Fazendo nº93

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linhas férreas, túneis entre ilhas, ou apenas trilhos pedestres?

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jUnho 14

mensal

d i s t r i b u i ç ã o g r at u i ta

o boletim do que por cá se faz 1


93 Foi nesse ano que foi desmantelada a Base das Telemedidas que a França deteve durante quase três décadas na Ilha das Flores. “O escritor Urbano Bettencourt publica “Da Literatura Açoriana – notas (muito lacunares) para uma aproximação”. Emanuel Jorge Botelho edita o livro de poesia “Casos de Bolso”. O micaelense Luís Alberto Bettencourt lança o máxi-single “Cruzeiro”, editado pela Disrego. Rodrigo Leão começa a sua carreira a solo com o álbum “Ave Mundi Luminari” e refaz o tema “As Ilhas dos Açores”, versão que já tinha sido integrada no álbum “Existir” dos Madredeus. É criada a Tuna do Raminho, agrupamento musical com origem em cursos extra-escolares de música promovidos pela Junta de Freguesia do Raminho incluindo tocadores de viola da terra, violão, bandolim, violinos e instrumentos de percussão. O repertório é constituído por música regional açoriana e música popular. O Prémio José Afonso, instituído e patrocinado pela Câmara Municipal da Amadora, é atribuído ao álbum “Tinta Permanente”, de Sérgio Godinho. Os Gaiteiros de Lisboa aparecem na cena musical portuguesa liderados pelo antigo homem da gaita-de-foles nos Sétima Legião: Paulo Marinho. A ASA edita “Como um romance”, de Daniel Pennac, livro que apresenta uma dezena de «direitos inalienáveis do leitor» e transforma-se num objecto de culto para os programas de leitura. É o início oficial das obras da Expo98.

direcção

aurora ribeiro tomás melo

capa

hassim vaio mundo

colaboradores

ana alves ana lúcia almeida carlos alberto machado carlos bessa fernando nunes inês ribeiro joão manuel avelar joseph pires lewin luís rego pedro almeida maia

destacável

miratecartes fringe festival

amigos fazendo

maria noémia pacheco terry costa zumo massimo gelich

patrocinador

imar-dop

design editorial

capa

ambas as duas

hassim vaio mundo

paginação

tomás melo

revisão

Hassim Vaio Mundo nasceu na Galiza em 1989. Veio em 2010 aos Açores por acaso sem conhece-los e encontrou neles um meio ao que não foi preciso se adaptar. Elementos que aqui encontrou ficaram já a formar parte da sua linguagem visual.

sara soares

propriedade

associação cultural fazendo

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sede

Para quem visita a ilha de São Miguel é fácil reconhecer logo, uma paisagem predominantemente verde, salpicada por inúmeras espécies vegetais e espelhos de água em diferentes tipologias. Também possivelmente vejamos uns quantos cartazes publicitários de grandes dimensões sempre encostados às vias de comunicação rodoviárias. Com uma visão mais agudizada, entre outras muitas coisas poderemos ver algum Presépio de Lapinha, por exemplo em alguma montra. Podere-mos encontrar algo similar mas a uma escala maior se visitarmos a Casa do Arcano, museu situado na cidade da Ribeira Grande e que mostra o trabalho realizado pela Madre Margarida ao longo da sua vida. O que não poderemos ver é o eléctrico que a Junta Geral do distrito de Ponta Delgada tentou construir em 1913 e que projectava unir as vilas da Ribeira Grande, Ponta Delgada e Furnas por meio de um caminho de ferro.

O resultado foi um fanzine e recordação desdobrável composto por 6 páginas, com a reprodução dos documentos originais, e as ilustrações que criei baseando-me em toda esta informação, e que permitem percebê-la dum jeito mais amável e divertido. Editei 300 exemplares em português e 100 em inglês. Impressos com técnica offset em duas tintas e com duas combinações cromáticas diferentes. Todos eles assinados e numerados o que os converte também numa peça de colecção.

A capa para o Jornal Fazendo 93 que criei é uma amálgama de todas estas coisas. Ao mesmo tempo, é uma apresentação de outro trabalho realizado em 2013 como comemoração do centenário de esse eléctrico que nunca chegou a existir.

Para além disto, o projecto foi galardoado com o primeiro prémio na área de ilustração e banda desenhada da IV Mostra Lab jovem, e estará exposto proximamente nas ilhas de Faial, Terceira e São Miguel e também em Lisboa onde será possível conseguir um exemplar. Também o podem encontrar na Yuzin ‘Agenda Cultural de São Miguel e Santa Maria, na galeria do próximo festival Walk&Talk, na livraria Solmar e outras lojas de Ponta Delgada. Podem encontrar mais info visitando hasimvaiomundo.blogspot.com.

A semente do projecto foi encontrar-me com uma cópia original do projecto. Publicado em 30 de setembro de 1913 pela Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada, e escrito em Português (ainda que com a normativa oficial na altura), em Inglês e em Francês, junto com um mapa do trajecto sobre a ilha de São Miguel. Todos estes documentos, degradados pelo tempo, desprendiam um cheiro a velho e um ar mágico. Depois de lê-los, e reparar na originalidade da informação que por acaso tinha chegado às minhas mãos, decidi ilustrá-los. Reli várias vezes anotando lugares, ruas (algumas já com nomes diferentes) e outros pormenores dos 75 artigos que compunham o projecto. Procurei documentação gráfica sobre o passado de aqueles lugares e fui percorrer (por desgraça de carro) o trajecto que o eléctrico teria feito, fotografando tudo aquilo que permitisse identificar visualmente aqueles lugares em particular, e a ilha e cultura de São Miguel em geral.

