente a política com base na interlocução, devidamente prevista em lei, entre Estado e sociedade civil.
TEIA DA DIVERSIDADE Por Marcos Rocha
E
ntre 19 e 25 de maio, ocorreu em Natal (RN), a quinta edição do Encontro Nacional dos Pontos de Cultura e a Teia Nacional da Diversidade. Além de toda exuberância estética das manifestações e expressões presentes nesses momentos, importante é salientar a pujança política desse encontro. Nesse ínterim, destaque para a eleição da nova Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, composta atualmente por 61 grupos de trabalho, sendo 34 temáticos e 27 estaduais, e para a leitura da Carta de Natal, documento produzido coletivamente pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura que
discorreu sobre os 10 anos do Programa Cultura Viva e sobre as proposições dos Pontos de Cultura para o mesmo. No âmbito das questões de gestão compartilhada, fundamentais para o avanço do programa Cultura Viva, salienta-se as seguintes prioridades explicitadas na Carta de Natal: I) Revisão da legislação que rege a relação entre Pontos de Cultura e Ministério da Cultura, desenvolvendo mecanismos administrativos e jurídicos de repasse financeiro, de acompanhamento e de prestação de contas mais simples, porém rigorosos, transparentes, funcionais e ágeis, conforme orientações da portaria 118
de 30 de dezembro de 2013; II) Garantia de realização, com aporte do Ministério da Cultura, de no mínimo três encontros presenciais nacionais da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e de funcionamento de uma plataforma virtual permanente de discussão e para a mobilização e articulação dos planos de trabalho dos GTs temáticos; III) O reconhecimento, por meio de portaria governamental, da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura – CNPdC como instância formal e legítima de representação dos Pontos de Cultura Brasileiros.
ENCONTRO NACIONAL DE ARTE E CULTURA LGBT EM NITERÓI Por Marcos Rocha
O
correu entre 5 e 8 de junho em Niterói (RJ), o I Encontro Nacional de Arte e Cultura LGBT. O evento foi uma realização da Fundação de Arte de Niterói (FAN) e da Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e de Enfrentamento à Intolerância Religiosa (CODIR), fruto de uma parceria entre a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MinC) com a prefeitura do município. O diretor da Fábrica de Imagens, Marcos Rocha, esteve presente participando de uma mesa intitulada “Diálogos sobre mídias, redes sociais e
comunicação – visibilidade, expressão e militância”. Durante o evento, também foram exibidos vídeos produzidos por jovens do Projeto Cacto com foco nas questões LGBTT. De modo geral, a realização do Encontro pode ser considerada um avanço nas políticas culturais. No entanto, foi possível observar o quanto se tem que avançar em políticas culturais LGBTT, a partir da própria construção de um campo do que se pode chamar de cultura LGBTT, se estendendo à definição de uma política pública em cultura que reforce de fato a diversidade e afirme os direitos de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais. Nesse contexto, ou o Ministério da Cultura dialoga de modo mais genuíno com os pontos de cultura e outros grupos que trabalham com arte e cultura LGBT para o desenvolvimento de uma política consistente e continuada, ou, nessa área, com toda a recrudescência conservadora e fundamentalista que observamos atualmente, todos os frutíferos debates que ocorreram em Niterói não passarão de discursos sem eficácia real e incidência social.
3
FOTO: IMAGENS DA INTERNET
DEMOCRACIA DESMISTIFICADA Por Sarah Coelho
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 17
O
longo período de esfriamento no debate sobre a democratização da comunicação no Brasil pode ter chegado ao fim. A presidente da República Dilma Rousseff deu sinais de que pretende retomar as discussões sobre a regulamentação da mídia durante a campanha presidencial, depois de a pauta ter sido incluída nas diretrizes do texto elaborado durante o 14º Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo o documento: “uma nova regulação dos meios de comunicação deve proteger e promover os direitos humanos e combater os monopólios, atualizando as conquistas cidadãs da Constituição Federal, regulamentando o que já é previsto na mesma em relação às rádios e televisão brasileiras”. A abertura foi comemorada pelos movimentos sociais que levantam a bandeira da comunicação, apesar dos tabus que ainda envolvem a questão. Desconstruí-los é um desafio posto a todas e todos que acreditam em uma mídia mais plural e acessível. DEMOCRATIZAÇÃO PARA QUÊ?
