Vence quem sobrevive

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VIDA

fronteiras da aventura

Vence quem

sobrevive As corridas com obstáculos como arame farpado, fogo e fios elétricos atraem milhares de competidores no mundo – e matam alguns

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Flavia Yuri e Felipe Germano

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o ato da inscrição, o aviso é claro. Você pode morrer ao participar da competição. Por isso, os organizadores decidiram ser explícitos no documento por escrito: “Há risco de morte por afogamento, por ferimentos causados por calor e por frio, por ferimentos causados por veículos, por mordidas e ferrões de animais, por ataque cardíaco e por envenenamento”. Há outros riscos. O documento lista apenas os mais importantes. O corredor precisa assinar embaixo deles antes de participar das novas modalidades de corridas de obstáculos, que viraram febre lá fora e já chegaram ao Brasil. Essas corridas em nada lembram o esporte olímpico com corredores atléticos pulando cavaletes brancos, num ginásio bem organizado. O número de obstáculos é maior: pode chegar a centenas. A variedade também aumenta. No lugar de cavaletes brancos, há campo de arame farpado, piscina de gelo, cortina de fios elétricos, muros altos e chão em chamas. Como em qualquer 84 I época I 16 de junho de 2014

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corrida, o objetivo é chegar na frente (e vivo). A maior parte dos corredores fica feliz apenas por finalizar o percurso. Há pouco mais de cinco anos, esse esporte era desconhecido. A primeira corrida do gênero foi criada na Inglaterra, em 1987, a Tough Guy. Foi considerada uma gincana excêntrica por mais de 15 anos, quando surgiram concorrentes. A maior delas, a Spartan Race, surgiu em 2005 e hoje está em 14 países. O Wall Street Journal conta 250 empresas de corridas desse tipo no mundo. Spartan Race, Tough Murdder e Warrior Dash são as maiores. Cada uma promove várias provas em diferentes lugares. No Brasil, três empresas entraram em operação no fim do ano passado: Xtreme Race, Iron Race e Black Trunk Race. Há vários tamanhos de competição. De maratonas com 42 quilômetros de extensão a corridas de 5 quilômetros. Todas têm em comum os obstáculos. O objetivo é fazer o corredor desistir. Na Tough Guy, dois terços dos 7 mil corredores que iniciam cada prova a s

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Fotos: Steven Todd/Stockpix.eu/Other Images, Sergei Bachlakov/Xinhua Press/Corbis, Ian Walton/ Getty Images, Michael Regan/Getty Images, Michael Regan/Getty Images,Alistair Linford/REX

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sem medo de sofrer fotos feitas pelos próprios atletas mostram as dificuldades das provas. 1. Cortina de choques elétricos 2. arremesso de lanças 3. mergulho em alçapão de lama 4. Corrida de 4 km com cruzes 5. salto sobre chamas 6. Queda na lama 7. Piscina de gelo 8. Campo de arame farpado 9. Pirâmide humana 10. Competição na água 11. saltos em plataformas móveis

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fronteiras da aventura abandonam antes do fim. As premiações da maioria são simbólicas. Poucas, como a Spartan Race, pagam em dinheiro. O prêmio máximo pago até hoje foi de US$ 15 mil. O perfil dos competidores varia tanto em idade quanto em ramo de atividade. Há profissionais de todos os ramos, adeptos ou não de atividades físicas. Muitos eram sedentários até ter de se preparar para a corrida. A maioria dos corredores são homens. Curiosamente, o ranking geral da prova mais disputada, a Spartan Race, é liderado por uma mulher, a americana April Dee. April é veterana de guerra e tem apenas um problema com os homens com que compete: “São muito largos. Tenho de pedir licença para ultrapassá-los”. A mais velha das duas filhas de April, Leilani, de 10 anos, diz que se juntará à mãe nas provas em breve. Algumas corridas permitem participantes a partir de 14 anos, com autorização dos pais. April diz que deixará. Quem vê o estado dos participantes que terminam as competições e conhece o histórico das corridas não entende por que alguém se submete a esse tipo de desafio. Seis pessoas já morreram nessas corridas entre 2000 e 2012, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Alguns por afogamento, outros por ataque cardíaco e até por exaustão. Apesar disso, a quantidade de corredores só aumenta no mundo todo. Questionados sobre o que os atrai para uma roubada dessa dimensão, a resposta mais comum é o bem-estar com a sensação de superação. Os participantes entoam uma espécie de mantra: só é possível conhecer os próprios limites ao ir além deles. É também um jeito de as empresas venderem a competição. “Não é só uma corrida. É um caminho para se tornar uma pessoa melhor”, diz Joseph Desena, da Spartan Race. “Enfrentamos nossos demônios durante a corrida. Isso muda sua vida”, afirma a atleta April. Há maneiras mais filosóficas de encarar as provas. “A corrida é uma metáfora para a vida, que é, também, uma sucessão de obstáculos”, afirma o brasileiro Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia na Universidade de Dartmouth, nos EUA. “Sou mais feliz depois que comecei a competir nelas.”

