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Coluna:
3% - A DISTOPIA COMO CRÍTICA DO BRASIL Por Rafael Garcia Madalen Eiras
RESUMO: RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar o seriado distópico intitulado 3%, uma produção de ficção científica brasileira produzida pelo serviço de streaming da Netflix. Atualmente o cinema e seus derivados são usados cada vez mais para se entender a sociedade em que eles são produzidos, como uma importante ferramenta, que pode perceber e discursar com o processo histórico presente. Assim o espetáculo em questão tem na sua narrativa fantástica uma relação direta com a realidade do país. Sua primeira temporada foi exibida no ano de 2017 causando uma imensa agitação na indústria cultural brasileira. Primeiro por ter tido duras críticas da imprensa nacional, mas ao mesmo tempo tendo sido o seriado de língua não inglesa mais assistido naquele ano, e recebido uma incrível aceitação da crítica internacional. Este produto audiovisual é uma das primeiras séries brasileira neste formato, e há no conceito desta distopia, que o enredo aborda, diversos aspectos da cultura nacional que fazem o seriado, em diversos momentos, dialogar com o presente que o Brasil vivencia. Palavras Chaves: Cinema; Distopia; Crítica
Introdução
O
seriado 3% é uma produção de ficção científica brasileira produzida pelo serviço de streaming da Netflix, e arquitetada por Pedro Aguilera, o showrunner do seriado - responsável
por controlar as escolhas estéticas de todos os episódios. Este produto audiovisual se afirma como uma das primeiras séries brasileira deste formato. No entanto, e o que é mais curioso, é que apesar de ser uma ficção cien-
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GNARUS - 137 tífica nos moldes produzidos pela grande indústria de entretenimento hollywoodiana, há no conceito de distopia, que o enredo aborda, diversos aspectos da cultura nacional, que fazem o seriado, em diversos momentos, dialogar com o presente que o Brasil vivencia. Perceber o cinema e seus derivados como ferramentas para se entender a sociedade em que ele é produzido não é uma novidade, no entanto, uma tendência positivista sempre limitou essa análise que na maioria das vezes é regida por um esforço de aproximar os fatos apresentados com a veracidade das fontes e dos documentos escritos. Marc Ferro (1992), já na década de 70, percebeu o cinema como uma importante fonte, uma nova história associada a película com a sociedade que a produz. “O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História” (FERRO, 1992, p.86). Assim Ferro permite entender a sociedade em que o filme foi produzido. Mais recentemente Robert A. Rosenstone (2010), inserido numa perspectiva pós-moderna de história, apresenta os cineastas como historiadores, que devido às características específicas das narrativas visuais, no momento em que se propõem mostrar algum fato de uma suposta realidade, seguem regras diferentes das que governam a história escrita. “A comédia, por exemplo, é um comentário crítico sobre um assunto, ou fato, acrescenta algo àquela tradição historiográfica” (ROSESTONE, 2010, p.
22), ou seja, a comédia é também História, da mesma forma como a ficção científica, ao pensar numa sociedade futura possível baseada nos acontecimentos políticos e sociais do presente, faz uma leitura crítica do passado. Como respondeu Pedro Aguilera para a revista Superinteressante - em pleno estopim da corrida presidencial do ano de 2018, quando a segunda temporada estreava - a curiosa pergunta: “É ano de eleição, o Brasil está vivendo um momento de polarização. Como a segunda temporada conversa com nosso cenário político?” (GERMANO, 2018) O Showrunner responde afirmando as características da série de elaborar um quadro crítico da realidade brasileira. “Ela com certeza conversa, porque a gente estava muito envolvido nisso tudo, enquanto escrevia. Então a gente tenta lincar com problemas brasileiros, principalmente a desigualdade, que é uma coisa muito peculiar. Agora, eu não sei te citar exemplos diretos. A série começou a ser escrita há anos, quando vivíamos outro tipo de caos: o lance das ocupações nas escolas dos secundaristas, por exemplo, entrou de forma indireta” (AQUILERA apud GERMANO, 2018)
O seriado se apresenta, assim, como uma distopia futura, onde a realidade é discutida na forma como essa sociedade se desenvolveu a partir do passado e do seu presente, momento no qual a produção do espetáculo está acontecendo. O conceito de distopia não está estritamente vinculado com o da ficção científica, mas sim a uma previsão do que seria preciso combater no presente. “Ela busca fazer soar o alarme que consiste em avisar que se as forças opressoras que compõem o
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GNARUS - 138 presente continuarem vencendo, nosso futuro se direcionará a catástrofe e barbárie.” (HILÁRIO, 2013, p.207) E para tal, usa de traços caricaturais sublinhando e exagerando as características que devem ser questionadas para deixar claro todos os mecanismos sociais de dominação. “Em suma, a narrativa distópica busca chamar nossa atenção para as relações heterônomas entre subjetividade, sociedade, cultura e poder.” (HILÁRIO, 2013, p.203) Por tratar o futuro de forma pessimista as distopias facilmente podem ser confundidas como sendo o oposto de utopia, “que consiste na narrativa sobre a sociedade perfeita e feliz e um discurso político que procura expor a cidade justa.” No entanto elas continuam sendo uma espécie de utopias sem uma visão positiva de uma sociedade futura, “mas como uma capacidade analítica ou mesmo uma disposição reflexiva para usar conceitos com a finalidade de visualizar criticamente a realidade e suas possibilidades.” (HILÁRIO, 2013, p.206) “As distopias problematizam os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam. É por isso que elas enfatizam os processos de indiferenciação subjetiva, massificação cultural, vigilância total dos indivíduos, controle da subjetividade a partir de dispositivos de saber etc. A narrativa distópica é antiautoritária, insubmissa e radicalmente crítica.” (HILÁRIO, 2013, p.206)
