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88 Este é o número com que o Fazendo retoma as suas edições mensais e é também um número de sorte e bem-aventurança para a cultura chinesa. Nesse ano do século passado, o escritor micaelense, João de Melo, escreve: “Nuno Miguel sentiu-se levado ao contrário: o seu espírito saiu das horas diurnas de Lisboa para a noite pesada da província. Atravessou o país na diagonal, em companhia de dois homens sorridentes que durante três horas se esforçaram em vão por entender o seu discurso açoriano” e é o vencedor da edição do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance “Gente Feliz com Lágrimas”. Na freguesia de Gualupe, na Ilha Graciosa, dá-se um encontro de vinte e quatro tocadores de viola da terra que decidem tocar todos juntos as suas violas de arame. As eleições açorianas, que resultaram na vitória do PSD de Mota Amaral, obtêm a abstenção de 41,15%, ou seja, dos 180.214 eleitores recenseados votaram 106.049. Na arquitectura o prémio Mies van der Rohe, instituído nesse ano, é atribuído ao arquitecto português Álvaro Siza Vieira, com o edifício Borges& Irmão em Vila do Conde. O cinema mundial é obsequiado com os filmes “Dead Ringers”, de David Cronenberg, “Dangerous Liasions”, de Stephen Frears, Bird, de Clint Eastwood.
direcção
aurora ribeiro tomás melo
capa
ambas as duas
colaboradores
ana alves ana lúcia almeida andré nogueira de melo antónio de névada carlos alberto machado carolina furtado cristina lourido émilie beffara fernando nunes inês ribeiro joão stattmiller lia goulart mauro santos pereira micael nunes miguel machete miratecarts paulo vilela raimundo sandra cristina sousa sílvia lino victor rui dores
O Fazendo está vivo,
amigos fazendo
graças a todos.
maria noémia pacheco
O Fazendo, jornal comunitário, gratuito
zumo massimo gelich
terry costa
e independente sobre aquilo que por cá se faz
JOÃO DE MELO
editorial
regressa agora às ruas. E esse retorno foi possível
Gente Feliz com Lágrimas
graças a apoiantes privados, públicos, individuais
design editorial
ambas as duas
e colectivos… paginação
Após três anos de financiamento continuado pela
ambas as duas
DRAC (Direcção Regional de Cultura do Governo dos Açores), a Associação Cultural Fazendo viu
revisão
ser recusada a sua candidatura de 2013 para
aurora ribeiro
publicação do Jornal Fazendo. Duas soluções pareciam possíveis: a primeira era deixar o projecto
propriedade
por aqui, a segunda passar a uma versão livre
associação cultural fazendo
de custos - publicação exclusivamente on-line. Após milhares de exaustivas sondagens nas quais
sede
ambas as hipóteses foram liminarmente rejeitadas,
rua conselheiro medeiros
surgiu então uma última: a angariação de fundos
nº 19 — 9900 horta
entre os interessados no jornal - colaboradores, leitores, simpatizantes, instituições, empresas…
periodicidade
Mais importante do que a contabilização em Euros
mensal
do sucesso desta campanha é para nós a motivação que nos chega por ver tanta gente empenhada em
tiragem
garantir o futuro de um pedacinho de papel com
500 exemplares
tinta… Esperamos que o novo formato (já se sabe que mudamos todos os anos) agrade e que se nos
impressão
junte mais gente para enriquecer os conteúdos
gráfica o telégrapho
deste testemunho do que se faz e pensa nos Açores. A direcção
distribuição no faial
associação cultural fazendo
distribuição no pico
miratecarts capa
distribuição na terceira
ambas as duas
exec eventos
d i s t r i b u i ç ã o e m sã o m i g u e l
agecta
Joana Tavares e Cristina Viana, ambas Designers de Comunicação, têm trabalhado com diversas plataformas de produção cultural, estruturas criativas e clientes individuais.
registado na erc com o nº125988
Juntas desenvolvem estratégias de investigação e projecto específicas para cada desafio - profissional ou onírico, promovendo sociedades criativas com outros colaboradores. w w w. a m b a s a s d u a s . c o m
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este jornal comunitário, não-lucrativo e independente está a ser financiado pela comunidade de leitores, colaboradores e parceiros.
crónica do mês
olhando em redor
Quem ganha com o facto de os portugueses serem o s p i o r e s c o n s u m i d o r e s d e c u lt u r a d a U n i ã o Europeia?
Um inquérito vindo recentemente a público elaborado pelo Eurosat, demonstra que num universo de vinte sete países que constituem a U.E., é em Portugal que a participação da população em eventos culturais é menos significativa, equiparando-se apenas ao Chipre e à Grécia. Para esse estudo quantificaram-se comparativamente, e para uma temporalidade anual, dados tão diversificados como nº de livros lidos, idas ao cinema, ao teatro, a espetáculos de dança ou ópera, a visita de museus e/ou monumentos… enfim, caracterizando-se exaustivamente todos estes aspetos e deixando claro que (…em certos casos não existem coincidências!) os países do sul da Europa associam a sua situação politico-financeira frágil a uma maior indiferença para com os aspetos e produtos culturais. Perante estas conclusões, não podemos deixar de nos sentir incomodados pelo risco que a aculturação da nossa sociedade poderá acarretar para o nosso futuro coletivo. Pois, como é sabido, sempre foi mais fácil “manobrar rebanhos” que liderar cidadãos conscientes e cultos. Não quero com isto almejar a que toda a “polis” portuguesa se torne culta e interessada de um momento para o outro. Apenas acredito que a cultura será obrigatoriamente o mecanismo de valorização individual e identitária que, potenciando o alargamento das elites resultantes do desenvolvimento e valorização do mérito individual (e não das condições politico-financeiras do meio social, partidário, religioso ou outros), poderá contribuir claramente para o reerguer do nosso país, com vista à recuperação da sua independência e em defesa do seu direito inalienável de decidir (conscientemente) o futuro. Esta obrigação, contrariamente ao que sectorialmente se pratica no nosso país, não é exclusiva dos governos, nem das escolas, nem das famílias por si só, mas transversal a toda a nossa sociedade e missão de todos nós.
não podemos deixar de nos sentir incomodados pelo risco que a aculturação da nossa sociedade poderá acarretar para o nosso futuro coletivo.
Terá de assumir-se que, não sendo obrigatoriamente oneroso o acesso à cultura (veja-se a panóplia de eventos promovidos na Região, e um pouco por todo o território nacional pelos diferente governos [central, regionais ou autárquicos], bem como pelos numerosos e generalizadamente disseminados agentes culturais associativos) é obrigação de todos nós consumir esses conteúdos e incentivar o próximo a fazê-lo. Que essa obrigação cultural e formativa seja assumida por todos, como um dos mecanismos de recuperação nacional, é o desafio que vos deixo.
P a u l o V i l e l a Ra i m u n d o
3
por ali ainda hoje
teatro e cinema
permanece nas casas e nas
a ilha dos náufragos
memórias das pessoas essa
(L'Isola dei Naufraghi) de Lorenzo Brunetti
história rica de aventuras marítimas
A Ilha dos Náufragos (L’Isola dei Naufraghi) de Lorenzo
de pirataria e naufrágios tão recorrentes ao longo dos tempos, enunciando
Brunetti é um documentário sóbrio e intimista, com uma
a destruição do navio “Revenge”, exemplar da marinha inglesa bem como
visão muito particular da Ilha das Flores e a merecer toda
a inscrição numa pedra da ilha de um barco afundado e com antigas ligações
a nossa atenção. O filme germina enquanto documento
seculares à maçonaria. Episódio curioso é o que aborda o culto na freguesia
familiar, já que foi filmado e realizado por Raffaele Brunetti
dos Mosteiros à Santa Filomena, igreja erguida através de donativos do “pirata”
no fim do século passado, contou posteriormente com
António de Freitas, à altura traficante de ópio no oriente, tendo sido salvo pela
a montagem da sua companheira Ilaria de Laurentiis, tendo
armada inglesa no seu regresso às Flores, daí o seu tributo da edificação da
sido concluído e editado já neste século pelo filho do casal,
igreja e da devoção à santa da freguesia. Muito embora a Igreja não
Lorenzo Brunetti, todos eles ligados pela empresa familiar
o reconheça, a população dos Mosteiros continua praticante do seu culto,
B&B Films, ainda hoje em franca actividade.
com festa e romaria anual.
