EquipedeRedação:
Editores:
Prof.Ms.FernandoGralha Profª.JessicaCorais
Pesquisa:
Prof.Dr.AdílioJorgeMarques(UFVJM) Grad.ÁlvaroAlmeidaRiosRamos(FIS)
Prof.GermanoVieira(UGF/FIS)
Prof.Dr.RenatoPessanha(UNIRIO) Prof.Ms.RafaelEiras(UCAM/UNIGRANRIO)
ConselhoConsultivo:
Prof.Dr.AdílioJorgeMarques(UFVJM)
Prof.Dr.BrunoAlvaro(UFS)
Prof.ª.Ms.DanieleCrespo(FIS/UCAM)
Prof.Dr.MarcusCruz(UFMT) Profª.MarthaSouza(MEC) Prof.Dr.RenatoPessanha(UNIRIO) Prof.Dr.SérgioChahon(FIS)
RevistaEletrônicaAcadêmica/GnarusRevistadeHistória. Vol.13,n.13(Dez2021).RiodeJaneiro,2021[on-line].
GnarusRevistadeHistória
Disponívelem:www.gnarus.org ISSN2317-2002
1.CiênciasHumanas;História;EnsinodeHistória
https://www.facebook.com/gnarusrevistadehistoria/
AnoX-VolumeXIII-Nº13–dez-2022
Sumário
AOLEITOR 4
FernandoGralhaErro!Indicadornãodefinido.
ARTIGOS:
OCONTEXTOEDUCACIONALQUILOMBOLAEMUMA ESCOLALOCALIZADAEMTERRITÓRIOQUILOMBOLANOMUNICÍPIODESÃOMATEUS,ES5
Anaclecia Vieira de Jesus e Maria Alayde Alcântara Salim Erro!Indicadornãodefinido.
PALAFITASEMODODEVIDALACUSTRENOMARANHÃO:RELATOSCOLONIAISENATURALISTAS 17
AlexandreGuidaNavarroeMarilenedaSilvaBanhos
AFORÇADAESCRAVIDÃOSOBALENTEDEUMAMODESTACIDADE:PORTOFELIZ,SÃOPAULO,NASEGUNDAMETADEDOOITOCENTOS 29
CarlosSantosdaSilva
O“CANTODOSMALDITOS”:COMPREENDENDOHOSPÍCIOSBRASILEIROSDOSÉCULOXXAPARTIRDAESCRITADEAUSTREGÉSILOCARRANO BUENO 40
EdivaldoRafaeldeSouza
ESCRAVIDÃONOBRASIL:ASSINATURADALEIÁUREAEUMAIMENSAPOPULAÇÃONEGRALARGADAAPRÓPRIASORTE 48
RodrigoLopesAlvesdosAnjos
AINFLUÊNCIADEKANTSOBREAHISTORIOGRAFIACIENTÍFICA) 60
AndréViníciusDiasSenraeAdílioJorgeMarques
ENSAIOACERCADAOBRAINVENÇÃODEORFEUDEJORGEDELIMALIDASOBVISADADACARTAALUA:OCAMINHOINICIÁTICODOTARÔNA LITERATURABRASILEIRA 66
FernandaL.N.deMattos
AAPROXIMAÇÃOENTREOGUMESÃOJORGENAUMBANDA:RESSIGNIFICAÇÕESDASPRÁTICASCULTURAISPRÉ-CONTEMPORÂNEASEUROPEIAS EAFRICANAS 74
AdílioJorgeMarqueseMarceloAlonsoMorais
SOBREOSDIREITOSFUNDAMENTAISEOMUNDOATUAL 91
MariaEduardaD.deO.Marques
COLUNA:NOESCURODOCINEMA
OOLHAROPOSITOREMCOURODEGATO 94
SilvioDa-Rin,RafaelGarciaMadalenEiraseFIdelysFragadaCosta
AMOBILIZAÇÃODASIMAGENSMENTAISPELOCINEMANAVIRADADOSÉCULOXIXPARAOXX 102
RafaelGarciaMadalenEiras
COLUNA:FOTOGRAFIASDAHISTÓRIA
Visualidade,culturapúblicaecidadania 111
FernandoGralha
INTERDISCIPLINAR
ENSINANDOFÍSICA:OMOVIMENTORETILÍNEOUNIFORME(MRU)EMEXPERIMENTODEBAIXOCUSTO 119
AdílioJorgeMarquesErro!Indicadornãodefinido.
GnarusRevistadeHistória-VOLUMEXIII-Nº13-DEZEMBRO-2022
GNARUS | 3
AOLEITOR
Cara(o)s leitora(e)s, como dissemos na edição passada, ainda estamos aqui, falandodeHistóriaparatoda(o)s,apesar dos tempos difíceis, que esperamos, estejam se dissipando.Eassimofazerdohistoriadoresua relaçãocomasociedadevãocaminhandoemmão dupla,naqualumconstróiooutro,umdefineo outro. São experiências e motivações de ambos queexplicamporquêeparaquênosdebruçamos sobreahistória,sobreofazerHistória.
Nestenúmeropercorremosvárioscaminhosda miríade de possibilidades que o ser humano se define,falamosdehospíciosaKant,depalafitasa escravidão, deimagensmentais a culturavisual, quilombolas a tarô, de cinema a física, de fotografia a Ogum e direitos Humanos, enfim falamosoquefalamossempredavida,edagrande aventuradoserhumano.
Eénessesentidoenessaintençãoquechegamos anossa13ªedição,naqual,hoje,cumprimosnossa funçãoeintenção,commaisliberdade,maisleves esperançosos com os novos tempos que se anunciam.
E assim nos resta agradecer profundamente a todosquesempreestiveramaqui,queresistiram comonós,aumdospioresperíodosdaHistória brasileira. Seja como leitor(a), como colaborador(a),sãovocêsquedãosentidoaeste esforço de colocar uma revista no ar. Muito Obrigado!
Boaleituraevamospara2023.
GNARUS | 4 GnarusRevistadeHistória-VOLUMEXIII-Nº13-DEZEMBRO-2022
FernandoGralha
O CONTEXTO EDUCACIONAL QUILOMBOLA EM UMA ESCOLA LOCALIZADA EM TERRITÓRIO QUILOMBOLA NO MUNICÍPIO DE SÃO MATEUS(ES)
RESUMO: A pesquisa apresentada nesse artigo teve origem a partir do reconhecimento da necessidade de valorização e afirmação da identidade, das tradições e dos costumes dos quilombolas na prática escolar, buscamos analisar como ocorre o processo educacional escolar formal na Comunidade quilombola Nova Vista, situada na região do Sapê do Norte, na cidade de São Mateus, extremo norte do estado do Espírito Santo. Em nosso percurso metodológico, tomamos por base a abordagem qualitativa de cunho histórico, se inserindo no contexto do ensino e aprendizagem das escolas localizadas em territórios quilombolas. Utilizamos entrevistas semiestruturadas com professores dessas escolas, fontes fundamentais na elaboração deste trabalho. Nosso objetivo é evidenciar a Educação Escolar Quilombola como uma política pública afirmativa, focalizando a comunidade de Nova Vista, tendo como referência o estudo de personagens com uma trajetória de vida vinculada à história e à cultura da comunidade. Palavras-chave: Educação Escolar Quilombola; Política Afirmativa; Anos Iniciais do Ensino Fundamental
Introdução
Ahistoriografia brasileira da educação escolar descreve a constituição de um sistema educacional brasileiro marcado pela seletividade, desse modo, a exclusão do negro está associada a esse processo histórico que acabou por marginaliza-los do espaço escolar. Entretanto, esse cenário não é imutável, visto que a escola não é somente espaço de reprodução da ideologia dominante, mas pode e deve ser instrumento político de emancipação das classes marginalizadas, pois conforme Saviani (2003),
política e educação são faces de uma mesma moeda, uma não exerce influência na outra sem ser por ela influenciada.
A Educação Escolar Quilombola é contemporânea no âmbito nacional da política pública educacional, fruto da luta pelo direito à educação. Refere-se a uma modalidade de educação vinculada à produção de uma nova cartografia da diversidade brasileira, mostrando o reconhecimento étnico-cultural de um grupo historicamente posicionado às margens do sistema escolar. Para Arroyo (2015), o sistema de educação escolar tem sido mais
GNARUS - 5 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
Por Anaclecia Vieira de Jesus e Maria Alayde Alcântara Salim
do que simplesmente escolar, é um território de fortalecimento para esses sujeitos que têm o direito de conhecer a sua própria história. A medida em que o negro é excluído da escola, fica muitas vezes, impossibilitado de elevar-se socialmente e mostrar as incoerências das ideias raciais devendo, a escola, ser uma ferramenta de desnaturalização de preconceitos já enraizados.
No final da década de 1990 os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), apresentaram grande relevância no processo da Educação Quilombola, nele é enfatizada a importância de se garantir a pluralidade cultural nos currículos escolares destacando a necessidade de compreensão, disseminação e valorização das diferenças culturais para a formação de uma identidade étnica, apontando para as diferenças sociais no processo educacional. A partir de então, iniciou-se o processo de luta pela construção de currículos que valorizem a população negra e a contribuição cultural dos afro-brasileiros. Tais acontecimentos foram importantes para a promulgação da Lei 10.639, em 2003 e, consequentemente para a Educação quilombola no país.
Na história do Brasil, em muitos momentos, o caráter repressivo dos governos, manteve afastados os movimentos negros dos espaços de decisão política que reivindicavam melhorias nas condições educacionais, entendendo que o negro ganharia força com a assimilação de conteúdos escolares para competir em igualdade com a população branca. Havia a confiança desse movimento de que a educação seria uma ferramenta eficaz na ascensão social do negro, assim como afirma Munanga (2004, p.39), “Todos escolheram a escola e a educação como campo de batalha. Pensavam eles que o racismo, filho da ignorância, terminaria graças à tolerância
proporcionada pela educação”.
As lutas antirracistas dos movimentos sociais negros resultaram no sancionamento da Lei 10.639, uma conquista social, aprovada e implantada pelo Conselho Nacional de Educação em 9 de janeiro de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e Base da Educação - LDB 9394/96 estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo escolar das redes de ensino do país a obrigatoriedade das temáticas História e Cultura Afro-brasileira. Assim, cabe pensar, que além de universalizar o ensino no país, é preciso valorizar a história e a cultura de seu povo, buscando reparar os danos de séculos à sua identidade e aos seus direitos, ressaltando que, a história e a educação do negro não se restringem à população negra, ao contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, como cidadãos agentes em uma sociedade multicultural.
Um grande desafio a ser cumprido é a inserção da realidade quilombola aos currículos, no que se refere às questões históricas e culturais, a serem incluídas como conteúdos obrigatórios nas escolas da Educação Básica. Enfim, em 2011, iniciou-se o processo de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, que tinha como finalidade colocar em prática a Educação Quilombola no âmbito educacional, e nortear o ensino ministrado em instituições educacionais localizadas em territórios quilombolas. Finalmente, em 20 de novembro de 2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012) foram aprovadas, sendo um marco histórico para a comunidade negra, na luta por uma educação igualitária, que atendesse suas peculiaridades, reconhecendo as diversidades, bem como especificidades histórica e cultural, ressaltando o respeito e a valorização dos aspectos étnicos e
GNARUS - 6 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
culturais específicos em cada comunidade. Nelas são detalhadas como deve ser a educação, a merenda, a organização, o PPP – Projeto Político e Pedagógico, o currículo e a gestão escolar de uma escola quilombola. Um dos seus objetivos é assegurar uma educação quilombola que considera as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades do quilombo, bem como os seus processos próprios de ensino-aprendizagem e as suas formas de produção e de conhecimento tecnológico (BRASIL, 2012). Porém, somente em 10 de dezembro de 2020, foram aprovadas pelo CNE – Conselho Nacional de Educação as Diretrizes Nacionais Operacionais para a garantia da Qualidade das Escolas Quilombolas, que têm por objetivo, [...] favorecer a revisitação das lideranças de Educação Quilombola às legislações garantidoras dos direitos tão duramente conquistados, oferecendo subsídio e orientações na busca de diálogo com os sistemas de ensino ofertantes da educação, visando o cumprimento dos preceitos legais que possam proporcionar a qualidade que a escola quilombola é merecedora e precisa oferecer aos seus estudantes (PARECER CNE/CEB Nº: 8/2020).
com o sagrado, a ancestralidade, as relações de trabalho e com os movimentos sociais. Deve incluir o debate em torno das desigualdades raciais, construindo no educando a autonomia política, os conhecimentos e a consciência histórica da sua ancestralidade africana. As políticas sociais educacionais são discorridas para atender a sociedade, e sua concretização se dá por meio da ação do Estado, cujo papel e funções passam por transformações no contexto atual, principalmente à vista do mundo globalizado em que vivemos. Nesse cenário, não há como negar a importância de políticas educacionais para superação das desigualdades sociais e práticas raciais excludentes que foram adentradas ao processo educacional brasileiro ao longo dos anos. Nesse aspecto, Bosi (2002, p.37) afirma: Nas mais contundentes razões, esteja na consequência psicológica para criança afro-brasileira, que vem de um processo pedagógico que não reflete a sua face de sua família, com sua história e cultura própria, impedindo-a de se identificar com processo educativo, havendo uma necessidade de reformular os currículos escolares.
É evidente que todos esses fundamentos são importantes para a ressignificação quilombola, no entanto, o professor deve reconhecer a história local e subsidiar as reformulações curriculares em sua prática. Sendo assim, a memória coletiva, os acervos orais e os festejos são fontes importantes na aproximação com aa história e a cultura local. Como afirma Halbwachs (2006, p.30) “nossas lembranças permanecem coletivas e nos serão lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”.
Sendo assim, a educação, não é um campo isolado, conecta os moradores da comunidade,
Ainda nessa discussão, retomamos as ideias de Nascimento (2006, p.12) quando ressalta que, “[...] as propostas curriculares educacionais vigentes no país acabaram por restringir à diversidade cultural a uma cultura ‘comum’ ou a cultura das classes dominantes”, sendo assim é fundamental contemplar no contexto escolar as experiências históricas e culturais da localidade.
OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NO MUNICIPIO DE SÃO MATEUS - ES
A cidade de São Mateus, está localizada geograficamente ao extremo norte do estado do Espírito Santo, próximo ao estado da Bahia,
GNARUS - 7 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
sendo reconhecida como região em que é forte a presença da cultura afro-brasileira no Estado. É uma das cidades mais antigas do estado do Espírito Santo, na historiografia local existem divergências quanto a data de fundação, contudo é certo que o lugar aparece registrado em fontes cartográficas desde meados do Século XVI (SIMÕES, 2017). É considerado o município com a maior população negra do estado, esse fator se deve ao fato de ter sido, até metade do Século XIX, um dos principais portões de entrada de negros escravizados no Brasil.
A concretização dos direitos das comunidades localizadas em territórios quilombolas no município, ainda caminha a passos lentos, circunstância na qual se encontra o ideal de educação voltado à história e cultura das comunidades tradicionais. Nesse contexto, é perceptível que os instrumentos legais são importantes, mas não resolvem os problemas, é necessário ir além do que está escrito, é preciso fazer, conquistar territórios para que aconteçam mudanças. Mas como conquistar mudanças no território da educação formal dentro das comunidades quilombolas do município? Refletimos que ir além do livro didático, que muitas vezes reforça estereótipos e preconceitos é um início de caminho a ser trilhado. Por que não problematizar “verdades estancadas” do livro didático, mostrando aos alunos quilombolas a história do povo negro no município, a partir de sua própria comunidade?
No horizonte das aspirações em compreender e aprender com o contexto das experiências dos envolvidos no presente estudo, bem como do encontro entre a teoria e prática, escolhemos a pesquisa qualitativa, porque acreditamos que contribuiria no enriquecimento da análise, tanto na perspectiva teórica como na prática. A partir
do aprofundamento obtido através das investidas iniciais da pesquisa documental e das informações que foram levantadas pela pesquisa bibliográfica, realizamos entrevistas semiestruturadas, partindo do pensamento de que a fonte oral é a base primária para a obtenção de qualquer forma de conhecimento, seja ele científico ou não, o que garante legitimidade científica são os critérios adotados na busca desse conhecimento. 1
Para a realização da pesquisa, mais especificamente o campo escolhido para a realização deste estudo foi a Comunidade Quilombola de Nova Vista e a Escola da comunidade, localizadas na região do Sapê do Norte na cidade de São Mateus. Salientamos que as entrevistas foram gravadas com autorização dos entrevistados, e que a identidade dos sujeitos pesquisados não será revelada, para preserválos, trocamos seus nomes verdadeiros por nomes africanos atribuídos pela pesquisadora. No intuito de nos aproximarmos da visão dos professores sobre a história dos negros em São Mateus, nas escolas localizadas em territórios quilombolas, realizamos com eles um total de dezenove entrevistas semiestruturadas, procurando colher informações que ajudassem a compreender como acontece o ensino da história do negro no município, dentro das salas de aula, e quais as dificuldades enfrentadas por eles para colocá-la em prática.
A dificuldade para trabalhar a história do negro no município de São Mateus é evidente, seria necessária a criação de alternativas para que aconteçam modificações no quadro do ensino das escolas quilombolas. Ao entrelaçarmos os saberes existentes nas comunidades rurais negras, o
1 A pesquisa obteve aprovação junto ao Conselho de Ética da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o parecer nº 4.145.041.
GNARUS - 8 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
livro paradidático pode vir a ser um caminho na valorização dos saberes locais. Apreciando assim a oralidade, principalmente as narrativas relacionadas a personalidades e às histórias que fizeram e fazem parte das comunidades na região do Sapê do Norte. Com isso, percebemos que a oralidade é fator importante na região, pois, A razão é que os fatos nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A águia branca.) O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1994, p.203).
quilombola é vista como um espaço que acolhe a todos sem distinção, no entanto, esse paradigma deveria ter uma visão mais ampla, considerando os aspectos étnicos, históricos, antropológicos e culturais dos próprios alunos. Hoje são poucas as crianças quilombolas que podem usufruir da oportunidade de estudar a história no seu próprio lugar, compondo esse importante referencial histórico, cultural e subjetivo, pois nem todos os territórios reconhecidos possuem escolas.
As narrativas são, de fato, muito importantes, mas, Cunha Junior (2008, p.125) salienta que “a história que ainda precisa ser contada é a história da ação protagonista do afrodescendente na busca pela educação”. Freire (1988, p.163) ainda afirma que, “se não posso de um lado estimular os sonhos impossíveis, não devo de outro, negar a quem sonha o direito de sonhar”. A proposta da Educação Escolar Quilombola tem como base o professor Paulo Freire, que busca a compreensão dos processos educativos nas suas dimensões políticas. Freire (1988) diz que não se deve negar o direito de sonhar, nesse sentido, propõe uma educação de valorização da vida e do conhecimento tradicional dos grupos étnicos: com o que sonha uma criança quilombola ou como querem sonhar essas crianças?
As escolas precisam tornar-se espaço de discussão de questões sociais que envolvem a vida de todo grupo escolar. Tradicionalmente, a escola
De certo, é imprescindível que se busque fortalecimento nas práticas de ensino que contemplem a história e cultura afro-brasileira e que, no cotidiano, construída e reconstruída com os alunos e membros da comunidade quilombolas, valorizando a oralidade e as histórias locais com suas tradições. É um grande desafio implementar ações que valorizem identidades não hegemônicas e socialmente desvalorizadas, como a identidade negra quilombola. Nos chama a atenção a pesquisadora Márcia Lúcia Souza (2009, p. 163), Pensar a educação em quilombos é uma forma de refletir sobre a escola que temos e que almejamos, visto que a diversidade informada por estes territórios coloca em debate a diversidade em sua dimensão mais ampla. Se a escola brasileira enfrenta dificuldades em lidar com o preconceito e a discriminação racial, a história de seus estudantes e o contexto no qual se insere, ainda estamos diante de uma instituição “alienígena”, a qual ainda se empenha na formação de sujeitos que possam contribuir para manter as desigualdades sociais com base na diferença, e, por conseguinte, o mesmo regime de hierarquização, de relações de poder e de exploração humana.
A educação escolar, na qual são submetidos os estudantes de comunidades quilombolas, torna a afirmação de uma identidade negra e a construção da identidade quilombola nesse espaço um
GNARUS - 9 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
desafio. Essas crianças enfrentam um constante embate entre a afirmação do saber informal e não-formal que vivenciam e que lhes valoriza e a inferiorização de sua história e de sua cultura nas escolas. A ausência de diálogo entre o saber instituído na escola e os demais saberes e culturas presentes demonstra a dificuldade da educação formal em trabalhar com a diversidade cultural. Em vista disso, não há como dissociar a educação quilombola da história local. Acreditamos que o trabalho com personalidades que fizeram a história da comunidade se caracteriza como um importante instrumento metodológico no processo de ensino-aprendizagem. Diante do exposto, trabalhar com conteúdos relacionados à região, aumenta a possibilidade de diferentes olhares sobre as identidades, da problematização de questões socioculturais e o desenvolvimento de uma consciência histórica ainda mais crítica, uma vez que o objeto estudado se aproxima da particularidade das experiências dos estudantes.
Segundo dados do Censo Escolar, no ano de 2020 havia 16.884 alunos matriculados na Educação Básica no Sistema Municipal de Ensino do município de São Mateus, dentre esses, 496 alunos em escolas localizadas em territórios
quilombolas. Vale ressaltar que todas as escolas classificadas como quilombolas do município encontram-se na zona rural, porém nem todas estão inseridas no contexto escolar quilombola, isto se deve ao fato de que algumas escolas estão localizadas em territórios quilombolas, no entanto, não trabalham as Diretrizes para a Educação Escolar Quilombola. Há no município, treze escolas localizadas em territórios quilombolas, no entanto, cada uma com sua especificidade. De acordo com dados do Setor da Educação do Campo da Secretaria Municipal de Educação de São Mateus, responsável pela Educação Quilombola no município, nem todas as escolas que estão credenciadas no Censo Escolar de 2020 como Escola Quilombola, estão dentro do contexto educacional quilombola. Isso porque, para o Censo Escolar, basta que a escola esteja localizada em território de remanescentes de quilombos, para ser considerada, mesmo que não tenha identidade para isso, pois muitas delas estão situadas em territórios quilombolas, porém não atendem crianças oriundas de comunidades quilombolas. Elaboramos um gráfico com o quantitativo de alunos em cada escola localizada nesses territórios no município de São Mateus, tendo como referência o Educacenso de 2020.
GNARUS - 10 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Fonte: Elaborado pela pesquisadora, com base no Educacenso - novembro de 2020
Considerando que a educação é um dos direitos humanos básicos para a formação da pessoa, os quilombolas estão lutando para conquistar não só o direito ao acesso, mas principalmente as condições de permanência e poder atuar na construção de uma escolarização que contemple sua identidade, sua cultura e seus valores. No contexto geral, os desafios da educação quilombola no município não estão desarticulados dos obstáculos da escola brasileira. As dificuldades na implementação de leis deixam claro que a educação segue a desprivilegiar ou silenciar as questões das relações étnicas no município.
Serafim (2018, p.48) apresenta, em sua pesquisa sobre educação quilombola no município de São Mateus, a seguinte reflexão “[...] no Sapê do Norte mais de 1.400 famílias quilombolas moradoras dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra continuam a lutar por terra e dignidade”. Esse é um dos grandes desafios que faz parte do cenário da educação quilombola de São Mateus, articular a compreensão de que esses territórios em que se encontram os povos quilombolas deveriam ser protegidos, e entender que nesses mesmos locais há escolas que precisam transmitir a ancestralidade de um povo.
Apesar do longo tempo, exatos dezoito anos da aprovação da Lei 10.639, de 20 de janeiro de 2003, que altera a LDB, Lei nº 9.394, estabelecendo a inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da “História e Cultura AfroBrasileira”, quase nenhuma alteração foi realizada nas escolas localizadas em territórios de remanescentes de quilombos do município.
Sendo assim, JESUS (2021), afirma que no município de São Mateus, observa-se uma ausência de Projeto Político Pedagógico nas instituições educacionais localizadas em territórios quilombolas, bem como uma
organização curricular e pedagógica que valorize a identidade, memórias e saberes das comunidades, muito embora a Base Nacional Comum Curricular já aponte para o fato de que 60% do currículo das instituições escolares é base comum científica e 40% parte diversificada em que se inclui especialmente conteúdos relacionados à realidade dos sujeitos e à pluralidade cultural e étnico-racial presente no contexto brasileiro.
A não construção de uma base curricular diversificada para as escolas quilombolas inviabiliza o protagonismo dos estudantes dessas instituições nos processos político-pedagógicos, haja vista que ainda estão sendo reproduzidas práticas e conteúdo que pouca relação tem com a realidade dos sujeitos quilombolas. Isso se expressa na ausência de identificação dos sujeitos com aquilo que de fato eles são. Os professores que atuam nas escolas quilombolas da região do Sapê do Norte, sabedores da importância do PPP – Projeto político e Pedagógico, ressaltaram durante as entrevistas a falta do documento como um dos fatores para a não implementação da educação escolar quilombola no município.
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas na efetivação de políticas públicas específicas, as escolas quilombolas de São Mateus possuem um campo vasto cultural no que se refere às fontes orais, favorecem e permitem desenvolver habilidades e atitudes de investigação, problematização, questionamentos, análise e respeito aos diferentes pontos de vista, para Fonseca (2010, p.132):
Os alunos são motivados a levantar os testemunhos vivos, as evidências orais da História do lugar, buscando explicações: por que esta situação é assim? Por que isto mudou e aquilo permaneceu? As interrogações sobre o local em que vivem podem levar à busca de sentido, à compreensão do próximo e do distante no espaço e no tempo.
GNARUS - 11 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Baseados nessas interrogações na busca por explicações, entendemos que usar as narrativas dos anciãos das comunidades nas escolas quilombolas, vai além da sala de aula, ressignificando o que se aprende a partir da realidade dos educandos. O escritor pernambucano Paulo Freire (2014, p.20) afirma a necessidade de aproximação da escola com o cotidiano e das dinâmicas de vida que se encontram em destaque em sua totalidade: Distanciando-se do seu mundo vivido, problematizando-o, ‘descodificando-o’ criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se redescobre como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência. Testemunhando objetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por despertar criticamente, para identificar-se como personagem que se ignorava e é chamada a assumir seu papel. A consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas e em razão direta; uma é a luz interior da outra, uma comprometida com a outra. Evidencia-se a intrínseca correlação entre conquistar-se, fazer-se mais si mesmo, e conquistar o mundo, fazêlo mais humano.
Em razão disso, a temática não deve estar somente citada nas organizações curriculares, mas sobretudo no fazer didático e pedagógico do professor. Ela é fruto de luta e reivindicações do movimento negro, por uma educação que contemple o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira, reconhecendo as africanidades e as colocando dentro da escola.
Neste artigo dedicamos uma atenção especial à Escola Pluridocente Nova Vista, que luta pela implementação da Educação Escolar Quilombola, assim também, como a luta de negros por direitos, neste caso, a uma educação que atenda às suas especificidades.
A Escola Pluridocente Municipal Nova Vista está localizada na Comunidade que leva o mesmo nome na região do Sapê do Norte município de São Mateus-ES. É cercada por um lado pelos eucaliptais e pelo outro por fazendas de grandes latifundiários que brigam na justiça pela anulação da demarcação de terras quilombolas.
Alinhando o pensamento a uma ação pedagógica progressista e ponderando o públicoalvo dos estudantes que vivem e estudam nas comunidades quilombolas da região do Sapê do Norte, precisará ser priorizada uma metodologia que privilegie a visão da história como construção humana. Com isso, não há como atribuir protagonismo ao estudante sem valorizar seus aprendizados e compreender o mundo que o cerca, em suas dinâmicas e estruturas.
Quando os sistemas de ensino promovem um silenciamento em relação à omissão da lei, desencadeia a continuidade da desvalorização da cultura, da identidade negra e quilombola, bem como produz situações discriminatórias que desembocam em relações de desigualdades.
A rodovia estadual ES 315 – Djalma Paiva Gama passa em frente à escola, ocasionando vários transtornos. Por ser uma estrada de terra, em períodos de chuva, a lama impede o acesso dos alunos e, na estiagem, os carros e caminhões transitam em alta velocidade, causando perigo às crianças e funcionários. Vale ressaltar que o governo estadual tem um projeto de asfalto na região, há mais de 10 anos, que acontece em períodos esporádicos, no entanto no último ano, avançou bastante na região.
A vida nessas comunidades tem um percurso de dificuldades recheados por discriminações, trazendo como consequência o abandono, investimento precário nas escolas pertencentes às comunidades, além da ausência de políticas públicas voltadas a educação de jovens e adultos
GNARUS - 12 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
dessas comunidades. A única escola quilombola no município de São Mateus a ofertar a EJA –Educação de Jovens e Adultos no município é a de Nova Vista, que somente em 2018 conseguiu implantar a primeira turma de alfabetização de jovens e adultos no turno noturno.
No ano de 2020, havia 65 alunos matriculados na Escola Nova Vista, distribuídos em quatro turmas multisseriadas nos turnos matutino e vespertino e uma turma no noturno com a EJA – Educação de Jovens e Adultos, primeiro segmento. Uma característica marcante da educação feita em regiões rurais é a organização da turma em classes multisseriadas, devido às grandes distâncias entre as propriedades e do baixo número de crianças em cada turma/ano, é muito comum encontrar as que estão em fase de alfabetização com as que já sabem ler e escrever e todas sob a orientação de um único professor. Dentre as dificuldades encontradas pelos profissionais que atuam em turmas multisseriadas, Claudia Molinari (2009, p. 07) ao analisar o trabalho do professor em turmas multisseriadas afirma: O professor durante a aula, precisa correr de um lado para o outro tentando atender a todos se, obviamente, ele não dá conta de acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos. Se tiver que optar em dar mais atenção a um determinado grupo, certamente se dedicará aos que estão em fase de alfabetização, deixando os outros com atividades fáceis de executar para o nível deles – não demanda a intervenção docente -, o que não lhes propicia a construção do conhecimento.
processo de ensino aprendizagem. A professora da EPM Nova Vista faz uma importante reflexão sobre as dificuldades dos planejamentos das turmas multisseriadas: “[...] A nossa maior dificuldade em trabalhar em uma turma multisseriada é que você tem que fazer um planejamento pra cada turma em uma mesma sala sendo que cada um tem conteúdo diferente, temos que fazer várias introduções dentro de uma mesma sala e às vezes no mesmo dia. A quantidade de planejamentos dificulta muito, pois temos que ter esse rebolado dentro da sala de aula. Aquele que consegue trabalhar bem e ter resultados nessas turmas, está de parabéns, porque não é fácil, e sem contar que as escolas com turmas multisseriadas não tem um pedagogo todos os dias, porque são itinerantes e só aparecem na escola uma vez por semana[...]” (MALAIKA, 2021)
A organização do tempo didático é de fundamental importância, pois o professor ao se deparar com crianças de diferentes necessidades de aprendizagem, dividindo o mesmo espaço, precisa redimensionar sua atenção para evitar que alguns alunos saiam em desvantagens no
São particularidades que podem comprometer o processo de ensino-aprendizagem, dificuldades relacionadas ao planejamento, pelo fato de trabalharem em turmas que reúnem até cinco séries concomitantemente, dentre tantas enfrentadas cotidianamente pelos professores da Escola Pluridocente Municipal Nova Vista enfrentam diariamente. A atual escola encontrase em estado precário, não tem condições físicas para atender a todos os alunos, além do espaço insuficiente, instalações sanitárias inadequadas para a educação infantil, o bebedouro está quebrado e não tem água tratada e gelada, não há espaço no refeitório e as salas são minúsculas. A referida escola possui uma estrutura toda em alvenaria, de duas salas de aula, uma cozinha, um depósito de alimento, dois banheiros, e uma área coberta que funciona como refeitório e espaço para realizações de eventos como reuniões, eventos pedagógicos e outros. Por consequência da ausência de boas condições e de espaço físico, é possível que prevaleçam
GNARUS - 13 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
somente as visões negativas a respeito da escola por parte de alguns docentes, o que acaba por prejudicar o processo de ensino-aprendizagem oferecido. A educação é o ato de conhecer e trocar experiências e o conhecimento deve ser contínuo, evitando a acomodação, e buscando a renovação e aprimoramento. Para o escritor, o homem como ser social é condicionado, mas também construtor, sempre pode aprender mais. Cabe ao educador a liberdade de escolha das práticas e instruir o aluno a pensar criticamente ao relacionar o conteúdo com sua experiência. Freire (1991) destaca que conhecer e transformar a realidade são exigências reciprocas, sendo assim, a transformação nas escolas quilombolas tem seu chamamento na educação que é e será atravessada pelos saberes da comunidade e no respeito as práticas tradicionais
Através dos diálogos com professores e a pedagoga da EPM Nova Vista, ouvimos relatos de que as crianças precisam conhecer a própria comunidade e suas histórias, e que as histórias trazidas de casa estão cada dia mais raras. Benjamin (1996, p.198) ao falar sobre o narrador e seu ofício, nos lembra a importância da sabedoria e como esse conceito está desaparecendo em consequência da extinção da arte de narrar: “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”.