A Constituição Federal Brasileira promulgada em 1988 trata, a partir do artigo 220, da comunicação social e dos serviços de telecomunicação no país. São diversos parágrafos e incisos que versam sobre assuntos como liberdade de expressão e concessões públicas de radiodifusão. Apesar disso, o setor vem sendo palco de inúmeras violações de direitos, em um cenário que envolve empresários, políticos e o Estado brasileiro. Com isso, o debate público sobre o assunto vem sofrendo um esfriamento contínuo, uma vez que a maioria da população permanece sendo informada pelos grandes veículos de comunicação de massa. Segundo pesquisa lançada em 2013 pela Fundação Perseu Abramo, a televisão aberta, por exemplo, é fonte de informação de 94% da população 4
brasileira. É através do olhar dos poucos concessionários desses serviços que a população enxerga o mundo e atua na sociedade. Assim, a mídia mina as discussões, travestindo de “tentativa de censura” a luta por uma comunicação mais democrática e transformando a desinformação em estratégia para não discutir seu próprio funcionamento. Dentre as principais inconstitucionalidades estão a proibição de monopólios e oligopólios dos meios de comunicação social; a proibição do controle de veículos de comunicação por políticos; a regulação da publicidade; e a obrigação do incentivo à regionalização das produções culturais, artísticas e jornalísticas. Nada do que acontece na prática. INFORMAÇÃO PARA AJUSTAR A REGULAÇÃO
Para resolver esses problemas, Dilma parece estar disposta a fazer apenas uma regulação econômica da mídia. Para ela, discutir uma regulação de conteúdo ainda é “impensável”. A diferença entre as duas regulações é que a regulação econômica enfrenta aspectos como a concentração da propriedade dos meios; o número de meios controlados por cada grupo; e se esses grupos podem controlar, ao mesmo tempo, concessionárias de rádio, de televisão e também jornais e revistas, por exemplo. Nesse caso, o conteúdo permaneceria à mercê do bom senso e do comprometimento dos próprios veículos. Para ativistas, o posicionamento da presidente é um “equívoco” e demonstra uma incompreensão do Governo Federal sobre o conjunto de mecanismos de regulação que estão disponíveis e já previstos na legislação brasileira: “Em relação à regulação de conteúdo – e aí está o equívoco da presidenta – é preciso dizer que o Brasil já faz isso, uma prática recorrente em democracias muito mais avançadas do que a nossa. Um exemplo do que é
regulação de conteúdo é você determinar que o tempo máximo de publicidade na grade de programação de uma emissora é 25%. E isso está colocado no Código Brasileiro de Telecomunicações. Você instituir que todos os canais têm que destinar 5% do seu tempo a conteúdo jornalístico também é regulação de conteúdo. Você determinar que os programas têm que exibir uma faixa de classificação indicativa, é regulação de conteúdo. Quando a Constituição brasileira diz que tem que haver um percentual de produção regional e um percentual de produção independente, é regulação de conteúdo. E nada disso tem a ver com censura”, afirma Bia Barbosa, da coordenação do Coletivo Intervozes e da executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). EMBATE ANTIGO
Esta não é a primeira vez que o governo federal parece confundir “controle social da mídia” com “censura”. Foi sob esse argumento que Dilma Rousseff engavetou a proposta de regulação da mídia, elaborada pelo então ministro da Comunicação, Franklin Martins, em parceria com a sociedade civil organizada. Em palestras e seminários sobre comunicação, o próprio ex-ministro costuma lembrar episódios em que seu trabalho foi descontextualizado pelos meios de comunicação, para que não houvesse um debate claro sobre a regulação. Um deles foi durante a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Naquela ocasião, por considerar a expressão “controle social” ambígua, o ministro esclareceu que o governo não adotaria medidas que a utilizassem em seus textos. Ao final dos trabalhos, apenas uma das mais de 600 resoluções da conferência tinha essa expressão, mas foi em cima dela que toda a cobertura do evento acabou sendo focada.