O documentário assume de imediato que estamos perante uma ilha longínqua, reconhecendo o desconhecimento
O objecto fílmico de cinquenta e dois minutos mostra-nos esta viagem sobre
e esquecimento a que foi votada a história da Ilha das Flores,
aquela que é a mais ocidental das ilhas do arquipélago dos Açores e o lugar
sendo esta desde os tempos das descobertas povoada por
mais extremo do continente europeu. O afastamento da Ilha das Flores
piratas e náufragos, necessitando por isso de ser contada
transformou esta terra insular de natureza ainda virgem num lugar propício
e revelada ao mundo inteiro. No período das descobertas,
à descoberta e curiosidade de histórias antiquíssimas. Com uma história rica
esta era a primeira terra que as naus avistavam na sua
e carregada de aventuras marítimas, a maior parte transmitida de forma oral
ILHA DAS FLORES
rota de regresso à Europa e por ali ainda hoje permanece
ou pequenas súmulas de historiadores locais, a ilha tem dentro de si um vasto
Açores, Portugal
nas casas e nas memórias das pessoas essa história rica
conjunto de memórias e demais narrativas que seria importante dar a conhecer.
de aventuras marítimas.
O documentário é neste caso, por si só interessante, pois faz revelações que pouca gente sabe, seguindo os passos debutantes e de espanto de Pierluigi,
A pergunta, no entanto, mantém-se: o que terá levado
acompanhando o seu périplo e a sua geografia de pertença desde os primeiros
Raffaele Brunetti a interessar-se por realizar um documentário
dias que ali aportou. O italiano, hoje detentor da Casa de Hóspedes Argonauta,
sobre a Ilha das Flores? O filme encontra-se, portanto,
transformar-se-ia num incansável depositário e tradutor de estórias florentinas,
dividido em capítulos e percebe-se desde o início que
para além de um verdadeiro promotor de trilhos e actividades de recreação
a principal razão é seguir o trajecto de Pierluigi Bragaglia,
da Fajã Grande e não só. O conhecimento, a fixação e transmissão de muitos
viajante e escritor, durante os seus primeiros momentos
acontecimentos florentinos deve-se em muito aos seus escritos espalhados
na ilha, o realizador irá percorrer com ele os recantos da ilha
por jornais e livros. Os autores do filme acreditam que os naufrágios, sinal
ao mesmo tempo que se irá descobrindo o passado recente
de desgraça e tragédia, resultaram sempre numa bendição para a população
e misterioso desta mítica terra a meio caminho entre Lisboa
florentina, aqui tão bem representada pelo habitante Félix. A bendição actual,
e Nova Iorque. A narração principia por situar a remota ilha
urgente e necessária para aquele território insular seria o atracar de um navio
açoriana, citando assim o “Timeu” do grego Platão para
do tamanho do Slavonia e que distribuísse centenas de famílias para habitar
reavivar o mito da atlântida, esse continente perdido no
e povoar o Lajedo, Mosteiros ou mesmo a Fajãzinha (74 habitantes e 7 crianças,
fundo do mar, salientando o provável conhecimento que
nos últimos censos). Ou então transformar aquelas correntes infindáveis
os fenícios e cartagineses teriam obtido das ilhas açorianas,
de água que abundam naquele espaço e cascatas em riqueza e actividade
indicando ainda a passagem histórica e aventureira por
económica rentável e sustentável para todo aquele território. A formosura deste
estes mares de Cristóvão Colombo a caminho das Índias
espaço insular assim o merecia.
e das Américas. A partir desse período, começam as estórias
F ERN A NDO NUNES
o meu charlot Eu despertei para o cinema com os filmes de Charlie Chaplin.
Desde então sei isto: em Charles Spencer Chaplin comédia rima com drama.
Deslumbradíssimo, vi, na velha casa de cinema da vila da minha infância, muitos filmes de Charlot, mas há três que
E hoje não tenho dúvidas: Chaplin é o grande génio do século XX. Genial
não esqueço: “O emigrante” (1917), “Uma vida de cão”
é, por exemplo, o discurso que ele escreveu para o filme “O ditador”,
(1918) e “O garoto de Charlot” (1921).
no qual o próprio, vestindo a pele de uma personagem, diz esta verdade tão vibrante e atual: “We think too much, and feel too little”. Estamos perante um
Menino e moço, eu finava-me a rir com as tropelias
criador, não um imitador. Foi ele que inventou a comédia burlesca e elevou
e as peripécias do Charlot dos filmes mudos: aquele seu
a pantomina a uma forma superior de arte. Com Chaplin aprendemos o bem
bigodinho cómico, aquelas calças informes, aqueles sapatos
e o mal, a justiça e a intolerância, o porquê do pontapé no rabo do vilão
desgastados, aquela bengala divertida. O Charlot dos
ou no traseiro da matrona… Com os seus “gags” geniais, ele fez a caricatura
tiques e dos trejeitos e que tinha aquela maneira de andar...
dos nossos ridículos, das nossas manias e atribulações, das nossas
O Charlot que era tudo e tudo fazia: vagabundo, fugitivo,
ambições e desesperos.
evadido, andarilho, atormentado, marinheiro, aprendiz, emigrante, dentista, bombeiro, músico, polícia, aventureiro,
Na rua, na trincheira ou no circo, o coração de Chaplin sangrou pelos infortúnios
enfermeiro, patinador, maquinista, porteiro… O que ele
do mundo, ele que foi um Quixote, um sonhador, um poeta. Ainda hoje não
não perdia nunca era a compostura e tinha sempre aquele
consigo ver o filme “Luzes da ribalta” sem que me comova até às lágrimas.
sentido muito apurado de dignidade.
Os filmes de Chaplin são de uma profunda humanidade e de uma imensa universalidade. Porque são filmes de todos os tempos e de todos os lugares
Mais tarde, pude apreciar essas obras-primas absolutas
e que, pelos séculos dos séculos sem fim, hão-de continuar a ser apreciados
que são: “A quimera do ouro” (1925), “Luzes da cidade”
enquanto houver gente carenciada de sonho, amor e ternura.
(1931), “Tempos modernos” (1936), “O ditador” (1940), “Luzes da ribalta” (1952), entre outras fitas do cinema falado.
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Victor Rui Dores
teatro e cinema
corpos (com) sentidos
Criação de uma peça de teatro a partir de histórias reais, recolhidas numa pesquisa sociológica sobre a problemática da violência doméstica. Violência doméstica é um termo em evolução, onde os atos e as vítimas não se fazem entender da mesma maneira segundo os atores e as percepções. Sucintamente, esse termo refere-se às violências físicas e / ou psicológicas que um membro da família submete a um outro membro da mesma família. Pode ser um homem ou uma mulher, ou mesmo uma criança. E segundo os países e as culturas, a vítima não vai ser reconhecida como vítima da mesma maneira. Em Portugal, a violência doméstica é reconhecida como crime público, o que significa que tem que haver um apoio jurídico, um sistema de proteção e uma investigação. É difícil de elencar realmente os casos de violência doméstica; só se podem mostrar estatísticas de estimativas. Na maioria dos casos tudo se confina ao interior das casas, é uma história de família, como se costuma ouvir.