Foi nesse processo da educação e da luta pela territorialidade e reconhecimento que os quilombolas de Nova Vista se fortaleceram e ressignificaram sua identidade. A importância de se ter uma escola no quilombo, que considere a educação quilombola, com um currículo próprio e específico, e não apenas uma escolarização pronta que não atende aos anseios dessa comunidade, vem fortalecer a identidade dos quilombolas. Nesse contexto, a comunidade escolar da Escola
Pluridocente Municipal de Nova Vista, está em processo de construção da escola que almejamos, aquela que esteja atenta aos valores sociais e culturais da localidade na qual está inserida que, uma vez implementada a modalidade da Educação Escolar Quilombola, consiga tornar a escola um ambiente mais próximo à realidade dos seus alunos e, portanto, mais acolhedor à comunidade quilombola de Nova Vista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo é fruto de parte dos resultados da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da coautora, no qual traz as inquietações que nos levaram aos questionamentos sobre o apagamento da história do negro no município de São Mateus, e como essa história poderia ser trabalhada nas escolas localizadas em territórios quilombolas. Uma pesquisa sobre a educação escolar quilombola, focalizando a comunidade de Nova vista. Os dados estão sendo levantados para a construção de um projeto pedagógico voltado para o ensino de história nos anos iniciais das escolas localizadas em territórios quilombolas de São Mateus, inserindo o personagem regional, valorizando assim suas origens através da representatividade cultural e religiosa de personagens das comunidades.
No atual cenário brasileiro, ainda percebemos lacunas existentes entre as políticas educacionais e as práticas escolares cotidianas. Em contrapartida, devemos ponderar alguns avanços no que se referem às políticas públicas de caráter inclusivo e equitativo desenvolvidas no país, como a Lei nº. 10.639/2003, que salientam a obrigatoriedade da educação afro-brasileira e indígena na Educação Básica em todo o país. As conquistas já alcançadas advêm de séculos de luta do povo
GNARUS - 14 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
negro, e devemos permanecer batalhando para a consecução de novas e significativas conquistas em prol da equidade entre todos os brasileiros, independentemente de sua cor de pele. Tal qual a tradição da ancestralidade no Sapê do Norte que, em meio a tantos entraves conferidos pelos interesses de grandes empresas privadas e da ociosidade pública, sobrevivem e resistem, mesmo que cercadas pelos eucaliptais, sendo necessário fazer valer as políticas públicas já existentes e que, estão mais distantes dessa população.
Anaclecia Vieira de Jesus é Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1999), Associate in Social Work pela Florida Christian University (2011), Licenciada em Letras Português/Inglês pelo Centro Universitário Estácio (2015) Especialista em Alfabetização e Letramento pela Faculdade Multivix, Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica (Ensino, Sociedade e Cultura: Ciências Humanas e Sociais) no Centro Universitário Norte do Espírito Santo - UFES.
Maria Alayde Alcântara Salim é Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (1991), Especialista em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (2007), Mestrado em Educação – PPGE/CE/UFES (2001), Doutorado em Educação - PPGE/CE/UFES (2001). Atualmente é professora adjunto IV no Departamento de Educação e Ciências Humanas e professora permanente do Programa de PósGraduação em Ensino na Educação Básica – DECH/ PPGEEB/CEUNES/UFES.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Org.). Terras de preto no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. São Luís: Projeto Vida de Negro/ CCN/MA, 2002.
BRASIL. Constituição (1988). Artigo 215 do Título VIII: da ordem social. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2016. p. 65.
_______. Constituição (1988). Artigo 216 do Título VIII: da ordem social. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2016. p. 65-66.
_______. Constituição (1988). Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2016. p. 83.
_______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB/DICEI, 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2019.
_______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Escolar Quilombola. Brasília, 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2019.
_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 2005.
_______.
Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 1990.
_______. Ministério da Cultura. Comunidades de remanescentes quilombolas tituladas
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador - Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BOSI, Ecléa. Memórias de vida, memórias de guerra: uma investigação psicológica sobre o desenraizamento social. 2002. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
MACIEL, Cleber. Negros no Espírito Santo. Vitória, 2016
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância. PetrópolisRJ: Editora Vozes Ltda., 1980.
MUNANGA, Kabengele.; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.
GNARUS - 15 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ALMEIDA, A. W. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. (Org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002. APPLE, M. Política Cultural e educação. São Paulo: Cortez, 2001a.
O’DWYER, E. C. (Org.). Terra de quilombos. Rio de Janeiro: Boletim da Associação Brasileira de Antropológica. 1995
GNARUS - 16 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
PALAFITAS E MODO DE VIDA LACUSTRE NO MARANHÃO: RELATOS COLONIAIS E NATURALISTAS
Por Alexandre Guida Navarro e Marilene da Silva Banhos
RESUMO: Esta nota de pesquisa refere-se ao projeto PIBIC do ano de 2019 a 2020 levado a cabo no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Maranhão (LARQ-UFMA). O objeto de estudo são as estearias, sítios arqueológicos de palafitas localizados no estuário do Maranhão. As pesquisas arqueológicas recentes identificaram que todos os sítios de estearias são pré-coloniais, nesse sentido, o projeto em questão buscou analisar se na documentação histórica (crônicas e relatos de naturalistas) também há relatos desses povos. A conclusão é que os europeus tiveram contato com essas sociedades, e que é uma questão de tempo para que as pesquisas encontrem os sítios do período colonial.
Palavras-chave: Estearias. Cronistas. Naturalistas. Maranhão
Introdução
Entre o século I d.C. até o século XIII, o estuário maranhense esteve habitado por povos indígenas que viviam dentro de lagos e rios sobre palafitas (Navarro, 2013, 2016, 2017a, 2017b, 2018a, 2018b, 2019, 2020; Corrêa et al. 1991; Prous, 1991; Martin, 1996). Os sítios arqueológicos que evidenciam estas ocupações são chamadas de estearias (em alusão à palavra esteio, i.e, postes de sustentação das aldeias) e ainda se desconhece sua filiação cultural e linguística. O tema ainda foi pouco pesquisado. No entanto, a partir de 2013, Navarro tem estudado estes sítios arqueológicos e trazido à luz informações importantes sobre o
modo de vida destes povos, como por exemplo, a associação cultural com outras sociedades amazônicas desta época. Assim como os povos de tradições Policroma da Amazônia (Neves, 2012) ou Inciso-Ponteada (Gomes, 2001), os povos das estearias produziram uma complexa indústria cerâmica caracterizada por vasilhames polícromos, com incisões, fusos, cachimbos e estatuetas e uma indústria lítica elaborada evidenciada pela confecção de muiraquitãs, pedras verdes de jade comercializadas com o norte da América do Sul, Antilhas e Caribe (Navarro, 2017, 2020).
Quanto ao porquê da escolha do ambiente lacustre para moradia, as explicações repousam sobre a facilidade de se conseguir o recurso
GNARUS - 17 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
alimentício, neste caso os peixes, e a defesa da comunidade, uma vez que o acesso de possíveis grupos inimigos fica dificultado pela posição estratégica em meio à água (Navarro, 2018a, 2018b). Embora Navarro não tenha conseguido demonstrar ainda que estas ocupações adentrassem o período colonial, uma vez que as datações radiocarbônicas evidenciam que todos os sítios arqueológicos são pré-coloniais, existe certa recorrência do registro de grupos palafíticos na documentação histórica, o que mostra que talvez estas ocupações ainda pudessem existir após ou durante a Conquista europeia (Navarro, 2017b).
Com o intuito de investigar esta possibilidade, foi desenvolvido um plano de trabalho PIBIC intitulado “A vida dos povos das palafitas nas crônicas coloniais do Maranhão” desenvolvido pela aluna de graduação de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e estagiária do Laboratório de Arqueologia (LARQ) Marilene da Silva Banhos. A partir da leitura desse material histórico, destrincha-se uma discussão sobre as estearias e a possibilidade destas habitações palafíticas após o contato com os europeus. Os resultados obtidos nesta pesquisa contaram com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Metodologia
A metodologia utilizada para o exercício deste trabalho se deu em duas etapas principais. A primeira compreendeu a leitura de crônicas coloniais, que forneceram o suporte necessário para o entendimento de populações indígenas que viviam sobre esteios no meio de rios e lagos no começo e no decorrer da colonização europeia
Figura 1. Mapa da localização dos sítios de estearias e a evidência dos esteios no sítio Cabeludo, município de Santa Helena, Baixada Maranhense. Fotografia ACERVO LARQ, 2019.
nos séculos XVII e XVIII.
As crônicas utilizadas para pesquisa, que relatam indígenas vivendo sobre palafitas na região estudada, foi a obra do Padre Yves D’Évreux intitulada de “História das coisas mais memoráveis ocorridas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614” escrita no século XVII e a obra do Padre João Daniel de nome “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas” escrita no século XVIII.
Na segunda etapa, ainda levantando informações textuais a respeito das populações palafíticas, partimos para a análise dos livros dos viajantes e naturalistas que exploraram a Amazônia no século XIX, uma vez que eles escreveram sobre o modo de vida e tipos de moradia das populações indígenas e não indígenas que viviam próximas aos rios e lagos ou em regiões alagadas. Foi analisada a obra do médico e explorador alemão Robert Avé – Lallemant intitulada “No rio Amazonas”, a
GNARUS - 18 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
obra do naturalista inglês Alfred Russel Wallace de nome “Viagens pelo Rio Amazonas e Negro”, os escritos do também naturalista inglês, Henry Walter Bates1 que tem como título “Um naturalista no Rio Amazonas” e por último a obra pioneira dos estudos sobre as estearias escrita pelo jornalista e geógrafo maranhense Raimundo Lopes de nome “O torrão maranhense”.
Durante as etapas, estudou-se também as primeiras impressões dos cronistas e naturalistas em relação aos indígenas para que não caíssemos no discurso colonizador e do cristianismo dos escritores e pudéssemos fazer uma análise que pudesse evidenciar os protagonismos indígenas2 que acabaram ficando nas entrelinhas do discurso.
Discussão
Yves D’Évreux
Yves D’Évreux foi um padre francês que participou da expedição enviada ao Maranhão em 1612 pela França.3 Évreux foi o primeiro cronista que esteve no Maranhão que fez menção aos povos que viveram em palafitas no período colonial no período de 1613 e 1614. Em uma primeira passagem, o francês escreve sobre os
1 Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates foram dois naturalistas que vieram para o Brasil juntos com o intuito de coletar insetos e outras espécies de animais da Floresta Amazônica para, posteriormente, vendê-las aos colecionadores ingleses.
2 Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates foram dois naturalistas que vieram para o Brasil juntos com o intuito de coletar insetos e outras espécies de animais da Floresta Amazônica para, posteriormente, vendê-las aos colecionadores ingleses.
3 Yves D’Évreux veio para o Brasil com mais 3 padres na expedição de 1612. Um deles foi Claude D’Abeville, padre que ficou pouco tempo antes de retornar à França e que escreveu outra crônica rica em detalhes. Essa crônica não foi utilizada nos estudos pois não fornecia informações a respeito da pesquisa.
camarapim que moravam em palafitas: “O rio Pará, desde a foz, ao longo das margens, é muito povoado de tupinambás; chegando [o Sr. de la Ravardière] à última aldeia, situada a 60 léguas da sua embocadura, todos os principais desses lugares lhe pediram insistentemente que fosse guerrear os camarapins, que são muito ferozes, que não querem paz como ninguém, e por isso não poupam os inimigos, pois quando os cativam, matam-nos e comemnos; (...) Este exército de franceses e de tupinambás, em número de 1.200, saiu do Pará entrou no rio dos Pacajaras, daí dirigiu-se ao de Parisop, onde encontraram Uaceté ou Uacuaçu, que, simpatizando com este movimento, ofereceu para reforçálo 1.200 dos seus companheiros. Aceitouse apenas um pequeno número deles, que os acompanhou, e os encaminhou ao lugar onde residiam os inimigos, os quais encontravam-se nas Iuras, que são casas feitas à imitação das Ponts aux Changes e de S. Michel de Paris, colocadas no cume de grossas árvores plantadas na água. Foram imediatamente cercados pelos nossos, que os saudaram com 1.000 ou 1.200 tiros de mosquetaria em três horas. (ÉVREUX, 2007, p.30).”
Após esse acontecimento, o cronista escreve outro de igual importância sobre os camarapim:4 “Durante o medonho combate dos mosqueteiros, usaram os selvagens de uma esperteza singular pendurando os seus mortos no parapeito de suas Iuras, e por meio de uma corda de algodão amarrada aos pés deles faziam que se mexessem ao longo das aberturas; os franceses viam aqueles corpos, e julgando-os vivos faziam fogo três e quatro vezes contra eles a ponto de ficarem despedaçados, o que provocava os gritos e zombaria daqueles canalhas.
4 Optamos por utilizar inicial maiúscula e não flexionar gênero e número dos nomes de sociedades indígenas em respeito à Convenção para a grafia de nomes indígenas. importante ressaltar que utilizaremos a palavra Tupinambá quando nos referirmos aos diversos grupos Tupi da documentação colonial consultada, pois assim foram tratados pelos cronistas.
GNARUS - 19 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Quando uma de suas mulheres apareceu fazendo sinais com um pano de algodão, significando que queria parlamentar. Todos pararam de atirar. Então ela gritou: “Vuac, Vuac.”, “Por que trouxeste estas bocas-defogo (falava dos franceses por causa da luz, que saía das caçoletas de suas armas) para arruinar-nos, e apagar-nos da terra? Pensas contar-nos no número dos teus escravos? Pois aqui estão os ossos dos teus amigos e aliados, cuja carne comi, e ainda espero comer a tua e a dos teus”. Pelos intérpretes se disse a ela que se entregasse a fim de salvar os outros do fogo. “Não, não”, respondeu ela, “jamais nos entregaremos aos tupinambás, eles são traiçoeiros. Eis aqui os nossos principais, que morreram vítimas dessas bocas-de-fogo de gente que nunca vimos. Se for necessário, morreremos todos, voluntariamente, como fizeram nossos grandes guerreiros. Nossa nação é grande, e vingará a nossa morte” (ÉVREUX, 2007, p.31)
pelo próprio Daniel de La Touche - La Ravardière5 -, os camarapins poderiam ter sido um povo que teve contato com os tupinambá para os europeus compreenderem o idioma falado por eles, caso contrário, os franceses não iriam entender as falas desse grupo.
João Daniel
Partindo dessas duas citações sobre os camarapim, podemos fazer algumas considerações a respeito desse grupo indígena. As suas construções estavam sobre a água, o que os caracteriza como povos palafíticos, a sua morada era forte o bastante para aguentar o tiro do canhão e as investidas dos europeus e esse grupo tinha estratégias de guerra como podemos observar na segunda citação, penduravam os seus mortos nas barreiras de suas “iuras” para enganar os europeus, estes que os julgavam ainda vivos.
Uma questão sobre a citação do padre francês que deve ser observada é o idioma desses povos, pois não sabemos a origem do registro desse relato. Se essas informações vieram de um Tupinambá, grupo com o qual Évreux tinha contato, ele poderia saber o idioma dos camarapim para ter entendido as falas deles e, assim, reproduzi-las ao padre. Caso a informação tivesse vindo de um tradutor europeu, os chamados “línguas”, ou
João Daniel foi um padre jesuíta e missionário que atuou no Rio Tapajós e Amazonas no período pombalino, sendo que foi preso por ordens de Sebastião Carvalho, o Marquês de Pombal (ARAÚJO, 1999). No seu período de cárcere escreveu a obra que é analisada nesse relatório. O padre escreve sobre uma região maior do que a proposta por esse trabalho, mas suas análises são importantes para entendermos as sociedades indígenas estudadas. O jesuíta escreveu sua obra no século XVIII, um século depois de D’Évreux, e ainda podemos observar povos palafíticos como na citação a seguir: “Tem abaixo o seu séquito o rio Purus, assim chamado pela nação dos índios purus, que nele habita e em seus grandes lagos; é de comprida navegação para cima de um mês, e nas suas cabeceiras, dizem que há grandes, e excelentes campinas, onde se apascentam grandes manadas de gado vacum pastoreado, como alguns dizem, por gente a cavalo, ou sejam índios, ou castelhanos. Tem este rio grandes praias, e muitos lagos, sobre os quais vivem em seus tijupares os índios purus, e outros.” (DANIEL, 2004, p. 55-56)
Daniel começa a citar os povos que viviam em palafitas com a sociedade dos “purus”.
5 Daniel de La Touche foi um general que liderou expedições francesas em 1612 com o objetivo de iniciar o projeto colonizador no Norte do Brasil, denominada França Equinocial.
GNARUS - 20 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Ainda nessa citação, o padre nos informa que além dos purus há outras nações palafíticas que vivem dentro dos rios, mas não diz os nomes das sociedades. Seguimos com as citações sobre os povos palafíticos:
“Muitas nações vivem sobre lagos, ou no meio deles, onde têm em cima da água as suas casas feitas da mesma sorte, e só com o ádito de serem de sobrado, que levantam de varas, e ramos de palma, e nelas vivem contentes, como peixe na água. A razão de fabricarem nos lagos as suas povoações e moradias é em uns pela grande fartura que neles têm de tartarugas, bois marinhos, e mais pescado, em outros é para estarem mais seguros dos assaltos dos seus inimigos.” (DANIEL, 2004, p. 280)
falar sobre os purus e, com a citação a seguir, nos dá várias pistas sobre a alimentação e o tipo de armas dessa sociedade:
“Purus é uma nação que habita sobre os lagos do rio Purus, que dele tomou o nome. Não tem uso de comer a farinha de pau, como todas as mais nações do Amazonas; não sei se por não terem o trabalho de a cultivar, se por não serem aptos para estas sementeiras os seus lagos; porque quer terra firme a mandioca, em lugar dela têm por sustento usual várias frutas do mato, de que fazem farinha, ou as comem e levam assim mesmo a dente, como macaco. (...) Também não usam de arcos-e-frechas, como os mais índios, mas todas as suas armas são a balesta, em que são destríssimos, e mais que insignes frecheiros.” (DANIEL, 2004, p. 360)
Essa passagem nos informa que existiam sociedades que viviam no meio de lagos, como as que o Laboratório de Arqueologia (LARQ/ UFMA) confirmou com o mapeamento dos sítios arqueológicos, nos diz como Daniel via as construções dos indígenas, que, segundo ele, se assemelhavam a sobrados. Há uma relação com o meio ambiente na escrita de Daniel quando ele afirma que esses povos viviam “contentes como os peixes na água” (P. 280) e nos responde o porquê essas sociedades escolheram viver sobre rio e lagos.
Para o padre, esses povos viviam sobre os lagos devido a fartura de alimentos como peixes e tartarugas. Isso possibilitaria o fácil o alcance a esse tipo de alimento vivendo dentro da água. Além disso, Daniel também explana sobre a segurança que os povos das estearias poderiam ter aos ataques dos inimigos, como já vimos com os camarapim que resistiram aos ataques dos europeus nas citações de Yves D’Évreux. Essas duas explicações que Daniel cita como motivo para esse tipo de moradia é bem conveniente. João Daniel, em um momento posterior, volta a
Daniel nos informa com essa passagem que os povos Purus não faziam o uso de mandioca como as demais sociedades do Amazonas e levanta questões sobre o porquê de não a usarem, e diz ainda que no lugar da raiz fazem uso de várias “frutas do mato”. No final da passagem o jesuíta escreve que os Purus não usam arco e flecha como as demais nações, usam apenas a balesta6 . Chegando ao final das citações do Padre João Daniel, escolhemos terminar com uma passagem de muita importância que trata de um assunto muito valioso para os estudos da temática indígena: os Muiraquitãs, ainda que esta citação não esteja relacionada diretamente com os povos das estearias. Segue a citação: “Sobre a sua matéria, há várias opiniões, porque uns dizem que elas se acham em algum ou alguns lados já feitas, e lavradas, como as vemos; outros, com mais probabilidade, dizem que os índios as fazem toda a vez que querem de uma certa espécie de barro finíssimo debaixo da água, e que tirando-as da água já feitas, se endurecem,
6 Balesta ou Balestra é um arco de flechas usado no sentido horizontal e acionado por um gatilho, que projeta dardos parecidos com flechas, porém mais curtos.
GNARUS - 21 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
como pedras, e como as vemos diversos feitios, e figuras. Junto à foz do rio Tapajós está um lago vizinho à missão de Buvari, que os índios têm por sagrado, ou possuído de fantasmas, e por isso se não atrevem a chegar lá; e tem por fama que neste lago se achavam antigamente já feitas estas pedras neufríticas, porém a experiência parece mostra que elas se fazem por arte, não só pelas diversas figuras de animais, e diversos feitios que têm; e serem todas furadas por dentro, ou, se são chatas, com buracos para se poderem dependurar ao corpo, mas muito mais porque por muitas vezes estrangeiros, especialmente castelhanos e franceses, que tem abarcado quantas apreciam, e as pagavam com subido preço, de sorte que parecia não ficar já alguma em algumas povoações; contudo de novo tornam a ver-se nas mesmas com a mesma quantidade que antes; (DANIEL, 2004, p. 561-562)”
de João Daniel ele escreve que os muiraquitãs tinham “buracos para se poderem dependurar ao corpo”, o que também pode ser percebido no artefato encontrado que possui dois furos laterais por onde poderia passar um cordão para ser pendurado.
Robert Avé-Lallemant
Robert Avé-Lallemant foi um médico e explorador alemão, conhecido por suas por contribuir com o sistema de saúde brasileiro. Lallemant escreve no século XIX sobre o que viu durante sua viagem, como a natureza, os animais e as populações indígenas que encontrou durante a exploração na Amazônia.
João Daniel escreve sobre onde essas pedras preciosas eram encontradas, ele explica que essas sociedades já as achavam prontas, significando que talvez esses povos não soubessem confeccionálas. Os muiraquitãs eram utilizados para comércio com os europeus e, possivelmente, com outras nações. É muito provável que esses artefatos fossem um bem de prestígio, resultado do comércio entre a Amazônia, o Caribe e os Andes, como recentemente aventou Navarro (2017a, 2020). Em 2015 o laboratório de Arqueologia encontrou, na estearia Boca do Rio localizada na cidade de Santa Helena, um muiraquitã que lembra um tronco de um sapo e possivelmente uma cabeça antropozoomorfa. O artefato é feito de nefrita (uma espécie de jade), possui 2,8 cm de altura por 1,8 cm de comprimento, tendo dois furos laterais e foi publicado no ano de 2017 no Boletim de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi por Navarro e uma equipe multidisciplinar de pesquisadores. Na explicação
Assim como Yves D’Évreux e João Daniel, o alemão encontrou sociedades que viviam em palafitas séculos depois dos grupos indígenas que os padres relataram. Seus escritos são importantes porque a partir deles podemos traçar certa continuidade nos modos de viver das populações da Amazônia. Segue o trecho: “O quadro na outra margem para onde passamos a tarde à, não era mais consolador. Aí vimos três cavalos dentro da água, afastando as canaranas, sem encontrar onde se deitarem. Muito perto dêsse local, um pequeno povoado, onde se arranjaram dum modo genial. Tinham armado sob folhas de palmeira um balcão de ripas, sobre o qual a família passou a morar quando a água começou a subir lentamente. Fôramos também em auxílio de certo número de cabeças de gado, construindo-lhes sobre troncos de arvore, um pequeno cercado com uma rampa até a água.” (LALLEMANT, 1980, p. 84-85)
Nessa passagem, Lallemant nos dá duas informações sobre as populações que viviam
GNARUS - 22 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
em áreas alagadiças. Foi armado um balcão de ripas para as pessoas morarem quando as águas começassem a subir, e isso nos leva a pensar que essas pessoas, antes do período de cheia, construíram suas casas normalmente em terra e, somente quando a região começava a alagar e prejudicar a vida, montavam suas moradias sobre o “balcão de ripas”.
A outra informação que temos é sobre o manejo com os animais que essas sociedades tinham no período da cheia, pois construíram um cercado para o gado sobre troncos de árvore para passarem a noite longe da água, diferente dos cavalos que não encontravam lugar para se deitar, relatado no começo da citação. Lallemant nos deu pistas sobre o conhecimento e a relação com o meio ambiente dessas populações amazônicas que os padres nos séculos XVII e XVIII não nos deram. D’Évreux e Daniel não deixaram claro se os grupos indígenas viviam em palafitas todo o tempo ou se mudavam de habitação a depender do comportamento dos rios e lagos. Seguimos com as citações de Lallemant: “O homem da floresta parasita, no entretanto, no tronco oco duma amerídea ou da grossa itaúba com 6 ou 7 pés de diâmetro. Seu ancoradouro fica ao pé de toda palmeira, que oferece frutos maduros. Na canoa, onde toda a família habita com ele, seu pequeno fogo nunca se apaga, de maneira que a noite seu brilho se reflete na água, e todo o grupo humano, parasitando entre palmeiras e bombáceas, em troncos escavados, sobre a água, parece viver no ar ou sobre as árvores.” (LALLEMANT, 1980, p. 158)
eram utilizadas por esses grupos para construir os esteios: Amerídea, Itaúba, Palmeiras e Bombáceas. E ainda escreve que esses homens que moravam sobre os troncos escavados na água pareciam viver no ar ou sobre as árvores.
Alfred Russel Wallace
Alfred Russel Wallace foi um naturalista, antropólogo e biólogo inglês. Ele também escreve no século XIX e ele não diz muito sobre as populações que viviam sobre esteios, segue a única citação encontrada sobre o assunto em sua obra: “Tivemos aqui a oportunidade de observar alguma coisa da organização e dos costumes que regem o dia a dia de uma casa rural brasileira. Neste caso, toa a edificação era suspensa sobre pilares, ficando a 4 ou 5 pés acima do chão. Isso é feito para conserválas acima do nível alcançado pelas águas durante as marés de sizígia. Dela descia uma plataforma até o nível das águas normais, terminando por um lance de escada. Esta plataforma, que é também um cais acostável, liga-se com uma varanda, da qual se destaca um salão onde são recebidos os hóspedes e realizados os negócios. Junto dessa varanda fica o engenho de açúcar e alambique.” (WALLACE, 2004, p. 48)
Com essa passagem o alemão escreve sobre as possíveis relações com o homem que vive na floresta e o meio ambiente que o cerca, as árvores e a água. Lallemant nos informa sobre também sobre espécies de madeiras que possivelmente
Com essa passagem, Wallace nos descreve uma construção mais sofisticada das que analisamos anteriormente, mas a característica principal permanece: construída sobre pilares de madeira no meio ou próximo de rios e lagos. Pelo que o naturalista escreve, essa construção parece ser permanente e há, também, um engenho de açúcar e um alambique,7 os seus moradores não são indígenas e nem simples pescadores,
7 Balesta ou Balestra é um arco de flechas usado no sentido horizontal e acionado por um gatilho, que projeta dardos parecidos com flechas, porém mais curtos.
GNARUS - 23 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
mas pessoas que realizam negócios e possuem criados. As características dessa construção nos informam que as habitações em palafitas no século XIX não são somente aspectos de situações socioeconômicas e de vulnerabilidade, mas sim determinadas, também, pelo ambiente em que escolheram viver, nesse caso a região alagada amazônica.
Raimundo Lopes
Raimundo Lopes foi um geógrafo nascido no Maranhão, membro da Academia Maranhense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Fez grandes contribuições ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tombando o primeiro sítio arqueológico em nível nacional, no Maranhão, o sambaqui do Pindaí. Foi autor de várias obras importantes, dentre elas a que é analisada neste trabalho, “O torrão Maranhense”. Lopes, assim como os demais viajantes do século XIX, escreveu sobre as sociedades que moravam em palafitas, mas, sua obra se torna ainda mais importante porque o jornalista visitou a região da Baixada Maranhense e escreveu sobre as estearias maranhenses, tema com o qual o Laboratório de Arqueologia (LARQ) se ocupa. Vamos às citações de Lopes: “É, numa enseada de um dos lagos do grupo do Maracu, - o lago Cajari – uma série de “alinhamentos” de esteios, cuja ordem indicaria serem restos de habitações. Encontraram-se, por aí e no rio próximo, pedaços de madeiramento e de cerâmica rude. Várias hipóteses podiam ser formuladas.(...) Era muito mais simples comparar a ruína lacustres do Cajari às casas-jirau; não precisávamos para isso de idealizar toda uma civilização lacustre préhistórica: trata-se de uma forma de moradia ainda hoje vulgar na região. Mas só o estudo
direto e à luz da investigação arqueológica, poderia precisar se essas ruínas datam dos tempos coloniais propriamente ditos, ou, mais provavelmente, - pensamos – da época dos jesuítas, não sendo impossível que representassem um produto exclusivo do selvagem. A sua destruição não se precisaria explicar por cataclismos.” (LOPES, 1960, p. 138-139)
Lopes, ao visualizar os esteios nos sítios arqueológicos, já levantava questões sobre as moradias lacustres. A povoação encontrada por Lopes não foi construída em terra e depois invadida pela água, ela foi construída primeiramente sobre a água, como constatamos com os cronistas já analisados. Seguimos com mais algumas passagens de Lopes: “Era, realmente, um habitat análogo ao dos atuais sítios-jiraus, mas em proporções de verdadeira cidade lacustre e contendo os vestígios de uma cultura indígena própria (machados de pedra, cerâmica pintada e modelada, inclusive “fusaiolas” etc.), sem mistura de influxo colonial. (...) A história e a tradição local concordam em desconhecer a existência desses pôvos. (...) A estearia, na sua maior parte, é pobre de documentação. Num contraste, num pequeno grupo isolado de esteios, na parte mais afastada das margens, se encerra a quase totalidade dos objetos. Por isso êsse ponto foi, pelos moradores, denominado “cacaria”. (...) A grande proporção, porém, de boas maneiras na “estearias” milita em favor da ideia de que esta suportou construções a altos níveis.” (LOPES, 1960, p. 140-142)
Nesta passagem, Raimundo Lopes nos dá alguns aspectos importantes para serem analisados. No primeiro trecho, o geógrafo comenta sobre as peças por ele encontradas, como os machados, a cerâmica pintada e “fusaiolas” (fusos) e comenta sobre não haver indícios de interferências coloniais. Com relação às peças arqueológicas,
GNARUS - 24 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
o LARQ encontrou muitos desses itens descritos por Lopes. Logo depois, Lopes escreve que os moradores do local desconhecem a existência desses indígenas e há pouca documentação sobre o assunto, o que ainda hoje persiste. A seguir Lopes comenta sobre o sítio da “Cacaria” possivelmente o local onde ele encontrou muiraquitãs na sua expedição. Essas pedras, muito estimadas por índios e europeus, foram analisadas por Navarro e Prous8 antes do incêndio do Museu Nacional –RJ (onde os artefatos estavam armazenados e, infelizmente, se perderam) em 2018.