Por último agradecer a Ana por me ter ajudado na construção deste ‘utópico’ presépio de lapinha e a Enric Enrich e Rui Soares por me ter ajudado com a fotografia. 2

rua conselheiro medeiros nº 19 — 9900 horta

periodicidade

mensal

tiragem

500 exemplares

impressão

gráfica o telégrapho

distribuição no faial

associação cultural fazendo distribuição no pico

mirateca arts distribuição na terceira

mah d i s t r i b u i ç ã o e m sã o m i g u e l

agecta registado na erc com o nº125988

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crónica

um eléctrico chamado utopia Porto de Ponta Delgada, 1913. - Minhas senhoras e meus senhores, neste século que agora começa há um sector que tem revelado um enorme potencial de crescimento, o turismo. A humanidade balanceada por romances como Robin Crusoe encontra-se ávida de descobrir locais exóticos, remotos, intocados e impolutos como os Açores. A Ilha de São Miguel, pelo seu clima privilegiado, pelas suas belezas naturais e pela sua posição geográfica, na linha de navegação Europa-América do Norte (que muito aumentará depois da abertura do canal do Panamá), está destinada a ser um ponto forçado de escala dos navios que transportam turistas entre o velho e o novo mundo. Apesar destas evidências o turismo nos Açores é carente, precisa de um grande investimento inicial, que pode vir a dar frutos a curto, médio e longo prazo. Isto nunca concorrendo com as demais actividades comerciais que compõem a base da nossa economia. Ou melhor dizendo, até concorrem, mas para o mesmo fim. Realço, a título de exemplo, a construção deste porto, frequentado por uma média anual de 506 navios, entre os quais grandes transatlânticos, num total de 80 mil passageiros. 80 mil pessoas que passam pela nossa terra, por um fugaz período, e pouco ou nada dela conhecem. Os transportes são deficitários e as distâncias ficam ainda maiores, inatingíveis. Pese embora, o relato dos audazes, daqueles que conseguiram, contra todas as odes, conhecer a nossa ilha dela têm só as maiores preces e elogios. De todas elas tenho que destacar as Furnas.

No Vale da Furnas encontram-se várias caldeiras com preciosas águas minero medicinais em enorme quantidade, caudais importantes de conhecido valor mundial para a cura de várias moléstias. Temos termas, banhos quentes ao ar livre, livres, acessíveis a todos. E depois temos os jardins. O do Marquez de Praia Monforte, o do Barão de Fonte Bella, o Parque Terra Nostra e o do António Borges. As flores, as plantas, as árvores, as águas, a situação, a disposição artística, tudo torna estes jardins verdadeiros edens, classificados por todos os estrangeiros, os tais audazes, que os têm visitado como os mais belos que existem. O objectivo parece-me simples e tangível. Temos de provir forma de conseguir transportar rapidamente os turistas até às Furnas. Mas não nos deixemos enganar pelo conceito de rápido. O rápido rapidamente é ultrapassado. Temos que o fazer de forma majestosa, com um grande empreendimento, uma grande obra. Como o Canal do Panamá, mas à nossa dimensão. Temos que oferecer a todo e qualquer turista a possibilidade de conhecer as Furnas, de forma, vá célere, mas ao mesmo tempo sublime, num crescendo emocional entre a partida de Ponta Delgada e a chegada às Furnas, com todas as maravilhosas paisagens que serão vistas pelo caminho. Este é o futuro. Meus caros concidadãos, não vos faço esperar mais. Apresento-vos o eléctrico de São Miguel. E nisto descerra sob um pano de cetim uma enorme maqueta. Era um eléctrico em miniatura, sobre uma ilha miniatura, com luzinhas, e barulhos. Acendia a luz em Ponta Delgada, seguia o seu caminho até às Furnas, acendia a luzinha, tocava o sino. O povo irrompeu num grande e emocional aplauso. Era uma obra progressista, fazia todo o sentido, tal como o turismo. Estava assim lançado o concurso público para a construção do eléctrico de São Miguel, unindo, numa primeira fase, Ponta Delgada Furnas, num percurso majestoso pela costa Sul. Foram dias de euforia e alienação, nos cafés, nos jornais, na praça, até que a vida continuou. Às vezes o homem sonha, mas a obra nunca nasce. É a utopia. Várias construtoras internacionais pareciam interessadas em participar no concurso, mas ao perceberem os prazos, as condições, as adversidades e o orçamento, simplesmente desistiram. Houve ainda quem enviasse engenheiros, topógrafos, electricistas mas todos chegaram à mesma conclusão, a entidade que lançou o concurso não fazia a mínima ideia do que estava a fazer, ou então seria obra de um louco. Uma utopia. Cem anos passaram. Lu í s R e g o

http://ilhadamae.wordpress.com/

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cinema

surrealismo e cinema na escola É mais ou menos consensual, nos dias de hoje, que o surrealismo foi um movimento artístico de entre guerras, que abrangeu a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema. Nasceu em França, durante a década de 1920, e teve expressão internacional, quer na Europa, quer noutros continentes. Para André Breton, considerado o papa do surrealismo, não se tratava de nenhum movimento, mas, antes, de uma nova maneira de conhecer a realidade. Uma realidade mais vasta e profunda, que passava pela exploração do inconsciente, dos sonhos, do maravilhoso e de tudo aquilo que escapasse aos ditames do racional, como a loucura e as alucinações. Onde o amor e o humor se aliavam contra a alienação racional a que o mundo estivera sujeito e que o conduzira até uma absurda e destrutiva guerra mundial. Definiu-o como um automatismo psíquico puro, isento de qualquer preocupação estética ou moral e sem qualquer controle exercido pela razão, pelo qual se expressa, verbalmente ou de qualquer outra forma, o real funcionamento do pensamento. Literariamente, os surrealistas usaram técnicas para facilitar o automatismo psíquico puro, como a escrita automática ou o cadavre-exquis. E desenvolveram o gosto pelo esoterismo, pelo insólito, pelo humor negro, pelo absurdo. Na pintura, serviram-se de técnicas como a colagem, a frottage, a grattage, a decalcomania, o object-trouvé e, no caso de Dali, do método paranóico-crítico. Quanto ao cinema surrealista, temos de ter em conta que, inicialmente, não lhes interessavam as possibilidades narrativas ou técnicas dessa nova arte, mas a sua capacidade para recriar os sonhos e as dinâmicas do inconsciente. Talvez por isso, consideravam apenas dois filmes, ambos do mesmo realizador, o espanhol Luis Buñuel: Un Chien Andalou e L’Age d’Or. Eram, como se depreende, muito selectivos quanto ao uso da etiqueta surrealista. E esqueceram-se de uma mulher, Germaine Dulac (1882-1942), que, em 1928, realiza um filme com cenários de Antonin Artaud: La Coquille et le Clergyman. Onde são notórios o imaginário e a linguagem surrealista. Refira-se, em jeito de parênteses, que só a partir de meados dos anos de 1970 se começou a recuperar o lugar de Dulac na história do cinema, fruto dos movimentos feministas, realçando-se também o seu papel enquanto criadora de cineclubes.