São estas as características estilísticas que se percebe no desenrolar da narrativa em questão, uma análise de nossa sociedade atual. Interessante é que o gênero, que começa como literatura e invade o cinema com força total, está sempre ligado a sociedades ditas desenvolvidas, como a norte-americana, pois é dela que se produzem os grandes filmes distópicos. Poucos produtos deste nicho procuram mostrar outro ponto de vista, como por exemplo, o filme Distrito 9 (2005) dirigido pelo Sul africano Neill Blomkamp, que
procura dialogar diretamente com o conceito do Apartheid, importante para entender a sociedade atual sul-africana. No caso de 3% a realidade brasileira dá diferentes contornos a um enredo que poderia ser já muito batido, devido à enxurrada de filmes e seriados que tratam de um futuro pessimista e distópico. Sua primeira temporada foi exibida no ano de 2017 causando uma imensa agitação na indústria cultural brasileira. Primeiro por ter tido duras críticas da imprensa nacional, mas ao mesmo tempo tendo sido o seriado de língua não inglêsa mais assistido naquele ano, e recebido uma incrível aceitação da crítica internacional, relembrando em muitos aspectos o tão famoso complexo de vira-lata do brasileiro. O incrível sucesso do espetáculo permitiu que no ano de 2018 fosse lançada a segunda temporada no serviço de streaming e em 2019 uma terceira temporada. Por outro lado, o seriado também é um marco cultural para as produções nacionais, onde temas como os futuristas, presente de forma crível no seriado, geralmente, como já apontado acima, são vistos em produtos norte americanas e não gerados de um reflexo político e social da sociedade brasileira. O enredo, que se desenvolveu até o momento em três temporadas, se passa em um futuro pós-apocalíptico não muito distante, onde o Brasil é um lugar devastado dividido basicamente entre o chamado Continente, lugar miserável, decadente e escasso de recursos, e o Maralto, contraponto do primeiro e localizado no meio do oceano. Lugar onde tudo é abundante e as oportunidades de vida são extensas. No entanto, o acesso a esta terra de privilégios se baseia num processo seletivo meritocrático, onde somente 3% conseguem o êxito. Este processo se mostra como
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GNARUS - 139 um ritual quase religioso para essa sociedade, onde todo o cidadão recebe a chance de passar por essa rigorosa seleção de provas físicas, morais e psicológicas, ao completar seus vinte anos. Idade que representa um marco importante para todo o jovem do Continente e momento importante para a manutenção desta sociedade na esperança de garantir um futuro privilegiado. É em volta desta possibilidade que as mães criam seus filhos, que os jovens buscam fugir da miséria, e os não selecionados assumem seu papel de inferiores, aceitando a situação política e social imposta por uma elite distante e inalcançável. A segunda e a terceira temporada são bastante diferentes da primeira, tanto por motivos de orçamento, que aumentou, permitindo o enredo explorar mais cenários e efeitos especiais, mas basicamente por estar mais focada em expandir os mundos que orbitam ao redor desse processo, e não somente nas contradições e desdobramentos de uma seleção que mesmo desumana é buscada e almejada por todos. Ou seja, o Processo passa a ser um elemento secundário dando evidência a oposição entre os dois mundos, que agora podem ser mais ricamente apresentados. Deixando mais forte ainda a imagem das injustiças e crueldades deste sistema, que em muitos aspectos lembra o Brasil contemporâneo. Uma conclusão evidenciada no fim da segunda temporada, e que vai conectar toda a serie, é a constatação de que o Processo sempre vai ser um mecanismo injusto, pois ele é feito por humanos, que em algum momento vão fazer escolhas. A meritocracia, tão falada e discutida na realidade atual, é a base, o pilar de todo o sistema social e político nesta visão futurista, onde todo esse mecanismo seletivo tem muitas semelhanças com os inúmeros e con-
corridos concursos públicos espalhados por todo o Brasil. Afinal a meritocracia se baseia nas conquistas individuais, onde o indivíduo com seu esforço e inteligência conquistam prêmios que os permitem melhorar sua condição de vida. Uma frase que ilustra essa ideia está presente no primeiro capítulo do seriado, quando Ezequiel (João Miguel) responsável por todo o Processo, fala para um público de participantes: “Aconteça o que acontecer você merece, você é o criador do seu próprio mérito.” Frase que vai ser dita em diversos momentos no decorrer dos episódios. No entanto, todo o desenrolar da narrativa, vai mostrar o contrário. Mostrar que nem todos partem do mesmo lugar, e neste sentido a meritocracia é injusta e cruel. A principal crítica a esse sistema seria exatamente esta ideia de que os indivíduos não são iguais. Uns têm condições de se prepararem melhor, outros nascem em famílias influentes e vão conseguir vantagens, neste sentido, como se apresenta no filme, e como também é flagrante na sociedade brasileira, esse sistema só beneficia uma elite que pretende manter as estruturas hierárquicas vigentes sem que haja uma mudança radical no quadro social. Toda a formação de uma ideia de nação brasileira, ao longo da trajetória histórica do país, foi constantemente remodelada e reinventada: Havia um projeto de Brasil como colônia que foi repensado com o advento do império, que, por conseguinte também é remodelado pelos ideais republicanos, que por fim são também reelaborados pelo Estado Novo. Processo sempre vinculado paradoxalmente com uma permanência de ideias absolutistas ibéricas que fazem do “outro”, do ponto de vista externo, as noções latinas republicanas, e internamente cria uma hierarquia excludente onde a civilização só seria acessível ao branco.