O objetivo do meu estágio na Direção Regional da Solidariedade Social dos Açores era o de desenvolver um projeto ligado a esta problemática. Não sendo dos Açores nem de Portugal, não me permiti desenvolver qualquer projeto sem perguntar aos atores que trabalham nesta área que tipo de projeto seria interessante realizar. Foi-me sugerido fazer uma peça de teatro. Depois de múltiplas propostas quanto ao público que poderia estar interessado em trabalhar comigo neste projeto, a companhia de teatro Alpendre disponibilizou-se para levar a peça à cena. Durante as primeiras oito semanas de estágio saí com uma câmara e um microfone e conversei com pessoas na rua, no jardim, nos cafés, nas suas casas; tanto cidadãos anónimos, como técnicos ou mulheres vítimas. Eu queria entender como é que estas pessoas se posicionam perante a questão da igualdade de género. O facto de ser estrangeira facilitou muito o trabalho. As pessoas que pude entrevistar sentiram-se à vontade para me falar. Eu não vou ficar na ilha, logo o que eu ouvi partirá comigo no avião para França. Eu não pertenço a nenhuma família, a nenhuma casta, como se costuma dizer. Após os encontros que pude ter com as pessoas vítimas de violência doméstica, criei um texto para a peça. Tentei reconstruir o percurso daqueles e daquelas que saíram das suas casas de família porque a violência era o seu quotidiano e os seus dias não tinham mais sentido. Três histórias de vida constituem o coração da peça. O cruzamento destas histórias vai permitir a cada um a possibilidade de ver e entender.
Algumas mulheres disseram-me que se sentiram muito mais jovens, fisica e psicologicamente, depois de saírem do contexto de violência. A vida marca-nos e os nossos corpos são o primeiro desenho. Nós trabalhamos a partir das vozes reais. Das mulheres que encontrei; alterámos alguns aspetos, a fim de garantir o anonimato. Traçámos o percurso psíquico e humano destas três mulheres, que poderiam ser homens. Não falamos das crianças enquanto vítimas. Esta não é uma peça feminista. Também não é uma peça dramática em si mas um trabalho sobre formas de vida diversas e que ninguém tem o direito de julgar. Porque para mim, nos nossos percursos de vida conhecemos períodos mais ou menos longos onde somos sujeitos a fases difíceis. Não é uma questão de ter empatia. É uma questão de nos interrogarmos. De nos observarmos, a fim de não nos esquecermos de manter a autoconfiança, de não nos abandonarmos a ninguém. Não podemos esquecer que somos seres pensantes e que há, em cada um de nós, uma quota parte de responsabilidade quanto à nossa situação de vida. É verdade que certas escolhas não são fáceis de tomar. Nalguns momentos é mais difícil do que noutros, deixam-nos mais sujeitos a ser dominados e manipulados. A nossa cultura condiciona-nos mas podemos ultrapassar esse condicionamento se ela não nos subjugar. Podemos denunciar estas situações e não apontar o dedo às mulheres que têm que abandonar as suas casas porque os seus maridos as agridem. Podemos compreender que, se o casal de vizinhos já não se entende, não é simplesmente por causa da mulher. Podemos ultrapassar os nossos próprios preconceitos e guardar a nossa energia para outras coisas. Temos que preservar na memória que o nosso objetivo é o de sermos felizes. Nós e aqueles de quem gostamos. Não estamos aqui para fazer felizes os nossos vizinhos.
A relação que temos com os nossos pares, com a sociedade onde vivemos e connosco próprios nem sempre nos permite decidir a direção que daremos à nossa vida, fazendo uso pleno da nossa capacidade intelectual, emocional, social e cultural. Certamente muita gente dirá: todos temos a possibilidade de escolha. E outros responderão: todos temos a escolha em função dos nossos hábitos. Com todas as subjetividades salvaguardadas, nem todos temos a possibilidade de escolha.
Esta peça de teatro está focalizada em torno das vozes e do corpo. A cenografia é muito simples para deixar espaço a uma correspondência entre a palavra e o corpo. O silêncio tem o seu lugar. A caixa transparente com uma bailarina dentro pretende representar a nossa inocência, a nossa credulidade, tanto como esse corpo que se submete, que apanha, que aceita sem realmente dizer nada. Claro, às vezes o copo está cheio, mas o nosso interior é uma esponja real. Para mim, essa caixa é uma das partes mais importantes do nosso eu e aquela que tentamos imenso esconder debaixo de muitas camadas para poder esquecê-la, porque acontece que temos medo dela.
Este fenómeno não se limita a um grupo específico mas a todos: homem, mulher, criança, pobre, rico… podem estar, um dia, a confrontar-se direta ou indiretamente com essa realidade.
Estes corpos que guardam as feridas, estes corpos que captam o medo e a angústia, estes corpos que, por vezes, falam mais que a maior parte das nossas palavras. O nosso corpo não conhece a censura emocional.
teatro em (sua) casa
Acha que o teatro é caro? Que às vezes é longo e aborrecido? Que o obriga a sair do quentinho do lar e apanhar com o frio lá fora mesmo quando mora a 10 minutos da sala de espectáculos? Então temos a solução perfeita para si: Teatro a preço de jola, mais rápido que uma receita da Bimby e dentro da sua própria casa. “Desculpe? Em casa de quem?!” Da sua, leitor! Confuso? Passo a explicar: Nos dias 22 e 23 de Dezembro será apresentada uma peça de teatro cheia de pretensiosismo cómico na ilha do Faial. Digo “pretensiosismo” porque nada vos garante que tenha piada, “ilha” porque a peça poderá ser apresentada em qualquer casa das 13 freguesias. A escolha do local será feita a partir da venda de rifas (no valor de 1 euro) e posteriormente sorteadas para escolher assim o “palco” da dita peça. Fica depois ao cargo de vencedor convidar o público que quiser e se não lhe apetecer ter mais ninguém em casa, fazemos só para si. Caso não tenha a felicidade de ser o escolhido, pode sempre pedinchar a quem tiver tal sorte para assistir a este espectáculo. Para que não pense que haverá falcatruas e que no fim vai calhar na casa dos próprios actores e decorrer a porta fechada, o sorteio será realizado na Casa (de chá) no dia 19 às 18h30. Agora já sabe: quantas mais rifas comprar, mais hipóteses tem de ganhar! Lia Goulart
Para mais informações contacte — teatroaprenda@gmail.com
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Esta peça pretende falar daquele esquecimento, da falta de confiança e do medo dos outros; da comunicação entre os nossos corpos, os nossos males, as nossas palavras. É m i l i e B e ffa r a
teatro e cinema
varadouro ou a vida do caracol
é fácil deixar-se e n ca n ta r p o r a q u e l a fajã de clima ameno, quase tropical e dada a n o v o s a r r a s ta m e n t o s
Quem viu o documentário “Adormecido” de 2011 interessante e exaltante poema visual e sonoro à volta do Vulcão dos Capelinhos – sabia de antemão que alguma coisa de maior poderia estar em germinação. Por isso, assistir à sessão inicial de Novembro do cineclube de Ponta Delgada e, concretamente, à apresentação pública de “Varadouro”, só podia confirmar os melhores augúrios. “Varadouro” é o segundo filme de Paulo Abreu filmado em solo açoriano e novamente na Ilha do Faial, revelando desta feita uma descomunal sensibilidade na captação da pulcritude dos espaços insulares e dos sons da “natureza extrema” que habitam esta ilha e de que o arquipélago é pródigo. É claro que muitas das instigantes soluções videográficas do “Brel nos Açores”, espectáculo de Nuno Costa Santos, pertenciam já a Paulo Abreu, confirmando assim o seu sentido estético e o desalmado gosto pela experimentação, para lá do risco que as paisagens e os barulhos insulares lhe sugerem. Este documento fílmico apresenta somente dez minutos de contemplação dessa piscina natural, desde o azul do atlântico até às suas profundezas, e, na verdade, é como se estivéssemos deleitados na capital de veraneio faialense, em plena costa ocidental, acompanhados por ilhéus a banhos,
numa paisagem formada por rochas basálticas de lava incandescente e a memória de forasteiros de relevo que por ali passaram (Jacques Brel esteve lá em 1974, ou ainda sir Peter Ustinov e o escritor Mark Twain), acrescentando-lhe narrativas e ensejos pícaros com essa evocação. No fundo, tal como eles, é fácil deixar-se encantar por aquela fajã de clima ameno, quase tropical e dada a novos arrastamentos, à semelhança da vida do caracol, o popular tema musical açoriano cantado aqui pela excelsa voz do terceirense Carlinhos Medeiros. Este objecto cinematográfico contou ainda com a colaboração na realização de João da Ponte, conhecido cineclubista micaelense, tratando-se dum contributo desta dupla para o Doc´s Kigdom, seminário internacional sobre cinema documental realizado recentemente na Ilha do Faial. Por fim, “Varadouro” obteve os contributos solares e presenças mitológicas de Norberto Serpa, Tiago Afonso, Maria Emanuel Albergaria, Frederico Lobo, André Laranjinha, Sérgio Gregório, João Pedro Gomes, Tomás Melo e Aurora Ribeiro. E é bem provável que com a ajuda dos cineclubes, este postal do estio com sabor a documentário, seja exibido numa sala bem perto de si. fernando nunes
ciências e ambiente
economicamente inviável Crónica de uma ciência que não dá dinheiro
Trabalho em Biotecnologia Marinha. Estou à procura de compostos marinhos que possam ajudar a travar uma das doenças que mais afecta a nossa sociedade: o cancro. Este projeto, que nasceu de uma teimosia em trabalhar em ciência aplicada, cresceu e nutre-se com o apoio de cientistas, mais ou menos experimentados, que foram corajosos o suficiente para embarcar comigo nesta epopeia difícil, especialmente num lugar como os Açores.