Artaud, que emprestou o seu génio poético ao teatro, dizia que num filme surrealista se encontrava uma mescla de erotismo, perversidade, crueldade, gosto pelo sangue e pela violência, obsessão com o horrível, dissolução dos valores morais, anticlericalismo, retrato da hipocrisia social, sadismo, espontaneidade, sombras do espírito, imagens cujo sentido pertence ao interior de cada um. Podemos, por isso, considerar que há um razoável número de realizadores pré-surrealistas e outros que, embora não se considerando a si mesmos como tal, fizeram filmes com características surrealistas. Entre eles, podíamos citar Georges Méliès (1861-1938), Abel Gance (1889-1981), Louis Feuillade (1873-1925), René Clair (1898-1981), Louis Delluc (1890-1924), Jean Cocteau (1889-1963). O surrealismo tornou-se, a pouco e pouco, sinónimo de estranho, absurdo, disparatado. E usa-se, ainda, muitas vezes com essa carga negativa. Mas recordemo-nos que, nas primeiras décadas do século XX, foi altamente revolucionário, abrindo portas à liberdade e à expressão do que é fundamente humano, além das possibilidades e dos caminhos que permitiu às artes e à literatura, cujos ecos são ainda bastante audíveis. Não é a hora nem o lugar de nos referirmos ao surrealismo em Portugal. Sobre o assunto, existe pelo menos uma obra de referência, A Intervenção Surrealista, de Mário Cesariny (2.ª edição, Assírio & Alvim, 1997), que vinte anos antes dera à estampa Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (Perspectivas & Realidades, 1977). Digamos apenas que, no âmbito das comemorações do ano Dacosta (19141990), foi com muito agrado que o Cine-Clube da Ilha Terceira se aliou a um grupo de professores da Escola Secundária Tomás de Borba para a exibição de um mini-ciclo de cinema surrealista na escola. Alunos e professores de vários níveis de ensino puderam assim ver e sentir a imagética surrealista. No que se revelou, segundo opiniões expressas no local, uma agradável surpresa, quer pela adesão – mais de 150 alunos – quer pelos comentários, de onde se destaca um, final, “bué de fixe!”. Seleccionámos três filmes: um clássico, Un Chien Andalou; uma curiosidade, a animação Destino e um trabalho colectivo dos dias de hoje, que mostra a força e atracção que o imaginário surrealista continua a exercer, Muzorama. Un Chien Andalou, que é, nada menos nada mais, que o primeiro filme surrealista, realizado em 1928, em seis dias, por Luis Buñuel, com argumento do próprio e de Salvador Dali, e exibido em Paris, no ano de 1929. A preto e branco e mudo, como todos os filmes da época, causou furor e escândalo, pelo modo como se desenrola a narrativa, que procura passar para as imagens os estudos de Sigmund Freud, particularmente A Interpretação dos Sonhos, mostrando a livre associação do inconsciente humano. Pejado de elementos bizarros e desconexos, com marcas da linguagem peculiar de Buñuel e um imaginário que se viria a tornar indissociável de Dali, Un Chien Andalou é um dos primeiros filmes a romper com a lógica narrativa e temporal e, também por isso, um filme que ainda é capaz de desassossegar. Exibiu-se, depois, a animação Destino, que resulta do encontro de Walt Disney e Salvador Dali em 1946, ano em que idealizaram e realizaram 17 segundos do filme. Filme que teve de esperar até 2003, para que Roy Edward Disney, sobrinho de Walt, encontrasse o projecto esquecido e o finalizasse, juntamente com uma equipa de animação dos Estúdios Disney. O resultado é uma animação poética e breve, de cerca de sete minutos, onde se detectam marcas desses dois universos, o de Dali e o de Disney. O mini-ciclo encerrou com uma animação recente, Muzorama, baseada no universo do ilustrador francês JeanPhilippe Masson (Muzo), produzida em 2008 por alunos da Supionfocom, em parceria com a Mikros Images e o Canal +. Trata-se de uma história que decorre num ambiente urbano, habitado por seres estranhos que se movem num universo concentracionário e autofágico, onde o absurdo, o engenho, o humor e o horror se entrecruzam de modo sugestivo. C ARLOS BESSA , D i r e c ç ã o d o C C IT

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música

angrajazz: vem aí o 16ºfestival do programa de rádio ao festival José Ribeiro Pinto leva já vinte e um anos de emissões semanais do programa de rádio “Os Sabores do Jazz”, na RDP Açores. Pura paixão. A paixão pela rádio remonta à infância deste Engenheiro civil de profissão de voz rouca, fazendo escolhas temáticas em cada emissão, incutindo chama nas combinações musicais e dos temas a ouvir, mantendo assim o contentamento de ouvir rádio há mais de duas décadas. Pura carolice é o que é. Cerca de sete anos depois da primeira emissão do seu programa de rádio, Ribeiro Pinto decidiu, juntamente com João Paulo Valadão, João Pedro Montalverne e Miguel Cunha, criar o AngraJazz, o festival de jazz na Ilha Terceira. Profunda dedicação, estamos em crer. Caso sério é que o cartaz anual continua a surpreender, mantendo uma legião de irredutíveis, continuando a crescer cada vez mais o número de fãs, fazendo estes questão de estar presentes em todas as edições. Deste modo, o Angrajazz é o encontro de todos aqueles que o seguem nessa paixão, não esquecendo ainda os que, mesmo sem dar conta do programa de rádio, sabem que existe anualmente mais um encontro de apaixonados por este género musical. Cada edição promove-se e sustenta-se sem grande esforço há mais de quinze anos e não será difícil afirmar que este é actualmente um dos mais prestigiados festivais de música jazz do país. Dentro em breve, estamos certos, ouviremos os anúncios e os ecos desse festival que ocorre no início do Outono na Ilha Terceira. José Ribeiro Pinto conta já no seu historial algumas histórias de registo. Por exemplo, pela sua boca é conhecida a narrativa de que Manuel Jorge Veloso, um dos maiores divulgadores deste género musical no universo português, envia todos os anos bons augúrios ao festival, ainda que nunca tenha estado presente no evento por motivos de ordem pessoal. É com muita pena por parte dele que não consegue viajar de avião e estar assim presente. Para lá da bela memória do músico Esbjorn Svenson que nem sequer chegou a pousar as malas no Hotel Caracol para que pudesse mergulhar na convidativa piscina salgada da Silveira ou ainda as nostálgicas memórias dos concertos de quem ouviu e viveu edições anteriores no pátio coberto do Museu de Angra do Heroísmo. Enfim, estas podem ser algumas das histórias que se ouvem anualmente contadas e repetidas pela voz de José Ribeiro Pinto, digno membro da Direcção da Associação Cultural Angrajazz e que todos anos se orgulha de trazer à Ilha Terceira nomes grandes da cena do jazz internacional. Muitos dos que assistiram na última edição ao monumental concerto do Trio Azul (Carlos Bica, Jim Black e Frank Möbus) bem que lhe deviam “jazzisticamente” agradecer com devida pompa e circunstância. Nesse curioso livro intitulado “Jazz na Terceira, 80 anos de História”, dos autores João Moreira dos Santos e António Rubio, está escrito na página 31: “A década de 40 marcou a verdadeira eclosão do Jazz na Terceira, que pela primeira vez se fez ouvir ao vivo através de orquestras militares, inglesas e de espectáculos realizados na base das Lajes por Glenn Miller, Frank Sinatra e Stan Kenton, ao

