MENTE ABERTA
Vale um Oscar?
Os atores famosos de Hollywood agora são estrelas das séries bilionárias de videogames Felipe Germano e Nina Finco
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rganizações das Nações Unidas, Nova York. A sala lotada de líderes e representantes mundiais está no escuro, feixes de luz iluminam apenas um homem no centro do palco. Zoom. O homem, facilmente reconhecível, é Kevin Spacey. “Mudei minhas prioridades, de lucros para política”, afirma. Ele se apoia sobre o púlpito e continua: “Estou aqui para resolver os problemas do mundo, que começam com vocês”. O diretor dá um sinal para o fim da cena. Em seu monitor, não se vê o Spacey engravatado que se via na tela. Ele está com uma roupa de mergulho preta, cheia de pontos prateados. Leva nos ombros uma armação que coloca uma câmera em seu rosto. O cenário é apenas uma sala branca. O ator não está numa gravação de House of cards ou de um filme. Agora é o vilão de Call of duty: advanced warfare, um videogame lançado mundialmente para este Natal. Spacey é o mais recente exemplo de ator consagrado em Hollywood a ser digitalizado. O uso da digitalização de atores não é um recurso novo. Vem evoluindo desde 1915, quando a rotoscópia – artifício com que animadores criam desenhos baseados nos movimentos captados em vídeo – foi inventada pelos irmãos Fleischer, nos Estados Unidos. A técnica encantou Walt Disney, que empregou o método em Branca de Neve e os sete anões, de 1937. Demorou mais de seis décadas para que a tecno-
logia evoluísse. Em 2002, o filme O Senhor dos Anéis – As duas torres estreou a tecnologia digital, chamada motion capture. Enquanto o ator Andy Serkis interpretava o medonho Gollum, seus movimentos eram capturados em tempo real por um computador. Dois anos mais tarde, em O Expresso Polar, o filme inteiro foi feito com essa técnica. Tom Hanks aparece em versão cartunesca. Claro que nem sempre dá certo. A lenda de Beowulf, de 2007, exibiu a mesma técnica com resultado sofrível. Games já usavam atores, mas de maneira rudimentar. Tudo era feito apenas para captar movimentos. Em 1992, Mortal kombat tentou trazer aos games de luta um pouco mais de realidade. “Tínhamos uma tecnologia nova que permitia filmar pessoas e colocá-las nos jogos”, diz Ed Boon, cocriador da série. Em 1996, jogadores de futebol foram digitalizados para o Fifa 97. A primeira participação hollywoodiana de sucesso se deu no campo da dublagem. Inúmeros atores já emprestaram suas vozes para personagens de jogos como GTA e Fallout. Entre os nomes estão Samuel L. Jackson, Liam Neeson e Neil Patrick Harris. Isso não era o suficiente. Os produtores de videogame perceberam que poderiam usar as mesmas técnicas do cinema para aperfeiçoar os jogos. O primeiro exemplar de uma nova categoria de jogos com grandes atores – Beyond: two souls – chegou às lojas
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CARISMA DIGITAL 1. Kevin Spacey como o vilão do novo Call of duty 2. A imagem de Spacey enquanto é tratada no computador 3. Uma cena de Call of duty
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em outubro do ano passado. Lançado para PlayStation 3, tinha na capa dois astros do cinema: Ellen Page (de Juno) e Willem Dafoe (de Homem-Aranha). O jogador controlava Page e contava com o auxílio de Dafoe para avançar no jogo. Muitas vezes, não dá para perceber aquilo que foi pré-filmado e aquilo que depende propriamente das ações do jogador. É como um filme de quase sete horas de duração, com figurões indicados ao Oscar. E mais: no game, é Fotos: divulgação (2) e Jeff Chiu/AP
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possível criar diferentes finais. O roteiro de Beyond: two souls somava mais de 2 mil páginas. Page foi indicada ao Bafta, o prêmio britânico de televisão e cinema, numa subcategoria de games que elegeu o melhor artista de 2014. “Com certeza é o jogo que mais me envolveu na história. Me senti mais ligado ao personagem, tudo fica mais humano”, afirma o gamer Fernando Ferraresso, estudante de engenharia de 22 anos, em relação a Beyond: two souls.
Claro que a digitalização dos atores e o nível de detalhes visuais de um personagem em games ainda são inferiores à vida real. “Por uma questão de orçamento, tempo e também de proposta”, afirma Marcelo Hessel, editor do site especializado Omelete. “Mais importante que a imagem, pode ser a maneira como o personagem responde às ações do jogador.” Os produtores de jogos dizem que a definição visual melhorará rapidamente nos próximos anos e que o uso de atores conhecidos será cada vez mais comum, com possibilidades de interação cada vez maiores. Essa tendência é financiada pelos lucros cada vez maiores dos produtores de jogos. A Activision, produtora do game Call of duty: advanced warfare, afirmou, sem revelar números, que o jogo se tornou o maior lançamento da indústria de entretenimento neste ano. Superou a abertura de filmes como Guardiões da galáxia, que acumula a maior bilheteria de 2014. A produtora diz que a série Call of duty já atingiu US$ 10 bilhões em vendas, valor maior que o arrecadado pelas séries Transformers e Homem de Ferro somadas. Uma pesquisa realizada em 2013 pela consultoria PwC estima que a diferença de lucro entre os dois tipos de entretenimento será cada vez menor. De acordo com o texto, enquanto, em 2012, a distância entre as duas indústrias era de US$ 25 bilhões, prevê-se que o valor em 2017 seja de US$ 19 bilhões, uma queda de 24%. “O fato de a indústria de games atrair talentos do cinema, como roteiristas e diretores, já era uma demonstração de poder. Agora, a tecnologia de computação gráfica permite que isso se estenda aos atores”, afirma Hessel. Para o ano que vem, um novo capítulo dessa história será escrito. Uma das estrelas da série The walking dead, Norman Reedus, emprestará seus movimentos e expressões a um novo game da série Silent hill. O diretor Guilherme Del Toro, de Círculo de fogo, participará. Os videogames conseguiram reunir um ator e um diretor popularíssimos que nem TV e nem cinema haviam conseguido juntar. Game over para os pessimistas. u 8 de dezembro de 2014 I ÉPOCA I 97
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