No último trecho, o jornalista escreve que a alta proporção dos esteios corrobora a afirmativa de que eles sustentaram grandes construções, ou seja, não eram simples casas que abrigavam poucas pessoas, havia uma grande massa populacional morando em cima dos esteios. Daí o porquê de haver a necessidade de muitos deles, a quantidade de material arqueológico encontrado nos sítios também sustenta essa afirmação. Há mais trechos de Raimundo Lopes para analisar, vamos a eles:
“As estearias lacustre do Cajari e do Pericumã (Encantado) e a maior parte das do rio Turi apresentam cerâmica pintada e modelada, com figuras de animais e, acidentalmente, ornatos gravados e (no Turi) figuras humanas e formas ditas “arcaicas”, isto é, esquemáticas. A estearia do lago do Sousa, entretanto, tem uma cerâmica com ornatos gravados, sem pinturas, e diferente tanto nos motivos como no aspecto do barro, de tôdas as outras que se conhecem na região. Os artefatos de pedra são machados de diábase e outras rochas, muiraquitãs (Cajari) de pedras verdes etc. (...) Também o fato de ser feito de uma pedra com os característicos essenciais da nefrite um dos muiraquitãs do Cajari, não importa na origem longínqua, asiática, por exemplo, que foi atribuída a êsse material, sabido como é que existe nefrite no Brasil
8 Navarro e Prous (2020).
(machados de blocos brutos de Amargosa na Bahia, col. do Museu Paulista).” (LOPES, 1960, p.183-185)
Lopes escreve aqui sobre o sítio do Lago do Souza, que possui uma cerâmica diferente dos demais. Este sítio é o mais antigo já datado pelo Laboratório de Arqueologia (LARQ/UFMA). Por ter a cerâmica muito diferente dos demais sítios podemos inferir que a sociedade que vivia ali não teve contato com os demais grupos que também viviam em estearias, mas que surgiram depois na mesma região. Em seguida, Lopes descreve os muiraquitãs encontrados por ele, suas possíveis origens e a matéria prima que ele acredita terem sido confeccionados. Ainda sugere, no final da passagem, possíveis trocas realizadas entre indígenas que, ainda hoje, acreditamos terem sido realmente feitas. Esses são os muiraquitãs analisados por Navarro e Prous (2020).
Conclusão
As estearias são um tipo de sítio arqueológico único no contexto da arqueologia brasileira, pois estão localizadas somente na Baixada Maranhense. São os vestígios de sociedades lacustres que viveram em palafitas. Este tipo de moradia é de longa duração, ou seja, o diálogo interdisciplinar entre a História, Antropologia e Arqueologia tem fomentado uma reescrita da história de longa duração tendo os indígenas como coparticipes dela, na qual a história não tem seu início marcado pela colonização.
Com isso, a partir das leituras e interpretações dos cronistas do século XVII e XVIII e dos viajantes e naturalistas do século XIX, percebemos que, mesmo em épocas diferentes, o padrão de moradia permanece quase o mesmo, ou seja,
GNARUS - 25 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
casas suspensas sobre a água em uma região alagada nas quais os seus habitantes usam do ambiente a sua volta para sobreviver. Esta é uma das principais conclusões deste trabalho.
Chamamos a atenção de que morar sobre esteios, naquelas épocas, não era sinônimo de pobreza, pois famílias registradas por viajantes tinham até engenhos de açúcar e alambiques como negócio. Seus tipos de moradias, nesses casos, são resultantes da escolha de morar em uma região alagada, portanto, estão em sincronia com o meio ambiente uma vez que são adaptações humanas bem-sucedidas. Este processo é diferente dos de grandes centros urbanos atuais onde podemos observar famílias em moradias como essas, mas em situações precárias e que sofrem com o violento processo de marginalização.
Os indígenas que escolheram morar em palafitas, assim como as famílias do XIX, tinham condições de manter uma vida sem precisar passar por dificuldades, a prova disso está nos muiraquitãs encontrados. Eram grupos bem adaptados a este meio lacustre. Prova disso são os muiraquitãs encontrados nos sítios, objetos preciosos com indícios de comércio com outros grupos mais distantes.
Do ponto de vista histórico, tanto os indígenas do século XVIII e as populações do século XIX, viver sobre os rios e lagos é uma opção viável por questões de alimentação porque facilita a pescaria, além da defesa, pois dificulta o acesso dos inimigos. Evidência desse processo é que até hoje os grupos humanos ainda vivem em palafitas na Amazônia, o que ratifica, mais uma vez, um processo histórico de longa duração.
Por fim, é possível que as pesquisas em curso no Laboratório de Arqueologia da UFMA ainda
encontrem os sítios coloniais, uma vez que este trabalho demonstrou que europeus tiveram contato com indígenas que viveram em palafitas no período colonial. Assim, o mundo das estearias é um espaço amplo para pesquisa, ainda há muito trabalho pela frente e descobertas para serem feitas.
Alexandre Guida Navarro é Professor Doutor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (DEHIS/UFMA) e coordenador do Laboratório de Arqueologia (LARQ). Instituição: Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Marilene da Silva Banhos é Graduada em História e colaboradora do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Maranhão (LARQ/ UFMA). Instituição: Universidade Federal do Maranhão - UFMA Referências
ALFRED Russel Wallace. Britannica, 2020. Disponível em: https://www.britannica. com/biography/Alfred-RusselWallace#ref667707. Acesso em: 14 set. 2020.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
ARAÚJO, Marcos Dias. João Daniel e seu tempo: tradição e a modernização na experiência jesuítica no período pombalino, 1999. Dissertação (Mestrado em História) –Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999.
BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas. Tradução de Regina Junqueira. Editora Itatiaia. São Paulo, 1979.
BURKE, Peter. História como memória social. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
GNARUS - 26 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e os perspectivismos ameríndios. In: Mana (Rio de Janeiro) Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996.
CORRÊA, Conceição G.; MACHADO, Ana Lúcia; LOPES, Daniel F. As estearias do lago Cajari MA. In: Anais do I Simpósio de Pré-História do Nordeste Brasileiro, n. 4, p. 101-103, 1991.
COUTO, Jorge. As tentativas portuguesas de colonização do Maranhão e o projeto da França equinocial. In: Ventura, Maria da Graça Mateus (coord.), A União Ibérica e o Mundo Atlântico. Lisboa: Edições Colibri, 1997, pp. 171-194.
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, v. 1 – Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2004
ÉVREUX, Yves D’. História das coisas mais memoráveis, ocorridas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2007.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. Contexto: São Paulo, 2003.
GOMES, Denise M. C. Santarém: Symbolism and Power in the Tropical Forest. In: McEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo. (orgs.) Unknown Amazon. Londres: British Museum 16 Press, 2001. p. 134-155.
HW Bates. Britannica, 2020. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/HW-Bates. Acesso em: 14 set. 2020
LALLEMANT, Robert Avé. No rio Amazonas (1859). São Paulo: Editora Itatiaia, 1980.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.
LOPES, Raimundo. O torrão Maranhense. Rio de Janeiro. Typographia do Jornal do Commercio, 1960.
MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste
brasileiro. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
NAVARRO, Alexandre G. O complexo cerâmico das estearias, Maranhão. In: Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: Museu Emilio Goeldi e IPHAN, vol. 1, p. 158-169, 2016.
NAVARRO, Alexandre G.; MARINHO, D.; GOUVEIA NETO, J. C. O imaginário do mundo das águas: lendas, narrativas e histórias ancestrais sobre a vida dos povos das estearias. In: Revista Nordestina de História do Brasil, v. 2, p. 45-61, 2020.
NAVARRO, Alexandre G.; SILVA JUNIOR, J. S. E. Cosmologia e Adaptação Ecológica: o caso dos apliques-mamíferos das estearias maranhenses. In: Anthropológicas, v. 30, p. 203-233, 2019.
NAVARRO, Alexandre G. New evidente for the late first millennium AD stilt-house settlements in Eastern Amazonia. In: Antiquity, v. 92, n. 366, p. 1586-1603, 2018a.
NAVARRO, Alexandre Guida. As cidades lacustres do Maranhão: as estearias sob um olhar histórico e arqueológico. In: Diálogos, v. 21, p. 126-142, 2017b.
NAVARRO, Alexandre G. Morando no meio de rios e lagos: Mapeamento e análise cerâmica de quatro estearias do Maranhão. In: Revista de Arqueologia, v.31, 2018b.
NAVARRO, Alexandre G. O muiraquitã da estearia da Boca do Rio, Santa Helena, Maranhão: estudo arqueológico, mineralógico e simbólico. In: Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 3, p. 869-894, set.-dez. 2017a.
NAVARRO, Alexandre G. O povo das águas: carta arqueológica das estearias da porção centro-norte da baixada maranhense. In: Cad. Pesq., São Luís, v. 20, n. 3, 2013.
NAVARRO, Alexandre G.; PROUS, André.
GNARUS - 27 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Os Muiraquitãs das estearias do lago Cajari depositados no Museu Nacional (RJ): Estudo tecnológico, simbólico e de circulação de bens de prestígio. In: Revista de Arqueologia, Vol. 33. No. 2. Maio-Agosto, 2020.
NEVES, Eduardo G. MORAES, Claide de Paula. O Ano 1000: Adensamento Populacional, Interação e Conflito na Amazônia Central. In: Amazônica: Revista de Antropologia (Impresso), v. 4, p. 122-148, 2012.
NEVES, Joana. História Local e Construção da Identidade Social. Saeculum – Revista de História. João Pessoa: Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba, n. 3, jan./dez. 1997.
PROUS, André. Alimentação e “Arte” rupestre: nota sobre alguns grafismos pré-históricos brasileiros. In: Revista de Arqueologia, v. 6, p. 1-14, 1991.
PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília: UnB, 1992.
RAIMUNDO Lopes. Wikipedia, 2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Raimundo_Lopes. Acesso em: 14 set. 2020.
ROBERT Christian Avé-Lallemant. Wikipedia, 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia. org/wiki/Robert_Christian_Av%C3%A9Lallemant. Acesso em: 14 set. 2020
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Rio Amazonas e Negro. Notas de Basílio de Magalhães. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
GNARUS - 28 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
A FORÇA DA ESCRAVIDÃO SOB A LENTE DE UMA MODESTA CIDADE: PORTO FELIZ, SÃO PAULO, NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS
RESUMO: Este artigo intenciona compreender a força da escravidão nos anos derradeiros do sistema escravista no Brasil imperial. É de conhecimento popular que a despeito da proibição do tráfico atlântico de almas através da Lei Feijó, em 1831, o tráfico de africanos continuou em números significativos até a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, quando enfim o tráfico foi abolido, mas não a escravidão. Contudo, como é sabido, a escravidão perdurou até 13 de maio de 1888, por quê? O sistema estava moribundo e fadado ao fracasso após 1850? Apenas a elite cafeeira do Sudeste tinha interesse na escravidão pós 1850? Este artigo visa apreender a força da escravidão por intermédio do enraizamento de valores pertinentes do escravismo que conduziram, até o fim da escravidão por força de lei, a relação senhor-escravo.
Palavras-chave: Escravidão; Liberdade; Posse Escrava.
Introdução
Em 1720, em torno da capela Nossa Senhora da Penha, deu-se o povoamento português do que viria a se chamar, em fins do século XVIII, de vila de Porto Feliz, em São Paulo. Construída por doação de Antônio Cardoso Pimentel, em sua sesmaria às margens do Rio Tietê, já no ano de 1728 a capela foi elevada à condição de freguesia de Araritaguaba.1 Pertencente a vila de Itu, Araritaguaba, posterior
1 CALIL, Maria Clara de Oliveira; SALGADO, Ivone. Configuração espacial de Porto Feliz: Capela em 1720, Freguesia em 1728, Vila em 1797. In: XX Encontro de Iniciação Científica da PUC Campinas, 2015, Campinas. Anais do XX Encontro de Iniciação Científica da PUC Campinas. Campinas: PUC Campinas, 2015.
Porto Feliz, tem sua história vinculada à rota das monções, quer dizer, é impossível pensarmos a construção de sua história sem perpassar pelas monções,2 embora o século XIX, que nos interessa propriamente, reservasse outros aspectos.
Iniciado com intuito de apressar indígenas por bandeirantes, à rota das monções fora redefinida após as descobertas das minas de Coxipó-Mirim e Cuiabá, sem deixar, contudo, de manter o apressamento indígena. Araritaguaba, constituise, assim, como principal rota fluvial para a extração
2 As monções foram expedições fluviais, empreendidas por bandeirantes, que visavam o aprisionamento de indígenas e, sobretudo, a exploração de metais preciosos.
GNARUS - 29 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Por Carlos Santos da Silva
de metais preciosos das minas de Coxipó-Mirim e Cuiabá. Com efeito, a rota fluvial impulsionou um mercado interno com a finalidade de estruturar o abastecimento dos expedicionários. Segundo Silvana Godoy, utilizando as listas nominativas de habitantes de Araritaguaba, a produção de alimento se destacava, mas fora seguida pela construção de canoas, pecuária e fornecimento de mão de obra especializada.3 Convém ressaltar a ampla utilização do trabalho escravo, indígena e africano, dentre os moradores de Araritaguaba/ Porto Feliz. Gonçalo Arruda, por exemplo, em 1776, produzia “com os esforços de seus 12 escravos, 300 alqueires de milho, 50 de feijão. Contava ainda 15 cabeças de gado e 16 porcos.”4
Em 1748, por solicitação dos moradores e de um padre local, foi inaugurado uma igreja em decorrência do aumento populacional. A nova igreja, porém, não seria consagrada à Nossa Senhora da Penha, mas à Nossa Senhora Mãe dos Homens.5 Em fins do Século XVIII, mais precisamente em 1797, a freguesia de Araritaguaba passava à condição de vila Nossa Senhora Mãe dos Homens de Porto Feliz. Tal ocorrência era uma demanda dos signatários locais que advogavam que a vila possuía mais de três mil pessoas de confissão, sendo o maior porto da rota das monções, além de deterem uma presença constante de comerciantes ligados às minas.6 Mas, segundo Roberto Guedes, a
3 Com mão-de-obra especializada me refiro aos guias, proeiros e remeiros.
4 GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 – 1838). CAMPINAS, Instituto de Economia, 2002. Diss. Dissertação.p.126; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções e Capítulos de expansão paulista. 4.ed. Org. Laura de Mello e Souza, André Sekkel Cerqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014
5 CALIL; SALGADO. Configuração espacial de Porto Feliz, 2015.
6 GODOY. Itu e Araritaguaba na rota das monções, 2002,
motivação compunha-se, também, de outros aspectos, tais como a expansão açucareira de fins do século XVIII, ademais de uma elite local de homens preparados para o exercício de cargos públicos.7
Por todos os lados, em todos os cantos: pluralidade senhorial em Porto Feliz.
O leitor, quiçá se pergunte, por que recuei para o início do século XVIII, se minha intenção é tratar de aspectos escravistas ocorridos na segunda metade do Oitocentos? Ademais do contexto local como pano de fundo para tornar compreensível a realidade de Porto Feliz na segunda metade do século XIX, se faz necessário ratificar que esta, desde sua gênese, sempre fora uma sociedade escravista, ou seja, se constituiu em cima da mão de obra escrava. Aspecto deveras importante para compreendermos a resistência do sistema escravista em Porto Feliz entre os anos derradeiros do escravismo no Brasil imperial.
Voltada, em seus anos iniciais, à produção de alimentos e suporte para a rota das monções, Araritaguaba, juntamente com Itu, vila a qual era pertencente, continha 1.956 escravos de 6.194 habitantes em 1773, ou seja, 31,6% da população local. Em 1803, Porto Feliz e Itu contavam 13.548 habitantes, sendo 5.453 escravizados, extraordinários 40,2% dos residentes.8 Tal importância intensificou-se na primeira metade do século XIX, como veremos a seguir. p.122.
7 GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008. p.3031.
8 GODOY. Itu e Araritaguaba na rota das monções, 2002. p.129. Cf. Tabela 2.
GNARUS - 30 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
A primeira metade do Oitocentos, em Porto Feliz, assistiu à disseminação da lavoura canavieira. Com efeito, fruto da expansão canavieira, empreendida pelo governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Souza Botelho. O chamado quadrilátero do açúcar, compreendendo as regiões de Piracicaba, Mogi-Guaçú, Sorocaba e Jundiaí, foram possíveis devido ao aumento da demanda açucareira no mercado europeu. 9
A fundação de engenhos impactou demograficamente, dado que se observa aumento populacional de livres e escravos, mas não significou mão-de-obra escrava restrita aos engenhos e, por mais que tenha ocorrido certa concentração de escravos por grandes senhores, não se constituiu em uma sociedade de grandes escravarias em detrimento de pequenos e médios senhores. Os escravos continuaram executando serviços diversos: produção de alimentos, construção de canoas, serviços domésticos, criação de gados etc.10 Em que pese observarmos os escravos em todos os serviços, não há como negar que a expansão canavieira modificou a configuração de livres, libertos e escravos em Porto Feliz. A oferta de escravos advinda do Porto do Rio de Janeiro aos poucos fez com que os africanos fossem maioria dos escravizados, primeiro nos grandes plantéis, mas respectivamente nos plantéis médios e pequenos igualmente.11
Ora, sabemos que se trata de uma sociedade escravista, com os escravos inseridos em
9 Cf. ZEQUINI, A. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Itu: 2005. Disponível em:< http://www.itu.com. br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6941 >. Acesso em:20/10/2020; ARCHELA, Rosely Sampaio. A agroindústria canavieira no setor de Porto Feliz. Geografia (Londrina), Londrina, v. 4, p. 38-48, 1987.
10 GUEDES, Egressos do cativeiro, 2008, p.29-67.
11 Idem.p135.
toda a organização social.12 Mas como esses cativos13 estavam distribuídos? Há tempos nossa historiografia já questionou a imagem do grande senhor da casa grande com sua extensa escravaria, demonstrando que houve relevante número de pequenos e médios senhores,14 embora tais interpretações – focada nos grandes plantéis – sejam invariavelmente retomadas com ressignificações.15 Tratando-se de Porto Feliz, uma pequena área rural, mesmo com a crescente produção açucareira, não destoou do padrão encontrado na América portuguesa/ Brasil imperial, quer dizer, número expressivo de pequenos e médios senhores, a despeito do fortalecimento de grandes senhores escravistas.
A paisagem social nos idos do Oitocentos contou, cada vez mais, com engenhos e os escravos, crioulos, mas sobretudo africanos, expandiam sua representatividade em Porto Feliz. Notemos, em 1798 a vila contava com 4.024 habitantes, sendo 1.443 escravos, ou seja, 35,9% da população local. Dez anos depois, em 1808, dos 5.793 moradores, 2.290 eram escravos, representando 39,5%, já em 1829 os escravos representavam extraordinários
12 Cf. FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991; LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro, Civilização brasileira. 2002
13 Utilizamos, aqui, cativos como sinônimo de escravo.
14 Cf. LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores - análise da estrutura populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). São Paulo: IPE/ USP, 1981; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres. Estrutura de posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829). Tese (Doutorado em Economia) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1990
15 Verifica-se atualmente grande ênfase nas plantations de café, açúcar e algodão nos historiadores vinculados ao conceito de “segunda escravidão”. Cf. SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira, 2008; MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo (orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
GNARUS - 31 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
51,3% dos residentes, somando 4.928 de 9.609 habitantes.16 Mas, qual o grau de disseminação da posse escrava?
Para a primeira metade do século XIX, irei me basear na estrutura de posse realizada a partir das listas nominativas de Porto Feliz, empreendida pelo historiador Roberto Guedes Ferreira. O autor definiu a posse de 1 a 10 escravos como pequenos senhores, de 11 a 20, médios senhores, e grandes senhores os que possuíssem 21 ou mais cativos.17 Apesar do autor possuir uma tabela perpassando por 12 datas dentre toda a primeira metade da centúria, irei me pautar apenas nos anos 1798,1808,1818,1829. Tais datas são suficientes para verificarmos o padrão e mudanças na configuração da posse escrava na vila interiorana.
No ano de 1798, a posse escrava estava disseminada da seguinte forma: os pequenos senhores eram 75,8% e possuíam 38,3% dos cativos; os médios senhores eram 16% e congregavam 30,4% dos escravos, já os grandes senhores eram apenas 8,2%, mas detinham 31,3% da escravaria. Em 1808 os pequenos senhores eram 71,9% e possuíam 30,8% dos escravos, seguidos de 16,1% dos médios plantéis, concentrando 26,8% dos cativos, já os grandes plantéis passaram para 12% e concentravam 42,4% dos escravos. Já em 1818, os pequenos senhores representavam 70,7%, possuindo 26,5% dos cativos, os médios eram 14,5% com 22,3% dos cativos, os grandes eram 14,8% e concentravam pouco mais da metade dos cativos locais, 51,2%. O ano de 1829 foi emblemático à vila de Porto Feliz, dos 4.928 escravos, 51,3% da população, como visto, os pequenos senhores representavam 59,9% e detinham apenas 14,8% dos cativos, os médios eram 13,8%,
16 GUEDES, Egressos do cativeiro, 2008, p.35
17 Ibdem.p.29-67
detendo 15,2% dos escravizados, já os grandes senhores representavam 26,3% e concentravam extraordinários 70% dos cativos.18
Peço perdão ao leitor se tais números tornam o texto um pouco cansativo, mas ele nos são importantíssimos, pois nos demonstram um padrão iniciado ainda em fins do século XVIII. Salta aos olhos, ao analisar a percentagem da posse escrava durante o perpassar dos anos em Porto Feliz, que os grandes senhores de escravos aumentaram a sua representativa respectivamente, ou seja, cada vez mais os grandes senhores entravam para o grupo social dos grandes plantéis, e concentravam cada vez mais os cativos. Caminho inverso dos médios e pequenos plantéis. No entanto, mesmo em 1829, após dura queda na posse de escravos e na representatividade dos pequenos senhores, ainda formavam 59,9% dos senhores, embora detendo apenas 14,8% dos cativos. Os pequenos senhores, é importante ressaltar, nunca foram menos que 59% do grupo senhorial. A partir desses dados, Roberto Guedes concluiu que, Os resultados sublinham que a posse de escravos era centralizada, mas com significativa participação de pequenos e médios escravistas. Os pequenos senhores jamais deixaram de ser a maioria, demonstrando que a aquisição de mão-deobra cativa era, até certo ponto, facilitada, enquanto durou o tráfico atlântico. Nesse sentido, a propriedade escrava era, ao mesmo tempo, concentrada e disseminada entre população livre. 19
Senhores de escravos na segunda metade do Oitocentos: a legitimação do escravismo.
Se o olhar pelo retrovisor for descuidado,
18 Idem.p.132
19 GUEDES. Egressos do cativeiro, 2008, p.133. Grifos meus.
GNARUS - 32 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ao invés de compreendermos as vicissitudes de determinada sociedade, podemos mesmo é cair no erro teleológico de pensarmos que todo o processo foi evolutivo. Digo isso porque, não raro, se pensou que a segunda metade do século XIX, principalmente após a Lei do Ventre Livre em 1871, anuía o fim da escravidão, mais cedo ou, quem sabe, mais tarde? Mas seu fim seria irremediável! Não duvido que alguns personagens à época vislumbrassem o seu fim, imbuídos de ideias liberais em voga na Europa, mas estava longe de ser a realidade para a maioria dos residentes do Brasil imperial, mesmo após a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, que, enfim, deu fim, tardiamente, ao tráfico transatlântico de escravos africanos para o Brasil
Ora, uma investigação mais precisa dos agentes envoltos do sistema escravista após 1850, enterra o argumento de que todos concebiam o fim da escravidão, principalmente os senhores de escravos. Mas temos, ao menos, um problema: quem eram os senhores de escravos nessa altura do campeonato? O historiador Ricardo Salles credita aos grandes senhores de engenhos, sobretudo do Vale do Paraíba fluminense, em Vassouras, a legitimação da escravidão no século XIX. Estes senhores, ainda na primeira metade do Oitocentos, seriam responsáveis pela produção de um ethos senhorial, legitimando, assim, a escravidão por todo o tecido social. 20
Ademais da importância dada aos grandes senhores de engenho do Sudeste cafeeiro, não se nega que a posse de escravos era disseminada por todo o tecido social em decorrência da grande oferta de mão-de-obra africana viabilizada pelo tráfico transatlântico de escravos. No entanto,
20 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
para Salles, após a Lei Eusébio de Queirós, a tendência foi de concentração da posse escrava nos grandes plantéis do Sudeste cafeeiro, pois houve uma tendência à concentração social e territorial da propriedade de cativos. A posse de escravos, que antes era disseminada por praticamente todo o tecido social, envolvia a maioria dos setores livres da população, abrangia as diferentes regiões do país e se estendia tanto às áreas rurais quanto às urbanas, a partir de 1850 passou a se restringir às regiões mais dinâmicas da economia e às camadas abastadas da população livre. Esse fato, ainda que não deva ser superestimado, pelo menos até a década de 1880, diminuiu as margens em que poderia ser construída uma solidariedade escravista mais ampla, presente praticamente em toda a sociedade e todas as regiões. A manutenção da ordem escravocrata passou a ser interesse de um grupo social mais restrito: os grandes proprietários, principalmente do Sudeste.21
À vista disso, os pequenos proprietários de escravos, bem como os médios plantéis, enfrentaram dificuldades à manutenção de seus cativos, pois além do preço elevado, crescimento vegetativo negativo, precisavam lidar com a demanda e o poderio econômico dos grandes plantéis. Segundo Hebe Mattos, o tráfico interno foi responsável pela vendagem dos cativos de pequenos senhores aos grandes plantéis do Sudeste cafeeiro, ocasionando a concentração da posse escrava e o interesse decrescente na defesa da escravidão, uma vez que Para as elites, a continuidade do cativeiro só podia ser defendida com base numa argumentação pragmática que procurava antes retardar do que impedir o desmoronamento do sistema. Concomitantemente, cada vez menos livres conseguiam acesso à propriedade cativa e se faziam solidários com sua manutenção. Apesar disso, o sistema, especialmente
21 Idem.p.65. Grifos meus.
GNARUS - 33 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
a agroexportação cafeeira, continuava a expandir-se com base no tráfico, agora interno, do braço escravo. 22
Ademais do estabelecimento do tráfico interno e da crescente importância dos grandes plantéis escravistas do Sudeste cafeeiro na legitimação do sistema escravista em seus anos derradeiros, é imprescindível olharmos a configuração da extensa região escravista do Brasil imperial, que, como sabemos, não estava limitada as regiões centrais. Utilizo, aqui, como contraponto, a região de Porto Feliz para sublinhar que a força da escravidão se deveu a convergência de setores diversos no interesse em manter a escravidão. Se outras pesquisas são necessárias para confirmar esta hipótese, ao menos ela demonstra que devemos ter cuidado com generalizações fundamentadas em pesquisas que privilegiam os grandes plantéis cafeeiros.
A segunda metade da centúria oitocentista assistiu, em Porto Feliz, uma relativa queda demográfica, ocorrida ainda na primeira metade do Oitocentos, muito em decorrência de desmembramentos administrativos de Piracicaba (1824), Capivari (1832) e Pirapora (1842).23 Em 1843, a cidade contava com 8.992 habitantes, sendo 4.122 cativos (45,8%), já em 1854, eram 4.437 habitantes e 1.567 escravos (35,3%). No ano de 1874, a cidade detinha 7.669 residentes, sendo 1.547 escravizados (20,2%).24 Enquanto a população
22 MATTOS, Hebe. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. 3ª ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.p.159. Grifos meus.
23 GUEDES, Egressos do cativeiro, 2008, p.29-67; 128-129.
24 Cf. GUEDES, Roberto. Estrutura de Posse e Demografia Escrava em Porto Feliz (São Paulo, 1798-1843). In: PAIVA, Eduardo França e IVO, Isnara Pereira. (eds.) Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume, 2008; POLAZ, Karen Teresa Marcolino. “Porto Feliz: evolução demográfica, imigração e propriedade da terra nos séculos
livre apresentou uma recuperação demográfica de 113,3% relativamente a 1854, a população cativa apresentou uma variação de -1,3%. Ora, longe de demonstrar irrelevância, em um momento de tráfico interno e aumento no preço dos escravos, políticas pró liberdade, gênese do abolicionismo etc., manter relativamente próximo o mesmo contingente de cativos, vinte anos depois, demonstra a força que a instituição escravista manteve na cidade de Porto Feliz. Mas, como estava distribuído a posse cativa nesses anos?
Para aferir a distribuição da posse escrava em Porto Feliz, utilizei os registros batismais de escravos. Trata-se de contabilizar todos os cativos que passaram pela pia batismal: batizando, mãe, pai (quando era conhecido), madrinha e padrinho (quando eram escravos). Com tais informações foi construído um banco de dados no Excel relacionando os escravos com seus devidos senhores, excluindo nomes repetidos, exceto quando a fonte me permitiu verificar se tratar de pessoas diferentes.25 Ademais de ser uma estimativa, os registros batismais me permitem aferir a posse de escravos para o extenso número de pequenos senhores que não deixaram inventários post-mortem, ou no fim de sua vida já não era mais um senhor de almas.
Ora, se na primeira metade da centúria oitocentista, os grandes senhores de engenho assistiram suas escravarias florescerem, protagonizando a posse de escravos, chegando a concentrar 70% dos escravizados em 1829, na segunda metade salta aos olhos o protagonismo
XIX e XX”. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, 2006, p.1-4.
25 Cf. GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória (ES): SEJC/SEE, 1993. Um dos pioneiros a usar os registros de batismo para aferir a estrutura de posse.
GNARUS - 34 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
dos pequenos plantéis, seguidos dos médios. Juntos, senhores que possuíam de 1 até 9 escravos, somavam extraordinários 90% dos senhores escravistas, e concentravam 60% da posse cativa local. Os médios senhores eram 6,7%, concentrando 18,4%, foram os que sofreram maior queda dentre os escravistas. Já os pequenos senhores eram apenas 3,3%, mas concentravam 21,6% dos escravos, se pensarmos serem apenas 12 senhores, dentre os 360 que analisamos, é um número relevante, mas nada comparado com os 60% em mãos dos pequenos senhores.
O definhamento demográfico, o aumento no preço dos cativos, não atingiu todos os senhores da mesma forma. Em Porto Feliz foram os grandes senhores, e não os pequenos plantéis, que perderam representatividade, quer dizer, no lugar de concentração escrava em mãos de grandes senhores, como se observou em áreas do Sudeste cafeeiro, concentrou-se os cativos em mãos de pequenos senhores escravistas, mantendo a posse disseminada pelo tecido social. Ora, podemos observar essa miríade de pequenos senhores como meros receptores do ethos senhorial dos grandes plantéis escravistas? Não tinham interesses próprios? De modo algum, a importância dos pequenos plantéis na legitimação
do sistema escravista é incontestável. Afinal de contas, pequenos senhores também possuíam dois neurônios e interesses subjetivos.
Porém, essa configuração não se apresentou apenas em Porto Feliz. Marcelo Matheus, utilizando registros de batismo para aferir a posse escrava em Bagé, Rio Grande do Sul, entre os anos de 1861-1870, aferiu ser os pequenos senhores (1 a 4 escravos) 80%, concentrando 52% dos escravizados. Letícia Batistela Guterres, também utilizando os registros batismais, mas entre os anos de 1850-1870, verificou que os pequenos senhores, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, (1 a 4 cativos) eram 95,4%, e concentravam 85,9% dos escravos. Assim, a posse de escravos seguiu disseminada na segunda metade da centúria oitocentista, demonstrando que a força da escravidão confluía interesses de pequenos, médios e grandes senhores de escravos.
O prestígio em ser senhor de almas: o caso do escravo Luís.
A força da escravidão pode ser observada na persistência do sistema em não ruir, para além das explicações que indicam os grandes senhores do Sudeste cafeeiro como protagonistas dessa
GNARUS - 35 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
resistência sistêmica, como vimos, outros buscam sublinhar o papel da revogação das alforrias, e a vigilância constante de libertos que viviam sob suspeição da polícia da Corte, podendo ser reescravizados, o que teria gerado uma liberdade precária.26 Ademais da possibilidade vigente da revogação da alforria, os dados são insuficientes para pensarmos os brasis do Oitocentos. Tais características indicam mais, a meu ver, que o Brasil imperial era profundamente escravista, mesmo nos anos derradeiros da escravidão, mas a liberdade para o escravo era, apesar de todos os obstáculos, essencial, como bem demonstrou Sidney Chalhoub em seu livro Visões da Liberdade.27 Mas como se configurava esta realidade entre os escravizados e senhores? Vejamos um exemplo, para não ficarmos apenas nos números.