mesmo tempo que chegava pela rádio em filmes pontuados pelas grandes orquestras de Swing. Foi neste período que a distribuição discográfica ganhou reais contornos em Angra do Heroísmo, cidade onde se formou a célebre Olmmar Band”. Foi aqui, a meio do atlântico, que se projectou esse ensejo de ouvir tocar as Big Bands de Swing e aqui se lançaram as sementes para a divulgação do Jazz por toda a Ilha Terceira e arquipélago açoriano, concretizando actualmente um efectivo porto de abrigo para este género musical em território insular. O recente aparecimento da orquestra do Angrajazz é o reavivar de todo esse período áureo do Jazz na Terceira e que pode prosperar muito, muito mais. Outro exemplo, é o caso do Wave Jazz Ensemble, agrupamento musical que resulta do projecto pedagógico da orquestra Angrajazz e da enorme vontade dos seus membros em tocar regularmente, o que lhes vai dando assim uma maior liberdade criativa e consistência sonora enquanto banda. Os Wave são já um projecto com bases seguras no panorama musical açoriano e a precisar, no entanto, de correr as outras ilhas e, quem sabe, o circuito de concertos no continente, para que possa solidificar o seu crescimento. Recentemente deram um concerto no palco do Auditório do Ramo Grande com um convidado bastante especial: Claus Nymark. Esta banda ainda que se dedique essencialmente a tocar “standards” do jazz, apresenta temas dos seus membros (“Eclipse”, do contrabaixista Paulo Cunha, ou ainda “Una Bella Giornata” de Antonella Barletta, a pianista). Existem assim desde 2011 e já tiveram um momento de oiro quando tocaram na abertura da 15ª edição do festival Angrajazz, homenageando o pastor do verbo José da Lata, tocando o tema tradicional o “Sol”. Na última edição do Angrajazz, um pouco afastado dos palcos do CCCAH (Centro Cultural e dos Congressos de Angra do Heroísmo) e no interior do Museu de Angra do Heroísmo, foi possível assistir à exposição “A Festa do Jazz”, do fotógrafo Jorge Monjardino. A mostra ocorreu durante o período do festival na Sala António Dacosta, subsistindo as imagens nas paredes da sala revestidas pela força do preto e branco com fotos da grande maioria dos músicos presentes nestas quinze edições do festival. Algumas imagens, dado o seu simbolismo e intensidade, fazem já parte da memória visual do certame. O responsável do Angrajazz não tem dúvidas sobre a necessidade de apresentar em todas edições um cartaz cuidado e aprimorado, pois um bom cartaz é sinónimo de força na comunicação do festival para o exterior. E, como o Festival já inspirou vários fotógrafos, o cartaz deste ano recaiu sobre uma fotografia efectuada por Margarida Quinteiro, professora de profissão, à pianista Carla Bley, presença destacada da última edição e que terá sido registada num dos momentos mais vibrantes do concerto do trio americano. Aqui ficam, portanto, nesta edição do Fazendo as fotografias de Margarida Quinteiro, o real passaporte para o próximo Angrajazz e os grandes momentos musicais que estão para vir. fernando nunes

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Ufa…! Até que enfim chegou o 6 de junho! Segundo foi publicitado pela organização New Direction Fundação para a Reforma Europeia, e divulgado um pouco por toda a comunicação social: “os portugueses têm de trabalhar até 6 de Junho para conseguirem pagar ao Estado todas as suas obrigações fiscais”. Este parâmetro de comparação entre os países que constituem a União Europeia posiciona-nos em sétimo lugar perante os restantes 27 parceiros europeus, confirmando a tendência de gestão neoliberal da EU, ao demonstrar que o peso dos impostos sobre os rendimentos dos trabalhadores europeus aumentou este ano de 45,06% em 2013 para 45,27%, implicando para o nossos país um acréscimo, face a 2011, de mais oito dias para conseguirmos usufruir do nosso rendimento líquido. Durante a prestação do atual governo esse agravamento tem-se revelado contínuo e direcionado claramente para a redução do défice público pela via do agravamento de impostos. Curiosamente, ou talvez não…, esse agravamento de impostos é-nos imposto pelos mesmos que, chumbando o fatídico PEC-4, afirmavam convictamente que “os portugueses não suportavam mais impostos.” Enquanto o garrote tributário se aperta em torno dos contribuintes individuais e das pequenas e médias empresas, verifica-se um crescimento contínuo da dívida pública externa, que segundo os valores publicitados, já ultrapassa os 130% do produto interno bruto nacional, indicando que talvez o caminho não seja por aí. Felizmente para muitos, e infelizmente para poucos, ainda vamos contando com uns resquícios de eficácia da Constituição Portuguesa que, através dos “esconjurados” juízes do Tribunal Constitucional, lá vai travando alguns dos excessos com que este governo e os seus patrões internacionais nos vão presenteando ciclicamente. Não sendo este o momento politicamente correto (…porque nunca é!) para se questionar a União Europeia e os seus problemas basilares de assimetrias insolúveis e injustiças sociais crassas, assistimos um pouco por todo o lado à entronização desta como sistema ideal e perfeito. Num cenário ilusório em que todos os atores políticos europeus elogiam o seu “pequeno mundo” e nos cobram os avanços das últimas décadas, vamos sentindo generalizadamente um amargar de boca, ao ver reduzidas as nossas esperanças e ensombrar o nosso futuro pessoal e familiar. Talvez o combate não deva ser entre famílias políticas e maquinações de poder! Urge redirecionar as atenções para o campo das ideologias sociais, evitando populismos e extremismos fáceis, mas enfrentando com realismo e responsabilidade o já longo “monólogo” financeiro e de regime. Ultrapassado o 25 de maio, dia em que decorreram as eleições europeias, chegou a hora de cobrarmos, aos que por nós foram eleitos, tudo o que nos foi prometido em fase de campanha. Pa u l o V i l e l a R a i m u n d o