FOTO: ALISSON SEVERINO
ARTIGO
OS BRICS
DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E SEXUALIDADE Por Sonia Corrêa
D
esde 2013, o Observatório de Sexualidade e Política, em colaboração com parceiros do sul e do norte, está investigando como os direitos humanos, gênero e sexualidade aparecem, ou melhor não aparecem na pauta e nas realidades dos chamados poderes emergentes. Sabemos um pouco mais do que cabe nesse micro artigo. Aqui apenas compartilhamos duas ou três iluminações provenientes dos escritos e das conversas que são parte desse projeto de reflexão que contribuem, de algum modo, para definir melhor os contornos dessa cartografia. 1 BRICS2? “O uso frequente dos termos “BRICS” ou mesmo ‘potências emergentes’ projeta a imagem de um coletivo de países que compartilham certas características e buscam a realização de grandes objetivos e estratégias comuns. Na verdade, o grupo das potências emergentes é composto por formações estatais e sociais muito heterogéneas que nem sempre se comportam de forma coesa como um grupo, em arenas regionais ou multilaterais de negociação.” (Informe da reunião realizada no Rio em julho de 2013). “Os BRICS são como um artefato construído. Embora não se trate exatamente de uma agrupação geopolítica orgânica ganhou vida própria. Para além de questões a acerca da real influência desses países em termos econômicos ou políticos, essa nova formação pode e deve ser criticamente examinada como um objeto ideológico. “(Akshay Khana) “Devemos moldar nossas perguntas em torno do novo contexto global, não tanto em termos de contrahegemonia, mas mais bem como uma reconfiguração envolvendo hegemonias rivais”. (Paul Amar)
BRICS: NOVA ORDEM MUNDIAL, JUSTIÇA SOCIAL E DIREITOS HUMANOS? “A ênfase na correção da ‘injustiça global’ joga um papel proeminente no discurso dos poderes emergentes quer no que se refere à governança internacional, quer em relação a seus modelos internos de desenvolvimento interno... Não obstante, os princípios da justiça social e de direitos humanos num sentido ampliado estão, de fato, virtualmente ausentes nos documentos formais dos BRICS, no âmbito das relações bilaterais com outros países ou nas diretrizes de seus programas de cooperação”. (Peter Konjin) O principal desafio para nós é não sermos ofuscado pelo que os estados BRICS estão fazendo. Mas, sim mapear insatisfações e resistências em relação a esses feitos. (Mariana Britto) BRICS: GÊNERO E SEXUALIDADE? Até muito recentemente, gênero e sexualidade estavam completamente invisíveis nas conversas e definições acordados pelos BRICS em torno do “desenvolvimento”. Basta, porém, navegar rapidamente na internet para perceber o quão tumultuadas são as políticas de gênero e sexualidade nas sociedades nacionais hoje agrupadas sob a rubrica BRICS. Há, por exemplo, os estupros corretivos de lésbicas na África do Sul e os retrocessos brasileiros em relação ao aborto; ou ainda a lei russa que sanciona a “promoção da homossexualidade, assim como a proibição de mobilizações por direitos LGBT e, volta e meia, brutal repressão policial à prostituição na China. Não menos importante, em 2012 na Índia, assistiu-se a uma enorme comoção social em reação a um estupro coletivo
e, um ano depois, a Suprema Corte numa surpreendente decisão revalidou a criminalização das relações sexuais ‘não naturais’, herança da era colonial. 3 É preciso dizer, contudo, que em março de 2014, aconteceu, na África do Sul o Seminário Inaugural de peritos dos BRICS em questões de população. O documento levado a essa reunião definiu várias áreas potenciais de cooperação, diálogo e colaboração, entre elas: “As questões sociais em geral e, em particular, de gênero e direitos das mulheres, da saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos. Tudo indica, porém, que esse temas estarão uma vez excluídos da pauta de negociações formais da Cúpula de Fortaleza. Lembrando o famoso conto infantil intitulado A Roupa Nova do Rei, fica no ar a pergunta: quem vai dizer que o rei está nu? As/os autoras/es identificados nos textos citados são: Akshay Khana é indiano, professor do Institute for Development Studies da Universidade de Sussex (Reino Unido); Marina Britto é pesquisadora do IBASE/Brasil; Paul Amar é professor da Universidade da Califórnia/Santa Barbara (EUA); Peter Konijn era pesquisador de Knowing Emerging Powers (Holanda) quando se realizou a reunião de trabalho em julho de 2013; Sonia Corrêa é co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Brasil). 2 Sigla para denominar grupo de países em desenvolvimento socioeconomico: Brasil, Rússia, Índia e China. 3 Em 2009 a Alta Corte de Deli havia decidido que que artigo 377 do código penal indiano que criminaliza relações anais era inconstitucional. Em dezembro de 2013 a Suprema Corte invalidou essa decisão. 1
5
FOTO: WIKIPEDIA
ALTOS E BAIXOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA LGBTT Por Monique Linhares
Um mundo onde a orientação sexual de um indivíduo pode ser considerada crime, passível de tolhimento de liberdade de expressão e de associação e até pena de morte, é um mundo que queremos parar e descer, como diria a menina Mafalda – do cartunista argentino Quino, e ir pra bem longe. Mas abandonar o barco não é solução; até a transformação, a luta por direitos e respeito é longa e árdua
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 17
N