No dia 20 de outubro de 1873, a cerca de dois meses do Natal, já profundamente cansado da afanosa vida no cativeiro, e como diferiria? Luís, escravo de 80 anos, buscou sua alforria. Ao que tudo indica, procurou seu senhor, Francisco Arruda Penteado, e tentou uma negociação que se evidenciou fracassada. Ciente da possibilidade de pleitear sua liberdade na justiça, muito provavelmente por possuir contato com setores livres da sociedade, impetrou uma ação de liberdade que teve a ajuda de Francisco Martins de Sampaio Mello, assinando a rogo do escravo por não saber escrever. Luís ofereceu o valor de 100 mil réis e solicitou que o senhor considerasse
26 Sidney Chalhoub é, sem dúvida, um dos principais autores a sublinhar esta característica. Cf. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras. 2012; CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). In: História Social. Campinas, SP: IFCH/UNICAMP, nº 19, pp. 19-32, 2010
27 Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. In. “Cenas de cidade negra.” São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
“o valor da indenização de sua liberdade na forma do art. 84 do reg de 13 de novembro de 1872”.28
O leitor mais atento deve estar se indagando o porquê de se reter um senhor de 80 anos no cativeiro, dado que com essa idade não seria rentável, ou lastimando e até mesmo perplexo com um senhor de 80 anos no cativeiro, uma vez que o padrão de mortalidade era alto no período. Devo dizer que a indagação é propícia e busquei indícios explicativos. Em primeiro lugar, é mister ressaltar a importância, em uma época em que não se contava mais com o tráfico transatlântico de escravos africanos, manter seu escravo, sobretudo se fosse o único escravo, ele garantiria o status social de senhor de escravos, ainda deveras importante nesta sociedade.
Ao tomar ciência da ação impetrada por seu escravo, Francisco Arruda Penteado negociou os termos da liberdade com o próprio cativo. Negociar diretamente com o escravo era simbólico, demonstra poder senhorial, por mais que não se pudesse impedir uma liberdade através do seu pagamento após o regulamento de 13 de novembro de 1872. O senhor, ao contestar a alforria oferecida, poderia apenas indicar um avaliador, sendo outro indicado pelo curador do cativo, um terceiro seria indicado pelo juiz municipal para o caso de precificação diferente entre os avaliadores, este indicaria a que entendesse coerente com a avaliação física do cativo. Ou seja, se o cativo tivesse a quantia solicitada pelo avaliador, o senhor nada poderia fazer. Mas Francisco Penteado manteve o simbolismo da alforria ser concedida pelo senhor. Informou estar “disposto a conceder-lhe a mesma liberdade pelo preço de cento e cinquenta mil réis.
28 Museu Republicano Convenção de Itu (MRCI), Pasta 12, doc. 6. Ação de Liberdade.
GNARUS - 36 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Sendo consultado o escravo, por ele foi dito podia dar mais cinquenta mil réis”.29
Há indícios de que Luís fosse seu único escravo, situação nada estranha para Porto Feliz da segunda metade do Oitocentos e as centenas de pequenos senhores, bem mais numerosos que os grandes plantéis, que possuía. Tendo por base os registros batismais, já que não possuímos o inventário post-mortem de Francisco de Arruda Penteado, entre os anos de 1860 a 1887, o nome de Francisco foi citado apenas uma vez, em 1870, pois seu escravo Luís apadrinhou Miguel, filho de Gabriela, escrava de Joaquim Xavier Portela.30 Com efeito, há a possibilidade de que isto se devesse ao fato de não ter escrava em idade fértil, mas a possibilidade deste ser seu único escravo não é descartada, sobretudo pela configuração da posse escrava em Porto Feliz. Mas se o escravo não o servia, mais, para o trabalho braçal, ao menos ainda era usado para sua rede de relações sociais, como apadrinhando filhos de escravas de outros senhores, além de, claro, manter seu privilégio de senhor de almas.
Apesar de ter já 80 anos, Luís se imbricou em um litígio judicial para alcançar sua liberdade. Ademais da juventude e vida adulta ter se passado, já como um senhor de idade não se furtou a lutar por sua liberdade, ao menos para morrer bem e em paz, quer dizer, livre! Tal situação nos leva a questionar, adjetivar a liberdade como precária nos ajuda a compreender as vicissitudes de uma sociedade escravista ou apenas nos diz sobre o olhar do historiador radicado no século XXI? A historiadora Ligia Bellini analisa um caso que nos ajuda a compreender a disposição demonstrada por Luís em busca de sua liberdade, é o episódio
29 MRCI, Pasta 12, doc. 6. Ação de Liberdade
30 ACDS, Batismo de escravos, Livro 9 Misto (1863-1872), f126v
de Juliana, cuja carta afirma ser ‘já velha’ e que, mesmo depois de ter comprado sua alforria, foi obrigada a permanecer com as outras escravas servindo sua proprietária, sóror do convento de Santa Clara do Desterro, até a morte desta. No pouco tempo de vida que lhe restava, Juliana deveria continuar a fazer os mesmos trabalhos que fazia quando era escrava. Mas a preta ainda assim apostou na mudança de status e, de algum modo, deve ter ocupado um lugar diferente naquela comunidade. [...] A libertação, assim, devia significar como que a aquisição de um novo corpo, autônomo, diferente daquele que era propriedade do senhor.31
Luís alcançou sua liberdade dois dias após entrar com a ação de liberdade, negociou, com o apoio de setores livres, com seu senhor e pagou o valor de 150 mil réis de seu pecúlio, não temos informação de como conseguiu, se era economia de seus trabalhos ou doação de algum familiar, o certo é que no dia 22 de outubro de 1873 Luís, enfim, viu a escravidão se esvair de sua vida e pode, assim, morrer bem, em paz e livre!
Considerações finais
Iniciada no limiar do século XVIII, Porto Feliz, anteriormente Araritaguaba, sempre contou com a mão-de-obra escrava, embora sofresse mudança na configuração da posse escrava no decorrer do tempo. Se inicialmente contou com escravizados indígenas e crioulos na produção de alimentos, canoas etc., no início do século XIX assistiu à formação de engenhos e o aumento na concentração da posse escrava em mãos de senhores de engenho, que obtiveram acesso
31 BELLINI, Ligia. Por amor e por interesse: a relação senhor - escravo em cartas de alforria. In: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.p.83-84. Grifos meus.
GNARUS - 37 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
aos escravos africanos devido ao Porto do Rio de Janeiro. Mas, os pequenos senhores sempre foram maioria. Ora, a segunda metade do Oitocentos experienciou a posse escrava diminuir demograficamente, como boa parte da sociedade que enfrentava o fim do tráfico transatlântico de africanos, mas ao invés de concentrar a posse escrava em mãos de grandes senhores, foram os pequenos plantéis que se mantiveram ativo. A escravidão estava enraizada na sociedade e, ademais da crescente contestação do sistema escravista, a maior parcela da sociedade ainda legitimava a escravidão e resistia o seu fim, não porque estavam imbuídos de um ethos senhorial dos grandes senhores cafeeiros, mas porque tinham interesses subjetivos na manutenção da escravidão.
Carlos Santos da Silva é Doutorando em História –PPHR-UFRRJ; Mestre em História – PPHR-UFRRJ; Graduado em História – Simonsen (FIS). Bolsista CAPES.
Fontes Primárias:
Arquivo da Cúria Diocesana de Sorocaba (ACDS). Batismo de Escravos, Livro 1 (1831-1864); Livro 9 Misto (1863-1872).
Museu Republicano Convenção de Itu (MRCI), Pasta 12, doc. 6. Ação de Liberdade.
Bibliografia:
BELLINI, Ligia. Por amor e por interesse: a relação senhor - escravo em cartas de alforria. In: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CALIL, Maria Clara de Oliveira; SALGADO, Ivone. Configuração espacial de Porto Feliz:
Capela em 1720, Freguesia em 1728, Vila em 1797. In: XX Encontro de Iniciação Científica da PUC Campinas, 2015, Campinas. Anais do XX Encontro de Iniciação Científica da PUC Campinas. Campinas: PUC Campinas, 2015.
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.
CHALHOUB, Sidney. . Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). In: História Social. Campinas, SP: IFCH/UNICAMP, nº 19, pp. 19-32, 2010.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. In. “Cenas de cidade negra.” São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 – 1838). CAMPINAS, Instituto de Economia, 2002. Diss. Dissertação.
GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória (ES): SEJC/SEE, 1993. Um dos pioneiros a usar os registros de batismo para aferir a estrutura de posse.
GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008.
GUEDES, Roberto. Estrutura de Posse e Demografia Escrava em Porto Feliz (São Paulo, 1798-1843). In: PAIVA, Eduardo França e IVO, Isnara Pereira. (eds.) Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções e Capítulos de expansão paulista. 4.ed. Org. Laura de Mello e Souza, André Sekkel Cerqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014 .
LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro, Civilização brasileira. 2002.
GNARUS - 38 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo (orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
MATTOS, Hebe. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. 3ª ed. rev. –Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013
POLAZ, Karen Teresa Marcolino. “Porto Feliz: evolução demográfica, imigração e propriedade da terra nos séculos XIX e XX”. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, 2006
SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira, 2008
SILVA, Carlos Santos da. Expectativas de liberdade e de escravidão: solidariedades, conflitos e incertezas nas relações entre senhores e escravos (Porto Feliz, São Paulo, 1864-1888). Dissertação – (Mestrado em História). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, Seropédica, RJ, 2021
ZEQUINI, A. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Itu: 2005. Disponível em:< http://www.itu.com.br/colunistas/ artigo.asp?cod_conteudo=6941 >. Acesso em:20/10/2020; ARCHELA, Rosely Sampaio. A agroindústria canavieira no setor de Porto Feliz. Geografia (Londrina), Londrina, v. 4, p. 38-48, 1987.
GNARUS - 39 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
O “CANTO DOS MALDITOS”: COMPREENDENDO HOSPÍCIOS BRASILEIROS DO SÉCULO XX A PARTIR DA ESCRITADE AUSTREGÉSILO CARRANO BUENO
Por Edivaldo Rafael de Souza
RESUMO: Utilizando-se do livro autobiográfico “Canto dos Malditos (1990)”, de Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008), esse texto traz uma sucinta análise das experiências do autor enquanto estava internado em clínicas psiquiátricas. Sendo assim, são trazidas discussões acerca do tratamento recebido pelos pacientes nesses locais, bem como fragmentos de sua trajetória de vida.
Palavras-chave: Austregésilo Carrano Bueno; Canto dos Malditos; Hospícios; Bicho de sete cabeças.
Introdução
Austregésilo Carrano Bueno nasceu em 15 de maio de 1957, na cidade de Curitiba, Estado do Paraná. Nessa localidade, viveu uma infância e adolescência tida comumente como normal para qualquer pessoa dessa faixa etária. Ou seja, estudando, conhecendo novas pessoas, tendo as primeiras experiências amorosas, enfim, experimentando e usufruindo de sua liberdade.
Em 1974, aos dezessete anos de idade, Austregésilo foi levado pelo pai ao hospital psiquiátrico do Bom Retiro, em Curitiba; posto isso, segundo ele, o pai havia falado que iria visitar um amigo que estava internado. Porém, ao chegar
naquele local, enfermeiros o levaram de forma forçada para dentro da instituição, e ao indagar o que estava ocorrendo, o enfermeiro revelou ao menino o motivo pelo qual ele ficaria internado, sendo a pedido do pai dele, que supunha que Austregésilo era viciado em maconha, já que havia sido encontrada uma “buchinha” de maconha em suas roupas.
Austregésilo relata, em seu livro, que não era viciado em maconha, apenas fazia uso de vez em quando, e afirma que isso não afetava em nada a sua vivência. Mesmo assim, apesar de tentar explicar para a equipe dirigente, ele não foi ouvido. Pode-se entender que, dentro dessas instituições, a relação e o diálogo entre corpo médico, dirigentes e pacientes eram feitos de forma bastante autoritária, haja vista que o
GNARUS - 40 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
paciente deveria acatar todas as ordens e ainda corria o risco de ser punido caso contrariasse alguma decisão.
Com o passar dos dias, o escritor decidiu escrever como era a sua rotina dentro dessa instituição, relatando tanto as relações do corpo médico e dos dirigentes com os pacientes quanto o tratamento que era oferecido dentro daquele local. Sendo assim, surgem os primeiros manuscritos, os quais, posteriormente, seriam publicados no seu livro intitulado “Canto dos Malditos (1990)”.1
Correlacionado ao livro ser intitulado de “Canto dos Malditos”, de acordo como autor, se tratava do local dentro da instituição em que ficavam os pacientes crônicos, ou seja, aqueles que já estavam ali há muitos anos e que não teriam nenhuma previsão de quando iriam sair para o lado de fora dos muros do hospício. Aquele poderia ser entendido como “(...) o espaço em que os crônicos se amontoavam, vegetando ou deixando aflorar sua agressividade; era a segregação no interior da segregação”. 2
pensar durante aquele período”.3
Ou seja, todo indivíduo que ia de encontro àquilo que a sociedade impunha como sendo normal corria o risco de ir parar em um desses locais. Sendo assim, conforme supracitado, o autor havia sido internado por causa do uso de maconha, já outros pacientes possuíam vício em bebidas alcoólicas, cocaína ou outras drogas. Esses locais também contavam com pessoas que possuíam algum distúrbio mental, desde os mais leves até os mais complexos.
Inicialmente, o autor discorre que existia uma ampla gama de pessoas que eram alocadas naquela instituição, visto que “(...) eram utilizadas também para agrupar um grande número de pessoas que não se encaixavam naquilo que a sociedade ditava ser o comportamento correto de agir e/ou
1 Ressalta-se que, o livro foi censurado algumas vezes por causa de processos que a família de um médico paranaense moveu contra o autor. Para saber mais, acesse: https://www. gazetadopovo.com.br/caderno-g/justica-censura-livro-decuritibano-que-ja-virou-filme-a0igrlkbplkz7o7cthjhu830u/.
2 FERNANDES, Jaqueline Alves. A constituição do sujeito em canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. Dissertação de mestrado em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia – MG, 2010. Disponível em:< Acesso em: 24. Set. 2022, p. 132.
Ao conhecer mais o hospital psiquiátrico de Bom Retiro, o autor se depara com outros internos que se encontravam na mesma situação, ou seja, que não possuíam nenhum tipo de doença mental. Posteriormente, ele relata que estava recebendo altas doses de medicamentos. Em relação ao tratamento, o autor revela que, já no início, identificou que este era feito de maneira autoritária pelos funcionários, os quais não se preocupavam muito, por exemplo, com a higiene do local e de seus internos. Além disso, outros pacientes relataram que isso era apenas o começo, pois existiam outras “formas de tratamento” bastante temidas por eles, como o uso do eletrochoque.
Mas um episódio lhe chama atenção, [...] hoje é quinta-feira, o hospício está mais alegre. Dia de visitas. Após o café, fila no banheiro. Muitos riem esperançosos. Tomam banho e colocam a roupa de domingo. Alguns enfermeiros dando banho naquele crônico incapacitado que passa os dias lá dentro, urinado e cagado. Mas hoje
3 SOUZA, Edivaldo Rafael. Do lado de dentro do hospício: a escrita em forma de denúncia de Nellie Bly e Maura Lopes Cançado. Revista Rumos da História, Vitória, v.9, p.130-145, 2019. Disponível em: Acesso em: 24. Set. 2022.
GNARUS - 41 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ele tem visita, é dia de banho.4
No que se refere ao modo como as pessoas do lado de fora viam os internos que estavam do lado de dentro do hospício, Carrano discorre que [t]udo realmente era uma grande produção. O espetáculo parecia uma estreia de uma peça de teatro. Os mínimos detalhes eram lembrados. O grande cenário era lá fora. O interior do pavilhão é proibido a visita de estranhos, poderiam prejudicar o andamento do valioso tratamento.5
ao que era compreendido como um protocolo de tais instituições, já que, primeiramente, o interno era recebido e inserido no local, para, então, o próprio sistema fazê-lo pensar que ele era parte integrante e que pertencia ao novo ambiente.
Ademais, funcionários agiam de forma gentil e tranquila com os visitantes, bem diferente da forma autoritária que agiam do lado de dentro. Inclusive, alguns eram recompensados pelos visitantes.
O espetáculo acontecia para o agrado de todos, ou melhor, dos ilustres visitantes, que a direção do sanatório faz questão de impressionar. Ao interno, não sobram muitas chances de ser ouvido – um lugar de tanta beleza e tranquilidade, impressiona tanto que a família toda quer ficar internada no seu lugar.6
Todavia, quando se encerrava o horário de visitação, o hospício retornava àquele mesmo ambiente deprimente, que buscava de todas as formas o adestramento de seus pacientes. Assim, era mais uma semana que se iniciava com todas as etapas de “tratamento”, e que o interno estaria ali vulnerável a sofrê-las.
Nas primeiras semanas, Austregésilo não recebeu visitas, em decorrência de orientação da própria instituição. Isso pode estar correlacionado
4 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São
Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 58.
5 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 59.
6 Opus citatum.
Posteriormente, ele descreve a sua primeira experiência em relação ao uso do eletrochoque, que, de acordo com o autor, foi levado até uma sala pelos enfermeiros, que o seguraram e lhe aplicaram o procedimento. No outro dia, pela manhã, ele relata que “[a] dor de cabeça era muito forte, meu peito também doía e muito. Eu havia babado. Eu estava todo babado... E as dores, eram tantas... Meus pensamentos, todos embaraçados”. 7
O autor revela que o tratamento com choque era feito às segundas-feiras, o que lhe gerava bastante desespero já aos domingos, de pensar o que lhe iria ocorrer no dia seguinte. Sendo assim, o autor descreve que se sentia como “(...) um animal ferido e acuado, preso naquele quarto. Um garoto de dezessete anos, espinhas na cara, barba nem pronunciada. Preso, esperando o choque!”.8
Sobre a utilização do eletrochoque, Lougon enfatiza que “[e]ste tratamento, bastante temido pelos internos, tinha também um uso disciplinar, além da chamada indicação médica, podendo ser aplicado naqueles que transgrediam as regras de conduta”. 9
7 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 67.
8 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 68.
9 LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização), p. 89.
GNARUS - 42 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Após a sessão de eletrochoque a qual foi submetido, o autor discorre que pensou da seguinte forma: “[d]omingo, já poderia receber visitas. Vou relatar tudo aos meus velhos. (...) Eles não devem saber que estou tomando choque. Vão ter que processar esse médico do caralho! Amanhã... eles vão me tirar daqui!”.10
de que a equipe médica e/ou a equipe dirigente não ouvia nem pacientes nem familiares sobre como iriam agir nessas instituições.
Sendo assim, no dia da visita, Austregésilo conta que pediu para os familiares lhe retirarem do hospício, visto que estava sofrendo, inclusive, com sessões de eletrochoque. Apesar disso, os familiares disseram que ele tinha que ter paciência para o tratamento funcionar e que iriam falar com os médicos para não lhe aplicarem mais eletrochoque.
Na segunda-feira, ele estava confiante de que não iria ter mais sessões, já que sua família o havia prometido que iria conversar com os médicos, no entanto, ele diz que aconteceu tudo da mesma forma das semanas anteriores, de acordo com Carrano,
“o mesmo martírio, dores, vômitos, e até diarréia, o que não tinha acontecido nos outros dias de aplicação. Na terça-feira, levantei mal-humorado, revoltado com minha família”. 11
Depois de vários meses internado recebendo aquele “tratamento”, o autor expõe que familiares lhe retiraram daquele local, no entanto, a reclusão em seu quarto fez com que pessoas próximas começassem a julgá-lo cada vez mais. Muitos não entendiam que era o tempo que passou no hospício que o havia deixado daquela forma. Ele relata que “[o]s comentários na Vila Esperança eram um só: ‘o filho da dona Maria está louco, não sai do quarto nem pra cagar – viram só o que a maconha faz? Deixou o rapaz louco”. 12
Correlacionado ao fato de o corpo médico não modificar o seu tratamento, entende-se que pode haver algumas hipóteses. Dentre elas, nesse período, como de costume, os familiares dos internos eram induzidos a acreditar que o tratamento deveria continuar, pois só assim o paciente iria ser “curado”, ou até mesmo a casos
10 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 81.
11 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 88.
Toda aquela dificuldade de readaptação a sua rotina do lado de fora do hospício fez com que, aos poucos, ele se fechasse cada vez mais e ficasse indiferente a toda aquela situação, tanto que, após esse período de reclusão, a família decidiu perguntar a ele se ele queria ser internado novamente, e ele concordou. Austregésilo Carrano Bueno discorre [a]lguns crônicos me rodearam, diretos aos meus cigarros. Sentia-me bem, estava entre iguais. Ninguém cobrava nem criticava. Cada qual com seus problemas e seu próprio mundo. E eu também estava criando o meu próprio mundo. Entendia, agora, os do canto dos malditos. Fugiram das cobranças, das satisfações, das obrigações, das normalidades. Dentro de seus ostracismos, eram o centro, o todo era eles, o ponto sobre o qual tudo girava. Intocáveis frente a tudo e a todos. Não se machucavam mais.13
Essa fala do autor pode ser entendida como
12 Opus citatum.
13 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 95.
GNARUS - 43 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
uma forma de que, após passar por todas aquelas experiências da sua primeira internação e após retornar ao hospício, ele se sentisse como se estivesse entre seus iguais. Esse estigma, feito por pessoas em relação aos pacientes dessas instituições, acabava contribuindo para que muitos passassem a se sentir pertencentes a esses locais. Quanto à questão do estigma, para Goffman, “[a]ssim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser humano como outro qualquer, diz-se a ele que não seria sensato tentar encobrir-se ou abandonar ‘seu’ grupo”. 14
Depois de mais três meses internado, ele retorna a sua casa. Carrano revela que “[e]u estava diferente, não ria mais nem era aquele garoto alegre e cheio de sonhos. Não falava muito, tinha dificuldades em comunicar-me com todos”. 15
“[j]á se comentava em achar outra instituição psiquiátrica para me internar. Mas agora eu recusava. E às vezes achava que meu lugar era dentro de um hospício mesmo. A confusão era tanta no meu interior...”. 17
A partir desse momento, o autor decidiu ir morar no Rio de Janeiro, no entanto, a sua estadia nessa nova cidade também seria conturbada, tendo em vista que se encontrava agressivo. Nesse ínterim, realizava acompanhamento com uma psicóloga.
No que concerne a essa fala, identifica-se que, no início do livro, ele explica a respeito da vida descontraída e cheia de sonhos que levava. Posto isso, percebe-se que o hospício o havia transformado completamente, de forma negativa.
Em outro episódio, ele acaba revelando que “[m]uitas vezes pensava em acidentarme propositadamente, aleijar-me, ou em matar-me. Tudo era só confusão dentro da minha mente... Efeitos e efeitos dos quilos de comprimidos e dos eletrochoques”. 16
Além disso, ele estava trabalhando. Em certo momento, envolveu-se em uma briga e acabou indo parar em uma delegacia. Em algum momento durante as discussões entre Austregésilo e o delegado, descobrem que ele já havia passado por instituições psiquiátricas. Diante disso, foi levado em um camburão, “[s]ó que esses guardas usavam uniformes brancos. Eu estava sendo internado no Hospital Psiquiátrico Pinel, em Botafogo. Não podia ser verdade! Meu pesadelo voltara”. 18
14 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 135.
15 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 97.
16 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 99.
Essa atitude dos policiais pode ser entendida pelo ponto de vista de que, para eles, se o indivíduo já tivesse frequentado esse tipo de instituição, ele possuía algum distúrbio, sendo assim, na percepção da sociedade, o mais correto seria internar novamente o paciente, já que, o mesmo não havia se recuperado. Isso estava ligado à questão do estigma e da distribuição de rótulos que eram atribuídos aos pacientes e expacientes de hospícios. Quanto às internações, de acordo com Lougon, “à autoridade policial ou jurídica, instância
17 Opus citatum.
18 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 104.
GNARUS - 44 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Narra também que
estas que, como atestam os prontuários, são, junto com as famílias, os maiores encaminhadores de pacientes para internação”. 19
Após chegar na instituição, “[e]m uma sala, mandou-me tirar as roupas e vestir um daqueles uniformes. Colocou as minhas roupas num plástico, anotando meu nome num papel e deixando-o dentro”. 20
“[à]s onze e pouco da manhã, fui conhecê-lo. Em menos de cinco minutos, perguntou meu nome e rabiscou na ficha. Fui diagnosticado”.22 Sobre o atendimento médico aos pacientes, geralmente era feita de forma “(...) meramente burocrática, não permitindo que o hospício seja um lugar de conhecimento da loucura e de restabelecimento do doente mental”. 23
O principal intuito dessas mudanças era padronizar os internos e lhes desfigurar o “eu”, ou seja, ali, aquele indivíduo era visto como somente mais um paciente, mais um número perante todos que ali se encontravam. Ligado a essa questão, conforme Goffman, “[a] barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”. 21
Mesmo não sendo como a instituição de Curitiba, já que estava tomando menos medicamentos, o autor conta que viu muitas irregularidades, como agressões a pacientes, insalubridade e falta de higiene em relação a alimentação. Depois, após quinze dias internado, o seu pai lhe tirou e o levou de volta para Curitiba.
Após a chegada em sua terra natal, o seu relacionamento continuou conturbado com sua família. A partir daí, esteve internado em outros hospitais psiquiátricos, dentre eles o San Julian, no qual o autor descreve sobre o primeiro contato com o médico psiquiatra da instituição,
19 LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização), p. 67.
20 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 104.
21 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 24.
Ao pronunciar-se sobre o tratamento recebido nessa instituição, Austregésilo descreve que recebia altas doses de medicamento, injeções e outros procedimentos. A maneira que os pacientes ficavam acondicionados também foi destacada pelo autor, conforme Carrano, [e]stávamos em muitos dentro de pouco espaço. Amontoados como feras contaminadas. As agressões aconteciam a todo o instante. Entre os crônicos, todos se agrediam. A maneira desumana como éramos obrigados a aceitar essa situação nos irritava. 24
Ao final de seu livro, o autor faz uma indagação de como conseguiu, aos poucos, se recuperar, no entanto, se questiona sobre como os internos dos hospícios ainda eram “tratados” no Brasil durante aquele período, ele afirma que [p]ara conscientizar os meus familiares, que ali não era o meu lugar, precisei ir quase ao suicídio. E até hoje não sei de quem seja. A maneira como são tratados os internos, como vivem, realmente... não sei quem mereça ficar ali. 25
22 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 112.
23 MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 458.
24 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 113-114.
25 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São
GNARUS - 45 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Ressalta-se que, já existiam, nesse período, alguns médicos psiquiatras que indagavam sobre esse método de tratamento invasivo. Tanto que [e]m 1986, é fundado em São Paulo o primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), e, posteriormente, os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial). Identifica-se que isso foi resultado de bastante empenho e dedicação dos movimentos da luta antimanicomial, que defendem, em benefício ao doente mental, a adoção de um local de tratamento digno e humano. 26
importante ressaltar que Austregésilo Carrano Bueno faleceu em 27 de maio de 2008.
Após as experiências vividas por Austregésilo Carrano Bueno dentro de hospícios, ele decidiu publicar, em 1989, o livro autobiográfico “Canto dos Malditos”; no entanto, a divulgação e a comercialização da sua primeira edição foi proibida, já que um médico psiquiatra que havia sido citado no livro entrou na justiça para que o seu nome não fosse exposto. Sendo assim, somente algum tempo depois, o livro pode ser novamente publicado e comercializado.
A partir daí, o autor se dedicou à causa da luta antimanicomial,27 participando de diversos eventos e manifestações. Além disso, no ano de 2000, seu livro foi adaptado para o cinema e ganhou destaque através do filme “Bicho de sete cabeças”, dirigido por Laís Bodanzky. Nas filmagens, o ator Rodrigo Santoro interpretou Austregésilo, já o ator Othon Bastos deu vida ao personagem de seu pai, Wilson. Por fim, é
Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 126.
26 SOUZA, Edivaldo Rafael de. Do “Diário do Hospício ao Hospício é Deus”: (re) visitando os diários de Lima Barreto e Maura Lopes Cançado. Revista Bilros, Fortaleza, v. 8, n. 17, p. 127-144, jul. - dez., 2020. Acesso em: 24. Set. 2022, p. 132-133.
27 Em 6 de abril de 2001, foi aprovada a Lei Nº 10.216 que, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Para saber mais, acesse:<http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.
Após a realização desse breve estudo, que analisou fragmentos da vida e da obra de Austregésilo Carrano Bueno, percebe-se que a sua escrita foi de grande valia para que a sociedade brasileira pudesse ter acesso ao que se passava do lado de dentro dos muros de instituições psiquiátricas. Sendo assim, indubitavelmente, o caráter de denúncia do autor contribuiu para que, juntamente com ele, outras pessoas se engajassem na luta antimanicomial e lutassem por um tratamento mais digno às pessoas que possuem algum transtorno mental, além de impedirem que outras pessoas fossem internadas nesses locais.
Edivaldo Rafael de Souza é Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). Especialista em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT). Especialista em Biblioteconomia pela Faculdade Futura. Especialista em Filosofia e Sociologia pela Faculdade Futura. Especialista em Orientação, Supervisão e Inspeção Escolar pela Faculdade Metropolitana do Estado de São Paulo (FAMEESP). Graduando em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). Professor regente de aulas na disciplina de História na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG).
REFERÊNCIAS:
CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993.
FERNANDES, Jaqueline Alves. A constituição do sujeito em canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. Dissertação de mestrado em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia – MG, 2010. Disponível em:< Acesso em: 24. set. 2022.
GNARUS - 46 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização).
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
SOUZA, Edivaldo Rafael. Do lado de dentro do hospício: a escrita em forma de denúncia de Nellie Bly e Maura Lopes Cançado. Revista Rumos da História, Vitória, v.9, p.130-145, 2019. Disponível em: Acesso em: 24. set. 2022.
SOUZA, Edivaldo Rafael. Do “Diário do Hospício ao Hospício é Deus”: (re) visitando os diários de Lima Barreto e Maura Lopes Cançado. Revista Bilros, Fortaleza, v. 8, n. 17, p. 127-144, jul. - dez., 2020. Acesso em: 24. set. 2022.
GNARUS - 47 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ESCRAVIDÃO NO BRASIL: ASSINATURA DA LEI ÁUREA E UMA IMENSA POPULAÇÃO NEGRA LARGADA A PRÓPRIA SORTE
Por Rodrigo Lopes Alves dos Anjos
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo a respeito do Brasil em seu período de escravidão, na transição do Império para a República, dando uma ênfase ao tema abolição, e também ao período pós-abolição, procurando observar esta fase a partir da capital do Império na época, a cidade do Rio de Janeiro. O intuito do estudo será demonstrar os caminhos percorridos até o fim da escravidão e conseqüências após a libertação. A análise se desenvolverá através de um estudo crítico a respeito das questões econômicas, sociais e culturais da abolição da escravidão no Brasil, observando a intenção da coroa de Portugal ao assinar as leis abolicionistas, dando assim inicio a um país improvisado na questão de moradias e até mesmo na questão social.
Palavras-chave: Império. República. Escravidão
Introdução
Opresente trabalho tem como tema a escravidão no Brasil no período imperial e transição para a República após a abolição, no intuito de tratar o questionamento sobre os fatores que levaram a motivação para abolição da escravidão e logo após, sobre a imensa população negra que foi negligenciada e largada à própria sorte após a abolição.
O referido estudo tem o objetivo de questionar os motivos do Império para abolição da escravidão no Brasil, analisando as lutas e o processo difícil que houve para que chegasse ao momento de assinatura da Lei Áurea, buscando
também compreender as razões do abandono da população negra após a abolição.
Assim sendo, este trabalho se fundamenta pela importância e grandeza do tema. É necessário que se tenha conhecimento das circunstancias que o país iniciou sua jornada, apontando os erros apresentados e analisando as conseqüências imediatas logo após a libertação, pois a abolição da escravidão influenciou diretamente na economia e na estrutura social do Brasil.
Justifica-se realizar uma pesquisa com esse conteúdo para produzir um aprendizado crítico a cerca da escravidão e sua influência a partir de então para a história e o desenvolvimento do país, demonstrando suas nuances conseqüências para
GNARUS - 48 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
a população brasileira no inicio do século XX.