Os desafios da corrida

Alguns dos obstáculos mais comuns e perigosos das provas

Piscina de arames

Poça grande de lama coberta por arame farpado. É preciso se arrastar rente ao chão para não se ferir

Os risCOs de Cada desafiO AFOGAMEnTO FRATuRAS QuEIMAduRA CORTES dECEPAMEnTO ChOQuE ELéTRICO hIPOTERMIA

Pirâmide humana

uma pirâmide humana é formada para chegar ao topo do muro. quando a maioria está em cima, é necessário puxar os que restaram embaixo

Corrida de toras

É preciso cortar e carregar grandes toras de madeira. A atividade pode ser individual ou em grupo

Natação sem ar

uma piscina de 20 m é coberta com uma grade e deixa poucos centímetros para os participantes respirarem

Muro em chamas

O objetivo é pular um muro de 1,20 m com uma barreira de fogo na parte de cima. O corredor cai numa piscina de lama

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Por cima e por baixo

Série de paredes que obriga o corredor a rastejar, pular e transpor aberturas no meio do obstáculo

Muro escorregadio

A favorita do criador da Spartan Race, Joseph Desena. É a escalada com cordas de uma parede escorregadia

escorregador em chamas

O participante desliza num escorregador que termina em chamas e cai numa vala funda de lama

Mergulho no gelo

Piscina elétrica

Os competidores têm de rastejar por uma superfície de lama, para desviar de fios eletrificados, pendurados a poucos centímetros

Só completa a travessia quem nada e mergulha numa piscina cheia de gelo

Ilustração: Samuel Rodrigues/éPOCA Fotos: Glow Images, Bruce Bennett/Getty Images, Sergei Bachlakov/Xinhua Press/Corbis, picture alliance/ StockPix/Other Images, InS news Agency Ltd./REX/Glow Images e picture alliance/StockPix/Other Images

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Os que encaram as provas como desafios físicos gostam da quebra da monotonia em relação às outras competições. “As corridas de obstáculos testam nossa capacidade de forma criativa”, afirma Angélica Martins Jensen, empresária de São Paulo. Ela participa das provas da Xtreme Race, uma das corridas brasileiras. O corredor e treinador brasileiro Cesar Curti descreve a variedade de terrenos. “Uma corrida ocorreu no campo de treinamento do Exército. Outra, num parque aquático. Nunca sabemos o que nos aguarda”, diz. Curti venceu o reality show americano The amazing race, em que duplas passam por várias provas numa corrida que atravessa países. Diante das mortes de alguns competidores e das lesões de outros, os médicos alertam para os perigos desse esporte. Cortes e escoriações, no pique da adrenalina, podem passar despercebidos. Inflamam se passarem muitas horas expostos. Há corridas com duração de 24 horas a quatro dias. Há riscos mais graves. Um deles é conhecido dos atletas de triatlo. É conhecido como rabdomiólise, lesão muscular causada pelo desgaste excessivo que pode levar à morte. “O tempo da prova expõe os competidores a alta taxa de degeneração muscular. A destruição celular é tão grande que o rim não consegue filtrar o sangue e pode parar de funcionar”, afirma Ricardo Munir, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. O cansaço extremo também pode acirrar problemas de saúde já existentes. “Doenças latentes, que normalmente não apareceriam, podem se desenvolver quando o corpo é levado ao limite extremo do desgaste”, afirma Munir. Qualquer paciente de doenças preexistentes, como cardíacos e diabéticos, deve conversar com seus médicos. Para os diabéticos, é um desafio equilibrar os níveis de insulina durante exercícios que consomem muita glicose, por tempo prolongado. Injetar insulina nas coxas (uma prática comum) pode ser perigoso. A absorção nessa área é mais rápida numa corrida, e isso pode causar hipoglicemia. Os riscos que esses corredores enfrentam não são apenas externos. Podem ser letais. u 16 de junho de 2014 I época I 87

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