os últimos anos, pudemos ver muitos avanços nas ações afirmativas em defesa dos direitos de gays, lésbicas, travestis e transexuais, mas ao mesmo tempo, persistem inúmeros retrocessos. O Brasil é o 12º país a aprovar a união homoafetiva, atrás de seu vizinho latino-americano, Argentina – que também legalizou a adoção por casais do mesmo sexo – ,do México, da África do Sul e de outros oito países economicamente desenvolvidos. Enquanto alguns ganham, outros perdem. Práticas homossexuais são consideradas ilegais em 76 países, a maioria signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e em cinco deles (Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Mauritânia e Sudão) bem como algumas partes da Nigéria e da Somália, homossexuais são punidos com morte, segundo levantamento da ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association). Aqui no Brasil, algumas iniciativas governamentais foram importantes para o amadurecimento da pauta dos movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT) Brasileiros. Dentre elas, destaca-se o aspecto jurídico marcado pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que em 05 de maio de 2011 igualou a união estável homoafetiva à união estável heterossexual, estabelecendo isonomia de direitos, data que deve ser comemorada como o “Dia Nacional da Cidadania LGBT”. A resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de maio de 2013, se somou à decisão do STF e dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em 6
casamento entre pessoas do mesmo sexo. UMA BREVE CONJUNTURA
ANÁLISE
DE
O avanço das articulações políticas pode ser atribuído ao ativismo virtual, pela grande repercussão que a circulação de informações ganhou com a globalização das comunicações, de acordo com Beto de Jesus, diretor executivo do Instituto Edson Neris (IEN) e secretário de Assuntos Internacionais da Associação Brasileira de Lesbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). “As denúncias, que antes eram feitas a partir dos grupos LGBTT, hoje são feitas por LGBTT através das ferramentas que a internet disponibiliza, sejam as petições online, seja as manifestações ou ainda o advocacy virtual com e-mail para os deputados, senadores e executivo entre outras ações”, pontua. Mesmo com o grande impulso virtual/global dos últimos anos, as conquistas são resultado de uma luta história de Direitos Humanos e movimentos LGBTT pelo mundo. Luanna Marley, advogada feminista, mestranda em Políticas Públicas e Planejamento pela UECE, coordenadora do Centro de Referência LGBT de Fortaleza da gestão municipal anterior, acredita que data de 30 anos a trajetória dos movimentos sociais para tecer políticas públicas afirmativas internacionais e, consequentemente, aplicadas em alguns países. Destaca também que essa luta é inspirada “no feminismo e nos movimentos feministas pelo o direito ao próprio corpo, à liberdade sexual e o constante combate ao
machismo e ao racismo”. A advogada relata que muitas políticas foram construídas e efetivadas a partir de tratados e princípios legais. Considerado um dos mais importantes documentos teóricos sobre a diversidade sexual, o “Princípios de Yogyakarta“, elaborado em 2006 por especialistas do direito, da antropologia, das ciências sociais, da sexologia de vários países - elencou 29 princípios a serem adotados pelos Estados-Nação em suas legislações e políticas públicas. “Lógico que este documento é apenas uma recomendação para os países, contudo, contribuiu enormemente para a atuação dos movimentos LGBTT junto à ONU (Organização das Nações Unidas), OEA (Organização dos Estados Americanos) e em seus países. Vale ressaltar que entre 2005 e 2006, a ILGA, lança uma campanha para que as organizações LGBTT possam falar, ou seja, ter voz nos Conselhos e Seções da ONU para pautar as questões acerca da orientação sexual e identidade de gênero”, completa Luanna. Na América Latina, os esforços dos Estados Argentino, Brasileiro dentre outros países, juntamente com os movimentos LGBTT, fortalecem esta demanda junto à OEA, onde as resoluções das Assembleias Gerais de 2008, 2009 e 2010 sobre “Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero”, foram os passos iniciais para que em 2011 a OEA obrigasse os Estados Membros a desenvolverem políticas públicas de enfrentamento às violências e violações dos direitos humanos LGBTT.
AINDA MUITO QUE FAZER A dificuldade no Brasil também está no enfretamento à forte oposição às demandas LGBTT e direitos conquistados. No Congresso Nacional, onde poderiam desentravar todas as deliberações, a bancada religiosa é a principal responsável pelo oposto acontecer. Para Beto de Jesus, são “83 parlamentares fundamentalistas, religiosos homofóbicos, no Congresso Nacional que não mediram esforços em fazer esse contra ataque, violando inclusive nossa Constituição, que garante a laicidade do Estado. Se a visibilidade massiva dos LGBTT traz uma reação reacionária desses parlamentares, a ação deles traz outra ofensiva e articulação dos LGBTT. Vivemos isso nesse exato momento”. Mesmo com todos os esforços e o embate retrógrado com grupos políticos, a realidade que as estatísticas revelam ainda desanima. De acordo com Beto, o “Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012”, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e baseado em dados do 180/Ouvidoria do SUS e Disque 100/Ligue – que começou a receber denúncias em 2011 –, revela que em 2012 houve 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos de pessoas LGBTT, um aumento de 46,6% em comparação com 2011. Em média, todo dia no país foram reportadas 27,34 violações de direitos humanos de caráter homofóbico e 13,29 pessoas foram vítimas de violências homofóbicas. Além disso, por meio de dados hemerográficos (informações baseadas em fontes jornalísticas), o mesmo relatório identificou que 338 pessoas LGBTT foram assassinadas no país em 2012 por motivos homofóbicos.