queixume do queixoso

uma efeméride para esquecer

O l d Gu y, p o r e n V i d e n e F e l i b a t a

No tempo de Homero a raça humana já era decadente: “hoje a terra só alimenta homens perversos e atrofiados”. Continuamos a não admitir que o estado de espírito da nação está abalado. Cabeças baixas na rua, ineficiência nos postos de trabalho, arrogância nos serviços públicos e desmotivação dos mercados. O queixume é a defesa mais usada. Se não há nada que possa ser usado na lástima, estranha-se. Ou inventa-se. Perguntar se “está tudo bem” raramente obtém a resposta do não-podia-estar-melhor. Mas não são os mercados que destroem a motivação, as economias não afocinham sozinhas, e os países nunca devassam os ratings no solipsismo: são as pessoas. Os mercados, a economia e os países são feitos de pessoas. Se o mal engoda o pérfido, e se o bom atrai o ainda melhor, por que se mantém a carranca? Que se mostrem os sorrisos. Daremos de beber a quem ainda vê sumo num limão podre e seco, a quem acha que este palheiro tem muitas agulhas para encontrar. Há sempre coisas boas a acontecer, nem que seja concluir isso mesmo. pedro almeida maia

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FRINGE FESTI V AL


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FRINGE FESTI V AL


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FRINGE FESTI V AL


literatura

montra de ler 40 x ABRIL POESIA E ILUSTRAÇÃO Poemas: Maria Quintans, Margarida Vale de Gato, Helder Moura Pereira, Raquel Nobre Guerra, Carlos Alberto Machado, Catarina Nunes de Almeida, Filipa Leal, António Poppe, Luís Quintais, Miguel-Manso, Fernando Luís Sampaio, Regina Guimarães, Paulo José Miranda, Manuela de Freitas, Vasco Gato, Inês Fonseca Santos, Joana Emídio Marques, António Cabrita, Nuno Brito e Miguel Cardoso Ilustrações: Ana Biscaia, André Carrilho, Afonso Cruz, João Fazenda, Alex Gozblau, António Jorge Gonçalves, Luís Lázaro, André Lemos, André Letria, André da Loba, João Maio Pinto, Luis Manuel Gaspar, Tiago Manuel. Mariana a miserável, Rui Rasquinho, Cristina Sampaio, Manuel San Payo, Nuno Saraiva, Gonçalo Viana e Pedro Zamith Edição: abysmo, 2014 (105 páginas). 40 Anos de 25 de Abril, como comemorá-los? Há quem pense em encher chaimites com cravos ou enfeitar a assembleia da república com laçarotes de retórica vazia e demagogia panfletária. Nós pensamos que a palavra de ordem “25 de Abril sempre!” continua a fazer sentido. E, já agora, “Fascismo nunca mais!” também. Por isso, achámos que seria necessário comemorar Abril com dignidade, de forma marcante e perene, e de imediato escolhemos como bandeira os ideais da revolução portuguesa, mergulhando de cabeça no nosso país de poetas, e não na areia. Ao invés de repetir os versos que deram alento ao povo e ajudaram a fazer cair o regime, optámos por actualizar os valores de Abril, sob o signo da Liberdade. Celebrando esse bem escasso. Liberdade ontológica, de expressão, de escolha, de pensamento. A liberdade que vai passando por aqui, mas cujo caudal tantas vezes não passa de um fio de água, constrangida e ainda por cima ameaçada de privatização... Por isso, convidámos 20 poetas e 20 ilustradores para que nos dessem um banho de Abril. Para que lavassem os restos do país salazarento, transformassem o pântano num mar bravo de ideias, fizessem muitas ondas, saltassem as margens da apatia e acabassem de vez com a seca do respeitinho, dos braços caídos, do nada a fazer. Que eles ensinassem ou relembrassem a nadar, para apanhar a maré alta que queremos que se levante. Foi este o resultado. E agora, ouvindo a música de José Mário Branco como inspiração maior, “troquemos-lhes as voltas, que ainda o dia é uma criança!” (Rui Portulez, do Prefácio: Um banho de Abril)

O CÃO DAS ILHAS Maria Conceição Caleiro Edição: Sextante, 2010 (272 páginas) “O Cão das Ilhas” desenrola-se nas ilhas do Atlântico, no porão de um barco, em Lisboa, no Havre, em Paris, numa sala de urgência do Hospital de Santa Maria e, de novo, em Lisboa e nas ilhas. Historia a várias vozes, de um amor, de sucessivos abandonos e de um crime, em que o erotismo, a manipulação e a crueldade se conjugam. “O Cão das Ilhas” foi Prémio PEN Club para primeiras obras. Maria da Conceição Caleiro nasceu e vive em Lisboa. Tem um Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas (Época Contemporânea) na Universidade Nova de Lisboa. Foi professora e lecionou Língua, Literatura e Cultura portuguesas em Paris. Entre 1997 e 2002, trabalhou no Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Liderou comunidades de leitores em livrarias como a Buchholz e a Fábrica de Braço de Prata. Escreve regularmente em revistas e jornais, nomeadamente Colóquio, Ler, Egoísta e Público. “O Cão das Ilhas” é a sua estreia literária. c a r l o s a l b e r t o m a c h a d o / c o m pa n h i a d a s i l h a s