Este estudo procura dialogar com professora Jaci Maria Ferraz de Menezes que em seu artigo para a revista Histedbr on-line, “Abolição no Brasil: a construção da verdade” aborda o tema sobre abolição de escravidão no Brasil, mostrando que esse processo foi uma conquista dos negros e do povo brasileiro de uma maneira geral, embora houvesse pressão por parte de outros países, principalmente da Inglaterra, mas também por força da conjuntura da América do sul naquele período, pois o regime republicano começava a se firmar por toda parte.
A autora procura demonstrar diversas vezes em seu texto que esse processo para a extinção da abolição aconteceu de certa forma com improvisações, especificamente na Lei Áurea, que tinha no seu projeto inicial a reparação econômica, social e até mesmo cessão de terras, para que os libertos pudessem iniciar esta nova fase com dignidade e igualdade perante o restante da população brasileira tinha sua vida estruturada.
Este artigo utilizará como metodologia, uma pesquisa bibliográfica acerca dos momentos e fatos da escravidão no Brasil, procurando retratar o período Imperial e de transição para a República, através de um olhar a partir da capital do país neste período, a cidade do Rio de janeiro.
Foi realizada uma investigação desde o Brasil Império até a República velha, séculos XIX/XX, utilizando como fonte de pesquisa, livros e artigos de historiadores e sociólogos clássicos no tema da escravidão e história do Brasil, assim como artigos de pesquisadores da atualidade acerca do tema supracitado, procurando analisar diferentes hermenêuticas que foram criadas, acompanhadas e modificadas ao longo do tempo.
Desta forma, este artigo fica distribuído da seguinte maneira: inicialmente serão demonstrados como se deram os caminhos para o processo da abolição da escravidão. A partir dai serão listadas e analisadas a leis que antecederam á principal das leis de libertação dos escravos no Brasil, a Lei Áurea. Também serão observadas as pressões de outros países, como por exemplo, a Inglaterra e finalmente o “convencimento” dos governantes do país que deveria encerrar esta fase “libertando” os escravos, dando-lhes a liberdade.
A próxima etapa contempla uma reflexão sobre as causas da abolição, que deixam muitos problemas por serem resolvidos, mostrando às condições que ficaram os libertos e as soluções encontradas por eles para sobreviverem a partir desse momento. Teremos o inicio da formação das favelas e desenvolvimento desigual de uma imensa população negra que fora largada a sua própria sorte, tendo como conseqüência um caos sócio econômico vivido pela população negra na transição do Império para a República velha.
2 – CAMINHOS PARA ABOLIÇÃO
2.1
Apelos e leis abolicionistas
Para iniciar, temos a análise e demonstração das conjunturas e dos fatos ocorridos no Brasil e no mundo para que fossem percorridos os caminhos da abolição. Iremos nos debruçar sobre temas e acontecimentos partindo do período Imperial que nortearão os rumos percorridos pelo país para chegar até a extinção do período escravocrata.
Em 1823, inicio do período do primeiro Império, José Bonifácio propõe que seja incluída na primeira constituição do Brasil, uma lei que abolisse a
GNARUS - 49 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
escravidão, mas o Imperador D. Pedro I entendia que não seria possível naquele momento em que o país estava pleno recomeço. O projeto desta constituição acabou nem sendo aprovado pelo Imperador, que criou uma comissão e aprovou outra com as cláusulas que lhe fora favorável dentro de seu entendimento do que seria melhor para o país.
Acreditando que grandes males poderiam advir de uma medida precipitada, limitavase a sugerir a cessação do tráfico, dentro de um prazo mais ou menos curto: quatro a cinco anos, preconizando ao mesmo tempo medidas de proteção ao escravo, de desenvolvimento da mecanização da lavoura e da colonização. Suas pretensões esbarrariam na resistência dos proprietários e traficantes de escravos que representavam a porção mais poderosa da sociedade.1
do cenário mercantil.
Segundo o texto de Costa e Azevedo (2016) a Inglaterra que tinha um extenso e duradouro contato comercial com o Brasil entendia que era necessário que houvesse mais pessoas em condições de serem consumidores de seus produtos industrializados para que tivessem uma margem de lucro maior, e assim pressionavam pela libertação dos escravos. 3
Sob muita pressão, o Brasil aprova a Lei Eusébio de Queiroz4 em quatro de setembro de 1850. A partir desta lei o país iria de fato reprimir o tráfico de escravos.
“A própria sociedade parece aceitar-se como escravista, vendo a escravidão como natural. Não se registram debates sobre o assunto- o que não significa que os escravos também aceitassem à escravidão”. 5
A Inglaterra após fazer muita pressão, consegue que em 1826 fosse assinado um acordo para acabar com o tráfico de escravos, mas na “prática” em 1831 o Imperador assina a Lei Feijó2 , que ficou conhecida como uma lei “para inglês ver”, pois mais uma vez o Brasil não cumpria de fato tal acordo firmado com os europeus.
Em oito de agosto 1845 o parlamento inglês aprovou a Lei Bill Aberdeen, que dava poderes para sua esquadra aprisionar qualquer barco negreiro que estivesse navegando em águas internacionais. Esta lei se deu como uma represália velada por parte da Inglaterra, com objetivos mercantis, pois o acordo firmado anteriormente entre os países não tinha boa vontade da parte do Brasil pela renovação, e sendo assim o Brasil alterou suas regras aduaneiras retirando a hegemonia inglesa
1 COSTA, 1999, p.88.
2 Diogo Antônio Feijó, ficou conhecido como Padre Feijó ou Regente Feijó, um estadista brasileiro e padre católico, um dos fundadores do Partido Liberal. Teve a lei batizada com seu nome por ter sido um grande incentivador das causas abolicionistas.
O período de 1864 a 1870 houve a Guerra do Paraguai,6 fato muito importante para uma guinada de vez na questão da abolição da escravidão no Brasil. O contingente de voluntários era pequeno, devido a isto, os escravos foram enviados para lutar no país vizinho. Quando voltaram, ganharam como prêmio a liberdade. A partir desse momento a sociedade começou a se questionar de maneira mais clara sobre o fim da escravidão. Nesta conjuntura o Exército Brasileiro começa a se fortalecer no contexto nacional e ter certa influência no país. Senhores de escravos cederam cativos para lutar como soldados. Uma lei de
3 COSTA; AZEVEDO, 2016.
4 Eusébio de Queiró Coutinho Matoso da Câmara foi político e magistrado. Na função de ministro da Justiça, foi o autor da lei que reprimiu o tráfico negreiro no Brasil.
5 MENEZES, 2009, p.89.
6 Foi o maior conflito armado internacional na América do Sul. Envolveu o Paraguai contra a Tríplice Aliança composta por Brasil, Uruguai e Argentina, no período de 1864 a 1870.
GNARUS - 50 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
1866 concedeu liberdade aos “escravos da Nação” que servissem no Exército. A lei de referia aos africanos entrados ilegalmente no país, após a extinção do tráfico, que haviam sido apreendidos e se encontravam sob a guarda do governo imperial. 7
Em 28 de setembro de 1871 entra em vigor a Lei do Ventre Livre, também ficou conhecida como Lei Rio Branco,8 estabelecia que todos os filhos de escravos passassem a nascer livres a partir desta lei. Porém as crianças ficavam com as suas mães até completassem 21 anos de idade, desta forma, seriam explorados em seu período de maior vigor físico até que fossem libertos.
Esta lei efetivamente demonstra que o Império começa a entender que estava perdendo o controle, por isso começa a incentivar e conceder diversas vantagens para que se acelerasse o processo da abolição, como o exemplo a legalização da emancipação do escravo através de pagamento de sua alforria, reconhecendo o direito do escravo de juntar seu dinheiro para financiar sua libertação.
Através da análise de Grinberg (2011), observamos que neste período o governo disponibiliza a Caixa Econômica Federal, que fora criada dez anos antes, para a guarda do dinheiro das camadas com um menor poder aquisitivo, com o objetivo salvaguardar os pecúlios adquiridos pelos escravos da intransigência dos senhores.9
Adicionalmente o Império reconhece a família
7 FAUSTO, 2006, p.213.
8 José Maria da Silva Paranhos, o Visconde de Rio Branco, título conquistado pelos esforços nas negociações pelo fim da guerra do Paraguai, concedido por D. Pedro II, foi estadista, militar e jornalista. Foi grande incentivador da lei do ventre livre.
9 GRINBERG, 2011.
escrava, algo importante por garantir que as famílias não fossem separadas por vendas e negociações entre senhores. Alem da obrigação dos senhores em registrar seus escravos nominalmente, registrando sua idade, origem, filiação e valor, sob o risco de ser penalizado com a libertação do escravo caso não cumprisse este artigo da lei.
Desses africanos, porém - quase todos eram capturados na mocidade -, introduzidos antes de 1831, bem poucos restarão hoje, isto é, depois de cinqüenta anos de escravidão na América a juntar aos anos com que vieram da África; e, mesmo sem a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio, entre os recém-chegados, pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos criminosamente no país.10
Finalmente esta lei previa que os escravos cujo sua idade demonstrasse sua entrada no Brasil após o ano de 1831, seriam considerados livres, algo que não aconteceu, porque os senhores que eram os responsáveis por esta escrituração, com isso acabavam por alterar os documentos de forma que lhe fora mais conveniente.
Desta forma o Império sabia que o apelo abolicionista era muito grande, e o fim da escravidão era inevitável, por isso procurou fazer a abolição de forma lenta gradual, com uma previsão natural de deixar de ter escravos por volta de 1930.
“O projeto da Lei do Ventre Livre sofre enorme oposição dentro e fora do Parlamento, por estar extinguindo a idéia da hereditariedade da condição de escravo. Enxergava-se um atentado ao direito de propriedade.” 11
10 NABUCO, 2000, p.44.
11 MENEZES, 2009, p.90.
GNARUS - 51 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Já nos anos finais da escravidão, em 28 de setembro de 1885 foi aprovada a Lei dos Sexagenários, também conhecida como Lei Saraiva Cotegipe,12 que previa a libertação de todos os escravos que completassem 60 anos, mais uma lei que confirmava a intenção do Império da abolição gradual, sem muito abalo aos fazendeiros, muitos com bastante prestigio junto à família imperial.
Mas os negros só seriam libertos a partir do momento em que o governo pagasse uma indenização ao senhor de escravos. Cabe destacar que poucos negros viviam até essa idade e já não tinham vitalidade para trabalhar. Esta lei acabou beneficiando os escravos que tiveram suas idades aumentadas por ocasião da assinatura da Lei do ventre livre. E mesmo assim, estes libertos tinham a obrigação de prestar três anos de serviços aos seus respectivos senhores.
2.2 A Lei Áurea
Este documento merece distinção e atenção, por ter sido um marco e símbolo de passagem para uma nova fase da história do Brasil, embora não tenha alcançado os efeitos aspirados pelos que propuseram a abolição da escravidão. A Lei Áurea teve uma tramitação recorde no Brasil, inicialmente a Princesa, que estava à frente do Império por motivos de saúde de Pedro II, abriu o ano de trabalho no parlamento com um discurso no senado solicitando que fosse aprovada a abolição da escravidão no Brasil.
Após esse apelo, no dia 8 de maio, o Ministro da Agricultura, Rodrigo Augusto da Silva,13 foi formalmente levar o documento com o projeto de
12 João Mauricio Wanderley, o Barão de Cotegipe, foi magistrado, nobre e político. Aprovou como presidente do conselho de ministros a lei dos sexagenários.
13 Foi jornalista, advogado, diplomata e político. Um dos líderes do partido conservador no fim do Império.
lei à Câmara dos Deputados. No dia 10 de maio, após acalorados debates, a Câmara aprova a Lei Áurea, e por fim, no dia 13 de maio, o Senado aprova o projeto de lei, que é assinado no mesmo dia pela princesa, dando fim legalmente a escravidão.
Fica claro também que, para eles, assim como para os demais correligionários republicanos, a roupagem de abolicionista foi vestida por Isabel como estratégia visando à continuidade do regime, o que se relacionava diretamente à imagem e ao nível de aceitação dela entre os vários setores sociais.14
A assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888 se deu em meio a muitos apelos de parlamentares. O Império sabia era só uma questão de tempo para que acabasse de vez, e vendo sua popularidade cair dia após dia, resolveu através de a Princesa Isabel dar sua ultima cartada para manter a longevidade das regências no Brasil, tentando o retorno de seu prestigio com a abolição da escravidão na forma de lei.
A camada da sociedade brasileira que não ficou satisfeitos com isso foram os fazendeiros, grandes proprietários de terras e escravos. Não tardando muito a derrubarem o Império, através da proclamação da república no país com o apoio dos militares, na verdade do Exército Brasileiro, pois a Marinha era formada por lordes e descendentes da família real, e apoiavam a monarquia.
2.3 Personagens importantes para abolição
É salutar destacar neste período algumas grandes figuras da época que trabalham muito em diversos aspectos para que fosse possível a abolição da escravidão no país, como Joaquim Nabuco, que além de ter sido historiador, 14 DIHL, 2017, p.164.
GNARUS - 52 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
influenciou as pessoas de mais conhecimento com seu livro O abolicionismo, mas também legislou no parlamento e com seus discursos foi muito importante para a aprovação de diversas leis abolicionistas inclusive da Lei Áurea.
Joaquim Nabuco pretendia fazer uma abolição com reparações aos negros que contemplavam reformas agrárias, para que pudessem reiniciar suas vidas em igualdade aos demais cidadãos e reformas sociais que garantissem uma educação de qualidade com o propósito de terem um futuro de oportunidades iguais aos imigrantes europeus. Tinha o pensamento que o país só começaria a se desenvolver a partir do momento em que encerrasse o regime de escravidão.
O texto de Bizerra e Silva (2012) demonstra que Nabuco procurou realizar a abolição de cima para baixo, de forma legal que deixasse garantias, se valendo de artifícios poucos inteligentes e de pouco apelo que seriam as revoltas, pois não alcançavam o efeito desejado que fosse a liberdade, mas também a igualdade de condições de vida. A forma de atuação no parlamento se traduz pela compreensão que não seria através de insurreições ou pela guerra civil que se chegaria ao fim da escravidão, mas sim com a aprovação de leis com garantias aos escravos.15
Muito importantes também foram Castro Alves, Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio entre outros, que trabalharam muito junto à alta sociedade e através de artigos nos jornais e a fundação de partidos abolicionistas que fomentavam o pensamento de abolição, principalmente partindo de forma legal.
Castro Alves, enquanto poeta, inventou uma linguagem capaz de quebrar o silêncio sobre o negro escravo e a escravidão, 15 BISERRA; SILVA, 2012.
ditado pela colonização na história e na literatura do país, desconstruindo, desse modo, discursos literários hegemônicos que celebravam o índio, o amor, os costumes e a cultura urbana. Sua poesia deu visibilidade ao “outro”, àquele que veio do outro lado do Atlântico pela força bruta da máquina escravocrata, contribuindo para que o diferente despontasse na sociedade brasileira no período em pauta.16
Castro Alves ficou conhecido como o poeta dos escravos, por ter escrito grande parte de sua obra defendendo a abolição da escravatura. Em seus poemas, denunciava a forma cruel com que os escravos foram transportados ao Brasil. Utilizava de sua arte, a escrita dos poemas, com o intuito de influenciar as camadas mais ricas e letradas da sociedade.
Luiz Gama foi um personagem muito importante no cenário político brasileiro. Adotando uma política abolicionista e republicana, o advogado, poeta e jornalista, usou a escrita para criticar os políticos e os costumes da época dando ênfase a corrupção e o preconceito racial.
Fazia a defesa da instauração de uma república acompanhada da abolição. De forma diferente a Joaquim Nabuco, defendeu a incitação a movimentos populares, também pelo fato de ter nascido escravo, e ter vivido as mazelas da escravidão.
André Rebouças foi uma das grandes figuras do movimento abolicionista brasileiro, além disso, foi também um dos pouquíssimos que anteviram as implicações mais profundas da eliminação da mão-de-obra escrava no Brasil e sua substituição pela força de trabalho livre assalariada.17
16 COSTA, 2006, p.187.
17 SOARES, 2017, p.250.
GNARUS - 53 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
André Rebouças, filho de uma família baiana de poucos recursos. Um português, alfaiate, e uma escrava alforriada. Sua família vai para o Rio de janeiro nos seus primeiros anos de vida, tendo estudado no Colégio Militar e se formado em engenharia, juntamente com seu irmão Antonio Rebouças, sendo assim os primeiros engenheiros negros do Brasil. Com muito conhecimento erudito e boa circulação pelo núcleo da família real, Rebouças foi o grande idealizador das reformas agrárias, sempre pensando em que situação ficaria os negros após a escravidão. As memórias dos tempos em que vira a escravidão na Fazenda do Imbé e as passagens de Patrocínio pelas instituições de saúde contribuíram para que Patrocínio absorvesse consigo o entrechoque entre a naturalidade de muitos indivíduos com a escravidão estabelecida e a inconformidade pessoal com a estrutura social, e mais tarde com vigor, lutasse contra o sofrimento imposto aos negros escravizados.18
de opiniões historiográficas a respeito da intenção da princesa, juntamente com a realeza ao realizar e apoiar a abolição da escravidão.
De fato, a regente do país naquele momento, se encontrava acuada pela pressão dos grandes fazendeiros, que não queriam a extinção da escravidão, embora soubessem que o fim estava próximo e também pelo prestigio da coroa real que estava bastante abalado junto à população de forma geral.
Então foi realizada uma tentativa de salvar o Império com esta medida apenas populista de encerrar a escravidão no país, que mesmo assim não obteve êxito, resultando logo após no golpe republicano, através do Exército e grandes fazendeiros, resultando no exílio da família real.
3 – PÓS ABOLIÇÃO SEM PREPARO
José do Patrocínio era abolicionista por razões intelectuais por razões biográficas, sendo filho de um padre branco com uma escrava, nunca foi escravo, mas convivia com eles, e presenciava toda situação vivida por eles. Foi um dos mais persuasivos dos abolicionistas.
Formado em farmácia, mas utilizou o oficio de jornalista para fazer campanhas abolicionistas e também com discursos na rua, procurava inflamar também os populares pela sua causa. Defendia a instauração da república mais com uma preocupação maior em torno do fim da escravidão.
Encerrando este quadro de figuras notáveis a respeito da abolição da escravidão, temos a ilustre Princesa Isabel. Existe bastante contraste
18 SOUZA, 2015, p.170.
3.1 Fim da escravidão e do Império
A extinção da escravidão teve um impacto grande na sociedade principalmente nos negros que ainda estavam nessa situação de cativos. Mas foi só num primeiro momento, pois efetivamente só foram extintos os castigos físicos, os alojamentos em senzalas, enfim, da posse dos escravos pelos senhores. Juntamente com isso ocorreu o “despejo” de muitos dos libertos das habitações em posse dos senhores.
A imprensa da época procurou mostrar uma visão puramente bondosa da realeza portuguesa, se compadecendo dos maus tratos sofridos pelos escravos, gerando assim ao longo do tempo, uma sensação de que se preocupavam com essa questão, e com isso tendo até os dias atuais uma “beatificação” da Princesa Isabel, como salvadora dos negros.
GNARUS - 54 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Na verdade, os negros não tinham muito que comemorar, pois a Lei Áurea não garantia nenhum beneficio aos agora cidadãos brasileiros. Extinta a escravidão, os fazendeiros não entraram em acordo com os novos cidadãos brasileiros quanto à forma de remuneração e moradia, ficando na fazenda em sua maioria libertos que já trabalhavam em suas funções domésticas dentro da casa grande.
Houve um grande êxodo rural, produzindo um enorme inchaço populacional nos centros das grandes cidades. Sendo assim, os negros sem habilitação, sem estudo nem preparo para exercer funções dentro das áreas urbanas, foram obrigados a trabalhar em subempregos com ganhos remuneratórios baixíssimos, acentuando assim a miséria neste grupo que iniciava sua nova jornada, agora libertos.
Com a consolidação do golpe e proclamação da republica, em 15 de novembro de 1889, a família real portuguesa retornou a sua pátria, levando toda corte, também muita gente que apoiava a monarquia e que trabalhavam agregados ao Império na área de serviços de maneira geral.
Neste período foram abandonadas diversas moradias utilizadas pelos adeptos do Império, chamados sobrados,19 que não demoraram a ser ocupados pelos libertos, pois resolveria, mesmo que de forma improvisada o problema de habitação enfrentado pelos negros no período pós-abolição.
3.2 Teoria do branqueamento
Um enorme empecilho foi encontrado pelos libertos, e até mesmo antes da abolição, foram os imigrantes europeus. Através da teoria do 19 Edificação composta por dois ou mais pavimentos, utilizada para abrigar libertos e imigrantes no final do século XIX.
branqueamento, o governo português acreditava que somente assim o país ficaria mais civilizado e por conseqüência cresceria assim como os países europeus que já se encontravam em um nível bem mais elevado de desenvolvimento.
“O negro e o mulato foram eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e de serviços, fortalecendo-se de modo severo a tendência a confinálos a tarefas ou ocupações brutas, mal distribuídas e degradantes.” 20
Segundo Florestam Fernandes (2008),21 os negros eram excluídos de suas funções e obrigados a procurar emprego e moradias em áreas cada vez mais afastadas dos centros urbanos. Um fator bastante relevante para dificultar e impedir que os libertos se organizassem financeiramente e socialmente foi a imigração européia devido a revolução industrial, que causou um excedente de mão de obra agrícola enorme no velho continente.
Associado a este fato, a teoria do branqueamento defendida pela elite brasileira, que privilegiava os imigrantes quanto a empregos, ainda que fosse modestos, deixando os libertos sempre a margem de todas as possibilidades trabalhistas. A coroa portuguesa entendia que a mistura dos negros com a população branca iria levar o país ao fracasso, por supor que os negros eram incapazes intelectualmente.
A partir da idéia de superioridade algumas nações sobre outras, os negros africanos, negróides e malaios da Oceania, foram declarados “inferiores” pela Europa e pelos Estados Unidos por supostamente estarem em um estado social inferior irredutível. Assim justificava-se a colonização de suas terras por parte das grandes nações.22
20 FERNANDES, 2008, p. 41.
21 FERNANDES, 2008.
22 CARVALHO; MACIEL, 2016, p.140.
GNARUS - 55 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Este movimento de entrada de imigrantes europeus no Brasil enviou mais ainda os libertos para a condição de exclusão, já que o governo incentivava através da política fiscal os empregadores que admitissem imigrantes. Estes forasteiros vieram prioritariamente de Portugal, Espanha, Itália e da Grécia.
Embora a escravidão tenha acabado em 1888, o preconceito perdura até os dias atuais. A teoria do branqueamento obteve uma grande aceitação no Brasil da parte dos senhores de terra e autoridades de todas as esferas governamentais, acreditando que por serem descendentes de europeus, seriam de uma raça superior, com capacidades maiores de desenvolver o país.
3.3 Cortiços e favelas
Saindo da senzala e passando a habitar os cortiços, antigos casarões outrora utilizados pela aristocracia portuguesa e altos funcionários da corte, fazendo de um local enorme para uma família e alguns criados, uma moradia improvisada e inóspita. Vivendo amontoados, diversas famílias travavam batalhas para sua sobrevivência em meio a muita sujeira e falta de estrutura para tal forma de habitação.
Os cortiços podem ser associados às senzalas, pelas semelhanças de aspectos insalubres, escassez de espaço, o uso multifamiliar dos cômodos, a falta de privacidade, iluminação inadequada, improvisada, assim percebe-se que as condições de vida pouco mudaram.
Juntamente às habitações em cortiços se somam uma considerável quantidade de libertos morando em seus empregos dentro da cidade, como exemplo alguns auxiliares dos jornaleiros, trabalhadores das padarias, que faziam acordos com seus patrões acabavam morando em seu
local de trabalho.
Essa troca realizada entre empregado e patrão caiu como uma luva para ambos, pois os comércios estavam sempre prosperando e ajudava na moradia dos empregados, embora os deixassem presos ao trabalho uma vez que ainda não existiam leis trabalhistas.
Com a abolição da escravidão, os libertos ficaram totalmente desassistidos. A partir do inicio do período republicano, o governo excluiu os analfabetos do direito ao voto, eliminando assim a maioria dos negros. Não houve nenhum projeto para que houvesse uma preparação dos negros para participar como cidadãos na nova fase em que o país iniciava.
No inicio do período da República, Pereira Passos23 iniciou um projeto de reconstrução do centro da cidade, procurando mudar o visual estético e social do centro da cidade aos moldes de Paris, causando muitos transtornos às diversas famílias que moravam nesta área, através de demolições dos cortiços, procurando revitalizar e mudar a freqüência social a partir de então na área central da cidade.
Na analise Vaz (1994) com a criação de normas bastante rígidas quanto ao modelo de construção, fez com que seus moradores, desprovidos de dinheiro e condições para cumprir tais normas habitacionais, migrassem para as regiões mais afastadas do centro onde não havia tanto rigor nas fiscalizações das construções, conseguindo assim fazer suas casas dentro de suas possibilidades. Melhorando o aspecto visual da cidade, as condições de salubridade e retirando os cortiços dos centros urbanos, houve uma diminuição da
23 Francisco Pereira Passos foi engenheiro e político. Nomeado prefeito do Rio de janeiro pelo presidente Rodrigues Alves no período de 1902 a 1906.
GNARUS - 56 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
preocupação do governamental com a habitação popular.24
Mas também tiveram muitas famílias que por questões de proximidades com seus trabalhos, devido à dificuldade de locomoção, que foram construir suas casas e barracos nas encostas e morros, áreas vazias e num primeiro momento não tiveram problemas com as autoridades da época.
Estava se iniciando processo de criação das chamadas favelas. “As classes populares se dispersaram pelos subúrbios, pelas casas-de-cômodos do entorno imediato e pelas favelas, que passaram a fazer parte da imagem urbana carioca num contraponto à modernização.”25
Existem muitas vertentes que narram várias versões para a criação das favelas, porém as que são mais aceitas é a questão dos trabalhadores despejados do centro do Rio, para destruição dos cortiços, e também através dos combatentes que voltaram da Guerra de Canudos,26 sem terem uma definição de sua situação, resolvem montar seus barracos no local chamado de morro da favela, hoje em dia morro da Providência, nome inicial devido encontrarem uma vegetação similar a vista por eles no terreno em que estavam na batalha no nordeste.
Muito se questiona a cerca da abolição da escravidão, por que (...) o processo de integração sequer teve
24 VAZ, 1994.
25 VAZ,1994, p. 586.
26 Confronto armado entre o Exército Brasileiro e os membros de uma comunidade religiosa, liderada por Antonio Conselheiro. Combate encerrado com a destruição da cidade e morte de grande parte dos habitantes de Canudos, no estado da Bahia.
tempo de ser posto em prática, afinal, cerca de 18 meses após a assinatura da Lei Áurea, o golpe republicano se fez presente e tomou o poder. Assim sendo, deve-se compreender que a recém-nascida República Brasileira foi responsável por manter os padrões elitizados da época do século XIX, que afinal, pelos antigos barões do café, a escravidão jamais chegaria ao fim, um dos motivos que os levaram a apoiar o golpe da República.27
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve o objetivo de analisar a escravidão no Brasil, com foco no Rio de Janeiro como local de ilustração, e demonstrar as relações do regime escravocrata com as conseqüências sociais e econômicas do fim da escravidão. Demonstrando os fatores que levaram o Brasil a abolir a escravidão oficialmente em seu território.
Ao longo desta investigação, foi possível concluir que embora fosse abolida a escravidão através de uma lei, houve um intervalo enorme de abstinência de ações afirmativas capazes de reverter atraso material, social e principalmente econômico que assolou os negros africanos e seus descendentes escravizados no Brasil.
Seriam necessários que fossem desenvolvidos termos legais no momento da assinatura da Lei Áurea que assegurassem os direitos dos novos cidadãos brasileiros a plena cidadania e condições dignas de moradia, trabalho, e principalmente respeito perante a sociedade.
No entanto nada disso foi feito, os libertos passaram a ser marginais no ponto de vista da sociedade, continuando a viver de maneira desumana em cortiços e após em favelas, criando
27 SILVA, 2018, p.54.
GNARUS - 57 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
uma sociedade paralela dentro de um país que já era homogêneo do ponto de vista racial, bastante misturado desde 1500, com a vinda dos portugueses, o contato com os índios, e adição dos africanos a este país.
Seriam necessárias a adoção de medidas de reparação para o povo negro, capaz de amenizar dia após dia a diferenças que fossem estabelecidas ao longo do tempo, como à adoção de cotas raciais com regras muito especificas e rígidas capazes de recolocar em igualdade de condições os descendentes dos africanos escravizados no Brasil.
As leis deveriam ter revisto a condição de descendentes dos africanos, olhando para a população mais pobre da sociedade, atuando de forma decisiva e concreta para diminuir em médio prazo as diferenças sociais e transformar principalmente a consciência situacional da população brasileira em longo prazo.
Finalmente, a solução para reparação social e econômica pelos males sofridos pelos africanos e seus descendentes negros seria a reforma agrária, estabelecendo uma igualdade de condições de moradia para todos que habitavam o Brasil, sendo nascidos ou trazidos compulsoriamente a fim de trabalhar. Pois tendo condições de desenvolver seu trabalho em suas terras, o país teria se desenvolvido muito mais e de forma mais igualitária.
5 - REFERÊNCIAS
BISERRA, Ingrid Karla Cruz; SILVA, Dalva Regina A. Escravidão, educação e reformas sócias no projeto de modernidade de Joaquim Nabuco. IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL” Universidade Federal da Paraíba. P.91-106, jul./ago. de 2012. Disponível em: HTTPS:// www.histedbr.fe.unicamp.br>pdfs . Acesso em: 5 de jun. 2020.
CARDOSO, Douglas Nassif. Abolição da escravatura sem cidadania [Resenha]. Revista Caminhando. v.18, n.1, p.213-216, jan./jun. de 2013. Disponível em: https:// www.metodista.br/revistas/revistasmetodista/index.php. Acesso em: 10 de jul. 2020.
CARVALHO, Joice Anne; MACIEL, Renata Baldin. Considerações sobre pensamento raciológico do século XIX e início do XX e seus reflexos no Brasil. Aedos, Porto Alegre, v. 8, n. 19, p. 128-150, Dezembro de 2016. Disponível em: http://seer.ufrgs. br>aedos>article>view. Acesso em: 5 de jul. 2020.
COSTA, Cléria Botelho da. Justiça e abolicionismo na poesia de Castro Alves. Projeto História. n.33, p.179-194, dezembro de 2006. Disponível em: http://www4. pucsp.br>artigo_8 . Acesso em: 9 de jun. 2020.
COSTA, Duane Brasil; AZEVEDO, Uly Castro de. Das senzalas às favelas: Por onde vive a população negra brasileira. Socializando. n. 1, p. 145-154, julho de 2016. Disponível em: http://www.fvj.br>socializando_2016_12. Acesso em: 15 jul. 2020.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia a República: momentos decisivos. Fundação Editora da UNESP. São Paulo, 1999.
Rodrigo Lopes Alves dos Anjos é Bacharel em História pela Universidade Estácio de Sá.
DIHL, Tuane Ludwig. Os fragmentos biográficos de Joaquim Nabuco e da Princesa Isabel de Bragança no jornal A Federação: a construção de uma memória republicana sobre a abolição (RS,18841889). Temporalidades. Porto Alegre, v.9, n.3, set./dez. de 2017.Disponível em: http:// www.dominiopublico.gov.br/download/ texto/bv000127.pdf. Acesso em 4 de jun. 2020.
FAUSTO, Boris. História do Brasil / Boris Fausto
GNARUS - 58 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 5ª ed. Editora Globo, São Paulo, 2008.
GRINBERG, Keila. A poupança: alternativa para compras da alforria no Brasil (2⁰ metade do século XIX). Revista das Índias. Rio de Janeiro, v.71, n.251, p.137-158, 2011. Disponível em: http://www.geledes.org. br>2014/05 . Acesso em: 10 de jul. 2020.
MENEZES, Jaci Maria Ferraz de. Abolição no Brasil: A construção da liberdade. Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n. 36, p. 83-104, dezembro de 2009. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp. br>edicoes . Acesso em: 14 mai. 2020.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo, Publifolha, 2000.
SILVA, Marcelo Penna da. O processo de urbanização carioca na 1⁰ República no século XX: uma análise do processo de segregação social. Estação Cientifica (UNIFAP). Macapá, v.8, n.1, p.47-56, abril de 2018. Disponível em: https://periodicos. unifap.br/index.php/estacao. Acesso em: 5 de jul. 2020.