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GNARUS - 140 (GUIMARÃES, 1988) Uma curiosa permanência “a se observar ao longo da história essa tentativa de integrar “o velho” e “o novo”, de forma a que as rupturas sejam evitadas.” (GUIMARÃES,1988, p.7) Uma conjectura arcaica perceptível até os dias de hoje e que ficou mais evidente, por exemplo, com o golpe de 64, uma das claras referências que o seriado traz. Principalmente nas cenas de torturas, onde os supostos rebeldes são forçados a delatar seus companheiros, da mesma forma como aconteceu com os participantes da esquerda armada durante a ditadura, e como ainda acontece em muitos momentos como uma estratégia herdada dos militares. O golpe de 64 não deixa de ser mais uma forma da continuidade desta mesma hierarquia social se manter num momento em que diversas rupturas eram eminentes no Brasil dos anos 60. Indo mais além, o próprio processo do fim da ditadura, que dá início a uma nova fase de democracia no país, está repleto de continuidades. Característica percebida por autores como Daniel Aarão Reis (2000) assinalando que apesar da ditadura ter sido vista de forma negativa pelas gerações posteriores, “atitudes que tendem a estabelecer uma ruptura drástica entre o passado e o presente” (REIS, 200, p.6), há a permanência de mecanismos de poder preservados ou construídos no período. Desta forma, nunca houve uma mudança radical social, cultural e política no Brasil, e sim muito mais a manutenção de privilégios. Da mesma forma como este mundo ficcional, onde o Processo é à base da sociedade, que movimenta e mantém o sistema, os personagens não buscam revoluções, e sim privilégios. A importância deste sistema é tão complexa que até a contagem dos anos se baseia neste mecanismo.
O seriado começa, então, a apresentar este mundo no ano 104 do Processo, um ano atípico, pois pela primeira vez em 100 anos aconteceu um assassinato no Maralto, e evidentemente, há uma preocupação com a forma como os indivíduos são selecionados. Uma ala de dirigentes busca uma seleção mais branda e simples, e usa de artifícios duvidosos para obter seus objetivos, como espionagem, chantagens, negociatas políticas e tudo o mais que já se conhece na política brasileira. Outro fator importante para o enredo, e o que realmente vai fazer avançar a narrativa, é a eminente presença de um grupo revolucionário que se denomina A causa, que tem o objetivo de acabar com todo esse sistema. Ação com características semelhantes às de guerrilha facilmente relacionadas às estratégias desesperadas da esquerda radical no período de ditadura. O historiador Raphael Silva Fagundes (2018) em um artigo intitulado “A série 3%: uma crítica para a esquerda”, afirma que o seriado é o que melhor retrata o Brasil em aspectos políticos. (FAGUNDES, 2018) A grande crítica do artigo, no entanto, é que a esquerda não percebeu essas qualidades do seriado ao tentar discursar sobre a realidade do Brasil, tendo preferido, por sua vez, atacar outro seriado brasileiro, O Mecanismo (2018), também da Netflix. Talvez pelo fato desse outro tiver sido diretamente inspirado em uma realidade mais objetiva do que envolto pelas características incríveis da ficção científica. “Essa esquerda parece ter cansado de pensar no sistema, na luta de classes, na lógica de funcionamento da estrutura, passando a se dedicar apenas a Lula e seu legado. Sei que Lula é a única liderança capaz de impedir o avanço da direita, o que mostra o motivo pelo qual a mídia, atrelada às corporações liberais, fez dele o inimigo público número um. Mas, contudo, mostra, também, que o povo não está pronto para ver uma transformação
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GNARUS - 141 radical em sua vida. Ele espera apenas que um sistema que foi feito para não funcionar funcione.” (FAGUNDES, 2018)
Há no seriado duas cenas que ilustra essa ideia, no meio da segunda temporada uma pequena multidão cerca um personagem cadeirante para linchá-lo pelo motivo dele estar tentando denunciar as ilusões que viviam. Já no fim desta mesma temporada uma multidão de insatisfeitos se dirige a sede do Processo revoltados pelo motivo do sistema não estar funcionando como deveria, pois este seria o único caminho visível que melhoraria a condição de vida dos selecionados. Esses pequenos momentos de manifestações, apresentadas no filme, remetem em muito as manifestações ocorridas em todo o Brasil em Junho de 2013. Onde diversas pessoas, que afirmavam não terem um partido, foram para as ruas, inicialmente devido ao aumento da passagem de ônibus, contra diversos aspectos importantes na vida do cidadão, mas que não apontavam para um objetivo, ou uma ideologia. Essas manifestações se deram não para mudar o sistema, mas para expressar a insatisfação da população com seu mau funcionamento. E na série vemos tanto imagens parecidas dos revoltosos, dos confrontos com a polícia, por exemplo, como também outra importante característica presente em ambos, à falta de um sentido revolucionário, de progresso. Esses jovens não tinham uma causa, um objetivo em sua luta. Uma perspectiva que propõe uma importante reflexão de um relevante e complexo processo no qual passa a contemporaneidade, que o historiador francês François Hartog (2003) vai denominar de Presentismo. Processo que evidencia a quebra com um regime historiográfico moderno onde o ponto de vista do futuro predomina-