os animais que vivem no mar profundo têm compostos com propriedades anti-cancerígenas?” Nomes de cientistas importantes que mudaram as nossas vidas por não patentearem as suas descobertas: Marie Curie, que isolou o rádio (ganhou o prémio Nobel da Química por isso) mas foi mais longe e desenvolveu o seu uso para as radiografias; John Salk, que fez a vacina da Poliomielite, o que fez com que em poucos anos se erradicasse totalmente a doença da América do Norte e Europa.
Nestas ilhas rodeadas de um mar profundo, passam barcos científicos grandes, cheios de novidades tecnológicas em que temos a sorte de podermos ir “à boleia” para recolher animais marinhos do fundo do mar. Mas por outro lado, estarmos no meio do mar não ajuda quando precisamos de trabalhar em laboratório com químicos especiais que não podem viajar de avião... podemos passar até 4 meses à espera que cheguem!
Cada pessoa deve trabalhar para o seu aperfeiçoamento e, ao mesmo tempo, participar da responsabilidade colectiva por toda a humanidade. O caminho do progresso não é rápido, nem é fácil. Marie Curie Podes patentear o sol? John Salk
Mas voltando ao título, porquê “economicamente inviável”? Eu explico: a grande maioria dos artigos científicos que li sobre trabalhos similares ao que estou a desenvolver chegam a esta brilhante conclusão: “descobrimos um composto maravilhoso para matar células cancerígenas. Mas... fazendo as contas à vida, é caro demais para que as companhias farmacêuticas queiram investir num medicamento com este composto.”
S í lv i a L i n o Este e outros artigos sobre Ciência e Notícias sobre Mar Profundo em http://blogmarprofundo.wordpress.com/
Como cientista que estou a estudar para ser e acima de tudo, humana, conclusões como esta assombram-me. E, se depois dos 4 anos de projeto, encontrar um composto que pode fazer mesmo a diferença no tratamento do cancro e for caro demais para produzir a uma escala mundial? Páro, porque não é rentável para uma companhia farmacêutica...? Isso não faz sentido na ciência. E se conseguíssemos composto suficiente para tratar com eficácia a população dos Açores...? A única coisa que deveria ditar a inviabilidade nestes trabalhos deveria ser se os estudos seguintes comprovassem que os efeitos secundários fossem piores para a saúde do paciente do que o efeito positivo no tratamento! Por isso aqui estou para lembrar: nem tudo pode ser quantificado monetariamente. A ciência não gera dinheiro mas sim conhecimento. Esse conhecimento, tem um alto valor e investir em ciência traz riqueza à região, ao país, e melhoria de vida a quem lá vive. Mas não se pode começar pelo final. Tem de se começar pelo início. E isso em ciência significa uma questão. Neste caso, é esta: “será que 6
música e dança
a pedra filosofal Na, na, naaa, na, na, na, naaa
Já vos aconteceu? No universo da música ligeira, popular
M i g u e l Ma c h e t e
e afins, quando ouvimos uma canção, mesmo que cantada na língua mãe, acompanhamos cantarolando sons que se
Pedra Filosofal
assemelham aos das palavras que lá estão. O que se diz, como se diz, fica para outra oportunidade, na naaa na na que daqui a pouco é que vem o melhor – se chega o refrão, parte propositadamente gerada para ferrar o lombo esquerdo das tolas, enchemos o peito de ar e aí vai disto que esta parte sei eu de cor. Esta coisa que acontece assalta-me o juízo volta e meia (até já saltou para as páginas do FAZENDO em Junho de 2011) e dizem os entendidos, que perante realidades semelhantes o melhor é deixar extravasar. Pronto. Acredito que a canção nos é (deveria ser) oferecida com uma condição: perceber-lhe as partes para desfrutar do todo, ou seja, se a queremos verdadeiramente temos que lhe ouvir o som, perceber o que nos quer dizer, e sentir a forma como se expressa. Injustamente, o parente mais pobre
O que se diz, como se diz, fica para outra oportunidade, na naaa na na que daqui a pouco é que vem o melhor
Eles não sabem que o sonho É uma constante da vida Tão concreta e definida Como outra coisa qualquer Como esta pedra cinzenta Em que me sento e descanso Como este ribeiro manso Em serenos sobressaltos Como estes pinheiros altos Que em verde e oiro se agitam Como estas aves que gritam Em bebedeiras de azul
desta balalaica é, como já insinuei, o texto (e o contexto, por
Eles não sabem que o sonho
arrasto) e por isso proponho-me e proponho-vos extravasar
É vinho, é espuma, é fermento
aqui, em cada edição do FAZENDO (já falei com os Fazendus
Bichinho alacre e sedento
e eles é que deixaram), com uma canção e a sua letra para
De focinho pontiagudo
que possamos quedar-nos quietos por uns minutos pairando
Em perpétuo movimento
sobre as palavras.
Eles não sabem que o sonho
Depois logo se vê o que acontece...
É tela, é cor, é pincel Base, fuste ou capitel Arco em ogiva, vitral, Pináculo de catedral, Contraponto, sinfonia,
P e d r a F i l o s o fa l ~ p o e m a d e A n t ó n i o G e d e ã o ,
Máscara grega, magia,
m ú s i c a e i n t e r p r e t a ç ã o d e Ma n u e l F r e i r e
Que é retorta de alquimista Mapa do mundo distante
Nos nossos dias, esta canção já lá vai. É antiguinha,
Rosa dos ventos, infante
sofre de “interventite” típica da época, o Sr. Manuel
Caravela quinhentista
não é da cena e o Sr. António enfim. Não é moderna vá.
Que é cabo da boa-esperança
E fala de uma coisa descabida porque o sonho não comanda
Ouro, canela, marfim
vida nenhuma a não ser que sejam por exemplo, créditos
Florete de espadachim
de sonho, PPRs de sonho, juros de empréstimo que só em
Bastidor, passo de dança
sonhos, declamados e gentilmente proporcionados pelo
Columbina e arlequim
capital amigo.
Passarola voadora
Mas deu-me para isto não sei porquê. Talvez a memória
Pára-raios, locomotiva
do meu pai a cantar-me estas palavras antes de eu
Barco de proa festiva
adormecer (pieguices). Talvez a constatação que perante
Alto-forno, geradora
o inevitável, isto é, igualdade, fraternidade, liberdade são
Cisão do átomo, radar
substantivos de uma língua moribunda, existam homens
Ultra-som, televisão
que se atreveram e se atrevem a cantar o sonho e logo
Desembarque em foguetão
desta forma. Inocentes, simplórios, tristes homens humanos
Na superfície lunar
que se servem das palavras para falar do sonho como uma
Eles não sabem nem sonham
coisa concreta, definida, qual pedra, qual ribeiro, como se
Que o sonho comanda a vida
de uma ave se tratasse. Mais, como se o sonho tivesse uma
E que sempre que o homem sonha
boca ávida, que lhe permitisse ultrapassar todo e qualquer
O mundo pula e avança
obstáculo! Não passa pela cabeça de ninguém (só pela
Como bola colorida
deles). Hoje não há quem rumine sonhos com tela e pincel,
Entre as mãos duma criança
arcos em ogiva, pináculos de catedral, sinfonias e máscaras
A NTÓNIO G EDEÃO
gregas. O mundo não é distante, submarinos não são caravelas e o cabo voltou a ser o das tormentas. O Arlequim, de florete partido, observa Columbinas na net e não sai dos
Na, na, naaa, na, na, na, naaa
bastidores e quanto ao Bartolomeu, sejamos sérios, padres cientistas em passarolas só quando ficamos agarrados a um pára-raios ou nos passa uma locomotiva por cima. A cisão do átomo nunca ninguém viu, o radar era óbvio, ultrasons não se ouvem, a televisão é a televisão e por alguma razão, nunca mais se ouviu falar de alguém que tivesse assentado pé na lua. E depois terminam o devaneio afirmando que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança? Por amor de deus. Parecem brincadeiras de criança. Desculpem-me os leitores. Prometo que a próxima não será assim. Ps: Boas escutas amigos alquimistas e até logo.