SOARES, Anita Maria Pequeno. “O Negro André”: a questão racial na vida e no pensamento do abolicionista André Rebouças. Plural, Revista do programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP. São Paulo, v.24.1, p.242-269, 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br . Acesso em: 15 de jul. 2020.
SOUZA, Marcos Teixeira de. José do Patrocínio: uma trajetória em meio a memórias. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v.3, n.1, p. 167-182, novembro de 2015. Disponível em: http://www.revistas.uneb.br>viewifile. Acesso em: 2 de jul. 2020.
VAZ, Lilian Fessler. Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos- a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Análise Social. Rio de Janeiro, v.29, p.581-597, 1994. Disponível em: http://analisesocial. ics.ul.pt>documentos. Acesso em: 1 de jul. 2020.
GNARUS - 59 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
A INFLUÊNCIA DE KANT SOBRE A HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA
RESUMO: Este trabalho apresenta as ideias de Kant no sentido de evidenciar a sua concepção materialista. Tradicionalmente, este pensador é visto como um filósofo que possui algum compromisso ontológico. Contudo, a filosofia de Kant é crítica na medida em que ele não enveredou por uma concepção metafísica. O compromisso de Kant com a fundação do conhecimento implica em uma crítica da tradição metafísica, apresentando uma proposta que estabeleceu a justificativa para o determinismo, o materialismo e o positivismo em relação à questão do conhecimento. O tema do materialismo kantiano propõe uma reflexão de interesse tanto do ponto de vista epistemológico quanto da historiografia da ciência. Tal abordagem infere que a influência kantiana não se restringe apenas o âmbito filosófico, mas que a ideia kantiana se mostra, no desenvolvimento histórico das teorias epistemológicas, comprometida com o realismo objetivista.
Palavras-chave: crítica, objetividade, transcendental, Kant
Discussão com a metafísica
Oproblema da filosofia crítica de Kant se constitui em vários problemas articulados, embora comporte uma unidade interna consistente. A filosofia de Kant possui uma dimensão teórica e uma prática, ou seja, uma dimensão epistemológica e outra ética. Neste trabalho, a opção foi desenvolver apenas a dimensão epistemológica da filosofia kantiana, em função da discussão temática estar centrada na Teoria do Conhecimento. Com isto, não se quer dizer que a parte ética não seja importante, mas
que o fato de o presente trabalho ser apenas um breve esboço do pensamento teórico de Kant, tornando esta interpretação mais pontual no aspecto epistemológico.
Se o problema filosófico kantiano tem um duplo aspecto (teórico e prático), no campo epistemológico pode-se verificar a existência, também, de outra subdivisão, apresentando duas perguntas fundamentais na ‘Crítica da Razão Pura’. Ao que parece, torna-se imprescindível entender a conexão que há entre estas perguntas epistemológicas fundamentais (ainda que logicamente sejam independentes uma da outra),
GNARUS - 60 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
Por André Vinícius Dias Senra e Adílio Jorge Marques
no intuito de se compreender a filosofia teórica de Kant. As perguntas teóricas que constituem o ponto de partida da ‘Crítica da Razão Pura’ podem ser formuladas do seguinte modo: é possível a metafísica como ciência? Como são possíveis a física e a matemática como ciências?
A segunda pergunta acima, indagadora da possibilidade da física e da matemática como ciências, tem como pressuposto a concepção kantiana sobre o que é a ciência. Esta é, em Kant, marcadamente a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana. Isto pode parecer óbvio, mas na primeira metade do século XVIII existiam, na Alemanha, duas físicas, a saber: a de Descartes e a de Leibniz. A discussão entre estas ‘físicas’ caracterizaria o momento científico, e nenhuma delas conseguiria se impor, definitivamente, sobre a outra. A física de Newton surge como uma nova e poderosa concorrente, que as desloca, embora com lutas e fortes resistências. O desenvolvimento intelectual de Kant coincide com este processo, iniciando a sua formação em física através do contato com as polêmicas entre cartesianos e leibnizianos para, em seguida, aderir progressivamente a Newton e tomar partido definitivo por este pensador-cientista.
A física de Descartes e a de Leibniz se diferem em várias questões fundamentais; contudo, possuem quatro pontos em comum:
a) Descartes e Leibniz (assim como todos os racionalistas em geral) compartilham uma idéia de ciência que tem suas raízes na Antiguidade clássica, segundo a qual a ciência é conhecimento necessário e universal. Neste sentido, necessidade é conhecimento demonstrativo pela razão. Não se trata de descrever, mas de explicar. Não se trata de investigar fatos e estabelecer novas verdades em relação a estes, mas de provar estas verdades.
b) Ambos trabalharam no projeto comum à ciência moderna, ou seja, o de matematizar a natureza.
c) Descartes e Leibniz associam suas respectivas físicas com suas metafísicas. A idéia central é que as físicas são diferentes porque as metafísicas respectivas são também diferentes. Descartes e Leibniz fundamentam suas respectivas físicas em suas metafísicas. Como a concepção de ciência é conhecimento necessário, ambos vinculam a necessidade, que caracteriza suas físicas como ciência, às suas metafísicas.
Kant adota a física de Newton sem, no entanto, abandonar a teoria clássica de ciência, na qual havia se formado. Ele aceita a mecânica newtoniana, mas a interpreta através da idéia racionalista de ciência. Para Kant, a física newtoniana é algo mais do que uma generalização dos dados empíricos ou uma descrição matemática adequada dos fenômenos, mas é um conhecimento que implica um caráter universal e necessário. Kantianamente existem dois tipos de conhecimento, o empírico e o à priori. Conhecimento empírico enquanto aquele que se funda na experiência, sendo esta um saber baseado nos sentidos. Trata-se do que é recebido de modo sensorial, e, portanto, uma experiência é sempre um conhecer à posteriori. Conhecimento à priori é aquele tipo de saber que não pode ser adequado e suficientemente fundado na experiência, pois a particularidade da experiência não é capaz de fundar um conhecimento cujo critério seja de universalidade e necessidade. Porque se a experiência puder indicar o motivo de como as coisas foram até agora, contudo, não pode dizer se serão sempre do modo como, ou foram até certo momento, e nem explicar se devem ser sempre de um determinado modo e não de outro. Se há um conhecimento com as qualidades de necessário e universal, então, ele deve ser à priori.
Se tomarmos em conjunto todos estes elementos apontados até agora, chegaremos a determinadas conclusões que são, na verdade, pontos de partida para Kant:
GNARUS - 61 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
1) Ser o modelo de ciência a mecânica newtoniana.
2) A ciência deve ser um conhecimento necessário e universal.
3) Logo, a mecânica newtoniana é conhecimento necessário e universal.
4) Ainda que conhecimento necessário e universal, não pode jamais ser empírico, mas é um saber à priori (em função de sua previsibilidade).
5) Portanto, se a mecânica newtoniana é possível como ciência, então, o conhecimento à priori também é possível.
Pode-se constatar que o primeiro elemento do problema teórico de Kant é a física. O segundo elemento será precisamente a metafísica. Mas, o que é a metafísica para Kant? É, basicamente, a metafísica racionalista. Naquele período já se sabia que Descartes escrevera uma obra chamada ‘Meditações Metafísicas’, na qual se propunha a resolver, entre outros, de modo definitivo, problemas tais como o argumento ontológico e a imaterialidade da alma humana.
Algo similar foi tentado por pensadores como o próprio Leibniz, Spinoza e outros autores racionalistas daquela época. Este tipo de questionamento metafísico não pode obter resposta pela experiência, pois esses ‘objetos’ mencionados nas referidas interrogações não são perceptíveis pelos sentidos. Argumentos metafísicos geralmente se articulam em torno de princípios puros e entes de razão. Em conseqüência, a metafísica se coloca perguntas que excedem os limites da experiência. A ideia kantiana de que o conhecimento só poderia ser obtido mediante um princípio racional. Kant pensou em um tipo de razão que pudesse ser justificável através da experiência como critério de validação.
O método de Descartes pretendia provar
determinadas verdades através de uma demonstração de puros raciocínios. A metafísica pretende ser conhecimento puramente racional, ou ainda um conhecimento por meio da ‘Razão Pura’. Os racionalistas consideravam a metafísica possível como ciência, pois, concordavam que seria possível conhecer, por meio da simples razão, verdades que transcendiam toda a experiência possível.
Hodiernamente muitos duvidam que as assim denominadas ‘questões metafísicas’ possam ser conhecidas (e muito menos demonstradas), importando para muitos apenas entender o motivo pelo qual os homens inteligentes dos séculos XVII e XVIII pensavam o contrário. A confiança que depositavam na cientificidade da metafísica era produto da confiança que tinham na Razão Pura, bem como, a crença na racionalidade pura era tributária da confiança que tinham na matemática. A matemática ocupava um lugar privilegiado entre os saberes racionais da época, sendo considerada modelo de solidez e rigor, de modo que suas verdades são em si mesmas evidentes ou demonstradas a partir de verdades claras. O argumento dos racionalistas se orienta a partir da consideração de que a matemática não se baseia na experiência, ou seja, um matemático demonstra teoremas apoiando-se unicamente na razão.
Em relação aos racionalistas, surge a seguinte questão: se nas matemáticas a Razão consegue produzir conhecimentos a partir de si mesma, por que ela não poderia fazer o mesmo na metafísica? Então, o esquema para compreender os racionalistas é que a possibilidade da metafísica como ciência depende da possibilidade do conhecimento à priori por meio da Razão Pura. De acordo com o que já foi dito até aqui, podese concordar que tanto a mecânica newtoniana
GNARUS - 62 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
quanto a metafísica racionalista pretendem obter conhecimento à priori, ainda que haja uma diferença decisiva no alcance desta tarefa. O fato inquestionável é que a mecânica newtoniana obteve êxito, enquanto a metafísica fracassou. A mecânica newtoniana consegue construir um conjunto de conhecimentos que é aceito por todos e confirmado pelos fatos conhecidos. A metafísica, pelo contrário, como diz Kant, é ‘um infindável teatro de disputas’, não existindo uma única tese que seja aceita de modo unânime, nem uma única demonstração que não seja questionada.
Se observarmos que o problema capital da ‘Crítica da Razão Pura’ pretende responder por que o conhecimento a priori é possível na mecânica newtoniana, e não o é na metafísica, logo compreendemos que a física é parte integrante desse problema. Kant afirma que a metafísica não era possível como ciência porque transcendia os limites da experiência. Contudo, não é central o fato de que a metafísica não seja possível por esta razão e que a física seja possível como ciência porque está unicamente baseada na experiência. O verdadeiro problema para Kant é a diferença na situação da física e da metafísica em relação à possibilidade do conhecimento a priori.
Foi dito que conhecimento a priori implica na necessidade. A questão de fundar a possibilidade de tal tipo de saber consiste em fundar esta necessidade. Necessidade, neste sentido, assume a condição de ser uma necessidade lógico-formal. E isto porque a lógica não faz outra coisa senão explicitar a legalidade da razão. Os princípios lógicos são os princípios da ‘Razão Pura’. Portanto, torna-se possível estar apoiado nesta e fundar um conhecimento necessário de um ponto de vista lógico-formal. No entanto, nenhuma ciência pode estar baseada apenas no critério lógico-formal.
O problema teórico de Kant é explicar a origem de uma necessidade que não é lógicoformal (ou seja, que não é baseada no princípio de contradição) e que, portanto, não é ‘analítica’, mas ‘sintética’. Não se pode esquecer de mencionar que a ciência físico-matemática procura reduzir a explicação sobre o universo a um sistema de leis. Esta, ao que parece, foi a grande herança da mecânica newtoniana. Assim, o significado científico de uma lei não é outro que o estabelecimento de uma relação universal e necessária entre fenômenos. A universalidade e a necessidade da relação entre fenômenos são afirmadas pela causalidade, à qual diz que tudo o que acontece tem uma causa.
A legalidade da natureza pressupõe a causalidade. No entanto, desde Hume, os filósofos sabem que a causalidade não pode ser demonstrada através do princípio de contradição, ou seja, que sua negação não contém uma impossibilidade lógica.
Podem-se formular as indagações kantianas sobre o aspecto teórico em quatro perguntas ordenadas a partir do grau de importância:
1) Por que a física e a matemática são possíveis como ciências, e a metafísica não?
2) Por que é possível um conhecimento a priori na física e na matemática, e não na metafísica?
3) Por que é possível a necessidade sintética na física e na matemática, e não na metafísica?
4) Como o conhecimento a priori é universal e necessário, pode acrescentar ao item três acima: por que é possível a necessidade sintética de caráter universal na física e na matemática, não o sendo na metafísica?
A metafísica pretende obter conhecimento a priori e não o consegue, ou em outros termos, a ‘Razão Pura’ não é capaz de outra coisa do que
GNARUS - 63 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
fundar uma necessidade lógico-formal. Se por um lado Kant não considerou possível a metafísica como ciência, de outro modo, ele pensava que os problemas, que a metafísica levanta, são importantíssimos, inclusive, maiores do que os da física. As questões metafísicas não são apenas relevantes, para Kant, mas são necessárias. Isto origina um paradoxo, pois, ainda que a Razão Pura não possa responder, também não pode deixar de se indagar. A razão é a capacidade de procurar razões. Nisto consiste sua tarefa própria e específica da metafísica, ou seja, perguntando pelos muitas vezes ‘por quê’?’; ou ainda, como diz Kant, buscando a condição de cada condicionada, que a razão se vê impulsionada a colocar-se na ideia do incondicionado ou do absoluto. É deste absoluto que pretende tratar a metafísica, pois a pergunta pela causa da causa da causa conduz a idéia de uma causa última do universo: a idéia de um Deus.
Questões metafísicas tendem à insolubilidade. A razão, ao tentar responder essas questões, cai em contradições consigo mesma, produzindo antinomias. A proposta introduzida por Kant na História da Filosofia toma uma guinada em favor do materialismo, e com isto abandona as questões metafísicas. A orientação antropocentrista de Kant também ofereceu condições para uma justificativa epistemológica da ciência, na medida em colocou limites para o conhecimento humano.
ainda, Kant entendeu que a filosofia deveria se ocupar com a fundamentação de aspirações de validade universal. Para tanto, Kant estabeleceu que a filosofia devesse assumir a condição de ser uma filosofia transcendental. Por que a ‘Crítica da Razão Pura’ desenvolve uma filosofia transcendental? O próprio Kant respondeu no item VII da Introdução desta sua obra: “Denomino transcendental todo conhecimento que, em geral, se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori”. (KANT, 1989: 33).
Assim sendo, as perguntas a que toda metafísica, no sentido da filosofia teorética e crítica, deve responder são as seguintes:
1) O que posso saber? (se dirige ao conhecimento).
2) O que posso fazer? (diz respeito à moral).
3) O que posso esperar? (se refere à religião).
4) O que é o homem? (abarca as anteriores, por ser a mais importante de todas as questões).
Deste modo, conclui-se que a tarefa da filosofia transcendental, entendida como ‘Crítica da
Razão Pura’, deve determinar as fontes do saber humano, a extensão do seu uso possível e útil, e os limites da razão humana.
Considerações Finais
A verdadeira dimensão introduzida por Kant na história da filosofia está em tornar a filosofia uma teoria da objetividade (Geltungstheorie). Se no primeiro momento a filosofia se ocupa de modo prioritário com o objeto, em um segundo momento o faz em relação à objetividade, ou
Adílio Jorge Marques é Profesor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
GNARUS - 64 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
André Vinícius Dias Senra é Professor de Filosofia da Ciência do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Referências
Kant, Immanuel . Transicion de los Principios metafísicos de la Ciencia Natural a la física, Ed. Nacional, Madrid, 1983.
Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura, Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989.
Kemp Smith, N. A Commentary to Kant’s ‘Critique of Pure Reason’, Humanities Press International, 1992.
Marques, A. J. & Senra, A. V. D. (2022) Aristóteles e o Iluminismo na História das Ciências: relação possível?. Research, Society and Development, 6 (11), 1-8.
GNARUS - 65 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ENSAIO ACERCA DA OBRA INVENÇÃO DE ORFEU DE JORGE DE
LIMA
LIDA SOB VISADA DA CARTA A LUA: O CAMINHO INICIÁTICO DO TARÔ NA LITERATURA BRASILEIRA
Por Fernanda L. N. de Mattos
RESUMO: A obra Invenção de Orfeu foi a última publicada em vida por Jorge de Lima, no ano de 1952. Embora possa ser contextualizado na historiografia do modernismo brasileiro, o extenso poema foi amplamente recebido por seus leitores e críticos como uma literatura além de moderna. Com elementos que dialogam com o neoparnasianismo, Jorge de Lima introduz um cenário místico na construção do poema que permitem, tanto por estrutura formal como lexical, estabelecer uma leitura alternativa do cânone. Por meio da comparação simbólica, pictórica e conceitual, ensaiou-se uma aproximação do sétimo canto da obra Invenção de Orfeu com a carta A Lua do tarô tradicional, ambas como ferramentas de leituras de si mesmas e do poeta alagoano. Ilumina-se, portanto, que Jorge de Lima constrói sua obra com refino técnico literário sem a colocar ausente de incógnitas da natureza humana e espiritual, uma vez que amalgama literatura ao contexto esotérico e iniciático.
Palavras-chave: Literatura, Tarô, neoparnasianismo, modernismo brasileiro
“O próprio do simbolismo é sugerir indefinidamente: cada um verá o que o seu olhar permita receber” (WIRTH, Oswald. Le Tarot des Images du Moyen Age. Paris: Tchou Ed, 1966.)
Veiculada em 1952, a obra Invenção de Orfeu é a última publicada em vida do escritor Jorge de Lima. Nascido em 1893 no estado de Alagoas e falecido em 1953 em solo carioca. Mudou-se para o Rio de Janeiro, oficialmente, em 1930 após a conclusão da faculdade de Medicina. Foi orientando de doutorado do também médico e poeta Afrânio Peixoto, tendo publicado a tese O Destino do Lixo no Rio de Janeiro. O mesmo ano que finaliza seu doutorado é o mesmo ano que faz
seu primeiro marco literário, em 1914, sob o título XIV Alexandrinos, pela editora Artes Gráficas contendo 32 páginas.
É um autor reconhecido por reunir noções plurais em sua estética e forma apesar da cronologia o inserir como autor do modernismo brasileiro. Percebe-se até mesmo pelo título que, tanto de sua primeira obra como da última, elementos parnasianos e clássicos são notórios:
GNARUS - 66 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
na primeira, a referência da métrica silábica alexandrina de decassílabos poéticos, comum aos sonetos renascentistas e neoclássicos. E na última, a alusão a Orfeu, filho de Calíope, musa da poesia épica que habitava o Monte Parnaso, e de paternidade associada a Apolo, era um Deus músico conhecido pelo som de sua lira.
O exemplar da obra Invenção de Orfeu utilizado pelo estudo foi impresso pela editora Livros de Portugal, em 1de julho de 1952, com a capa e ilustrações de Fayga Ostrower. Contendo prefácio de João Gaspar Simões e dedicatória a Murilo Mendes, sendo o mineiro um poeta inserido no contexto modernista que era amigo próximo de Jorge de Lima. Ressalta-se que em 1935 publicaram em coautoria o título Tempo e Eternidade em edição da Livraria do Globo, e que posteriormente Murilo Mendes realizou publicações formais de fortuna crítica da última obra de seu amigo alagoano.
A apresentação do biógrafo português João Gaspar Simões logo nas primeiras linhas traz a afirmação de Murilo Mendes de que a obra precisa ser lida com “amor, ciência e intuição, e não apenas com um frio aparelhamento erudito”. Aborda a obra como uma floresta de metáforas, símbolos, ritos e mitos que se amalgamam na “ilha” que Jorge de Lima oferece ao leitor e que somente uma rigorosa exegese é capaz de revelar todos seus mistérios. É um poema extenso que reúne dicotomias paradoxalmente complementares, com componentes de sonho e realidade, de lógica e magia, de ordem e caos primordial.
O crítico também equipara a obra a demais referências épicas vistas ao longo da historiografia literária, mas concretiza que não pode esta ser uma obra épica por excelência, haja vista que não segue o gênero em sua proposta e pelo
autor ser um homem moderno. Contudo, é uma “nostalgia” sobre a conquista dessa ”ilha” que aguarda o futuro da manifestação de sua civilização, a brasileira. Com destaque para o fato de que Orfeu, como também nos clássicos épicos, é o personagem que contem seu nome no título. Entende-se, portanto, que Invenção de Orfeu, batizada por Murilo Mendes e agraciada por Gaspar Simões, está próxima do que seria uma espécie de cosmogonia da literatura brasileira, cabendo a Orfeu a posição de demiurgo: aquele que por meio da sonoridade de sua música é ao mesmo tempo criador-sinfônico e heróipersonagem.
A obra é dividida ao todo em dez cantos, havendo cada um seu respectivo título e com subdivisões irregulares, tanto em quantidade e extensão de segmentos quanto em estrofação. Antes de ser apresentado qualquer canto da obra, há uma ilustração que introduz ao leitor uma gravura da Fayga Ostrower como uma sugestão do que irá se desenvolver. Os cantos recebem os títulos de, respetivamente, “Fundação da Ilha”, “Subsolo e Supersolo”, “Poemas Relativos”, “As Aparições”, “Poemas da Vicissitudes”, “Canto da Desaparição”, “Audição de Orfeu”, “Biografia”, “Permanência de Inês” e “Missão e Promissão”.
O ambiente onírico já é apresentado logo com a introdução de cinco epígrafes ao todo, e estas podem ser compreendidas como paratextos que dialogam com o que será apresentado pelo autor ao curso do seu poema. São quatro epígrafes bíblicas, três do Primeiro Livro de Reis e do Livro do Profeta Isaias, e depois uma citação em francês de Onirocritique (de tradução Onirocíritca) do poeta Guillaume Apollinaire, conhecido como “poeta do encantamento”.
As epígrafes bíblicas têm a majoritariedade para
GNARUS - 67 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
o Primeiro Livro de Reis, que conta a construção do Templo de Salomão e a Lenda de Hiram Abiff. A epígrafe do Livro de Isaías induz o início de um canto a uma nova ilha a ser descoberta. Enquanto a quinta e última epígrafe, é o trecho de Apollinaire, mergulhado de metáforas e rápidas associações imagéticas de flores, texturas e frutas. As cinco citações abordam o ato de construir, edificar e sentir – é a apresentação espiritual, material e sensorial da “ilha” em gestação.
Nota-se que as alusões bíblicas se complementam pelo sentido acerca da consonância e do tom com que será apresentado por Jorge de Lima a obra: o Templo está em construção com o melhor dos materiais e em direção ao mais alto caminho de Virtude, assim como a construção da Ilha que será descoberta e entoada pela lira de Orfeu.
Para a análise em curso, será feito o recorte do sétimo canto “Audição de Orfeu”, do primeiro ao terceiro segmento, localizado no agrupamento das páginas 241 a 256. O sétimo canto é composto ao todo de quatorze subdivisões sem regularidade de métrica e estrofação, como os demais cantos. Dentro do terceiro segmento, será feito um recorte sobre a primeira e a segunda estrofe.
O primeiro segmento é composto de quarto estrofes, com dois quartetos e dois tercetos, porém sem a formalidade do soneto. A composição rímica também não tem forma fixa, embora alguns léxicos realizem rimas, como “linguagem”, “viagem”, “além”, “aquém”, tradução”, “canção”, impressão” e “expressão”.
A linguagem parece outra mas é a mesma tradução.
Mesma viagem prêsa e fluente, e a ansiedade da canção. Lede além do que existe na impressão. E daquilo que está aquém da expressão. (LIMA, 1952, p.243)
Percebe-se que dentro dos versos há um paralelismo dos conceitos apresentados, uma vez que a linguagem é feita por meio da tradução de seus signos, assim como uma viagem é cantada na epopeia, o ato da leitura (do imperativo de “lede”) é pela impressão recebida no papel e o demonstrativo neutro “daquilo” é associado a expressão.
O emprego do demonstrativo é a chave do sentido do segmento em questão, pois “daquilo” é justamente o que não pode ser explicado e sim sentido e compreendido por meio da expressão. É, em sua leitura, um aviso ao leitor para que vá além do que a linguagem aparente o oferece, é como uma sugestão que solicita o uso da intuição para a leitura.
O segundo segmento é o menor do recorte feito em análise, contendo ao todo três estrofes de cinco versos. Logo em seu início, viagem e ilha estão unidos sintaticamente em sujeito composto dos dois primeiros versos pelo verbo de ligação “são” em elipse. Tal jogo sintático os coloca
GNARUS - 68 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
como coautores dessa jornada que se inicia nessa segunda parte. Viagem e ilha a mesma coisa e um vento só banhando livre o poema ivre. (LIMA, 1952, p.244)
Assim como, um vento só, um ar em forma de um suspiro criativo e sozinho orienta o poema. O léxico “ivre” importado do francês é traduzido como “bêbado”. Contudo, pode nesse caso ser lido como “mergulhado” visto que a viagem e a ilha, igualmente em essência, são conduzidas por esse vento, e só por ele que é criatividade em latência, para deixar o poema mergulhado em liberdade.
O terceiro segmento traz, propriamente dito, a percepção da ilha que foi desenvolvida durante os cantos anteriores. É a maior extensão do sétimo canto, possuindo trinta e três estrofes cada uma contendo treze versos. Similarmente aos outros segmentos, no terceiro não há estrutura rímica formal, mas com algumas ocorrências internas e externas no curso dos versos.
A ambiência fornecida pela primeira estrofe do terceiro segmento é de um lugar nebuloso e de penumbras, há uma trama dita no segundo verso como um “jogo de silêncios”. Evidenciase desse espaço a presença de que há algo que observa pelas lunetas atentas, cujo o vazio e o efêmero, aliados do referido silêncio em partida, é desenvolvido ao longo da estrofe.
Que neblina nas rocas! Que penumbras na trama dêsse jogo de silêncios!
Que lunetas atentas sobre nós!
Por que estamos assim, sem promessas,
sem o pranto noturno e seu consôlo? Céus esvaídos. Chama? Quem nos chama? Aquêle ar frio, aquêle vento estático, aquêle ser ou coisa ali no vácuo, aquela mão finada luminosa, aquêle cisne? Ó cisne nunca visto. Ó estrela temporária, mas estrela! (LIMA, 1952, p. 244)
A partir do sétimo até o nono verso, sendo duas vezes no sétimo verso, há a anáfora do pronome demonstrativo “aquele”, quatro vezes no masculino e uma no feminino. É uma ocorrência de estratégia do autor, haja vista que é o demonstrativo de distância, tanto física como tempo, mas também para elemento qualificador dos termos que estão em seguida. O ar frio, o vento estático, ser, ou coisa ali no vácuo, a mão finada luminosa e o cisne não são simples elementos. É assim posto para que uma atenção do leitor seja dada e apurada ao longo da leitura.
A sensibilidade desenvolvida na estrofe aprofunda a intuição sugerida nos primeiros segmentos. É elaborado um sentimento de solidão, incertezas, sem promessa, sem consolo e até mesmo sem pranto noturno desse que está no lugar. Curiosamente, a descrição é posta na segunda pessoa do plural pelos pronomes “nós” no terceiro verso e “nos” no sexto, e depois pelo uso do sujeito desinencial do verbo “estamos”. Tal observação contrasta com os segmentos anteriores do mesmo canto sétimo, em que outros temas como linguagem, viagem e ilha são postos como condutores dos núcleos verbais.
A colocação em segunda pessoa é deixada em aberto e questiona-se: nós? Uma vez que ao decurso do terceiro segmento do sétimo canto
GNARUS - 69 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
a continuidade é feita em primeira pessoa como antes. Depreende-se, portanto, que “nós” é uma noção coletividade, mas que pode ser vista como unidade: sensações e vivências comuns da comunidade que podem também serem postas na esfera individual. De modo que a onisciência das lunetas, a sensação da solidão, da finitude e do vazio é inerente a qualidade da existência do homem. O homem é ainda homem, mesmo que solitário, momentâneo, incerto por natureza, como no último verso que a estrela é dita como temporária, mas mesmo assim não deixa de ser estrela.
Já na segunda estrofe, a primeira palavra é o “Eu”.
Eu tenho estrelas idas, subterradas nos temporários, teporàriamente. Potencial deus, ressono-me existido. Ó Plêiades, ó eu, para além do tão claro e luminoso raio eterno! Ó domínio da vida, permaneço!
Sou seu dilema. Sou a sempre audiência, Indefesso contôrno, drama e jogo, sou um simples pretexto a conhecer-se. E tudo é isso: pura latitude e premeditação talvez de Deus. (LIMA, 1952, p. 244-245)
É uma estrofe que repete elementos da estrofe anterior, bem como a incerteza, a finitude, a vulnerabilidade, mas as leva a outra competência. Enquanto a primeira estrofe trazia princípios da existência humana, na segunda estrofe esses princípios são ampliados a espiritualidade inerente ao indivíduo.
Há duas vezes a ocorrência da palavra “Deus”, uma no terceiro e outra no décimo primeiro, sendo a primeira com o uso da letra minúscula e
na outra letra maiúscula. O léxico é naturalmente um substantivo próprio, uma vez que é um nome atribuído a um ser divino e há a expectativa do uso somente com a letra maiúscula, o que não ocorre. Compreende-se que usar a letra minúscula tira a partícula de divindade e passa a ser colocado igualmente como um mortal. Dessa forma, está próximo desse que fala no verso e desse eu lírico que carrega, como dito, um potencial para ser deus e assim ressoa sua divina existência.
A figura estrelar se repete, agora como referência a algo que esse ser porta consigo e com alusões de uma paradoxal efemeridade. Estrelas essas que foram temporárias, mas ainda perduram. Não somente uma estrela única, mas também com outros vocábulos. Como uma constelação, o grupo de estrelas do signo de touro – as Plêiades – posta como vocativo no quarto, e “raio” no quinto verso.
O paralelismo das Plêiades e do pronome “eu” como ambos vocativos do quarto verso introduzem a noção da parcela de divina que é carregada, visto que a persona se coloca novamente em igualdade, mas dessa vez com a constelação do signo de touro. Tal relação é fundamental para o curso da estrofe, elaborada em comparações entre o ser e as estrelas: um símbolo da efemeridade material e do Intangível.
A manifestação da construção paradoxal continua no sétimo verso em “sou seu dilema” e “indefeso contôrno”, pois a dialética homemdeus é um contorno que não pode ser desenhado pela razão, por isso um dilema que curiosamente permanece. O nono verso emprega um verbo com pronome reflexivo “se” na estrutura “conhecerse” que reafirma toda a hipótese. A estrofe é conjugada na primeira pessoa do singular “eu” e o pronome está na terceira pessoa do singular e pela concordância nominal a construção deveria
GNARUS - 70 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
estar “conhecer-me”.
A sentença “sou um simples pretexto a conhecer-se” coloca o indivíduo como Chave dos Mistérios, tanto materiais como espirituais, que ele mesmo colocou anteriormente. É a simplicidade do oculto que habita na naturalidade da vida do homem comum, que com uma faísca é levado no caminho a conhecer-se: conhecer a si mesmo, o mundo a sua volta e o que reside no oculto pelas faculdades objetivas. Toda a dialética trabalhada nas estrofes é para levar ao décimo verso: tudo é para a latitude, para cima, para o alto – lugar esse assim esperado pelo Incognoscível.
A escrita da obra de Jorge de Lima dialoga de modo claro e detalhista com temas místicos e esotéricos. Permanece evidente, portanto, que o autor não era leigo sobre os assuntos, pois a percepção de sua materialidade está para além da escrita – um pensamento mais simbólico do que verbal. Dessarte, pode ser estabelecido entre os três segmentos apresentados do sétimo canto uma semelhança intrínseca com as lâminas do tarô tradicional.
Antes de tudo, não se aplicou o uso das epígrafes bíblicas como acidente, esperava-se que o leitor soubesse realizar uma associação para com o ambiente onírico da ilha e os versos ali escritos. Jorge de Lima constrói o poema com a aproximação do próprio ato de construir referido no Livro de Reis que constrói o primeiro Templo, futuramente nominado de igreja, mas que consta na segunda epígrafe, “e destinou-o para a casa interna do oráculo” (REIS, 6 -16). À vista disso, ilumina-se na obra Invenção de Orfeu uma simbiose entre os elementos judaico-cristãos e a tradição oracular esotérica existente na Tarologia.