va através de uma crença no progresso. ”O fim deste regime moderno significa que não é mais possível escrever história do ponto de vista do futuro e que o passado mesmo, não apenas o futuro se torna imprevisível ou mesmo opaco. Deve ser aberto” (HARTOG, 2003. p.11) E alguns exemplos desta ideia estariam evidenciados, segundo o autor, em algumas atitudes na contemporaneidade. Como a extrema valorização da juventude e todas as técnicas que tendem a suprir o tempo, ou estendê-lo, através do computadores e novas mídias que fazem do presente um espetáculo à parte. Neste sentido a série parece tentar ilustrar um momento crucial para entender o contemporâneo, onde a ideia de progresso cada vez mais se perde no imediatismo do espetáculo presente, mas há também um exercício de deixar claro importantes processos sociais presentes neste Brasil atual, mesmo que sejam de continuidades e não rupturas. A narrativa faz isso ao esgarçar as distâncias entre os moradores de uma comunidade bem pobre as de uma pequena parcela da sociedade que vive em uma bolha de privilégios. Onde a ficção científica e a distopia propõem acabarem com as graduações sociais entre ambas as classes, ao mesmo tempo em que desenham com mais exatidão as fronteiras entre estes dois mundos. Sem a classe média, que seria o meio, e que o seriado em seu futuro apocalíptico exclui dessa equação social, fica óbvia a crítica que o enredo faz ao sistema hierárquico da sociedade brasileira. Onde mais uma vez o que se está mostrando é a velha ideia de disputa de classes, uma tendência quase unânime da esquerda brasileira, de dialogar com um ponto de vista marxista. Desta forma, Raphael Silva Fagundes percebe muito diferente de O Mecanismo, que
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GNARUS - 142 sofre a crítica de apoiar uma suposta narrativa golpista, que 3% não deixa de ser uma análise crítica, de tendências de esquerda. Mas ao mesmo tempo não foi exaltado por essa mesma esquerda, pelo contrário, o seriado sofreu duras críticas muito mais preocupadas com elementos estéticos como o excesso de falas explicativas ou a duvidosa complexidade dos personagens, e se deixou escapar a poderosa imagem de uma sociedade dividida entre dois mundos, onde a meritocracia existente no filme não deixa de ser a mesma que existe no mundo ordinário. Uma ideologia já proclamada em pleno Império do Brasil, onde vigorava a escravidão como o principal motor da economia. (...) ideia que ainda é predominante em muitos círculos sociais, inclusive, sendo possível ouvi-la em cultos religiosos, principalmente os que pregam a teologia da prosperidade. E é justamente essa ideologia que a série brasileira 3%, (...) traz para a discussão. (FAGUNDES, 2018)
Karl Marx (2007) já havia evidenciado em sua clássica obra “A ideologia Alemã” – ao iniciar sua percepção materialista da história, onde não se explicaria mais “a prática partindo da ideia, mas explica as formações ideológicas sobre bases da prática material” (MARX; ENGELS, 2007, p.61) – que o que manteria uma superestrutura idealista coesa, ou seja, as forças produtivas, o estado social e as consciências individuais, que deveriam entrar naturalmente em contradição, suprimidos em uma sociedade civil, seria a elaboração de diferentes produtos teóricos e formas da consciência como a religião, a filosofia, a moral etc. (...) e a possibilidade de que não entrem em disputa reside somente no fato de que se volte a suprassumir a divisão de trabalho. Se compreende por si mesmo, ademais, que os “fantasmas”, os “nexos”, os “seres superiores”, os “conceitos”, as “duvidas” não são mais do que a expressão espiritual puramente idealista, e a ideia do indivíduo imaginaria-
mente isolado, a representação de grilhões e limites assaz empíricos, dentro dos quais se move o modo de produção da vida e forma de intercâmbio a ele adequado. (MARX; ENGELS, 2007, p 55)
Já no primeiro capítulo do seriado, na peregrinação feita pelos participantes para chegarem ao Processo, estas características estão presentes nas imagens que se sucedem do Continente. Apresentando essa realidade para o espectador, de forma a se poder relacionar, não só a situação degradante que se vive, mas também a forma como os indivíduos se comportam diante da possível passagem para o “outro lado”, de uma aura quase que divina que o sistema mantém. Arrumação ideológica que garante a manutenção das estruturas aparentemente injustas, mas que não são contestadas pela maioria dos cidadãos. Evidente, desta forma, que também há na elaboração dos personagens um diálogo direto com esse Brasil contemporâneo. Há na figura de Ezequiel responsável por todo o Processo a imagem de um dirigente duvidoso, que mistura a vida pessoal com a profissional, do público com o privado. A heroína Michele (Bianca Comparato), uma mulher movida basicamente pela vingança do suposto e impune assassinato de seu irmão, que a faz se tornar uma membra da Causa para atingir seus objetivos pessoais. O cadeirante e negro Fernando (Michel Gomes), excluído ainda mais por sua deficiência e regido pelas vontades de um pai religioso, que prega as maravilhas do sistema. O mau-caratismo de Rafael (Rodolfo Valente) indivíduo que fraudou sua entrada e que usa de ações duvidosas, mas que são permitidas pelo próprio sistema. A negra e durona Joana (Vanessa Oliveira), que nem um nome tinha, nem registro - ela era um fantasma social e entrar no Processo com um registro falso para fugir da morte pelas mãos de uma milícia