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literatura e sociedade
mãos de vime Manuel Morais é vimeiro de profissão. Há mais de meio século cria artesanato em vime e garante que já perdeu a conta às peças que lhe saíram das mãos. Podemos encontrá-lo, todos os dias, sentado no chão da garagem, a que chama “Museu do Vime”, em Santo Amaro do Pico, a trabalhar como se não houvesse amanhã. No rosto não lhe vemos os 84 anos de idade, nem nas palavras lhe encontramos queixumes de doenças e outros dissabores. Apenas nas mãos estão presentes, a olho nu, os longos e árduos anos de enlaçar o vime.
gente da minha terra
Quer chova, quer faça sol, mantém a porta aberta a ver quem passa, sempre pronto a receber visitas. Porque alia a atração turística ao rendimento artesanal, quando lhe entra um turista “porta dentro”, recebe-o como um amigo de longa data, mas nunca pára de laborar. Responde com paciência a todas as perguntas, como se fosse a primeira vez, quer o visitante lhe faça “gasto” comprando uma peça, quer não. Para quem nunca passou pelo “Museu do Vime” o que vai encontrar é Manuel Morais sentado sobre um pedaço de tábua, de pernas estendidas, sempre na mesma posição, horas a fio. À sua volta estão pedaços de vime que vai cortando e separando à sua maneira para acrescentar à peça que está a construir na hora. Junto à parede estão separadas, pela sua mão, algumas das peças que vai terminando: açafates, cestos para as vindimas, cestos de diferentes tamanhos de uma e duas asas, baús para guardar roupa, cadeiras de exterior, fruteiras e tantas outras.
© Mauro Santos Pereira
É homem de poucas ferramentas. As mais importantes, costuma dizer, são as suas mãos. Todos os anos é a mesma rotina: até dezembro, concentra todo o tempo para produzir o máximo de peças que irá vender durante o verão ou a respeitar possíveis encomendas. Depois, até abril, conta com a ajuda da esposa para tratar o vime que vão usar o resto do ano.
© Mauro Santos Pereira
Agora compram, mas quando eram mais novos iam cortá-lo, “mas a idade já não permite essas aventuras”, assume. Mesmo assim têm de retirar as pernadas (pequenas ramificações da planta) para depois formar molhos e cozer em caldeiros abafados. Este processo demora. “Não nos podemos distrair. A água não pode evaporar, senão os vimes secam.” Quando os vimes saem dos caldeiros têm de ser descascados, separados por tamanhos e colocados ao sol para secar.
Po d e m o s e n c o n t r á - l o , t o d o s o s d i a s , s e n ta d o n o c h ã o da g a r a g e m , a q u e chama “Museu do Vime”, em Santo Amaro do Pico, a trabalhar como
Manuel Morais também trabalha com vime cru. Esse é escolhido a dedo e metido dentro de um poço durante um mês a curtir. Lá para o verão é retirado descascado e trabalhado. Tudo o que Manuel Morais sabe aprendeu com o pai. “Esta coisa de entrançar e de tratar o vime não se aprende de um dia para o outro.” Inclusive nos últimos anos já lhe trouxeram peças criadas pelo pai para rematar. “Umas vezes são as pegas, outras são as dobradiças. Mas são peças de muitos anos. Fico espantado como é que ainda são usadas”.
se não houvesse amanhã.
Por isso, Manuel Morais tem como único pesar o fim da linha desta atividade na ilha do Pico, faltando quem queira aprender. Já ensinou a esposa, única pessoa que trabalha com ele, e já tentou ensinar outros, mas “ninguém quer aprender esta arte. Pensam que é um desperdício de tempo”. A verdade é que Manuel Morais fez e faz vida do artesanato. Assume não ser uma vida fácil, porque “é preciso trabalhar muito. Aqui, não se cumprem horários. Nós só apagamos a luz quando acabamos a peça. Tem de ser, porque o vime tem de ser moldado para ganhar a forma. “ Sa n d r a C r i s t i n a S o u s a
© Mauro Santos Pereira
concurso
v i t i v i n i c u l t u r a e m e s c r i t a e m ú s i c a O novo concurso de escrita e música DiscoverAzores 2014 tem como tema “Vinhas, Vindimas, Vinho”. Escritores e músicos nos Açores têm mais uma oportunidade para mostrarem os seus talentos neste concurso da MiratecArts que dá prémios aos vencedores, incluindo participação no Azores Fringe Festival 2014 (inclui viagem entre-ilhas se não reside no Pico e estadia por uma semana durante o Festival em Junho 2014) assim como um cabaz de mais de 200 euros de produtos da Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico incluindo o Lajido.
Qualificações: 1) O concorrente viver nos Açores e ser maior de 16 anos de idade; 2) Inscrever-se no projeto www.discoverazores.eu mandando biografia artística e contatos para a associação; 3) O texto ter no mínimo 50 carateres e no máximo 10 mil carateres em formato WORD DOC; a música original ser gravada com um mínimo de 2 minutos e um máximo de 5 minutos em formato mp3; 4) O trabalho ter algo relacionado com o tema “Vinhas, Vindimas, Vinho”; 5) Os trabalhos serem enviados através do email info@mirateca.com até ao dia 30 de janeiro 2014; 6) Na entrega do trabalho incluir na mensagem: nome, telefone e uma frase respondendo à pergunta “Porque participa neste concurso?”
Poemas, contos, músicas, basicamente qualquer forma de escrita ou música (com ou sem letra) é bem vindo.
Se tem algumas dúvidas ou perguntas por favor envie para: info@mirateca.com ou visite www.mirateca.com
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literatura e sociedade
natália correia: a feiticeira cotovia
montra de ler
NA BIBLI O TECA d a h o r t a
Fátima Soares (org.)
Gez Walsh
CALHETA DE NESQUIM.
(versão em português de Helder Moura Pereira)
Natália Correia: A Feiticeira Cotovia é o título da exposição itinerante que irá habitar a sala de exposições da Biblioteca Pública e Arquivo Regional da Horta, até dia três de janeiro do próximo ano. Levada a cabo pela Direção Regional da Cultura do Governo dos Açores no âmbito das comemorações do nonagésimo aniversário do nascimento de Natália Correia e do vigésimo aniversário da sua morte, esta mostra tem como pretensão dar a conhecer o compêndio polimórfico da concepção literária de Natália, algumas das suas obras pictóricas, bem como o seu arrojado papel na defesa de ideais humanísticos e da cultura, no circuito político. Não obstante, revela-se a revisitação da vida e obra de uma mulher açoriana de beleza extraordinária, dotada de inteligência e talento. Uma mulher à frente do seu tempo.