artes plásticas

levantar do chão objectos pela cidade

ANA AL V ES

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R a d i c a l m e n t e MAH ! O Museu de Angra do Heroísmo assinalou este ano a Noite Europeia dos Museus e o Dia Internacional dos Museus com um programa de atividades subordinado ao tema MUSEU RADICAL. Seguindo as diretivas do Conselho Internacional dos Museus, que sugeriam que as celebrações destas efemérides privilegiassem o papel das coleções e dos objetos, enquanto promotores de ligações afetivas com a comunidade, o referido programa centrou-se na exploração de uma das mais emblemáticas peças da sua coleção do MAH, o barco de papel Autonomia, no qual Francisco Barreto Corte-Real foi da ilha Terceira à ilha de S. Miguel, precisamente de 17 para 18 de maio, em 1895, para comemorar a Autonomia Açoriana, concedida pelo governo nacional chefiado pelo micaelense Hintze Ribeiro. Assim, a partir das 10h00, e em resultado de uma parceria com os Portos dos Açores, decorreu uma pintura mural junto à rampa do Porto Pipas, inspirada na aventura do Autonomia. O esboço da autoria da artista plástica Phillipa Cardoso foi colorido com a ajuda de crianças e adultos, numa manhã animada em que os participantes iam alternando a pintura com os passeios em caiaque pela baía, que decorreram sob orientação dos monitores do Iate Clube de Angra do Heroísmo. A mais radical de todas as tardes da história do MAH, iniciou-se pelas 15h30, com uma dinâmica e divertida aula de zumba protagonizada por Sandra Coelho, a que se seguiram descidas em rappel pela fachada da Igreja de Nossa Senhora da Guia, coordenadas pela secção de escalada d’Os Montanheiros. Habitualmente um espaço sereno e apaziguante, o claustro do Edifício de São Francisco ganhou neste dia um dinamismo inaudito, ao acolher diferentes grupos de praticantes e entusiastas de artes marciais, nomeadamente o Clube do Jogo do Pau da Ilha Terceira, o Clube-do Shotokan de Angra do Heroísmo, o KickBoxing Club de Angra do Heroísmo e a Escola de Krav Maga Açores. Uma visita à reserva militaria, abriu o programa noturno, facultando aos visitantes a possibilidade de verem e manusearem algumas das armas que marcaram diversos momentos históricos e que integram o nosso imaginário coletivo. As festividades encerraram com o retomar do tema da viagem, mediante a projeção no adro da Igreja de Nossa Senhora da Guia da comédia musical As 7 Viagens de Jeremias Garajau, de Zeca Medeiros, que revisita, através da música, da dança e do teatro, algumas das mais importantes efemérides da História dos Açores. Com este programa de atividades, o Museu de Angra do Heroísmo foi ao encontro das diretivas do Conselho da Europa que, desde 2006, apoia a Noite Europeia dos Museus e do Conselho Consultivo dos Museus, que incentivavam a promoção de atividades que atraíssem audiência mais jovem a estas instituições, salientando que para tal se torna “prioritária a renovação dos métodos tradicionais de participação, para aumentar o interesse das pessoas pelos museus e vincular os visitantes aos diferentes tipos de coleções”. A n a L ú c i a A l m e i d a , S e r v i ç o E d uc a t i v o d o Mu s e u d e A n g r a d o H e r o í s m o

artes plásticas

padrão dos descobrimentos

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literatura

conto

aventuras de ezequiel

vinhas e epigeus

malaquias no paraíso

CANTO PRIMOGÉNITO madrugada O doce marulhar sussurrava, distante, hesitante, por entre acervos de lava negra, estendidos, abertos, como cabelos de uma ninfa, garras de um tal Deus. E a luz subiu, para aquecer as vinhas e epigeus. A encosta reluziu, espelhou o amor de Apolo, e as criaturas acordaram na verdade do seu colo.

(continuação do número anterior) Ezequiel deixou a confusão de formulários e etiquetas com códigos de barras no balcão de reclamações da SATA. Ao transpor o limiar entre interior e exterior passeou os olhos distraidamente por tudo: pessoas, carrinhos de malas, carros, parte da pista de aviação, estacionamento automóvel, edifícios, tudo sob uma neblina que lhe provocava uma sensação de abandono e de alheamento. Sentiu-se bem assim. «É aqui e agora que inicio a minha estadia no paraíso terreal. Seja isso o que for.», ouviu-se dizer, a meia voz, como se a neblina, que se adensava, aveludasse o timbre e a intensidade ganhasse ao alteio do tom. «Como se.» Ezequiel Malaquias aprenderá nesta ilha do Pico muitas lições sobre paraísos. Uma delas será esta: os momentos de satisfação paradisíaca, embora intensos, são brevíssimos; é preciso saber guardá-los como preciosidades, com a esperança de que um dia, por qualquer capricho (divino?), eles se juntem e harmonizem. Este momento especial para Malaquias, entretanto, sucumbiu espezinhado sob as passadas do energúmeno Idalécio. Malaquias sentiu sob os seus pés o solo a queixar-se. Evitou voltar-se. Sentiu o bafo de Idalécio e depois o seu vozear inconsequente. Escutou a sua voz mas evitou tentar decifrar qualquer intencionalidade. O homenzarrão falava, ria, e o bafo fétido que emanava da sua grota suja era agitado pelo esbracejar das gigantescas e grossas extremidades que eram os seus braços e mãos, empestava e empastava o ar. À beira do desmaio, Ezequiel Malaquias sentiu uma garra a apertar-lhe o braço direito e os seus pés quase que não tocaram o pavimento negro, levitou até uma viatura de nove lugares onde foi depositado no lugar do morto. Maquinalmente, colocou o cinto de segurança. A besta falante colocou a viatura em movimento e ronca caminho fora, a toda a mecha, expelindo sons e dando voltas acrobáticas ao volante que mais pareciam nas suas manápulas um donut pronto a ser devorado. As curvas atrapalhavam e ele atravessava-as impunemente. Malaquias, se estivesse em plena posse da sua consciência, teria gritado de terror e morrido de pânico. Mas não estava nesse estado. Por isso, a sua viagem foi um embalo entre cheiros, ruídos e cores que, juntos, jamais tinha visto ou sentido. À noite, quando de certo modo voltou ao seu estado normal, teve um vislumbre de ter percorrido os cerca de 40 quilómetros que separam o aeroporto do Pico da Vila das Lajes, sobre um chão negro e verde debaixo de um céu cinzento raiado de azul desmaiado. Quando o energúmeno bateu com a pata sapuda no travão da nove lugares e Malaquias quase saiu disparado através do vidro directamente para o seu quarto na Residencial, ouviu-se um estrondo genial que foi uma mistura de aço amolgado, betão desfeito e a explosão dos gases intestinais da besta. Idalécio saiu da viatura a desfazer-se em peidos e desculpas, estas dirigidas a Carla, a mulher do dono do estabelecimento, que saiu espavorida da recepção julgando que o vulcão se tinha mudado para o meio da residencial e decidido explodir ali mesmo. Vendo que os seus piores receios não eram fundados, e dando de caras com o esgazeado Idalécio, Carla avaliou mentalmente, e com rapidez profissional, os estragos causados na estrutura de betão da entrada da residencial, e despachou-lhe um grito «Idalécio, passa-me depressa as malas e desarranca rápido daqui!» Malaquias, ao ouvir falar em malas, desmaiou, bateu com a testa no vidro frontal e ficou a sangrar. Carla gritou de novo para o besunto «Fica quieto. Não faças nada! Vai, vai!» Qual Shreck de cauda verde-sujo entre as pernas, Idalécio, igualmente verde, sujo e bronco, saiu a arrastar os gases fedorentos e uma meia dúzia de frases entarameladas que tinham vagamente a ver com o facto de os lepras não gostarem nada dos da ponta da ilha. Coisa triplamente incompreensível, neste momento, para Malaquias: em primeiro lugar, porque estava desmaiado; em segundo, mesmo que não fosse o caso de ter os sentidos adormecidos, não decifraria aquela coisa parecida com um linguajar humano; em terceiro lugar e por fim, mesmo que estivesse de sentidos alerta e de posse de capacidade linguística para decifrar os sons e o seu sentido, não dominava o código simbólico que metia “lepras” e “pontas da ilha”. Assim sendo, Ezequiel Malaquias livrou-se de boa. Mas não se livrou de ir parar ao “hospital” da vila. Mas isso são outras desgraças.