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GNARUS - 143 local. E finalmente a imagem do privilegiado Marco Álvares (Rafael Lozano) homem branco, único que se escuta o sobrenome em todo a seriado, membro de uma família que tradicionalmente sempre passa no processo sem muitos problemas. Deste grupo, ao fim da primeira temporada, só dois personagens conseguem o êxito: Michele, após descobrir que seu irmão estava vivo no Maralto e delatar o chefe da Causa, passando um período em um centro de reabilitação; e Rafael, que mesmo tendo uma conduta duvidosa acaba mostrando um lado mais humano durante a história - na verdade ele também é um militante da Causa com uma estratégia ousada de se infiltrar na sociedade perfeita. Joana a negra valente e rebelde apesar de passar, depois de muitos boicotes do próprio sistema, resolve não ir para o Maralto, pois não consegue apertar um botão que mataria um dos homens que a perseguia no Continente. O cadeirante Fernando, apesar de ser o mais inteligente, não vai adiante devido a uma inesperada e duvidosa última prova, pois desiste do Processo por achar que Michele, seu envolvimento amoroso, havia sido eliminada. Por amor ele vai à procura dela, percebendo em seguida que foi uma armadilha do sistema. Já Marcus Álvares, depois de mostrar sua verdadeira personalidade egoísta, acaba não indo ao encontro de sua família na terra dos privilegiados, depois de ser esmagado por uma porta e ser eliminado em uma prova de sobrevivência (Fazendo pela primeira vez um membro da família Álvares não passar). Acontecimento inesperado que junto ao fato de se ter dois infiltrados no Maralto, Michele mesmo sob a vigilância de Ezequiel, e o Rafael ainda nas sombras, pode ser lido como uma deixa para umas possíveis mudanças na segunda temporada.
No entanto esses personagens, como outros tantos que aparecem no decorrer da narrativa, e formam um mosaico representativo do Brasil exagerado pela narrativa futurista, são tudo menos revolucionários. Pelo menos da forma como analisa Albert Camus no seu livro O Homem revoltado (1997), ao perceber este indivíduo como aquele que não aceita o mundo como ele é, vendo nas relações humanas um absurdo que se transforma em revolta. Sacrificando, assim, tudo para que um novo devir, menos absurdo, se concretize. Para Camus, a Revolução é uma degradação da revolta por amar uma humanidade futura, que ainda não existe. Por isso percebe certas características negativas nesta postura que para triunfar teria que tornar a sociedade um regime totalitário justificando os meios pelos fins, como aconteceu com a URSS transformando-se em império e legitimando o assassinato em massa. Claro que destes indivíduos existem os que demonstram uma sanha revolucionária, mas eles nunca vão levar a narrativa para uma mudança dos aspectos sociais que formam essa sociedade. Estas características, por exemplo, estão presentes, já na segunda temporada, na figura de Silas, um médico do Continente, que leva seu plano de jogar uma bomba no prédio do Processo até às últimas consequências, e tem uma trágica morte antes de conseguir completar sua missão. Ele é um personagem secundário onde sua principal função para o enredo não é a revolução, mas sim servir como uma escada dramática para a personagem da Joana. Que vê no médico um motivo para entrar na Causa, depois de perceber as injustiças do sistema. No entanto Joana não vai concordar com seus métodos e vai buscar soluções de confronto com o sistema de forma mais amenas, sem mortes.
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GNARUS - 144 É essa a premissa da segunda temporada, o de enfrentar o sistema que se conheceu nos primeiros episódios, de uma forma a dialogar com ele, e não uma completa ruptura, onde as reviravoltas, mortes importantes, mudanças de lado, são muito mais um fator dinâmico da narrativa. É neste momento que se descobre com mais riqueza como é essa sociedade privilegiada e a real história em torno do Casal Fundador, permitindo aos personagens acabarem com as ilusões do sistema. Porém essa vantagem aparente não passa de artifícios do enredo que deixam a história em uma constante iminência de mudança, mas não se põe fim ao sistema vigente. Michele, enganando seus companheiros acaba por trocar o fim desta sociedade pela possibilidade de fundar outra, auxiliada pela tecnologia do Maralto, obtida através de chantagem. Ou seja, toda a dinâmica do seriado, como já assinalado, não tem um aspecto revolucionário. A crença religiosa na lenda de um casal fundador, que inaugurou essa sociedade com o intuito de salvar a humanidade, e que na segunda temporada mostra ser uma lenda inventada, é um dos pontos importantes para se perceber a coesão social e a não ruptura com o antigo. No fim da primeira temporada, por exemplo, se descobre um dos principais segredos do Processo: Instantes antes dos aprovados saírem do Continente, eles passam por uma purificação e recebem uma vacina que os esteriliza. Criando a ideia de que só se pode fazer parte da sociedade perfeita os que ganham o direito pelo mérito e não por hereditariedade. Uma lógica criada pelo casal fundador que mantém uma estreita ligação com a “fé” em todo esse mecanismo meritocrático, que ao mesmo tempo em que se mostra científico, não deixa de ter também um caráter místico e sagrado.