TERRA DE HERÓIS
Natália Correia, autora do poema que contempla a música do Hino dos Açores, é legitimada como uma figura de destaque no panorama nacional e internacional pela sua obra literária, contudo cultivou outros interesses não menos dignos de reconhecimento. Esta exposição desvenda-nos a sua protagonista. Natália é-nos desvendada como uma lenda. Foi poetisa, romancista, dramaturga, ensaísta, tradutora, conferencista, editora, deputada. Segundo Ana Paula Costa, “em qualquer um destes domínios lavrou e se afirmou, numa inquieta busca de uma verdade, de um sentido estético e ético que perseguiu toda a vida”. Na poesia, abraçou e evocou de modo simbólico e metafórico a figura da mãe, da ilha mãe e da mátria. Da ilha como repositório das memórias de infância pessoal, ligada ao sentimento religioso do Espírito Santo e associado à projecção profética do Sagrado. Utilizou a poesia como arma de luta contra a repressão de pensamento e criação artística. Na produção literária e dramática, firmou-se como porta-voz da mudança na destituição da credibilidade do Estado Novo e da Igreja. Natália reivindicou a liberdade. Na pintura encontrou a catarse de acontecimentos que marcariam a sua vida. A sua produção pictórica denuncia as influências dos movimentos artísticos vigentes – Cubismo analítico e Surrealismo. A seu tempo, na política viu nela o entusiasmo em debater-se pelas causas em que acreditava - “A minha causa é a causa de combater a extinção das causas. (…) O homem não pode aceitar passivamente ser apenas causado pela criação, ele tem de criar a sua causa que determine a sua acção superior”. Debateu-se pela causa feminina, pela defesa da cultura, pela salvaguarda do património, pela reivindicação dos direitos humanos.
A BORBULHA NO RABO. Edição da Junta de Freguesia
POEMAS TERRÍVEIS PARA MENINOS TERRÍVEIS
da Calheta de Nesquim, Calheta de Nesquim, 2013 (308 páginas).
Edição da Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2013,
«Calheta de Nesquim - Terra
colecção “do outro lado do espelho” (96 páginas)
de Heróis ateou em mim não
Entre o proibido e o autorizado, dos meninos bem
só o desejo de conhecer
comportados aos meninos terríveis, a linguagem
melhor este rincão da ilha mas
destes poemas revela um humor a dizer-nos como
trouxe-me, também, uma nova
não é preciso ter vergonha de quase nada. A versão
apetência para reler Dias de Melo
portuguesa do poeta Helder Moura Pereira recria
e confrontar a sua literatura
admiravelmente o original, com um humor muito
vernácula com as realidades
próprio, numa linguagem rigorosa e inventiva.
e valores etnológicos que, a partir do presente trabalho, tenho
O PAPALVO
vindo a descobrir. Estou convicto
Tou-me a ralar em ir pá escola,
de que não faltarão leitores
é qu’eu tenho uma cabeça que é do melhorio.
dispostos a experimentarem
Os profes não me ensinam népias,
nas páginas seguintes,
porque tenho uma cabeça maior do que o Rossio.
relativamente a este naco
Prefiro ficar em casa
de terra do Pico, o ressurgimento
a ver tv,
saboroso dos mais nobres
aí é que s’aprende o que faz falta,
sentimentos que povoam os
não é nos livros e outras pecarias
corações afeiçoados e saudosos
que são uma chatice pa toda a malta.
do seu lugar de origem.»
E quando os putos todos forem quescidos
(Terra Garcia, do Prefácio)
têm de fazer inzames, e depois acabam a escola e começam a fazer planos pó futuro.
Poetisa/Pitonisa; Cartase Pictórica; Obras Malditas e Paladinas das Causas Humanas são os subtítulos que estruturam os conteúdos referentes à exposição. É aqui que assistimos, que nos posicionamos como espetadores que somos, e nos deleitamos a presenciar as memórias, as utopias, os pensamentos, o verbo de uma criatura de génio que carimbou o seu marco na história. É aqui o repositório das obras da Natália. Aqui, são reunidas algumas obras da artista, objectos pessoais e documentação: o testemunho da vida e obra da Natália, e do contexto social, cultural e político da sua época.
Uns vão pá univessidade, outros vão trabalhar, cá o artista não, vai ficar sentadinho a ver tv porque não é o papalvo qu’eles são.
c a r o l i n a f u r ta d o
Alexandre Borges O BOATO. INTRODUÇÃO AO PESSIMISMO Edição da Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2013, colecção “transeatlântico” (64 páginas) «Uma sinopse é uma promessa eleitoral. Uma declaração de amor eterno. O candidato numa entrevista de trabalho. O agente imobiliário vendendo a casa. A candidata a Miss Mundo falando do sonho de salvar as crianças de África. É o melhor de nós, em poucas linhas – a perfeição que não resiste a algo maior do que um affair. E não há qualquer mal nisso – desde que feito entre adultos. Esta é a sinopse d’ O BOATO, uma introdução ao pessimismo em 187 aforismos. Ou desaforismos. Entre Deus e um moinho de café.» (Alexandre Borges).
Manuel Paulino Costa U-BOATS NOS MARES DOS AÇORES. BATALHA DO ATLÂNTICO (1939-1945) Edição da Associação de Defesa do Património da Ilha do Pico, 2012 (122 páginas). A obra resulta de um «trabalho louvável de minuciosa investigação histórica e de importante consulta», segundo o jornalista Rúben Rodrigues, e relata a luta pelo controlo dos mares perpetrada pelas flotilhas de submarinos alemães e aliados, ocorrida durante a batalha do Atlântico, dando ainda um forte contributo para compreender a viagem fatídica do submarino alemão U-581, que se afundou na costa do Guindaste – Mirateca, após uma luta com destroyers ingleses. Carlos Alberto Machado Companhia das Ilhas
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literatura e sociedade
o que se faz no MAH No M u s e u d e A n g r a
O Museu de Angra do Heroísmo congratula-se com o refazer do “Fazendo” e conta fazer-se da casa. Neste número, faz a sua apresentação e, a partir de Janeiro, dará conta do que fez e irá fazer a cada mês.
O que se Faz no MAH Nos seus quase 65 anos de existência, o Museu de Angra do Heroísmo
Museu Júnior: considera igualmente o público infantil, compreendendo
forjou uma identidade, em que a preservação da memória se associa
um conjunto de ateliês lúdico-pedagógicos vocacionados para crianças não
a processos dinâmicos de construção de aprendizagens e cruzamento
integradas em grupos escolares e, por isso, organizados em horário não letivo
de expressões culturais.
e durante o período das interrupções letivas.
Detentor de um magnífico e variado espólio, o MAH tira partido da riqueza
Museu Familiar: destina-se a grupos organizados, integrando oficinas
e multiplicidade do seu acervo e do carater aprazível e amplo das suas
e espetáculos de natureza cultural que implicam uma colaboração entre
instalações, através de um programa sistemático de ações culturais de natureza
crianças/jovens e adultos.
eclética, que, inspirando-se nos conteúdos temáticos das diversas exposições, aproveita as sinergias disponíveis a nível local e regional, de forma a dar
Museu Radical: apela ao público jovem com interesses e motivações que
resposta às necessidades e interesses dos diferentes perfis de público.
à partida parecem distintas das ofertas passíveis de serem disponibilizadas por um Museu e que é chamado a comparecer no mesmo, mediante a participação
São cinco as grandes áreas de incidência de ação do MAH, definidas a partir
em eventos de natureza marcadamente alternativa, em termos artísticos,
de diferentes faixas de público que visa congregar e servir:
musicais ou desportivos.
Museu Educativo: abrange a grande área de utentes do Museu, ou seja,
Museu Aberto: direciona-se para um público adulto e indiferenciado,
o público escolar, englobando os Jardins de Infância, as escolas do 1.º ciclo
integrando iniciativas de espectro abrangente que, aproveitando as sinergias
ao Secundário, as escolas profissionais, os programas de educação especial
existentes, fazem do Museu um centro de confluência do pulsar da própria
e para adultos e ainda a Universidade. O caráter heterogéneo deste público
comunidade em que se insere.
implica que sejam criados guiões de visitas orientadas adequados ao nível de ensino, englobando necessariamente, no que respeita às faixas etárias
Nestas circunstâncias, o MAH FAZ-SE um lugar de preservação da memória
mais baixas e ao ensino especial, jogos e atividades expressivas que facilitem
e um espaço de conhecimento e de fruição, ao serviço do bem-estar
a perceção de novos conhecimentos e criem uma vinculação afetiva ao Museu,
e do desenvolvimento da comunidade em que se insere.
entendido como um espaço regrado mas aprazível.