Mais dados no box abaixo. Outro detalhe importante é entender que cada grupo LGBTT tem sua demanda e problemas específicos, mesmo que estejam dentro de um mesmo contexto social de lutas versus segregação. “Temos que ter uma agenda que contemple as questões macros, mas não podemos deixar de lado as questões especificas de cada segmento”, afirma Beto. Porém, ainda é preciso transformar e unificar os movimentos para que a política LGBTT não se fragilize por completo. “A reprodução da misoginia e da pouca ou nenhuma informação sobre os estudos de gênero no mundo gay é forte e muitas vezes a agenda das lésbicas e das travestis e transexuais ficam a deriva. Os espaços ainda são, infelizmente, ocupados em sua maioria pelos homens. Isso precisa ser refletido e mudado. Existe uma movimentação de vários setores pedindo autonomia na ação e atacando ferozmente a ideia de juntarmos as identidades. Segregar agora é perigoso, pois enfraquecerá ainda mais nossas estratégias”, ESPAÇOS POLÍTICOS FRAGILIZADOS NO BRASIL Beto de Jesus avalia que apesar de todas as conquistas, a postura do Governo Federal com relação às políticas públicas e ao espaço de diálogo com a Sociedade Civil, especificamente as Conferências Nacionais LGBTT, se perde em politicagem e incoerências. “É vergonhosa e aviltante a situação das Conferências. Hoje avalio se participarei da futura III Conferência. Conceder e entregar pessoalmente o Prêmio Nacional de Direitos Humanos para LGBT e/ou suas instituições e boicotar publicamente o Programa Escola
sem Homofobia; cancelar campanhas de prevenção do HIV/Aids para jovens; recolher materiais de Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) por abordarem questões da homossexualidade violam terminantemente os direitos humanos das pessoas LGBTT. Isso é uma incoerência absurda!”. De 22 a 25 de maio de 2014 ocorreu na cidade de Niterói o V CONABGLT Congresso Nacional da ABGLT, com mais de 300 organizações de base comunitária. “Lá refundamos a ABGLT do tamanho do Brasil, reafirmamos nosso papel como Organização da Sociedade Civil, e nos comprometemos a pressionar de forma independente o poder público. Creio que isso é muito salutar para a Associação e para o próprio Governo, tendo claro qual o papel de cada um. No afã de uma aproximação programática histórica fomos engolidos pelos acordos do governo com sua ‘governabilidade’ e muitos descasos frente à situação real da vida dos LGBTT”, critica Beto . Luanna aborda outro debate, que é a questão da efetivação e, consequentemente, a destinação de recursos para essas políticas. “Não existem recursos suficientes para se investir nestas políticas e isso repete também no âmbito dos estados brasileiros. Implementar política pública LGBTT, envolve investir em políticas a curto, médio e longo prazo, envolve transformar a política pública numa estrutura sólida, com Pactos Federativos, por fim, em uma política de Estado, que transcendam aos governos e a essa lógica desigual de governança que existe no Brasil. Tivemos conquistas, mas são longos os passos para os avanços, de fato!”, conclui.
MAPA DOS HOMICÍDIOS
Fonte: Grupo Gay da Bahia
travestis
7
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
FÁBRICA ENTREVISTA
MARCIA SPRANDEL Por Sarah Coelho
EXPLORAÇÃO SEXUAL E MEGAEVENTOS
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 17
A Copa do Mundo no Brasil mal havia começado e as manchetes dos jornais já falavam no aumento do “turismo sexual” como um de seus legados. Frequentemente, ouvimos essa expressão como algo negativo, ligado ao aumento da criminalidade. No entanto, a contratação dos serviços de uma prostituta maior de idade não configura, por si só, um crime. Sobre esses limites, a Fábrica de Imagens conversou com Marcia Sprandel, doutora em Antropologia Social, assessora técnica do Senado Federal e autora do livro “A Pobreza no Paraíso Tropical” (Relume Dumará, 2002). Confira! Então, para começo de conversa, gostaríamos que você falasse um pouco sobre essa relação entre turistas, prostitutas e crime. Do que, de fato, estamos reclamando e com o que devemos nos preocupar? Excelente pergunta. A sociedade e as autoridades brasileiras precisam aprender que “turismo sexual” não é crime, não está tipificado no Código Penal, nem nunca estará. “Turismo sexual” é uma opção de turistas adultos, que buscam nos países de destino – entre outros fatores – a aquisição de programas sexuais com mulheres e homens também adultos. No caso do país de destino, o “turismo sexual” é das mais rentáveis atividades dos trabalhadores sexuais, homens e mulheres adultos.
experiência, como as associações e movimentos de prostitutas e travestis entendem essa questão? São duas possibilidades: (1) no caso de menores de 18 anos, sempre; e (2) quando há cárcere privado, retenção de documentos e cobrança de dívidas impagáveis, ligadas ao transporte e ao consumo no local de trabalho, nos mesmos moldes do que entendemos por “trabalho escravo”, tipificado nos artigos 149, 203 e 207 do Código Penal.