Circulado na humanidade sem data e sem
autoria certa de sua criação, as cartas do tarô são instrumentos seculares relidos de maneiras tão diversificadas assim como foi seu alcance pelo mundo. Em seus primórdios foram encontrados pulverizados nas regiões do Mediterrâneo, França, Egito, e ao decorrer dos tempos foi desenvolvido por inúmeras Sociedades Secretas e ocultistas de seus tempos. Para que em meados do século XVIII e XIX, o ilustrador marselhês Fautrier (COUSTÉ, 1989, p. 28), concebeu o que foi convencionado como o primeiro baralho de tarô, o Tarô de Marselha, cujo arquétipo e material pictórico originou todos os descendentes modernos e contemporâneos.
O conjunto tradicional marselhês possui setenta e oito cartas no total e sua acepção é, em majoritariedade, arbitrária e subjetiva, uma vez que combinadas formam outras explorações com novas leituras possíveis. O tarô, tendo suas cartas também chamadas de Lâminas, é muitas vezes inserido na sociedade como algo periférico e inculto devido a suas origens dúbias e a utilização tendenciosa perpetuada por séculos. Contudo, é preciso que esse olhar sobre a prática oracular seja ponderada e destituída para que sua verdadeira compreensão – a iniciação interna – se cumpra. Por meio de analogias, há uma diversidade quase que inesgotável e que precisa ser recebido com uma pureza simbólica em sua leitura.
No conjunto de setenta e oito cartas, na reunião de cinquenta e seis Arcanos Maiores, a Lâmina A Lua, de número XVIII, ilustra todo o cenário dos três primeiros segmentos do sétimo canto de Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Em sua iconografia tradicional consta um rio ou lago, centralizado com duas torres paralelas e no alto uma lua cheia, que por vezes é preenchida com um rosto feminino. É noite, de céu em breu, podendo ou não conter nuvens e brumas, e na região ao
GNARUS - 71 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
redor da água, são presentes três animais: um lobo e um cão nas extremidades, e uma lagosta ao centro.
A carta d’A Lua é uma das mais temidas pelos estudiosos do oráculo em virtude de sua complexidade. Em uma abrangente concepção, representa um estado de consciência confuso. É o momento quando a vida é reprimida pela a sensação de enfrentar o desconhecido e permeada de insegurança. É em essência a alegoria da viagem iniciática pela associação com o trânsito e a passagem pelas águas: o renascer da matéria primordial. É o mergulho necessário no inconsciente para que a imaginação e a sensibilidade sejam despertadas comprovando que as sombras, tanto mentais como físicas, são penas o reflexo da verdade. Pois uma vez que é aceita a nova vida pelo neófito, é preciso caminhar pela dúvida, pelo incerto e pelas ilusões. A carta recorda, por fim, que o verdadeiro desafio é mergulhar nas profundezas de sua individualidade.
Esse processo ocorre no sétimo canto da Invenção de Orfeu. Nos dois primeiros segmentos do canto em questão é o aviso dado pelo autor de que não é somente utilizado linguagem para ler o que guarda nas páginas, mas sim uma viagem “ivre” (mergulhada) em intuição. Para que no terceiro segmento seja dado início a exploração da ilha, mas também de si mesmo, uma busca ao mesmo instante interna e externa. Logo no início do terceiro segmento, no primeiro verso analisado, é dada a ambiência física da carta d’A Lua pelos léxicos “neblina”, “penumbras”, “trama”, “silêncios” e também pela construção imagética que é estimulada: a sensação de ser observado, um céu esvaído, estar com frio, o vácuo da solidão e uma atmosfera hostil.
Recorda-se que essa primeira estrofe é posta na segunda pessoa do plural, indo além
da noção de indivíduo único. Tal formulação é compreendida uma vez que as indicações apresentadas são comuns e inevitáveis a todos os seres, a melancolia, viver em incertezas e momentos de ilusão. Todos estão sujeitos a “mão finada luminosa” que assimilada a carta descrita é equivalente a própria lua, que observou todos os milênios da humanidade, reconhece seus segredos, seus medos e a tenebrosidade das índoles.
Na segunda estrofe, a relação mística faz-se mais notória. A persona assume a posição em primeira pessoa do singular novamente e confessa ter “estrelas idas, subterradas”, que assim coma a lua que tem suas fases e mistérios a serem contados. E assume a posição de parcela divina, contexto elaborado anteriormente, que denota a marca do processo iniciático: o reconhecimento da eterna permanência. Posto que este é o “domínio da vida”, o eu lírico realizou o mergulho nas profundezas de si, e também da ilha.
Conclui-se que a arte da Literatura e a arte da Tarologia não estão tão distantes entre si, mas que ambas podem ser vistas como auxílio de leituras, interpretações e as duas instrumentos de expressão da humanidade. Visto que o estado da dúvida, de incerteza e da natureza enganosa é em si o dilema do eterno e efêmero no qual a vida tem seu alicerce. Assim, a obra Invenção de Orfeu de Jorge de Lima mostra, e que ilustrado na carta d’A Lua, há o indefeso contorno, oblíquo drama e jogo, que os olhos não podem perceber, mas que sempre há um simples pretexto a conhecer-se, e talvez intencionado por Deus.
Fernanda L. N. de Mattos é Graduanda de Letras - Português/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
GNARUS - 72 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
REFERÊNCIAS
BARTLETT, Sarah. A Bíblia do Tarô. Tradução de Eddie Van Feu e Patrícia Balan. São Paulo: Editora Pensamento, 2011.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 49ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
COUSTÉ, Alberto. Tarô: ou Máquina de imaginar. Tradução de Ana Cristina César. 3ª Ed. São Paulo: Editora Ground, 1989.
LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Editora Livros de Portugal,1952.
HUGGENS, Kim. DUNNE. Eric C. Tarô Illuminati. Tradução Bianca Rocha. São Paulo: Editora Madras, 2015.
Bíblia Sagrada. 7ª Ed: Brasília: Edições CNBB. Editora Canção. 2008
GNARUS - 73 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Artigo
A APROXIMAÇÃO ENTRE OGUM E SÃO JORGE NA UMBANDA: RESSIGNIFICAÇÕES DAS PRÁTICAS CULTURAIS PRÉ-CONTEMPORÂNEAS EUROPEIAS E AFRICANAS
RESUMO: São Jorge sempre despertou nos mais variados povos da Antiguidade, e ainda hoje, o fascínio de uma divindade que mesclava a força, a energia criativa, à proteção do guerreiro, daquele que traz consigo o poder da terra e dos veios ferrosos. O São Jorge que ora se apresenta nestas linhas é a tentativa de mostrar o elo entre muitas culturas, inúmeros simbolismos, mesmo arquétipos que uniram povos desde o norte da Europa até os nossos ancestrais portugueses e africanos.
Palavras-chave: São Jorge; simbolismo celta; Umbanda
Introdução
São Jorge sempre despertou nos mais variados povos da Antiguidade, e ainda hoje, o fascínio de uma divindade que mesclava a força, a energia criativa, à proteção do guerreiro, daquele que traz consigo o poder da terra e dos veios ferrosos. O ferro, enquanto matéria prima imprescindível para a confecção das armas que manteriam determinada sociedade em condições de lutar pela sua sobrevivência, associou-se a vários outros símbolos que culminaram por forjar o famoso “Santo
Medalha de São Jorge contra o dragão
GNARUS - 74 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Por Adílio Jorge Marques e Marcelo Alonso Morais
Guerreiro”. O povo brasileiro, muito associado ao Santo em questão, possui a mestiçagem de ancestrais que de alguma forma estiveram em contato com o vasto simbolismo que São Jorge nos ensina: a força da terra, com suas matas e grutas em pedra; a guerra e o cavaleiro; o ferro e a forja no fogo; um alfabeto mágico; o dragão e os veios energéticos que marcam os terrenos das sociedades. O São Jorge que ora se apresenta nestas linhas é a tentativa de mostrar o elo entre muitas culturas, inúmeros simbolismos, mesmo arquétipos que uniram povos desde o norte da Europa até os nossos ancestrais portugueses e africanos. Esse é o caso da aproximação realizada nos rituais umbandistas, em território brasileiro, entre o santo católico e o Orixá Ogum.
Para a Umbanda, persiste o caráter divinizado dos elementos da natureza quando se cultua os Orixás, já que o importante é manter o contato mais próximo possível com a natureza, pois cada local representa um ponto de força que irradia a energia divina do Criador, magnetizando nossos corpos físicos e espirituais. A partir dessa crença, podemos afirmar que as forças da natureza, materialização das energias que constituem o universo, são as manifestações da Divindade através dos Orixás, forças vibratórias que dão sustentação à criação. Esse culto às potencialidades naturais já ocorria dentro das comunidades ameríndias, assim como por muitos povos africanos. Todavia, mesmo que a concepção africana sobre os Orixás ainda permaneça latente entre os praticantes da religião, o sincretismo ocorrido através do advento do catolicismo deu novo significado aos orixás, transmutando-os com personalidades católicas num processo de ressignificação e ressacralização a ponto de se confundirem com os santos glorificados. Segundo
Costa,1 o Orixá, (...) como “força da natureza”, é concebido com traços próprios, individuais e constantes, que o identificaram imediatamente. Num terreiro jamais se confundirá um Orixá com outro, ou com as Almas – (Pretos velhos, Caboclos, Crianças ou Exus) - entidades do terceiro escalão de seres cultuados nos terreiros de Umbanda. Os Orixás se apresentam com porte altivo, senhoril. Não se permitem intimidades (“não dá confiança a ninguém, “não é de dar muita confiança ao filho”, “não é de dar consulta”) isto é, não ficam à disposição dos filhos de santo e consulentes, escutandolhes os problemas, resolvendo-os ao pé do ouvido, descansadamente, como o fazem os Pretos velhos, Caboclos, Crianças e Exus. Demoram-se pouco nos terreiros. São parcimoniosos nas palavras (“de pouca conversa”).
Para Verger,2 (...) a religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou ainda adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e sua utilização. O poder, àse, do ancestralorixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada.
Para o intelectual francês, essa passagem
1 Costa, Valdeli Carvalho da. Umbanda: os “seres superiores” e os orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica. São Paulo: Loyola, 1983.
2 Verger, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 2002, p. 18-19.
GNARUS - 75 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
da condição humana para a de divindade se deu a partir de uma transformação provocada, segundo as lendas, por fortes emoções, que transmutaram a matéria em energia, em força imaterial (Axé) que se manifesta diante dos olhos humanos, nos momentos em que os Orixás incorporam seus descendentes, ou seja, àqueles que possuem as condições para se tornarem os veículos momentâneos de contato com a terra. Ao aproximar o mundo espiritual (Orun) do material (Aiyé), cada Orixá, que se manifesta com características próprias, traz o seu Axé para o crente, numa relação informal e, ao mesmo tempo, familiar.
Ainda segundo o mesmo autor, esse caráter familiar (íntimo) do culto aos Orixás na África explicava a ausência de proselitismo, pois se o crente não possuía ligação com os ancestrais que se faziam presentes no terreiro, não poderia ser aceito no culto. Isso pareceria, para muitos, certo grau de intolerância para com os “estrangeiros”; no entanto, tal ato demonstrava que, para ocorrer a filiação, o indivíduo precisava ser descendente da linhagem paterna, só sendo alterada a situação em decorrência de situações como doenças, ausência de herdeiros ou indicações do plano espiritual, manifestadas principalmente em adivinhações. Era, portanto, inconcebível obrigar um forasteiro a participar do culto se ele não possuía essa ancestralidade, condição fundamental para a incorporação do Orixá.
A Umbanda, portanto, rompe com essa tradição familiar, tornando-se mais flexível hierarquicamente, tanto na relação dos médiuns com os Orixás, quanto nas questões de gênero, onde a mulher assume posições de destaque no terreiro, ao contrário do que ocorria nas tradições africanas. Ao mesmo tempo, a Umbanda tenta romper, numa sociedade que se urbaniza, com a
dessacralização da natureza, fruto do domínio de uma racionalidade instrumental e economicista difundida pela modernidade. Isso reforça a importância do culto aos Orixás na Umbanda, pois ao resgatar a sacralidade do cosmos, “mediante o sincretismo, elevá-los a uma nova posição e conceituação no corpo doutrinário e no culto” .3
Ao agirem no plano astral em níveis elevados da espiritualidade, os Orixás se manifestam através de vibrações que vão tomando posse da matéria, ou seja, do corpo do médium, que passa a ser instrumento de atuação do Orixá, inicialmente saravando, ou seja, saudando os filhos-de-santo para, em seguida, iniciar os trabalhos, purificando as pessoas e o ambiente. Se há entre os médiuns e/ou consulentes da casa alguma carga negativa, densa, cabe ao Orixá limpar. Ele traz a ordem diante de um acontecimento desagradável. Esta atribuição do Orixá num terreiro de Umbanda é, segundo a análise de Costa (1983, p.377), consequência do sincretismo realizado com os santos católicos, argumentando que a forma como se dá a incorporação, “antropológica”, se contradiz com a crença nos Orixás como vibrações de forças da natureza.
Esse sincretismo, como já foi dito anteriormente, tem raízes históricas, pois o negro africano, diante da ordem católica dominante, se viu obrigado a traçar um paralelo entre os Orixás e alguns santos católicos com o intuito de fugir da punição do branco. Servindo-se do santo para antepará-lo o negro, diante da separação de sua família pela escravidão, dá ao Orixá uma feição mais individual, onde cada indivíduo deve garantir que as exigências do Orixá sejam
3 COSTA, Valdeli Carvalho da. Umbanda: os “seres superiores” e os orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica. São Paulo: Editora Loyola, 1983, p. 102.
GNARUS - 76 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
atendidas.4 Aparentemente, essas tradições prémodernas africanas foram ressignificadas diante do catolicismo apenas como uma estratégia de sobrevivência. No entanto, “a aproximação entre Orixás e Santos, na verdade, é mais profunda” 5 , pois é difícil precisar se foram os negros convertidos ao catolicismo, através do sincretismo, ou se os negros simularam uma espécie de conversão para manter o culto aos Orixás sem o risco de proibição pela Igreja, que permitia festas e danças no intuito de evitar insatisfações e revoltas da população negra escrava.
A fim de esclarecermos como as práticas umbandistas podem ser relevantes no entendimento do constructo identitário fluminense, faz-se necessária uma breve análise de como se deu esse processo de aproximação, a partir do sincretismo ocorrido entre um dos Orixás mais cultuados nas Sete Linhas da Umbanda6 e
4 Verger, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 2002, p. 33.
5 Costa, Valdeli Carvalho da. Umbanda : os “seres superiores” e os orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica. São Paulo: Loyola, 1983, p. 381.
6 Uma das questões mais polêmicas envolve a codificação das Sete Linhas da Umbanda. Leal de Souza, em 1925, propôs uma classificação baseada em sete Orixás (Oxalá, Ogum, Euxoce, Shangô, Nhan-san e Amanjar) e As Almas, sendo aceita oficialmente pelo 1º Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941. No entanto, as tendas umbandistas que surgiram a partir dessa codificação recebiam nomes de santos católicos, demonstrando a forte influência dessa religião na Umbanda. Uma nova proposta foi feita por Zélio de Moraes, a partir do crescimento do número de tendas umbandistas, originárias da Tenda Nossa Senhora da Piedade. O famoso médium defendia a ideia de sete linhas representadas por cores (amarelo-ouro (Iansã/Santa Bárbara), rosa (Ibeji/Cosme e Damião), azul (Yemanjá/Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Guia – incluindo Oxum/Nossa Senhora da Conceição), verde (Oxossi/São Sebastião – se apropria das propriedades de Ossanha), vermelho (Ogum/São Jorge), marrom (Xangô/São Jerônimo), roxo (Nanã Buruquê/ Nossa Senhora Santana). Além disso, destacou as cores branco (presença de luz) e preto (ausência de luz), respectivamente, em Oxalá/Jesus Cristo e Obaluaê ou Omulu/São Lázaro (TRINDADE, LINARES e COSTA, 2008, p.42-50). Para Lopes (2007), as Sete Linhas se baseiam na
o(os) respectivo(os) santo(os) católico(os).
Símbolos de Força da Umbanda7
Os Celtas na Ibéria
Através de achados arqueológicos na Península Ibérica, e com estudos da distribuição espacial dos variados sítios arqueológicos que levaram à localização de peças da Antiguidade, geneticistas
evolução do planeta Terra em seis fases ou reinos, a saber: Fogo, Terra, Ar, Água, Matas e Humanidade. Além dessas, acrescenta a dimensão espiritual, o Reino das Almas. A partir daí, associou-se cada reino a um Orixá: Fogo/Ogum (impulso inicial), Terra/Xangô(senhor das pedreiras), Ar/Iansã (rainha dos ventos), Água/Iemanjá (rainha das águas), Matas/Oxóssi (rei das matas), Humanidade/Oxalá (criador e responsável pela humanidade) e Almas/Omulu (senhor das almas). Matta e Silva (2007), citando as Sete Linhas criadas em 1956, divide-as em graus crescentes de iniciação (Almas, Xangô, Ogum, Iansã, Oxossi, Yemanjá e Oxalá). Estes sete reinos correspondem às Sete Linhas da Umbanda, numa sequência que apresenta a evolução da Terra personificando a natureza. Saraceni, em Código de Umbanda (2008) relaciona as Divindades Regentes da Natureza (Orixás) com sete essências originais (Cristalina, Mineral, Vegetal, Ígnea, Eólica, Telúrica e Aquática, respectivamente Fé, Amor, Conhecimento, Justiça, Lei, Evolução e Geração), e seus respectivos pólos magnéticos negativos (atratores) e positivos (irradiantes). As Sete Linhas, para o autor, seriam assim definidas: Cristalina (Oxalá e Oyá), Mineral (Oxum e Oxumaré), Vegetal (Oxossi e Obá), Ígnea (Xangô e Iansã), Eólica (Ogum e Egunitá), Telúrica (Obaluaê e Nanã)) e Aquática (Iemanjá e Omulu).
7 Fonte: zeboiadeiro.sites.uol.com.br/index1.jpg. Acessado em 25/01/2010.
GNARUS - 77 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
como Barry Cunliffe,8 Bryan Sykes,9 10, Stephen Oppenheimer11 e Spencer Wells12 levantaram a hipótese de que as populações ibéricas podem ser a origem dos povos que repovoaram a Europa atlântica no período pós-glacial, particularmente durante o Paleolítico e o Mesolítico, e mesmo no Neolítico. Especificamente no caso de Portugal, principal influência europeia da população brasileira, um dos principais componentes para o desenvolvimento populacional durante a Idade do Ferro foi a movimentação de populações celtas na Península.
O ferro, símbolo de Ogum, nos remete a Idade do Ferro. Esta se refere ao período em que ocorreu a metalurgia desse metal, sendo marcante por se mostrar superior ao bronze em relação à dureza e abundância na natureza. Caracterizada pela sua utilização, esta época mostra utilização importada do Oriente através de tribos indoeuropeias (celtas), que a partir de 1.200 a.C. começaram a chegar a Europa Ocidental. O seu período alcançará até a época romana. As migrações das populações protoceltas e celtas acentuam o carácter indoeuropeu do panorama antropológico na Península Ibérica, e muito particularmente no panorama português. O protocelta (às vezes chamado também de pré-celta) dará origem aos lusitanos, povo que habitou onde hoje é Portugal.13
8 Barry Cunliffe, Facing the Ocean: The Atlantic and Its Peoples, 8000 BC to AD 1500, Oxford University Press, 2001.
9 Bryan Sykes, The Seven Daughters of Eve, Corgi Books, 2002. Bryan Sykes, Blood of the Isles: Exploring the Genetic Roots of Our Tribal History, Bantam Press, 2006.
10 Bryan Sykes, Blood of the Isles: Exploring the Genetic Roots of Our Tribal History, Bantam Press, 2006.
11 Stephen Oppenheimer, The Origins of the British - A Genetic Detective Story, Hardcover, 2006.
12 Spencer Wells: coordenador do programa de investigação em história genética das populações humanas da National Geograhic Society, EUA, conhecido por Genographic Project.
13 José Mattoso (dir.), História de Portugal. Primeiro Volume: Antes de Portugal, Círculo de Leitores, 1992, pp. 30-40.
O protocelta, também chamado de celta comum, seria o suposto ancestral de todas as línguas celtas conhecidas. Falada provavelmente por volta de 800 a.C., o protocelta é uma língua descendente direta do proto-indoeuropeu, e é amplamente considerada como a primeira das línguas indoeuropeias a se espalhar na Europa norte-ocidental e atlântica. Apesar de algumas sentenças completas encontradas pela arqueologia estarem escritas em gaulês e celtíbero, a literatura celta substancialmente mais antiga é encontrada no irlandês antigo, a mais antiga língua céltica insular registrada, como veremos quando mencionarmos o Ogam.14
Celta, enfim, é a designação dada a um conjunto de povos organizados em muitas tribos, que ocuparam o território desde a Península Ibérica até a Anatólia, pertencentes à família linguística indoeuropeia que se espalhou pela maior parte do oeste da Europa a partir do segundo milénio a.C.. Os celtíberos são o povo que resultou da fusão das culturas do povo celta com o povo íbero, tanto nas regiões montanhosas onde nascem os rios Douro e o Tejo quanto nas partes costeiras. Não há ainda, contudo, unanimidade quanto à origem destes povos. Boa parte da população da Europa ocidental pertencia às etnias celtas até a eventual conquista daqueles territórios pelo Império Romano. A maioria das tribos celtas foi conquistada pelos Romanos, embora o modo de vida celta tenha, sob muitas formas e com muitas alterações resultantes da aculturação (inclusive a cristianização), sobrevivido em grande parte do território ocupado.8
Os celtas exaltavam as forças telúricas expressas nos seus muitos ritos, e a natureza era a expressão máxima da Deusa Mãe. A “divindade” máxima era, então, feminina, cuja manifestação 14 Mário de Moura (Ed.), Os Celtas, Pergaminho, 2001, p. 101.
GNARUS - 78 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
era a própria natureza, mesmo não sendo o matriarcado a estrutura da sociedade celta. Mesmo assim, a mulher era soberana no domínio das forças da naturais, existindo crenças a muitas divindades com características animistas. Ou seja, todos os elementos naturais e as divindades, assim como em outras formas de religiosidade, seriam passíveis de emoções, desejos, vontades, ou mesmo de inteligência, o que tornava a simbiose com o homem fácil e inteligível a todos. Os ritos deveriam, quase sempre, ser realizados ao ar livre, junto aos elementos constituintes no natural, em especial o fogo, a água, a terra e o ar.
Tais ritos eram demarcados astronômicamente seguindo os períodos do ano, ou as quatro estações, celebrando-se especialmente os equinócios e solstícios. Calendários de pedra macavam em alguns lugares, como em Stonehange, as festas anuais. Tais ritos acabaram chegando até nossos dias, como por exemplo, o do dia 1º de novembro Sanhain, quando celebrava-se o dia seguinte ao do contato com os mortos ancestrais.
Destacamos, para este artigo, o ritual de Beltane, ou Beltain, Bealtaine, um festival celta ainda comemorado nos dias atuais em todo o mundo (inclusive no Brasil), nas comemorações da primavera para o hemisfério norte, e que originalmente marcava o período anterior ao ápice solar (o verão). Beltane ocorre em 1º de maio (próximo ao dia escolhido para as festas de São Jorge, 23 de abril) no hemisfério norte. A comemoração em tempos remotos possuía um enfoque na fertilidade da terra, sendo uma festa de grande energia, jovialidade e alegria, quando os participantes dançavam ao redor de uma fogueira.15
15 Maria Nazareth Alvim de Barros, Uma luz sobre Avalon. Celtas e Druidas, Mercuryo, 1994, p. 112.
Durante o evento eram acesas fogueiras nos topos dos montes e lugares considerados sagrados, símbolo que nossas velas ainda perpetuam, especialmente quando colocadas em um ponto mais alto do que a nossa cabeça. Os lugares mais altos eram mais próximos do céu, logo, também dos deuses. Assim, Beltane era o início do verão (com o fogo) e a morte do inverno (o mal, o dragão que consome a luz), estando associada à imagem que mais tarde seria mundialmente conhecida por São Jorge.16
Beltane é um festival da fertilidade, simbolizando a união entre as energias masculina (a lança do guerreiro) e feminina (a donzela, representada em algumas imagens do Santo da Capadócia). Nas gálias tornou-se a fertlidade da terra e os fogos do deus Belenos, muito proximo do Apolo grego, já que o fogo não estava representando apenas o sol enquanto astro, mas a luz solar e seus princípios. Alimentos eram, algumas vezes, oferecidos ao elemento fogo.
Ogam
A escrita Ogam, também chamada de Ogham ou mesmo de Ogum, é uma das relações históricas entre os antigos povos do norte da Europa e a cultura africana dos orixás. A relação com o orixá Ogum torna-se, neste caso, evidente, não apenas pela grafia da palavra, mas pela cultura que originou tal escrita e como ela foi muitas vezes utilizada: em pedras ou peças de metal. Note-se também a relação com a palavra “ogã”, título dado aos cantores dos atuais templos umbandistas, algo a ser mais pesquisado.
A grafia Ogam, enquanto letras do alfabeto
16 Andy Baggott, Rituais Celtas. A roda céltica da vida. Os poderes sagrados da natureza. Madras, 2002, p. 66-68.
GNARUS - 79 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
celta, era utilizada junto aos monumentos em pedra por ser este um material considerado “quase eterno”, e são ainda encontrados em vários países europeus. Data-se a origem de tais monumentos por volta dos anos 400 e 600 d.C., mas a escrita pode ter sua origem remontada ao século VIII a V a.C.. Existem indícios de que este tipo de escrita surgiu no norte da Península Ibérica durante o período neolítico. Posteriormente, propagou-se com a cultura megalítica, e finalmente foi o estilo de escritura adotado pelos celtas inclusive das ilhas britânicas.
À direita, um pilar perfurado de pedra com escrita Ogam, datado do século XII. Localizado em frente a uma igreja, com uma cruz gravada em outra pedra À esquerda. Kilmalkedar, Irlanda.17
Sendo um sistema de signos e usado como alfabeto, representou fortemente o linguajar gráfico dos povos irlandeses e dos pictos. Este povo situava-se no norte da atual Escócia, tendo estado também em Portugal.
17 Fonte da imagem: www.irishmegaliths.org.uk/ pillarstones2.htm, acesso em 3 de junho de 2010.
Ogam em uma espécie de menir. Burnham, Irlanda18
Em sua forma mais simples, o Ogam consiste de quatro grupos de traços, e cada conjunto inclui cinco letras estruturadas a partir de uma até cinco marcas, criando deste modo 20 grafías. Um quinto grupo de cinco símbolos, chamado de “forfeda” ou letras adicionais, foi muito provavelmente desenvolvido posteriormente para o Ogam. A maioria das inscrições encontradas são curtas e constam apenas de nomes. Dos mais de 400 epígrafes conhecidos, aproximadamente 330 estão na Irlanda.19
18 Fonte da imagem: www.irishmegaliths.org.uk/ pillarstones2.htm, acesso em 3 de junho de 2010.
19 Damian McManus. A guide to Ogham. (Maynooth Monograph; 4) Maynooth: An Sagart, 1991.
GNARUS - 80 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Outra representação das vogais em Ogam
Além da escrita, São Jorge/Ogum possui relação com outros aspectos da cultura antiga europeia. Desde a Antiguidade que muitos povos europeus marcavam lugares de irradiação telúrica (considerados lugares mágicos) com pedras verticais, apoiadas lateralmente por duas pedras que ficavam abaixo do nível do solo. Observa-se que awqs pedras são, até hoje, objeto de utilização na Umbanda, por exemplo.
Essa energia telúrica deveria fluir ou ser terminada naturalmente para que não causasse danos às práticas ali efetuadas. Quando não havia uma terminação natural, sempre medida pela 20 Fonte da imagem: our-ireland.com/.../celtic-alphabet/, acesso em 3 de junho de 2010.
radiestesia, podia-se interromper a corrente de energia fincando-se uma seta ou lança de ferro no solo, como se fosse um interrupetor. O ferro, bom condutor elétrico, passou acabou incorporado à São Jorge, com sua longa lança que é fincada em um dragão que se contorce, exatamente como fazem as linhas de força na terra. O dragão é um animal mítico, e que representava, para os povos da Europa e mesmo em vários lugares da Ásia, a linha de radiação que passava pelo chão, sendo, portanto, benéfico. O equilíbrio entre as forças ou as polaridades sempre foi uma busca de todas as religiosidades. Nas histórias medievais, o dragão passou a ser o guardião de algum tesouro (algo que normalmente fica enterrado) ou mesmo tomou a feição de algo ruim, o que não possuía qualquer relação com a sua origem simbólica. E, enquanto o dragão estava ligado à crosta terrestre, São Jorge buscava salvar a donzela, a virgem, representante da energia do céu ou cósmica.
No Oriente o dragão, enquanto força cósmica, era personificado em uma linha imaginária celestial: a órbita da Lua cruzando a órbita do Sol, o que ocorre em dois pontos. Na astrologia tais pontos passaram a ser conhecidos como nodo norte, ou Cabeça do Dragão (na ascenção), e nodo sul, ou Cauda do Dragão, na órbita descendente da Lua. Assim, São Jorge atua na terra mas também no céu, tendo o senso popular posto o Santo guerreiro morando em nosso satélite.
GNARUS - 81 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Alfabeto Ogam20
Lenda ou história? A versão popular
Por volta do final do século III, São Jorge teria nascido na região da Capadócia, atual Turquia. Ainda criança perdeu o seu pai, e sua mãe o levou para a Palestina, educando-o para a carreira militar. Sua dedicação e habilidade levaram o imperador Diocleciano a lhe conferir o título de Tribuno. Jorge torna-se cristão, mas com a idade de vinte e três anos passou a residir na corte imperial romana, exercendo altas funções.
Em determinado momento o Imperador Diocleciano planejou matar todos os cristãos que poderiam ameaçar o poder em seu Império. No dia marcado para o Senado confirmar o decreto imperial, Jorge levantou-se na assembléia e declarou-se contra aquela decisão. Defendeu com tanta força a sua fé que provocou a ira do Imperador, que tentou fazê-lo desistir de suas ideias, chegando até a tortura. Era periodicamente levado a Diocleciano, que exigia a Jorge que
21 Padroeiro de Portugal, da In¬glaterra e da Catalunha, São Jorge também é protetor dos soldados, militares, ferramenteiros e ferroviários. O ferro, sempre presente no imaginário do santo guerreiro, vencedor das demandas. Fonte: http://www.kilts-n-stuff.com/Celtic_History/dragon. html, acesso em 03 de junho de 2010.
renegasse a sua fé, o que não aconteceu. O Imperador, não tendo êxito, mandou degolar o mártir cristão no dia 23 de abril de 303 d.C., sendo este o dia dedicado a São Jorge.22
São Jorge em Portugal e na Inglaterra
A importância de São Jorge é tamanha entre os portugueses que a influência do Santo Guerreiro surge ligada às armas através do sincretismo cristão, séculos após os primeiros povos celtas terem habitado as terras lusas. Algumas fortificações medievais e posteriores possuem ainda o seu nome, o que aumentou ainda mais o sincretismo de São Jorge com a arte da guerra e da vitória sobre os inimigos da fé e da soberania de uma nação. O primeiro bastião que não pode ser esquecido é o Castelo de São Jorge, talvez o mais famoso deles, localizado em uma das colinas de Lisboa e construído, provavelmente, no século II a.C..
Quando da Reconquista cristã as forças de D. Afonso Henriques (1112-1185), com o auxílio de vários povos cruzados (principalmente normandos, flamengos, alemães e ingleses) que se dirigiam à Terra Santa, investiu contra esta que era uma fortificação muçulmana, que acabou capitulando em 1147 após um cerco de três meses. Provavelmente, sob a influência da cultura das ilhas da Bretanha, já presente nas terras portuguesas ancestralmente, e fortalecidas pelo contato inter-cultural das Cruzadas, a devoção a São Jorge estabelece-se em Portugal de vez. Após a vitória o castelo em Lisboa foi colocado, por gratidão, sob a proteção do mártir São Jorge, a quem muitos cruzados na época já dedicavam forte devoção. O dia da conquista, 25 de Outubro, passou a ser o Dia do Exército em Portugal, sendo
22 Fred Jorge, História de São Jorge. Prelúdio, 1959.
GNARUS - 82 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
São Jorge e o Dragão, de Gustave Moreau21
esta uma instituição que possui São Jorge como padroeiro.