A vinha baixa, rastejante, salivava toda a linfa, Os muros soltos, alinhados, cujas pedras refulgiam, agasalhavam os mistérios, os preciosos bagos. E as uvas vacilaram naqueles cachos vagos. Acalente a brisa os lagos, seus despidos alunos, do frio, da tempestade e dos azares importunos. CANTO SEGUNDO manhã A faina rasgou o chão, os suores lavaram os regos, e as botas deslustradas caminharam para os cestos. Madrugadores do labor, em sorrisos com sabor, afundaram mãos de calor nas ramagens do amor. E os cortes rasgaram os caules, a seiva debutante, e os cachos tombaram, soltos, naquele instante. Transbordados, subiram os vimes aos ombros, o peso para as costas. O sumo virgem e fecundo era diamante por lascar, bago de ouro por moldar. Gemas ou preciosidades, granjearam novo lar. E revolutearam todos, palpitaram em jubileu, na descida para o lagar, na apoteose de Morfeu. CANTO TERCEIRO tarde Ó ócio breve, Diabo da fadiga, do quebranto, vai p’ra longe, ou p’ra mais perto do Inferno! Deixa os homens trabalhar, despertos, atentos, dai-lhes alma, alento, e libertai esses tormentos! E a labuta regressou, alegrou os vinhateiros, o alimento contagiou e libertou os adegueiros. Eram todos iguais, quase irmãos, como se feitos do mesmo barro, ou até vinho do mesmo jarro. Prematuros de boa pinga que destilavam bagaço, fortes como aço, mais do que um grande abraço. E as lides regressaram, mas tão rápido passaram, que a noite e os astros do céu negro se apossaram. CANTO QUARTO noite Rara paz no amolar das navalhas, entre muralhas. Até ao lavar dos cestos se vindima, vê-se a uva. Por entre pipas gigantes, marcham, ao centro, sem levar a boca às bicas, invadem, adega dentro. Chegava a hora das pegadas no lagar, recheado, regado pelos risos de um momento encantado. “Este vai ser reserva!”, diz o da primeira pegada. Conhecia cada sabor, cada licor, qualquer vinho e aguardente. Ficava dormente, mas contente. Calcaram os bagos, riram, bailaram alegremente. E o suco precioso jorrou ali, verdadeiro, eis! Tirado o vinho, há que bebê-lo! Bebeis? Almeida Maia v e n c e d o r d o c o n cu r s o d a M i r a t e cA r t s , DiscoverAzores 2014

Pedro Filipe Almeida Maia é o autor dos romances “Bom Tempo no Canal - A Conspiração da Energia”, laureado com o Prémio Literário Letras em Movimento 2010, e “Capítulo 41 - A Redescoberta da Atlântida”. No género novela, escreveu “Nove Estações”, texto selecionado para a Mostra LabJovem 2014. Também participa como co-autor na série de livros infantis “Vamos Sentir com o Necas” e escreve crónicas na rubrica “Pavilhão Auricular” do jornal semanário Terra Nostra.

(continua) cARLOS ALBERTO MA C HADO

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escrita criativa parece indefinível – a definição de sentimentos e emoções. Depois, recorrendo à coletânea de contos de João de Melo – As Coisas da Alma -, levou os alunos à «expansão» de um fragmento da obra em causa. Finalmente, o último momento do ateliê foi reservado ao contato com a poesia: de forma mais ou menos teórica, com Octávio Paz e Nuno Júdice; de forma mais prática, com o escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Então, cientes de que a poesia é conhecimento, os alunos tiveram a oportunidade, mais uma vez, de se conhecerem através da escrita e, nesse contexto, algumas perplexidades houve – autênticas revelações. Produto das atividades desenvolvidas ao longo dos três dias são os textos que se apresentam, todos eles com pseudónimo, estratégia utilizada com o intuito de se operar a revelação mais genuína do «eu». O Coordenador da Biblioteca Almeida Garrett,

Nos dias 22, 23 e 24 de abril, na Biblioteca Almeida Garrett da Escola Secundária Jerónimo Emiliano de Andrade, foi dinamizado um ateliê de escrita, sob a orientação da Dr.ª Leocádia Regalo, professora com vasta experiência no domínio do desenvolvimento de produções escritas expressivo-criativas. A atividade, promovida pela escola, insere-se no Plano de Atividades, particularmente da sua biblioteca, e, entre outros objetivos, pretendeu-se que os alunos (turmas C e E do 12.º ano, num total de 50 alunos) fossem levados a produzir registos – os criativos – nem sempre fomentados com a frequência desejável ao longo do percurso escolar. É que, tendo em vista as provas finais de ciclo/ secundário, as tipologias textuais exigidas são mais «formatadas». Partindo de estímulos de ordem vária, a Dr.ª Leocádia Regalo, para além da leitura de documentos da natureza a que nos temos vindo a referir, «confrontou» os alunos com a respetiva produção escrita, numa fase inicial, com algo que