O filósofo John Gray (2005) em seu polêmico livro Cachorros de palha percebe que a ideia de progresso seria “uma versão secular da crença cristã da providência.” (GRAY, 2005, p.13) E o que se percebe no seriado não deixa de ser uma versão deste ponto de vista, onde um sistema totalitário é mantido por uma logica religiosa guiada pela tecnologia, unindo duas formas de se perceber o mundo, que a principio seriam opostas. Tanto religiosidade como cientificismo habitando o mesmo imaginário social para o brasileiro, e o seriado deixa isso evidente ao elevar a tecnologia ao um local sagrado e inalcançado para o cidadão do Continente. Esta dominação tecnológica está geralmente presente de forma universal em toda a ficção científica dos moldes apresentadas, uma percepção de que a tecnologia que acaba controlando o indivíduo. John Gray ainda percebe em seu texto que seria impossível o controle da tecnologia, sendo essa um elemento que transcende a vontade do homem. No entanto, o fim da segunda temporada, apesar de não mudar o Status quo da sociedade apresentada, não é, de forma alguma, tão pessimista como a inevitabilidade do fim que propaga John Gray em sua percepção de mundo. O que acontece é o vislumbre de uma nova possível sociedade que vai juntar os dois mundos. Da mesma forma como as tecnologias atuais estão transformando a realidade concreta do mundo onde a cibercultura se apresenta de forma a mudar a realidade que se vivencia. E o Brasil é um país onde isso ocorre de forma rápida, mas ao mesmo tempo, devido a falta de uma cultura intelectual mais crítica do cidadão comum, essa mudança passa a ser mais uma vez uma continuidade, e não uma ruptura.
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GNARUS - 145 O mundo virtual parece redefinir como o ser humano se apresenta no mundo e transforma as relações de poder já estabelecidas pela sociedade ocidental na sua trajetória, como foi pensado por Michel Foucault, por exemplo, como uma “sociedade disciplinar”, para um novo regime de poder: o de uma “sociedade do controle”, conceito elaborado por Gilles Deleuze como um regime apoiado nas tecnologias eletrônicas e digitais, “uma organização social capaz de fertilizar o capitalismo mais ágil e voraz da atualidade.” (SIBILA, 2016, p. 28) “Não se trata apenas da internet e seus palcos virtuais destinados à tão loquaz interação multimídia. São inúmeros os indícios de que estamos vivenciando uma época limítrofe que prenunciaria um corte na história: uma passagem de certo “regime de poder” para um outro projeto político, sociocultural e econômico. Em suma, uma transição de um universo para outro: daquela formação histórica ancorada no capitalismo industrial, que vigorou entre o final do século XVIII e meados do XX – e que foi analisada por Michel Foucault sob a denominação de “sociedade disciplinar” –, para outro tipo de organização social, que começou a se delinear nas últimas décadas. Neste novo contexto, certas características do panorama histórico precedente se intensificam e ganham renovada sofisticação. Enquanto outras mudam radicalmente. Neste movimento, transformam-se também os tipos de corpos cuja produção é estimulada no dia a dia, bem como as formas de ser e estar no mundo que são compatíveis com cada um desses mundos.” (SIBILA, 2016, p. 25)
Todas as comunidades têm seus parâmetros de controle, as sociedades tradicionais, por exemplo, regidas pela prática religiosa, tinham suas formas de controle direcionadas para o exemplo a ser seguidos, seu controle se dava de “forma direta sob um conjunto de atitudes” (PAIVA, 1998, p.61) Como se percebe que seriam as formas de controle exercidas pelos cidadãos no Continente, vivenciando uma experiência semelhante ao que se tem nas religiões, pois é no exemplo,
na performance, que se estaria o controle da sociedade, onde as dinâmicas do poder estariam inscritas nos corpos e falas, ao mesmo tempo que também estariam sendo vigiados por um poder divinizado do olhar mecânicos das câmeras de vídeo espalhadas por todos os cantos, mas que não exercem um controle direto sobre a vida do indivíduo, e sim quase uma presença mística, rondando a imaginação do habitante local. Assim se pode traçar um paralelo interessante entre o Continente e Maralto sendo duas eras distintas vivendo o mesmo presente e que se chocam no fim da segunda temporada nas escolhas de Michele. O Maralto, por exemplo, o lugar de uma prosperidade asséptica, possui como principal característica a disciplina que é controlada por instituições que delimitam e organizam os espaços, exatamente como a genealogia foucaultiana do poder, quando pensa o mundo moderno como o momento onde se desenvolve determinado dispositivo, a disciplina, atuando como produtor de subjetividades: “A disciplina fabrica indivíduos, ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 2009, p. 164) É no Maralto que existe um centro de reabilitação e tratamento (CRT), criado justamente para cuidar destes casos indesejados e impuros, dos loucos, dos delinquentes, dos que devem ser escondido do resto da sociedade e são colocados em locais separados. Para Foucault (1979) a experiência manicomial, por exemplo, também é uma forma de poder, pensada no mundo moderno para disciplinar e evitar os escândalos. Uma instituição que, diferente de momentos anteriores, passa a esconder o louco. “Até o século XVII, o mal, em tudo aquilo que pode ter de