Lembrando sempre que o exercício da prostituição não é crime no Brasil, todo pânico moral que cerca o “turismo sexual” é, na verdade, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, isto sim crime, previsto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A Comissão de Juristas que produziu uma proposta de novo Código Penal resolve de forma satisfatória esta questão, de meu ponto de vista, ao retirar da referida legislação os crimes de casa de prostituição (art. 229) e rufianismo (art 230). Ou seja, retirando qualquer referência à prostituição no Código Penal, e criando o tipo penal “Exploração sexual”, definido como “Obrigar alguém a exercer a prostituição ou impedir ou dificultar que a abandone. Pena: prisão, de cinco a nove anos. Parágrafo único. Se a vítima for criança ou adolescente, a pena é aumentada de um terço até a metade”.
Ainda nesse contexto, em que momento a prostituição passa a ser exploração sexual? Pela sua
Segundo a Comissão de Juristas, na Exposição de Motivos que acompanha a proposta “é de extrema relevância
8
punir a exploração sexual, que significa prostituição forçada, verdadeiro trabalho escravo de prestação de serviços sexuais. Na verdade, a prostituição não é nem nunca foi crime no Brasil, e a punição da “casa de prostituição” e do “proxenetismo” mostra-se um contrassenso quando os encontros sexuais são estabelecidos entre pessoas maiores de idade que dispõem livremente de suas vontades. Daí a proposta de descriminalização das atuais condutas dos artigos 229 e 230 do Código Penal. Relevante é punir, tão somente, a exploração sexual, pouco importando o local onde esta ocorre ou a existência de intermediários não exploradores. Assim, criado o novo tipo “exploração sexual”, que é agravado se praticado contra vulnerável, as demais figuras que se referem atualmente à prostituição são revogadas, rasgando-se o véu da hipocrisia e libertando-se a mulher de vergonhoso estigma.” As associações de Prostitutas e Travestis têm sido parceiras no enfrentamento à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e lutam pela regulamentação da profissão, única forma de garantir o respeito aos direitos trabalhistas da categoria. Trazendo essa discussão para o contexto da realização de
megaeventos, mais especificamente a Copa do Mundo que acontece agora e, posteriormente, as Olimpíadas em 2016. Os megaeventos possuem potencialidade para agravar os crimes relacionados à exploração sexual pelo turismo? Temos estudos sérios que provam que os megaeventos não provocaram aumento do tráfico de pessoas para a prostituição e que, em muitos casos, inclusive diminuíram a demanda por prostituição em geral. No que se refere à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, é mais difícil a quantificação, em função do sub-registro. Não acredito que os megaeventos e o “turismo sexual” aumentem a exploração sexual, tráfico de pessoas, pornografia infantil e exploração de menores. Se pensarmos assim, estaremos vendo em todo turista um potencial criminoso, o que não é verdade. A Interpol tem a lista de pedófilos e estes estão sendo barrados quando tentam ingressar em nosso país, independentemente de ser ou não período de megaeventos. Como garantir o acesso a dados concretos sobre essa realidade, já que esses crimes não acontecem às claras? Como esses levantamentos são feitos? Os dados factíveis referem-se aos registros policiais, abertura de inquéritos e condenações. Estes dados devem ser disponibilizados pelas forças de segurança e autoridades judiciárias.
Como você avalia as políticas públicas de prevenção, fiscalização e punição dos crimes de exploração sexual durante os megaeventos? O governo tomou uma posição correta em não fazer campanhas na área do tráfico de pessoas, uma vez que a experiência internacional demonstra que não há ligação entre este crime e os grandes eventos. E seguiu investindo no que tem feito sempre, principalmente no Carnaval, que é nas campanhas contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, mostrando ao turista que é crime e estimulando a população local a denunciar.
e mostra as boas práticas de Associações de Prostitutas/Travestis em diversos pontos do país, que se preparam para os megaeventos com o profissionalismo que nossa legislação lhes nega: aprendendo a língua, fazendo campanhas, acolhendo profissionais do sexo estrangeiros, se colocando como parceiras do governo e da sociedade no combate à exploração de crianças e adolescentes, trabalho escravo e ao tráfico de pessoas. No caso das prostitutas e travestis da Praia de Iracema, penso que estão fazendo o mesmo que todos os empreendedores da cidade, se engalanando para chamar a atenção dos potenciais clientes. Ponto para elas e eles.