J o ã o M a n u e l Av e l a r

Textos produzidos no ateliê de escrita criativa dinamizado pela por Leocádia Regalo (abril/2014)

No momento em que entrei naquela aldeia, apercebi-me de algo diferente. Aquela aldeia, que era famosa pela sua montanha, tinha algo de místico, de poderoso. Não precisava de conhecer a religião ou a cultura local para perceber isso. Aquele era um lugar sagrado. A montanha fazia tudo mais misterioso e não me admiraria se fossem vários os deuses lá residentes. Aquela montanha era o meio de passagem entre este mundo e o outro. Não havia dúvida que havia algo muito sobrenatural ali presente. Toda a natureza que crescia naquele sítio mostrava a sua imponência e fazia-nos tremer perante a sua grandiosidade. Aquele sítio era o mais próximo dos céus, aquele que contatava diretamente com o além. Na base da montanha existe uma floresta muito densa em que foram várias as pessoas que escolheram repousar lá as suas almas. Ao redor da montanha há sete lagos em que os peixes que lá habitam crescem em proporção nunca antes vista, sendo sacrilégio a sua perda. Era nesta aldeia que monges treinavam para se tornarem mentalmente mais fortes e poderem fazer justiça à sua religião. Por toda a aldeia estavam dispersos vários templos, cada um com o seu próprio deus. Aquela aldeia transmitia uma paz e uma segurança como nunca antes experimentei. Aquele lugar, afastado da sociedade inovadora e do progresso, foi o mais fantástico que alguma vez vivi.

A melhor qualidade de Luísa sempre foi a sua enorme capacidade de sonhar. Ela é capaz de encontrar esperança e possíveis caminhos abertos quando todos os caminhos se parecem fechar. Apesar de já ter ouvido dezenas de “nãos”, de centenas de portas já lhe terem sido fechadas na cara e de milhares de desejos lhe terem sido arrancados pelo destino, ela continua a sonhar. Chamam-na de infantil, de irrealista. Mas não percebem que é essa esperança que a mantém com os pés bem assentes na Terra. Esta vontade de acreditar, este otimismo por vezes só lhe traz desgostos. Nem sempre o desenrolar da vida é como ela esperava ou algumas pessoas não reagem às situações da maneira que ela acreditava que o fizessem. Mas Luísa não se importa de pagar esse preço. Ela sabe que se deixasse de sonhar, enlouquecera. Sonhar permite-lhe enfrentar Presentes dolorosos, pela segurança de que o Futura vai ser feliz. É a única maneira que ela tem para ultrapassar os dias difíceis, sonhar é o seu esconderijo. São pessoas como ela, com esta capacidade de esperança e confiança em dias melhores que fazem o mundo avançar. Não se conformam com as situações desagradáveis, mas acreditam sempre na solução. É aqui que entra a chave do sonhar de Luísa, é que ela não só acredita num futuro melhor como também está disposta a lutar por ele. É por isto que eu acredito, ou melhor, que eu sei que ela há de ir longe, há de mudar o mundo dela, há de concretizar os seus sonhos.

Alice

Teresa

Certa noite, num escuro beco, passeava uma querida e inocente mulher a que toda a gente chamava de Ira. Ira tinha vários hábitos no seu trajeto de volta a casa, após o seu trabalho noturno como assistente no hospital. Mas, desta vez, sentiu que deveria adotar um novo caminho. À medida que esta o percorria, ia pensando em todos os seus problemas, desde os mais pequenos, até aos maiores, como a morte do seu pai que tinha sucumbido há exatamente três dias. Este acontecimento provocara uma enorme angústia à Ira, que não conseguia dormir desde então, já que ela ficava acordada de noite a trabalhar e de dia às voltas, no quarto; estava a começar a entrar em paranoia graças à falta de sono. Tudo o que mexia, para Ira, era uma ameaça para a morte a levar e deixar sozinha a mãe, que fazia três anos que estava fechada num asilo, devido a poderosos problemas mentais que provocaram o homicídio da sua própria irmã. Mas Ira amava a sua mãe na mesma, e sentiria uma imensidão de culpa se tivesse que a deixar enfrentar este árduo mundo sozinha, principalmente neste difícil momento. Para Ira, até o movimento de uma garrafa no chão, devido ao vento, a deixava a tremer de pavor. Mas quando esta passou no imenso e escuro beco, ela tentou ser psicologicamente forte e não inventar coisas, coisas quase impossíveis de acontecer, ela respira fundo e pensa em todos os momentos de felicidade que teve, e cria uma falsa esperança para o tratamento quase inalcançável de sua mãe, ela avança, um passo de cada vez, entrelaçando os seus cabelos louros, com três pingos de suor sobre a testa, questionando-se se seria a opção correta enfrentar os seus medos, sempre com um pé atrás. Ru i B a r b a s

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joseph pires lewin

entre ilhas

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rebus

cabeça de

solução do número anterior

Jogo enigmático em que letras e imagens são usados para formar uma nova palavra ou frase. Os algarismos entre parêntesis indicam quantas palavras compõem o enigma e o número de letras de cada uma. As letras fornecidas devem ser compostas com o nome das imagens para formar novas palavras. Deve ser lido da esquerda para a direita. Neste número introduzimos uma variante do REBUS: quando uma letra surge entre parêntesis deve ser subtraída/eliminada da palavra da imagem correspondente.

cravos vermelhos

LETRAS ( 6 + 9 )

letras do rebus (1+7+3+4+7+1+3+5)

solução no próximo número

93 3 um eléctrico chamado utopia 4 surrealismo e cinema na escola 5 angra jazz 6 uma efeméride para esquecer 6 queixume do queixoso 7 fringe festival 8 fringe festival 9 fringe festival 10 fringe festival 11 montra de ler 11 levantar do chão 12 radicalmente mah! 12 padrão dos descobrimentos inês ribeiro

13 vinhas e epigeus 13 aventuras de ezequiel malaquias 14 escrita criativa

charlie chaplin

15 entre ilhas 16 rebus 16 charlie chaplin

f a z e n d o f a z e n d o . b l o g s p o t. c o m

Escreve para o FAZENDO vai.se.fazendo@gmail.com

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