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GNARUS - 146 mais violento e mais inumano, só pode ser compensado e castigado se for trazido a luz do dia.” A partir do século XIX a loucura passa a ser escondida, onde há um pudor diante do desatino, diferente, por exemplo, da Idade Média que tinha o hábito de mostrar os insanos como forma de exemplo, os loucos eram monstros que deveriam ser vistos na rua. “O internato, pelo contrário, trai uma forma e consciência para qual o inumano só pode provocar vergonha.” (FOUCAULT, 1979, p.145) Como o caso de Aline (Viviane Porto) que tem, ainda na primeira temporada, o trabalho de fiscalizar o Processo, e acaba chantageando o diretor para assumir o seu lugar. Em uma engenhosa manobra estratégica por parte do próprio Ezequiel, ela acaba sendo acusada de um assassinato cometido na verdade por Michele, e aparece na segunda temporada vivendo no CRT, onde suas memórias foram retiradas e ela vive uma vida sem sentido, separada do resto da sociedade neste local disciplinador. Outro personagem que é excluída da sociedade é a falecida e suicida esposa de Ezequiel, que anos antes tentava se recuperar do trauma de ter deixado um filho no Continente. Ela então se suicida. Ainda há outros exemplos, como o da própria Michele, que vai para esse mesmo centro de tratamento para ser reajustada a sociedade, garantindo não ser mais uma militante da Causa. E ainda o de seu irmão, que cometeu o único assassinato no Maralto, e vive numa cubo de vidro espelhado enlouquecendo aos poucos. No Continente já não existem instituições para os indesejados, e os loucos, como na Idade Média. vivem soltos como parte da vida comum. Lugar sem um saneamento básico, onde as sujeiras se espalham pelas ruas, e as roupas são farrapos. O mais interessante é perceber o paralelo deste local com a realidade das
favelas brasileiras. Como se esse continente fosse, em vários aspectos, um reflexo destas. Locais que no filme seguem outros padrões de controle social, e que às vezes parecem ser o de uma “Idade Média atualizada”, onde as regras são muito mais erguidas pelas relações de um poder local, onde se está sempre vigiado pelo olhar onipresente de uma autoridade quase que divina possível pela tecnologia dos drones e de supercâmaras. Uma sociedade de 97% de perdedores, que vivenciam um mundo esperando e buscando outro, um que habita no interior do Processo e mantém a sociedade funcionando. Talvez por isso, haja a necessidade do sistema de seleção ter um carácter também disciplinador, pois os habitantes do Maralto são todos originados do Continente. No entanto essa duas eras, mundos que vivem realidades completamente diferentes, são dependentes, mesmo que um domine ideologicamente o outro, pois todo cidadão ao entrar para o mundo dos privilegiados se torna estéril. Sendo obrigado a tomar uma injeção purificadora, que ao mesmo tempo marca sua pele o diferenciando dos outros, mas também fazendo com que este não possa mais perpetuar descendentes. Mantendo, assim, um mundo onde não habitam crianças e que deve ser sempre abastecido por mais indivíduos aptos, que por passarem pelas duras provas de uma injusta seleção, merecem estar lá. Essa relação de interdependência se equipara em muitos sentidos com as das importantes metrópoles brasileiras, onde se pode perceber um aglomerado de favelas localizadas no interior destas cidades, locais onde a mão de obra da elite e da classe média é retirada. Outra relação importante de se assinalar na tentativa do seriado de apresentar uma suposta realidade brasileira, está relaciona-
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GNARUS - 147 da ao campo cultural, e por isso presente em toda a estética do espetáculo. Perceptível principalmente na escolha das músicas que compõem a trilha incidental dos episódios, marcadamente brasileiras, como o samba de Cartola, ou a voz icônica de Elza Soares, mas que perpassa vários outros momentos da narrativa apresentada, e que parece em muitos sentidos uma retomada de um ideário nacional-popular, reconfigurado para a temática da ficção científica. A concepção de nacional -popular permeou todo o imaginário artístico brasileiro moderno, percebendo a identidade do povo e sua cultura nacional como um componente anti-imperialista que deveria ser usado como imagem do Brasil de forma a quebrar os paradigmas da cultura exterior. Como, por exemplo, contra o cinema clássico norte -americano. É nesse contexto que surge um cinema brasileiro moderno, já no fim dos anos 50, momento importante de ruptura com os padrões clássicos narrativos dominados pela estética hollywoodiana. Momento em que “inúmeras propostas culturais, de caráter nitidamente inovador e vanguardista, desenvolviam-se como uma resposta, ou adequação, da cultura brasileira aos novos tempos.” (MALAFAIA, 2005, p. 20). O CPC, centro popular de cultura, era um braço da UNE, e foi criado no fim dos anos 50 para se discutir e produzir arte com um viés político de esquerda. Tendo como ponto comum entre os integrantes do centro e os estudantes, a defesa do nacional-popular. A instituição valorizava a cultura brasileira na medida em que se propusesse uma linguagem onde a arte estivesse a serviço da conscientização do povo, formulando assim um projeto voltado para o desenvolvimento econômico e cultural brasileiro capaz de criar mecanismos e instrumentos para a transformação de “uma cultura ‘inautêntica’ – fruto da domina-