Ana Lúcia Almeida
na minha ilha fazendo ligações
http:// servicos.sram.azores.gov.pt/naminhailha/ ou escreve no google “na minha ilha”
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literatura e sociedade
caboverdianamente Quando questionamos: Quem sou? Quem somos nós? De entre várias outras, a resposta que persiste teimosamente é esta: Nós somos aquilo que amamos.1 Na verdade não passamos incólumes pelos caminhos. Seja por acidente ou pela(s) bússola(s) que nos guia(m), não passamos pelo extramundano dos dias sem que a perplexidade nos confronte com uma leitura que excede o campo visual, os limites que se estabelecem como horizonte.
As insularidades que formam a região da Macaronésia foram os pilares, as plataformas, por onde se estabeleceram as pontes atlânticas transcontinentais. A sua ocupação e povoamento deram-se por razões geoestratégicas, e essa vocação não deve ser menosprezada ao olharmos de frente para a nossa contemporaneidade, para as nossas similitudes.
O Museu de Angra lançou-nos o mote Cabo Verde, Insularidades. E aceitamos o desafio partindo da questão ou do ancoradouro com que iniciamos estas linhas. A estrutura foi concebida em quatro sessões, 1.ª A História Socio-Identitária e a Cultura, 2.ª As Línguas Caboverdianas: O Caboverdiano e o Português, 3.ª A Literatura e a Poesia, 4.ª A Música e a Língua Cantada, seguida duma degustação Gastronómica. E o nome de batismo resultou da apropriação do Caboverdianamente, construção, meu amor. 2 Da sua aglutinação, mais propriamente. Cada uma das sessões apresentou, com necessária densidade e tanto quanto possível, uma proposta de leitura abrangente, mas onde não poderia deixar de estar presente a sublimação poética, um sucinto textual que permitisse estabelecer e transmitir o motivo, a password de entrada, para as tertúlias que se desenvolveram de forma franca e participativas. Diremos que foi possível deambularmos pelos temas com entusiasmo, sem nunca esquecermos a cientificidade que lhes é inerente. A imprensa escrita na Terceira dedicou atenção às sessões, divulgando de algum modo o seu conteúdo.
Temos por princípio que o ilhéu vive num grande navio-escola, não nos acobardamos com o mar aberto: é onde nos sentimos abençoados pelos deuses de Penates. Falamos de um ente que se entregou ao mar alto, à tensão harmónica dos cabos, ora laços ora rosnando, à mercê duma vida e da alma que se não amarra ao cais. Estes são os utensílios que nos permite ter a pretensão de reconstruir a modernidade. Partilhar simboliza a oferenda, um gesto primordial, que as ilhas açorianas celebram com ênfase na religiosidade das suas festas! Cabo Verde não é uma terra de abundâncias. Ao longo da nossa história temos sido marcados pelo espectro da carência. A nossa verdadeira riqueza é de cariz imaterial. A alma caboverdiana alicerça-se fundamentalmente na perseverança, na irreverência ou inconformismo com que encaramos as dificuldades, a persistência na abordagem dos desafios. Alicerça-se numa espiritualidade que nos legou como herança que da desesperança poderemos semear a esperança, que da tristeza cultivamos a alegria. Somos crentes de que é possível, com o exercício da humildade, vindimar nos atos a nobreza dos sentimentos. E se a partilha é ofertar o melhor de nós, a alma caboverdiana é, quiçá, a nossa maior oferenda. Eis o que verdadeiramente partilhamos.
Assim nasceu e se fez o Caboverdianamente, tendo presente que a pluralidade é o conceito que pode de certo modo moldar o nosso tempo, e que a essa representação mental subjaz, sem dúvida, os contactos culturais e o encontro com o Outro. Foi neste contexto, o da partilha e do encontro, que apresentamos esta breve introdução à Cultura do arquipélago que deu as coordenadas ao Tratado de Tordesilhas (a 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão…), a Macaronésia mais a sul, o ponto mais ocidental da África Insular. Foi com este pretexto que fizemos uma viagem pelas correntes que ditaram o lançamento dos grandes encontros transcontinentais realizados a partir do século XV, as correntes oceânicas do Atlântico Norte que definem o Mar de Sargaços. E ancoramos no seu limite sul, lembrando que os Açores é o seu limite a norte. Em ambos o mar marca a sua presença de forma inequívoca. Soberana.
Sage é aquele que da retidão traça a prumo uma linha de conduta que vale apenas o valor da alma do Homem (é tudo o que se lhe pode retirar!): - Que a erosão cumprirá o seu propósito na proporção do tempo que habita o tempo… A n t ó n i o d e Néva d a
1 Nós somos o peso dos nossos amores, Santo Agostinho. 2 Do poeta Oswaldo Osório.
um chá no jardim objectos pela cidade
A N A A LV ES
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crónica
percurso subaquático Aqui está a baía. E além os mergulhadores, de pé no cais. A luz vem a partir das seis, alastrando pelo Monte Brasil. A seguir aparece o sol, do lado da cidade, evapora o orvalho, aquece a água. Às oito é o esplendor no Porto de Pipas, a hora em que o dia promete. O mar, lugar grande e salgado, fica só “sendo”, “ser” é a sua actividade. Em dia azul, sem vento, de fatos de mergulho a fingir pinguins, cinco personagens distraidamente atentas submergem com o intuito de passear no único parque arqueológico subaquático do país. Neste magnífico “museu” (criado em 2006), calcula-se que tenham ocorrido mais de 90 naufrágios, desde 1552. Muitos dos navios afundados ainda não foram identificados, assim como continuam desconhecidos inúmeros vestígios: fatias de barcos, maquinaria e carga diversa; testemunho da importância estratégica de Angra do Heroísmo ao longo dos séculos. Estão assinalados três sítios de mergulho (diurno e nocturno), com bóias-pirilampo, cujo acesso pode ser feito pelo Clube Náutico: - Cemitério das Âncoras (entre os 22 e os 32m de profundidade) – encontram-se registadas trinta âncoras de vários tipos de embarcações, a partir do séc. XVI. Estes ferros derivam de erros de ancoragem, cometidos por pilotos não familiarizados com as características do fundo vulcânico da baía ou de manobras quase sempre desesperadas das embarcações em dificuldades que, na iminência de um naufrágio, cortavam as amarras, em busca de protecção no mar alto. Com essa manobra, contavam escapar aos perigosos ventos de Sul e Sueste, uma combinação conhecida localmente como “vento carpinteiro”, assim denominado por lançar contra a costa os navios cuja madeira era reaproveitada na construção de edifícios na cidade de Angra após naufragarem - “Run`her” (70m de comprimento) – barco a vapor Confederado, que naufragou em 1863, devido a um erro de manobra do seu capitão. No contexto da Guerra Civil dos EUA (1861-1865)
esta embarcação fazia parte de uma frota de quatro furadores de bloqueio, que carregavam equipamento destinado à montagem e colocação de minas navais. - “Lidador” ou barco do sal (78,67m de comprimento) – vapor brasileiro que naufragou em 1878, transportando passageiros e carga em geral. Vindo do Brasil, fez escala no Faial onde entraram emigrantes açorianos; à vista da cidade de Angra do Heroísmo lançou âncora, começando a operação de embarque de carga. Na noite de 6 de Fevereiro o temido “vento carpinteiro” provocou forte temporal que levou o navio a encalhar. Os náufragos foram salvos mas não as bagagens de passageiros e tripulantes, nem a carga. João de Vasconcellos Correia e Ávila acolheu, na sua própria casa oito mulheres e dezanove homens; o prelado da diocese abriu uma subscrição pública para auxiliar as vítimas. Ao mergulharmos sem truques, como um lírio ou um cachalote, com tudo o que temos nos pulmões, assoma-nos uma calma mágica, uma alegria fatal, uma coragem salgada. Só podes fazê-lo durante dois minutos? Muito bem, quer dizer que aquele é o nosso lugar durante dois minutos. Para uma grande baleia aquele é o seu lugar durante vinte minutos, para uma anchova aquele é o seu lugar durante um ano, parca diferença! Entretanto, é a essência que justifica a vida.