Aqui em Fortaleza, tivemos jogos do Brasil, e diversos jornais do país e do mundo abordaram a questão da prostituição na nossa cidade. A Folha de São Paulo, por exemplo, veiculou em um de seus blogs uma matéria, com fotos e entrevistas, sobre as prostitutas e travestis da Praia de Iracema que estão usando verde e amarelo para chamar a atenção dos gringos. Sobre a prostituição, como você avalia a possibilidade de interferência do Estado nessa questão? Em sua opinião, a prática deve ser desestimulada? Como? A imprensa europeia parece acompanhar uma preocupante tendência daquele continente em criminalizar a prostituição, inclusive os/ as clientes. A imprensa brasileira tem o dever de conhecer de perto a realidade
Do meu ponto de vista, o Estado deve apoiar a demanda pela regulamentação da profissão e ouvir os trabalhadores sexuais sempre que pensar políticas, campanhas ou legislações que os atinjam diretamente.
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
ou portadora de deficiência física ou mental.
Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho: Pena - detenção, de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º - Na mesma pena incorre quem: I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. § 2º - A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena
Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção, de um a três anos, e multa. § 1º - Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. § 2º - A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.
Nada a ver desestimular a prática da prostituição. É um mercado de trabalho como todos os outros. O que deve ser feito sempre, pelo Estado e pela sociedade, é estimular programas sociais que retirem as pessoas da pobreza e políticas públicas que ampliem o acesso à educação e ao trabalho, de forma a que a prostituição seja uma opção entre muitas outras para a moça ou rapaz que completa 18 anos e entra no mercado de trabalho.
POR DENTRO DA LEI Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o - Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente;
9
COMBATER OU PROTEGER?
EIS A QUESTÃO... Por Sarah Coelho
“Não acabou, tem que acabar: eu quero o fim da polícia militar!” As palavras de ordem entoadas em diversos protestos contra a realização da Copa do Mundo dão visibilidade a uma pauta antiga que volta a ganhar força: a desmilitarização da polícia
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 17
A
afirmação contundente da dona de casa Sandra Sales prega na mente e permanece ecoando, incomodamente, muito tempo depois: “Transformei meu luto em luta, por isso não derramo uma lágrima porque não tenho tempo pra isso”. É preciso indignação para (sobre)viver. A indignação de Sandra não teve início certo, mas teve uma gota d’água com hora e data bem definidas. Era a madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, quando um tumulto por conta do volume de alguns paredões de som em uma festa de précarnaval no bairro Ellery acabaria em confronto com a Polícia Militar. Os tiros, irresponsavelmente disparados pelos policiais contra a população, deixariam duas vítimas fatais. Uma era Igor Andrade, de 16 anos, músico da igreja do bairro e muito querido na comunidade. A outra era Ingrid Maiara, de 18 anos, que naquela noite trabalhava em uma das barraquinhas de comida montadas na festa, filha de Sandra. Infelizmente, Igor e Maiara não são os únicos integrantes da lista de vítimas de violência policial. Há três anos, a cidade parou para ver a foto do pai de Cristian Bruce, de 14 anos, chorando sob o corpo do filho baleado na cabeça por um policial, no cruzamento de duas grandes avenidas da Aldeota, bairro nobre da cidade.
10
E se o Brasil parou para perguntar “Onde está Amarildo?”, o pedreiro carioca desaparecido após ser detido por policiais militares e conduzido à sede da Unidade de Polícia Pacificadora da favela da Rocinha, Fortaleza tem um caso semelhante pelo qual se envergonhar. O também pedreiro Francisco Ricardo Costa de Sousa foi brutalmente torturado até a morte por policiais do Ronda do Quarteirão depois de ter sido confundido com um criminoso, próximo à sua casa, na Maraponga. É consenso que a truculência policial se concentra principalmente nas comunidades mais vulneráveis das grandes cidades, mas a falta de confiança nas corporações, supostamente encarregadas de guardar e proteger os cidadãos, não se circunscreve a essas regiões. Um estudo encomendado pela Anistia Internacional para o lançamento de sua mais recente campanha global Chega de Tortura, indica que 80% dos brasileiros temem sofrer tortura no caso de serem detidos pela Polícia e 83% afirmam ser necessária a adoção de medidas firmes para eliminar esta prática. “Este estudo demonstra que para uma grande maioria no país existe o temor de sofrer tortura se estiver sob custódia do Estado. Este é um dado relevante e mostra que
o Brasil ainda tem muito a avançar no que diz respeito ao arraigado uso desta prática em seu território”, afirma Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil. A sensação dos brasileiros não é infundada. Apesar da falta de dados que deem conta especificamente da tortura policial, inúmeros relatos comprovam que ainda não nos libertamos dessa herança da ditadura militar. A polícia brasileira é violenta. De acordo com dados do 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no início deste ano, em média cinco pessoas são mortas por dia no país pelas mãos da polícia. Somente no Rio de Janeiro e em São Paulo, no ano de 2011, policiais mataram 42% a mais que todos os países com pena de morte do mundo. São números alarmantes que resultaram em recomendações expressas do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) pedindo a extinção da Polícia Militar no Brasil. O governo brasileiro respondeu que não poderia seguir as recomendações, já que a estrutura organizativa da Polícia, incluindo a militar, está regida pela Constituição Federal, podendo ser alterada apenas pelo Legislativo. Com as manifestações que
FOTO: GABRIEL GONÇALVES
ganharam as ruas do país desde junho do ano passado e os episódios de violência na atuação da Polícia Militar registrados em algumas ocasiões, a desmilitarização das polícias estaduais voltou a ganhar espaço no debate público. Atualmente, duas Propostas de Emendas Parlamentares (PEC) sobre o assunto tramitam no Congresso Nacional, com o objetivo de transformar a Polícia Militar em Civil e unificar as duas polícias existentes no Brasil.