ção econômica e ideológica da metrópole – para uma cultura ‘autêntica’ – cuja autonomia permite pensar a própria realidade do país”. (GARCIA, 2004, p.9) O Cinema Novo é fruto deste processo, mas não comungavam de uma mesma visão do CPC. Cineastas como Carlos Diegues e Glauber Rocha acabaram por elaborar outra visão de cinema nacional, mais ligada com questões poéticas do que uma necessidade didática e revolucionária. “Entretanto, esse movimento cinematográfico é tal como o CPC, um projeto nacional-popular, produtos das contradições econômicas e políticas da sociedade brasileira daquele período, e também, produtores de toda essa efervescência social.” (BARBEDO, 2011, p.4) Desta forma, algumas gerações de cineastas brasileiros vão ter como exemplo, e necessidade, esta forma de se perceber a cultura brasileira, pois os anos 60 e 70, além de serem os anos de chumbo, é o momento mais produtivo do mercado audiovisual, que vai gradativamente passar por transformações importantes, que evidenciam cada vez mais a invasão dos produtos norte americanos. Realidade que vai ser impactante nos anos 80. Para Ismail Xavier (2016) os filmes brasileiros pós-modernos “começaram a surgir no acaso do cinema brasileiro moderno, ou seja, quando ‘a constelação moderna se desvitaliza’ e o novo cinema dos anos oitenta rejeita a estética da fome” (Xavier, 2006, p.40). Resultando em um cinema que a princípio não teria um sentido político de espírito modernista como foi o Cinema Novo, mas que age politicamente nas escolhas estéticas que faz através das suas mais marcantes características pós-modernas, onde não existiria um tipo fechado de linguagem, mas um exercício estético. Características como a fragmentação, o pastiche, o hibridismo, a hipertextualidade,
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e principalmente, a releitura de códigos já utilizados em vários momentos da história do cinema, como a utilização da narrativa clássica hollywoodiana. Neste momento o nacional -popular acaba dando lugar para um cinema mais urbano, mais cosmopolita, que vai estar mais preocupado com assuntos universais. E a ficção científica, principalmente as distopias, como Blade Runner ( 1982 ) exemplo icônico deste processo, estão envoltos por este ar da pós-modernidade, que fragmenta e desarticula as identidades. Paradoxalmente, o seriado 3%, retoma estes aspectos identitários, característica de um cinema nacional mais político, ao repensar a própria cultura brasileira sob o ponto de vista do futuro. Momento imaginado em que as músicas, as relações sociais, os tipos humanos, estão formando um mosaico e identificando de um nacional-popular futurista, por mais estranho que esta imagem possa ser. Por exemplo, quando na segunda temporada um bloco de carnaval toca um samba de Cartola misturado com uma batida africana - presente nos dias de hoje nas casas de Candomblé – ao comemorar a chegada de um novo Processo, o que se vê é uma escola de samba, onde seus participantes se vestem com fantasias que se assemelham com as que existem no presente, e Orixás dançam o toque dos tambores. É nestes momentos, em que o seriado retoma uma tradição cinematográfica importantíssima para um conceito moderno de identida-
de nacional, que ele se diferencia de muitas outras séries e filmes ao redor do mundo que buscam no futuro um lugar sem identidade. Assim, em 3%, não só se critica uma sociedade presente, mas evidencia que sempre haverá continuidades, como todo o processo histórico da formação da nação brasileira, onde a permanência sempre está presente. Quando Michele propõe um novo mundo, ela abre espaço para uma nova realidade que não deixa de ser também um reflexo do choque atual em que se vivencia o transpassar de uma nova era digital, de mudanças que não estão necessariamente vinculadas à revolução, no sentido clássico, desta sociedade, mas sim a remodelagem da realidade. E mais uma vez é importante salientar que essa dinâmica acontece de forma aterradora na sociedade brasileira, onde a enxurrada de Fake News pode fazer a diferença em uma eleição presidencial, ou mesmo o fato das redes sociais se tornarem ferramentas para seleção de trabalho. Ou seja, o mundo virtual que se vislumbra da realidade brasileira não é nada agradável. É claro que essa trajetória apresentada está marcada por metáforas e distorções, afinal uma obra de ficção científica não está preocupado em ser verídica, mas em ser um possível futuro de um desenrolar plausível da sociedade atual, pois ele necessita ser crível. Dessa forma o seriado 3%, é no mínimo uma importante narrativa para se debruçar tanto
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GNARUS - 149 como puro entretenimento, como também uma distopia que faz uma versão crítica não só do Brasil, como da identidade do brasileiro.
Rafael Garcia Madalen Eiras é Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Humanidades, Culturas e Artes da UNIGRANRIO e Bacharel em Cinema pela Faculdade Estácio de Sá.
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