cena uma coisa extraordinariamente bela e terrivelmente perigosa: a euforia. Dizem os médicos, os que estudam estas particularidades. Eu chamo-lhe a nossa parte de Deus, e qualquer coisa do seu Ser em todo o lado e em todas as coisas. Ou então, conforme os humores, a nossa porção de anarquismo. Ora, quando estamos lá em baixo pelos doze metros, e já se passou um bom minuto, temos a impressão de sermos verdadeiramente uma peça do mar, uma peça provisória que só por vontade muito firme pode deixar de sê-lo, porque já nada nos impele para cima, para a terra e o ar; mas um impulso enfeitiçado e alucinatório empresta-nos as asas de uma raia e leva-nos devagarinho, ainda, mais fundo, até à outra terra, ao continente de baixo. Há uma explicação fisiológica, mas a questão não é essa. O que se sente é que se é feliz e infinito, totalmente feliz, absolutamente livre. Temos ainda um minuto, cinquenta segundos em contagem decrescente. Oh, somos apenas água, o corpo enfeitado de panos e borrachas arrefeceu o bastante para deixar de captar a diferença de temperatura. O céu de ar dentro dos pulmões imersos já não faz bem o seu trabalho para nutrir o cérebro de consciência. Flutuamos noutro tempo, os peixes não nos evitam nem fogem: sabem que somos do mar; sempre me espantei com isto, lá em baixo.
Inspirar onze ou doze litros de ar é obra, é-se na realidade, fisicamente, diferente. Não só se é mais leve, mas é-se de certo modo subtilmente maior. Internamente o efeito dos pulmões insuflados de ar é muito mais que uma mera sensação: é consciência do imponderável, o mar por dentro.
Invariavelmente, alguém em qualquer sítio dentro ou fora de mim dá uma pancada decidida nas barbatanas que eu levo nos pés e o meu corpo inicia a subida. Sem pressa, com a mágoa de deixar para trás o nosso átomo de Deus e a nossa veia de anarquia.
A tendência do corpo-balão pleno de ar para voltar à superfície só é relevante nos primeiros metros, depois a pressão da água cria um equilíbrio perfeito e o esforço da descida é quase nulo. A reserva de ar nos nossos pulmões, rarefeita em oxigénio, combina-se com algo segregado pelas glândulas, e cria uma mistura semelhante a uma droga. É nesta altura que entra em
Celebrar a beleza das coisas e aceitar que nos contagie; às vezes, é só uma maravilha, este brilho de silêncio e luz. Apetece voltar a brincar no Parque Arqueológico Subaquático de Angra do Heroísmo.
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cristina lourido
J o 達 o S tat t m i l l e r
olhares da gente
artes visuais e arquitectura
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conto
o grande limalha «Enriquece à custa dos néscios e depois humilha-os, ostentando a tua riqueza!»: foi o que o Grande Satanás proclamou e só há que obedecer-lhe. Fiel aos ensinamentos demoníacos, o acólito Limalha dá o bom exemplo. Aliás, ele é mais que exemplar, é quase a Lei Satânica em pessoa. Com a ajuda de bebidas traiçoeiras, ditos espirituosos e retórica demagógica, engana os “irmãos” da terra, cuidando que os mais velhos sejam os mais enganados – a fraqueza da velhice causa-lhe inigualáveis arrepios de prazer. Quanto mais os engana, mais cresce o seu pecúlio. Não fora o que desperdiça em festins libidinosos – para os quais cativa os mais jovens, com feitiços e mezinhas – e hoje seria o diabrete mais rico da região. Aliás, por causa da sua enorme cobiça e do seu louco esbanjamento de riquezas, os seus pares não o suportam e estão constantemente a armar-lhe ciladas. Por isso, é ver o diabrete Limalha sem eira nem beira, de uma moradia para outra, quase um diabo nómada. Todavia, ele pouco se rala com isto. Com a riqueza arrancada aos mais pobres comprou máquinas diabólicas, máquinas brilhantes e potentes. E, como sempre se lembra dos ensinamentos de Satanás, a sua ambição cresce desmesuradamente. Almeja comprar máquinas rolantes revestidas de ouro, ultra-potentes, velozes como o raio diabólico, capazes mesmo de atravessar os oceanos. Por agora, contenta-se
com o que de melhor fabricam os seus irmãos teutónicos. Mas chegará o tempo em que a máquina real oriunda da Grande Ilha dos Nevoeiros será dele – nem que para tal tenha que vender todos os templos do Demónio! Para um diabo como ele, é fácil alardear roubos e riquezas em terras pobres. Vivesse ele em terras de abundância e o prazer de roubar e vilipendiar seria bem maior. Aqui, apenas exibe máquinas e bazófia; rouba e estupra os mais velhos, engana e embriaga os mais novos – e assim é feliz na sua vida demoníaca. Ah, já nos esquecíamos, Limalha tem um sonho secreto: quer ficar na história da terra como O GRANDE CALADOR – nome advindo da cal com que cobre os cadáveres das vítimas; ou O GRANDE DESBOBINADOR, alusão clara à velocidade com que “desbobina” pelas estradas com o intuito de atropelar os velhos descuidados. GRANDE será, com certeza! Envolto em chamas violentas e gases sulfurosos, o Grande Satã ri com gosto das façanhas do seu mais querido diabrete, o Grande Limalha! Ca r l o s A l b e r t o Ma c h a d o
artes visuais e arquitectura
cabelos e s t a n ã o fo i p o d a d a n o s a ç o r e s
jonny glover
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artes visuais e arquitectura
desenhos recentes
Exposição Ilha Terceira: MARCOS OLIVEIRA
A “viagem” que hoje vos proponho baseia-se em três conceitos fundamentais [em período de hipervalorização dos trípticos (alusão à venda “faraónica” do trabalho de Francis Bacon por 106 milhões de euros)].
Dragoeiro, 2011
Reconhecimento / Parcerias / Contemporaneidade Esta provocação positiva desafia-vos a visitar a exposição coletiva intitulada Desenhos Recentes / Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, da autoria de vários artistas portugueses e oriunda do seu próprio espólio, realizando-se no âmbito do vigésimo aniversário da sua abertura e que estará presente na sede social do Instituto Açoriano de Cultura, ao Alto das Covas, em Angra do Heroísmo, de 13 de dezembro de 2013 a 31 de janeiro de 2014.
PEDRO SALGADO Dragoeiro-o-outro, 2011
Com o objetivo de reconhecer e divulgar o exemplar trabalho desenvolvido pela Casa da Cerca ao longo de duas décadas, associa-se o IAC ao vasto conjunto de ações culturais que homenageiam o trabalho relevante que vem sendo desenvolvido desde a liderança do pintor Rogério Ribeiro (seu primeiro diretor) até ao presente (desta feita já sobre a direção da Drª Ana Isabel Ribeiro). Nunca será demais referir o trabalho essencial para o concelho de Almada e para a região onde se insere, na divulgação de temáticas culturais, dirigida a diferentes escalões etários e sociais, que abrangendo um vasto leque de interesses, potencia e valoriza a sociedade envolvente.
SARA SIMÕES Longa vida ao dragoeiro! 2011
Esta parceria dá corpo a um projeto claramente assumido de incentivar a consolidação de uma abrangente rede de agentes culturais, que independentemente do seu estatuto público ou associativo, contribuam para a divulgação de temáticas culturais, potenciando a valorização dos seus públicos e da sociedade em geral.
PEDRO VAZ Dragoeiro, 2011
O conjunto de peças que constituem a exposição permite-nos questionar sistematicamente a noção de contemporaneidade dos seus criadores, divulgando o seu trabalho e arrastando-nos para um múltiplo diálogo entre eles. As obras em exposição são da autoria de Ruth Rosengarten, Domingos Loureiro, Filipe Franco, Rosário Forjaz, Sara Simões, Marcos Oliveira, Pedro Salgado, Pedro Saraiva, Pedro Vaz, Nádia Torres, Cristina Ataíde, Jorge Martins e Fátima Pinto. JORGE MARTINS
Desassosseguem-se pois, e visitem-na!
Sem Título, 1982
P a u l o V i l e l a Ra i m u n d o
Acervo da Casa da Cerca
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açores
charlie chaplin
LETR A S ( 5 )
inĂŞs ribeiro
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