DESMILITARIZAÇÃO Há quem pense que desmilitarizar a Polícia significa deixá-la sem armas e sem uniforme; demitir em massa os policiais; ou simplesmente retirar a palavra “militar”. No entanto, a proposta de desmilitarização pouco tem a ver com isso, estando ligada a uma mudança no conjunto de valores e princípios que norteiam a Polícia brasileira desde a sua criação, com a vinda da família real portuguesa para o país, e consolidada na Constituição Cidadã de 1988. Apesar do fim da ditadura militar, a polícia permanece sendo treinada para combater o “inimigo interno”. Isso, acreditam especialistas, é o que precisa ser modificado, pois não caberia, dentro de um Estado democrático, uma polícia ligada às forças armadas e que continua vendo o cidadão como um adversário a ser combatido. “ [a desmilitarização] tem um caráter essencial de eliminar a lógica militar hierárquica que oprime praças (policiais não-oficiais) e
sociedade civil. Na hierarquia militar, o povo é a base desse processo – e, como tal, é quem mais sofre com as consequências danosas dessa atuação, não raro pagando com suas próprias vidas, além das humilhações cotidianas”, explica o Comitê Cearense pela Desmilitarização da PM. Além disso, a ideia é que, uma vez unificada, uma mesma equipe passe a ser responsável pelo ciclo completo do atendimento de uma ocorrência criminal, hoje divido entre Polícia Militar e Polícia Civil. À PM compete o policiamento ostensivo nas ruas, enquanto à Civil cabe a investigação dos crimes. Mas se a desmilitarizar a polícia parece trazer tantos benefícios, a quem interessa mantê-la militarizada? Quem responde é o delegado carioca Orlando Zaconne, responsável pelo caso Amarildo e a favor da desmilitarização: “Eu acho que o grande interesse está em ter essa guerra como um dispositivo de controle das classes perigosas (fazendo aspas com os dedos ao usar essa expressão), daqueles que podem em algum momento não se resignarem com esse estatuto jurídico-político, com essa gestão do Estado, e que possam em algum momento se rebelar contra isso tudo.” ASSOCIAÇÃO DE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA POLICIAL Apesar de trágico, o caso do bairro Ellery tem rendido frutos de mobilização. Os familiares das vítimas fundaram a Associação de Vítimas de Violência Policial (Avvipec).
Através dela, a pressão por justiça tem ganhado força, aglutinado pessoas e gerado bons resultados. “O pai do Bruce estava há três anos cobrando alguma posição do Estado com relação ao policial que matou o filho dele, mas não conseguia nada. Depois que nos unimos na Associação, em dois meses ele [o PM] foi afastado”, conta Sandra Sales, com a fala de quem iniciamos esta matéria. O fundador da Associação, Rafael Silva, explica que a mobilização é uma das maiores capacidades de resposta de uma população à vulnerabilidade: “Precisamos estar o tempo inteiro lembrando ao Estado que não nos esquecemos do que aconteceu e que exigimos providências”. Saiba mais! O funcionamento da Polícia brasileira está detalhado no artigo 144 da Constituição Federal: http://goo.gl/PzTsvZ Proposta de Emenda a Constituição (51/2013), de autoria do senador Lindbergh Farias: http://goo.gl/3gPJDV Proposta de Emenda a Constituição (321/2013), de autoria do deputado Chico Lopes: http://goo.gl/t7Jnht Comitê Cearense Pela Desmilitarização da Polícia e da Política no Facebook: http://goo.gl/IGLKPY
11
Profissionais do sexo Centro de Fortaleza 2012
EXPEDIENTE Este jornal é uma publicação do projeto Cacto realizado pela ONG Fábrica de Imagens - ações educativas em cidadania e gênero. Coordenação Geral: Marcos Rocha Coordenação Socioeducativa: Christiane Ribeiro Gonçalves, Tel Cândido e Taiane Alves
Design Editorial: Thyago Nogueira Jornalista Reponsável: Monique Linhares MTB JP 2630/CE Reportagens: Sarah Coelho e Monique Linhares Endereço: Rua Odilon Benévolo, 1133, Maraponga, Fortaleza - CE Contatos: (85) 34951887 / fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br www.fabricadeimagens.org.br