Poucas décadas mais tarde, entre 1179 e 1183, o castelo ainda resistiu com sucesso às forças muçulmanas que assolaram a região entre Lisboa e Santarém. E foi no reinado de D. Afonso IV (12911357), chamado de “o Bravo”, que o uso do grito de guerra “São Jorge” se tornou regra, substituindo o grito anterior dos portugueses que era “Santiago”. D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431) considerou São Jorge o responsável pela famosa vitória portuguesa na batalha de Aljubarrota em 1385.23 Como o Rei D. João I de Portugal também era devoto do santo, substituiu São Jorge a Santiago como patrono de Portugal. Em 1387, D. João I ordenou que a imagem do santo, montado a cavalo, fosse transportada na procissão católica do corpo de Cristo. Assim, séculos mais tarde, essa imagem também chegaria ao Brasil.24
Curiosamente, o cavalo era um animal nobre entre os celtas, justamente por ser um servidor dos homens nas guerras. Viriam de outro mundo oculto, e eram tidos como possuidores de inteligência humana. Após a morte do heroi ou do cavaleiro, retornaria para esse outro mundo superior, e com isso passaram a ser vistos também como condutores das almas.10 Há, também, o Castelo de São Jorge da Mina, também designado por Castelo da Mina, ou Feitoria da Mina, e posteriormente chamado por Fortaleza de São Jorge da Mina. Localiza-se na atual cidade
23 A Batalha de Aljubarrota ocorreu em 14 de Agosto de 1385 entre tropas portuguesas, com aliados ingleses, e comandadas por D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, e o exército castelhano e aliados, liderados por D. Juan I de Castela. A batalha deu-se no campo de São Jorge, nas imediações da vila de Aljubarrota, entre as localidades de Leiria e Alcobaça, centro de Portugal.
24 Georgina Silva dos Santos.Ofício e sangue: a Irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna. Colibri; Portimão: Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2005.
de Elmina, Gana, litoral da África Ocidental. A “Mina” já funcionava em meados do século XV, e teve a função inicial de assegurar a soberania e o comércio de Portugal no Golfo da Guiné, constituindo-se no seu principal estabelecimento na costa africana, fonte da riqueza que alimentou a economia do país até se iniciar o ciclo da Índia após a viagem de Vasco da Gama em 1498.25
A Inglaterra, aliada histórica dos portugueses, foi o país ocidental onde a devoção ao santo teve papel mais relevante. O monarca Eduardo III colocou sob a proteção de São Jorge a Ordem da Jarreteira, fundada por ele em 1330, pois a imagem de santo guerreiro, ligado às espadas, já existia. Por considerá-lo a imagem perfeita dos cavaleiros medievais, o rei inglês Ricardo I, comandante de uma das Cruzadas, constituiu São Jorge padroeiro daquelas expedições que tentavam conquistar a Terra Santa aos muçulmanos.
A Cruz de São Jorge inglesa
No século XIII, a Inglaterra já celebrava o nome de São Jorge, e em 1348 surge a Ordem dos Cavaleiros de São Jorge. Os ingleses adotaram definitivamente São Jorge como padroeiro do país, trazendo também a sua cruz vermelha (cor do sangue, do fogo e do sacrifício pelas grandes causas) na bandeira de fundo branco (cor da pureza).
GNARUS - 83 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Bandeira-do-país-de-gales26
Ogum e São Jorge: sincretismo, dimensões simbólicas e arquetípicas
Filho de Iemanjá, Ogum tem sua importância destacada pela ligação com os metais, principalmente o ferro, matéria-prima básica para os instrumentos utilizados por caçadores e agricultores. É associado atualmente à metalurgia e à siderurgia, representando, dentro do panteão africano, um símbolo da Revolução Industrial. Não é à toa que muitas das oferendas à Ogum são realizadas em ferrovias, simbolizando a abertura dos caminhos diante do elemento ferro.27 Este elemento simboliza a transformação, já que as ferramentas em ferro se tornam úteis (interação) à produção quando são forjadas em altas temperaturas (o fogo simbolizando o potencial criativo da mente). O ferro, portanto, é o símbolo dos objetos que servem aos seres humanos, tornando-os produtivos à sociedade e salvandoos do mal, fato que pode ser percebido na espada de São Jorge.28 Além disso, Ogum representa a capacidade do ser humano de controlar a natureza e utilizá-la para o benefício de todos. Por
26 O dragão presente, ainda hoje, no imaginário europeu. Fonte: http://www.kilts-n-stuff.com/Celtic_History/dragon. html, acesso em 03 de junho de 2010.
27 Cabe observar também que o ferro é o elemento químico essencial para a formação dos glóbulos vermelhos. Da mesma forma como sua carência torna o indivíduo anêmico, a carência da raiz energética de Ogum cria uma espécie de anemia espiritual, ou seja, uma falta de coragem e de disposição para lutar pelo próprio desenvolvimento. É por causa dessa função revitalizadora que Ogum é apresentado nos mitos africanos como o orixá que vem na frente, o pioneiro na tarefa de descer à Terra e acordar os homens. Trata-se, evidentemente, de uma função típica de Áries e Marte (www.constelar.com.br, acessado em 3 de junho de 2010).
28 Scipioni, Silvia; CORREA, Daura. Os orixás e os chacras. Porto Alegre: BesouroBox, 2008.
conta dos metais, Ogum passou a ser associado à guerra, desviando seu papel de comandante das atividades agrícolas para a atividade bélica e passando a ser o “Vencedor das demandas”.
Tendo como elementos centrais a guerra e a metalurgia, Ogum, ferreiro e guerreiro, pode ser associado ao deus romano da guerra, Marte, que tem como correspondente Ares, o deus grego, o vingador, assim como com Vulcano e Hefesto, respectivamente os deuses romano e grego do fogo, que possuíam a arte de forjar o ferro.
Acompanhado por Éris (Discórdis), Deimos (Terror), Phóbos (Medo) e Enio (Devastadora), Ares, proveniente da Trácia, norte grego, apresentava-se com lança, capacete e armadura em suas batalhas, levando a morte a e destruição por onde passava. Associado ao movimento, ao ferro, ao vermelho e à coragem, Ares pode nos revelar as “forças primitivas, instintivas e selvagens em luta com forças atuantes na consciência”, cuja energia decorrente se relaciona diretamente com a competição e a vontade de seguir em frente, lutando e vencendo as batalhas .29
29 Oliveira, Bosco e Oliveira, Ingrid Constant. Mitologia e vivências humanas. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2009, p.209-210.
GNARUS - 84 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Ares, o deus da guerra30
Já com Vulcano/Hefesto, o ourives divino, o simbolismo do artesão, que forja o ferro utilizando o fogo dos vulcões, ou seja, a energia desprendida do inconsciente pode representar a união concreta e abstrata entre arte e técnica.31 A libido (vulcão) se manifesta para a realização das ações e vivência plena, concretizadas nos objetos criados a partir da manipulação e transformação dos metais, expressão de uma “erupção” de ideias e potencialidades mágicas que equivalem à evolução da tecnologia no intuito de dominar, comandar, desbravar e punir.32
Hefesto, o deus do fogo e da metalurgia33
Através da mitologia dos Orixás africanos, podemos perceber algumas semelhanças entre as divindades greco-romanas citadas anteriormente e Ogum, o grande guerreiro e manipulador dos metais.
Ogum era o mais velho e o mais combativo dos filhos de Odudua, o conquistador e rei de Ifé.
Por isto, tornou-se o regente do reino quando Odudua, momentaneamente, perdeu a visão.
Ogum era guerreiro sanguinário e temível. “Ogum, o valente guerreiro, O homem louco dos músculos de aço! Ogum, que tendo água em casa, lava-se com sangue!” Ogum lutava sem cessar contra os reinos vizinhos.
Ele trazia sempre um rico espólio de suas expedições, além de numerosos escravos.
33 Fonte: deysejoyceblog.blogspot.com. Acessado em 3 de junho de 2010.
GNARUS - 85 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Todos estes bens conquistados, ele entregava a Odudua, seu pai, rei de Ifé. “Ogum o violento guerreiro, o homem louco, dos músculos de aço. Ogum, que tendo em casa, lava-se com sangue!”
Ogum teve muitas aventuras galantes.
Ele conheceu uma senhora, chamada Elefunlosunlori“aquela que pinta a cabeça com pó branco e vermelho.”
Era a mulher de Orixá Okô, o Deus da agricultura.
De outra feita, indo para a guerra, Ogum encontrou, à margem de um riacho, uma outra mulher, chamada Ojá, e com ela teve o filho Oxóssi.
Teve, também, três outras mulheres que tornaram-se, depois, mulheres de Xangô. Kawo Kabieyesi Alafin Oyó Alayeluwa!
Saudemos o Rei Xangô, o dono do palácio de Oyó, Senhor do Mundo!”
A primeira, Iansã, era bela e fascinante; a segunda, Oxum, era coquete e vaidosa; a terceira, Obá era vigorosa e invencível na luta.
Ogum continuou suas guerras. Durante uma delas, ele tomou Irê. Antigamente, esta cidade era formada por sete aldeias.
Por isto chamam-no, ainda hoje, Ogum mejejê lodê Irê“Ogum das sete partes de Irê”
Ogum matou o rei Onirê e o substituiu pelo próprio filho, conservando para si o título de Rei.
Ele é saudado como Ogum Onirê! “Ogum Rei de Irê!”
Entretanto, ele foi autorizado a usar apenas uma coroa,”akorô”.
Daí ser chamado, também, de Ogum Alakorô-”Ogum dono da pequena coroa”.
Após instalar seu filho no trono de Irê, Ogum voltou a guerrear por muitos anos.
Quando voltou a Irê, após longa ausência, ele não reconheceu o lugar.
Por infelicidade, no dia de sua chegada, celebrava-se uma cerimônia, na qual todo mundo devia guardar silêncio completo.
Ogum tinha fome e sede. Ele viu as jarras de vinho da palma, mas não sabia que elas estavam vazias. O silêncio geral pareceu-lhe sinal de desprezo.
Ogum, cuja paciência é curta, encolerizouse.
Quebrou as jarras com golpes de espada e cortou a cabeça das pessoas.
A cerimônia tendo acabado, apareceu, finalmente o filho de Ogum e ofereceu-lhe seus pratos prediletos: caracóis e feijão, regados com dendê; tudo acompanhado de muito vinho de palma.
“Ogum, violento guerreiro, o homem louco dos músculos de aço. Ogum, que tendo água em casa, lava-se com sangue!” “Os prazeres de Ogum são o combate e as brigas. O terrível orixá, que morde a si mesmo sem dó.
Ogum mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro.
Ogum mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada!”
Ogum, arrependido e calmo, lamentou seus atos de violência, e disse que já vivera bastante, que viera agora o tempo de repousar. Ele baixou, então, sua espada e desapareceu sob a terra.
Ogum tornara-se um orixá. 34 Segundo esse mito, Ogum é constituído
34 Verger, Pierre. Lendas Africanas dos Orixás. Salvador: Editora Corrupio, 1997. P.14-16.
GNARUS - 86 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
pela coragem, franqueza e impulsividade. No entanto, a agressividade e a virilidade masculinas acima expressas revelam também que, após a explosão inicial, descontrolada e destrutiva, como uma erupção vulcânica, Ogum se mostra arrependido, sensível e amoroso, transformandose pela culpa. Essa postura, aparentemente contraditória, possibilita a sua libertação das consequências nefastas que irão atingi-lo, pois a partir do momento em que ele se dá conta de que o inimigo não existe, volta-se contra si mesmo. Essa situação pode ser análoga em situações cotidianas de estresse, pois a ansiedade leva o organismo a se preparar para a guerra, sem, no entanto, haver inimigo. Sendo assim, toda a descarga energética acaba atingindo o próprio combatente, destruindo-o .35
arquétipo. Simbolicamente, para Oliveira e Oliveira (2009, p.189-190), o número sete representa a síntese da sacralidade, com as virtudes cardeais (prudência, temperança, justiça e força) e teologais (fé, esperança e caridade). Sete são os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas da escala diatônica, os degraus do sonho de Jacó na Bíblia e os graus da consciência (corpo físico, emoção, inteligência, intuição, espiritualidade, vontade e vida), segundo Chevalie.37 Ele ainda pode ser representado, graficamente, pela união do triângulo e do quadrado, que em muitas culturas poderia ser atribuído à junção do céu (ordem vertical de três dimensões) e da terra (ordem horizontal dos quatro pontos cardeais), assim como as divindades mitológicas identificadas pela Cabala hebraica às hierarquias celestes (Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, respectivamente os anjos da luz, dos sonhos, civilizador, do amor, exterminador, dominador e da solicitude). São sete os emblemas de Buda no Tibete,38 assim como o número de céus, terras e mares no Islã.39 Portanto, o número sete, associado ao orixá Ogum, sintetiza o sentido de transformação, o fechamento de um ciclo e de sua renovação.40
Ogum36
Numa alusão à Ògún mèjeje lóòde Iré, ou seja, senhor absoluto das sete aldeias ao redor de Irê, Ogum passou a ter o número sete associado ao seu
35 Zacharias, José Jorge de Morais Ori Axé, a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998, p. 147-155.
36 Fonte: www. luzeverdade.com.br. Acessado em 3 de junho de 2010.
No Brasil, o simbolismo de guerreiro acabou ocasionando, nos rituais umbandistas, a aproximação de Ogum com São Jorge (Rio de Janeiro) e Santo Antônio (Bahia). Trazido pelos negros escravos do Golfo da Guiné, mas com
37 Chevalier, Jean e Gueerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio, 2009, p. 831.
38 Coelho, Lincoln Mansur; Marques, Adílio Jorge. O espírito zen e a epistemologia. Gnarus Revista de História, Vol. X, Nº 10, set, 2019, p. 180-187.
39 Cirloto, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Centauro, 2005, p. 526-529.
40 Oliveira, Bosco e Oliveira, Ingrid Constant. Mitologia e vivências humanas. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2009.
GNARUS - 87 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
raízes mitológicas já presentes no sul da Europa, Ogum é o porto seguro, o senhor da lei e vencedor das demandas, o protetor daqueles que lidarão com a agricultura e os instrumentos de trabalho manuais, assim como diante das batalhas contra o opressor.
Em Salvador, durante as invasões holandesas, Santo Antônio foi visto como um “santo militar”, dada a popularidade de seus milagres. Para a população da cidade, o Santo foi responsável pela defesa e libertação da capital baiana, sendo associado ao Orixá guerreiro, Ogum. No caso do Rio de Janeiro, São Jorge, segundo consta, nascido na Capadócia (atualmente território turco), se aproxima do imaginário de Ogum pela qualidade de soldado montado em seu cavalo branco (símbolo da pureza), lutando contra um dragão (o mal, Satanás), representados comumente pelas imagens comercializadas nas casas de Umbanda.41 A princesa que aparece nas telas européias, que poderia representar a Fé cristã ou a própria Igreja, não aparece nas representações do santo guerreiro.42
Senhor da Guerra, indomável e imbatível defensor da lei e da ordem, Ogum assume de guardião cujo papel é de defensor dos fracos, protege as estradas e os que estão sob demanda. Contraditoriamente, se torna, através do sincretismo com São Jorge, o santo padroeiro dos cavaleiros, dos soldos que, imponentes, montavam seus cavalos brancos e impunham a ordem. Esse atributo explica porque o Orixá é o padroeiro dos policiais, que usam suas armas para
41 Costa, Valdeli Carvalho da. Umbanda : os “seres superiores” e os orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica. São Paulo:Loyola, 1983, p. 208.
42 Trindade, Diamantino Fernandes; Linares, Ronaldo Antonio e Costa, Wagner Veneziani. Os Orixás na Umbanda e no Candomblé. São Paulo: Madras, 2008, p. 149-150.
a proteção da população, e dos caminhoneiros.43 Um fato curioso, no Rio de Janeiro, é o fato da proteção de Ogum, que “fecha o corpo” do fiel e o ajuda nas demandas, retratada em filmes como O Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, e Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, se tornou muito popular na metrópole carioca, como podemos perceber na presença de medalhas, imagens, colares – guias, tatuagens, camisetas e adesivos em táxis e carros.44
Sahr45 observa que nos relatos sobre Ogum e São Jorge podemos perceber situações análogas. Segundo o autor, “ambos partem como guerreiros/cavalheiros para outras regiões, atuam como militares e protetores e se instalam em determinadas cidades”. Em outro exemplo, apresenta Ogum como aquele que era invocado por ferreiros africanos e São Jorge como protetor estatal, institucionalizado na Inglaterra em 800 e em Portugal durante o governo de Dom João I. Hoje, em nosso país, Ogum é protetor dos metalúrgicos, assim como o santo católico.
Como figuras de poder, São Jorge e Ogum exercem funções simbólicas diferentes. Enquanto o primeiro está profundamente ligado ao poder público, externo e às forças armadas,46 o segundo
43 Fonte: http://www.umbanda.etc.br/orixas/ogum.html. Acessado em 24/07/2009
44 Machado, Maria Augusta. São Jorge: arquétipo, santo e orixá. Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2009, p. 233-234.
45 Sahr, Wolf Dietrich. O mundo de São Jorge e Ogum: contribuição para uma geografia da religiosidade sincrética. In: Rosendahl, Zeny e Correa, Roberto Lobato (orgs.). Religião, Identidade e Território. Eduerj, 2001, p. 61.
46 Ogum é um dos orixás mais populares no Brasil. Perdeu, todavia, os atributos de protetor da agricultura e da caça, que passaram a ser identificados exclusivamente com Oxóssi, e tornou-se conhecido, sobretudo como deus da guerra, sendo sincretizado na Bahia com Santo Antônio de Pádua e nos outros Estados, especialmente o Rio de Janeiro, com São Jorge. Em função do sincretismo e da forte presença negra entre as tropas brasileiras, esses santos passaram a receber honras militares, o que incluía até mesmo patentes de oficial no Exército e na Marinha, com direito a soldo!
GNARUS - 88 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
não é o único orixá que representa o poder, além de sua expressão se apresentar como um meio, muito particular, de ligação entre o mundo espiritual e o material. À espacialidade simbólica católica, externalizada, se opõe uma outra, interiorizada e relacional nos terreiros de Umbanda.47
também pode ser percebido na Umbanda, onde os signos presentes nas vestes, imagens e objetos do orixá Ogum, sincretizado com o santo católico São Jorge, possuem significados que engendram a constituição do grupo.
Considerações Finais
Estudando a espacialidade do sagrado, especificamente no Candomblé, Corrêa48 nos fornece elementos preciosos sobre como o uso de vestimentas, artefatos, cores e adornos alicerçam o processo identitário dos praticantes como grupo sóciorreligioso. Segundo a autora, “a identidade, fomentada nas ações de significar objetos e coisas em especial, se realiza sob a estratégia de portálas nos corpos através das vestes, dos adornos e bens religiosos (..)”. Esse processo, donde o corpo, durante a festividade, se torna um suporte signico e as vestes e objetos operam como marcas que passam a designar a identidade do grupo,
Cabe lembrar que os negros constituíam maioria entre os soldados e marinheiros que lutaram na Guerra do Paraguai. As tropas jamais deixaram de invocar a proteção de Ogum, seja diretamente ao orixá, seja na forma de São Jorge, o que talvez explique algumas expressões presentes nos pontos cantados, como Ogum jurou bandeira nos campos do Humaitá. A hipótese se torna ainda mais forte quando lembramos que Humaitá é o nome de uma localidade onde ocorreu uma das mais importantes batalhas daquela guerra, sendo ao mesmo tempo o nome atribuído à região do mundo invisível - o orum - que se acredita seja a morada de Ogum (www.constelar,com.br, acessado em 3 de junho de 2010).
47 Sahr, Wolf Dietrich. O mundo de São Jorge e Ogum: contribuição para uma geografia da religiosidade sincrética. In: Rosendahl, Zeny e Correa, Roberto Lobato (orgs.). Religião, Identidade e Território. Eduerj, 2001, p.63-66.
48 Corrêa, Aureanice de Mello. Espacialidades do sagrado: A disputa pelo sentido do ato de festejar da Boa Morte e a semiografia do território encarnador da prática cultural afrobrasileira. In: Espaços culturais: vivências, imaginações e representações. Serpa, A. (org). Salvador, EDUFBA, 2008, p. 168-170.
Por meio desse exemplo, portanto, percebemos que a materialidade da experiência social é essencial, mas nunca deve estar dissociada da natureza simbólica e subjetiva. “Na construção da identidade não é possível pensar de forma dissociada sua natureza simbólica e subjetiva (representações) e seus referentes mais “objetivos” e “materiais” (a experiência social em sua materialidade)” .49
A partir dos sistemas de representação, os indivíduos podem se posicionar, se tornar sujeitos, pois as representações incluem as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos. O que somos só tem sentido a partir dos significados produzidos pelas representações. Os sistemas simbólicos fornecem novas formas que dão sentido à experiência das clivagens e disparidades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados.
Percebemos que os símbolos são universais, e que Ogum consegue fazer uma ponte entre povos e culturas aparentemente distintas no tempo e no espaço. Desde os mitos do norte da Europa até os orixás africanos, passando pela aculturação cristã, verifica-se o quanto São Jorge/Ogum/Cavaleiro/ Guerreiro está sempre presente nas energias e no imaginário popular, ou mesmo das elites.
49 Cruz, Valter do Carmo. Territorialidades, identidades e lutas sociais na Amazônia. In Araújo, Frederico Guilherme Bandeira de; Haesbaert, Rogério. (Org.). Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007, p. 99.
GNARUS - 89 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Adílio Jorge Marques é Doutor em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia pela UFRJ.
Marcelo Alonso Morais é Mestre em Geografia pela PUC - Rio.
Ogum,1 Santo Antônio2 e São Jorge3 - senhores da guerra e protetores contra a maldade do Mundo.
1 Ogum (www.your-soul.com/archives/ogum-7.gif). Acessado em 25/01/2010.
2 Santo Antônio (www.santoantoniodopari.org.br/Imagens/santo%2...). Acessado em 25/01/2010.
3 São Jorge (vivaverve.files.wordpress.com/2009/04/sao-jor...). Acessado em 25/01/2010.
GNARUS - 90 Gnarus Revista de
- VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO
História
- 2022
Artigo
SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O MUNDO ATUAL
Por Maria Eduarda D. de O. Marques
RESUMO: O presente artigo propõe uma discussão sobre as nuances acerca do relativismo cultural aplicado aos Direitos Humanos debatidos na obra “Valores universais e direitos culturais” de Débora Diniz, doutora em Antropologia, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e gênero. A partir de uma revisão bibliográfica, é feita uma reflexão crítica e complementar à obra, amparada sobretudo em temas da Antropologia Cultural, no intuito de questionar os elementos intrínsecos aos limites da Cultura.
Palavras-chave: Débora Diniz; Antropologia Cultural; Cultura
Sobre os Direitos Fundamentais
Uma das frases mais marcantes e que refletem a problemática central da obra se encontra logo no começo do texto:
“É o fato de que exatamente não há nada de inalienável no ser humano, senão a própria crença humana de que temos algo inalienável e, quem sabe, sagrado a ponto de ser protegido” (DINIZ, 2001, p. 58).
Tal afirmação da autora me remete, como discutido já nas primeiras aulas da disciplina de Antropologia Cultural na faculdade, ao conceito de etnocentrismo, que consiste na influência
que nossos hábitos e costumes possuem na forma que enxergamos o outro — seja um único indivíduo ou um grupo de indivíduos, dentro ou fora de nossa sociedade — e seus hábitos e cultura. Inicialmente, o processo de percepção da existência do outro nos leva a experienciar um sentimento de estranhamento, ou até mesmo de reprovação, baseado no que é julgado estar de desencontro com nossas próprias ideologias.
Com isso, o argumento subsequente da autora expressa o inegável papel atuante do relativismo nesse cenário, enquanto discute sobre seus limites e fronteiras quando em relação ao que Diniz chama de “direitos fundamentais”. O exemplo utilizado por Débora Diniz é o da mutilação da genitália feminina, que se encontra ainda presente
GNARUS - 91 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
em diversas culturas, e como esta prática pode ser vista como um ritual cultural por uns, assim como um ato de violência por outros, singularmente a partir de um viés ideológico e cultural.
Logo, um questionamento é levantado: quais são os valores culturais que justificam essas práticas? E, de forma ainda mais curiosa, chegamos ao fato de que antropólogos, assim como os indivíduos que pertencem a culturas que defendem a prática destes rituais, recorrem antes a justificativas de base cultural do que a julgamentos para esses fatores de diversidade cultural. A inclinação para justificar diferenças do tipo está diretamente ligada a críticas ao imperialismo, não somente dentro do campo da antropologia em si, mas também nas Ciências Sociais. Como seria possível ditar um único padrão cultural válido a ser aplicado sem limitações morais ou culturais? E apesar da inegável pluralidade humana — algo que consolida o conceito do relativismo —, é evidente para a autora o processo de transformação do relativismo cultural como método em ideologia, e a dúvida crescente de quem teria a responsabilidade absoluta de julgar a diversidade cultural como um todo. Contanto, em outra frase particularmente favorita do texto, a autora expõe: “A Antropologia mostra exatamente que esse tribunal não apenas inexiste como qualquer tentativa de constituí-lo está fadada ao fracasso” (DINIZ, 2001, p. 60), deixando claro que é impossível haver imparcialidade no julgamento de alguma cultura por parte de alguém que tem seus próprios valores e ideologias, tendo em vista o fato de que a intolerância é parte de todo sujeito que se encontra inserido em sociedade e que, portanto, possui alguma crença influenciada por ela.
Assim, é criada uma tensão entre o universal e o particular, e vemos que a tolerância extrema
não é tão ética como alguns a julgam ser. A autora chama de “princípio norteador” aquilo que poderia ser usado para justificar intervenções de ações culturais que poderiam possivelmente ferir os direitos básicos humanos. Na teoria, este seria o princípio da liberdade, mas logo chegamos à conclusão de que há uma inércia cultural que pode influenciar o desejo individual, fazendo com que, como citado do anteriormente, uma mulher escolha passar pelo processo de mutilação genital, sem necessariamente ser fisicamente forçada a fazê-lo. Se torna, então, inviável discutir liberdade em contextos de opressão, e nos resta fazer uso, novamente, de perspectivas relativistas para alcançar uma conclusão inclusiva e despida da influência de preconceitos. Complementando, lembro Caruso e Marques (2021, p. 9):
(...) Richard Sennett, em sua obra “A corrosão do caráter” (2003)... descreve a suposta “flexibilização” que o capital
GNARUS - 92 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
provocou nas relações trabalhistas e sociais, inclusive nas relações entre o mercado e a cultura. Sua premissa inicial é que o modo de produção atual pode colocar a vida emocional das pessoas à deriva. Estamos todos expostos a uma forte tendência de se “reinventar decisiva e irrevogavelmente às instituições, para que o presente se torne descontínuo com o passado”. Justificase, assim, a dificuldade de os indivíduos construírem suas próprias histórias, a partir de suas experiências profissionais e de seus laços de dependência com outros indivíduos.
Conclusão
Tudo isso nos transporta a um ponto onde encaramos o choque do desfecho proporcionado por todos os argumentos e conceitos apresentados pela autora no decorrer do texto. Qual seria o limite da tolerância? E até onde ela pode ser executada? Aos limites de um “tribunal dos olhos de deus”, como apontado pela antropóloga, ele pode, de fato, vir a ser útil para estabelecer um estado de paz entre conflitos extremos de encontros de diversidades, onde é impossível aceitar, por exemplo, a aniquilação ou escravização de um povo pelas mãos de outro. Com essa sendo a única opção viável que pôde ser encontrada, seu papel é defender a dignidade, liberdade e igualdade de todos, sem exceção. A força da luta dos direitos humanos fundamentais é reconhecermos a sua fraqueza e trabalharmos juntos para criticá-la, e aprimorá-la, visando que essa mesma forma de poder possa ser posta em prática em prol da Cultura, com “C” maiúsculo, como um todo. Maria Eduarda D. de O. Marques é Graduanda em Ciências Sociais da PUC-RIO
Referências
CARUSO, F. & MARQUES, A. J. Ensaio sobre o negacionismo científico em tempos de pandemia. Research, Society and Development, v. 10, n. 11, 2021.
DINIZ, D. Valores universais e direitos culturais. In: NOVAES, Regina (Org.). Direitos Humanos: temas e perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. pp. 57-66.
SENNETT, R. A corrosão do caráter, consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. São Pualo: Record, 2003).
GNARUS - 93 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
O OLHAR OPOSITOR EM COURO DE GATO
Por Rafael Eiras
Introdução
Em nosso trabalho final do semestre do curso Metodologia e Análise Fílmica (PPGCine, 2022/1), propomos analisar o curta metragem Couro de gato (PEDRO,1960) através de uma perspectiva contemporânea percebida por bel Hooks em sua obra Olhares negros: raça e representação (2019). Quando o olhar do indivíduo negro se apresenta como resistência, tanto do espectador ao se reconhecer no enredo, como o olhar registrado na própria imagem - o que Hooks vai conceituar como um olhar opositor.
No filme de Joaquim Pedro o personagem do ator recém falecido Milton Gonçalves parece trazer para o filme um incômodo. Entendendo o
momento em que o filme foi produzido, pode ser percebido como o começo de uma desalienação do indivíduo, tendo o corpo negro a imagem conceitual do excluído. Mas que reinterpretado atualmente, com novas perspectivas teóricas, pode ser pensado como o olhar que percebe a própria exclusão e impotência. O que era uma questão de classe para a intelectualidade dos anos 1960, hoje pode ser percebido também como uma questão de raça.
Vejamos como a sequência é interpretada por Luciana Corrêa de Araújo, em “Joaquim Pedro: primeiros tempos”:
Em Couro de gato, apesar da aparente via de mão dupla que se estabelece entre o morro e as ruas, com os garotos transitando entre os dois espaços, a tensão entre esses dois universos é sempre reiterada. (...) Quando a perseguição aos garotos termina
GNARUS - 94 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Coluna
onde começa o morro, fica evidente o jogo de forças entre os territórios, rigidamente demarcados. Por estar no seu próprio meio é que o personagem de Milton Gonçalves é capaz de exercer poder, interditando (sem armas, apenas com o olhar e a postura), a subida dos perseguidores. (ARAÚJO, 2013, p. 118).
O curta em questão é um dos cinco filmes que formam o longa de episódios 5 x favela (BORGES et al., 962), projeto idealizado por Carlos Estevam, principal ideólogo do Centros de Cultura Popular (CPC) da UNE, fundado no Rio de Janeiro em março de 1961. No livro A questão da Cultura Popular, lançado em 1962 pela Tempo Brasileiro, Estevam havia formulado os princípios programáticos do grupo - empreender ações culturais com o povo e para o povo. Os diretores escolhidos para dirigir os curtas foram Carlos Diegues (Escola de samba, alegria de viver), Leon Hirszmn (Pedreira de São Diogo), Marcos Farias (Um favelado) e Miguel Borges (Zé da Cachorra).
Neste percurso o filme aqui é entendido como um documento que percebe as características inerentes ao tempo em que é produzido, como também um discurso estético, propondo uma direção investigativa da obra através das propriedades básicas do material fílmico e suas implicações práticas. “Com este tipo de análise encontramos, sobretudo, o modo como o realizador concebe o cinema e como o cinema nos permite pensar e lançar novos olhares sobre o mundo” (Penafria, 2009, p.7). O filme como meio de expressão sem descartar outras intervenções do cineasta, ou outros documentos, mas entendendo que eles não detêm a obra. “Confundir a intenção do autor com o sentido efetivo produzido pelas imagens e sons é cair na ‘falácia internacional” (Xavier, 2007, p.9)
Uma perspectiva revolucionária
Na virada dos anos 1950 para 1960, ocorreu esse intenso debate acerca da ideologia do nacionalismo, onde economia, política e cultura eram articuladas através de uma ideia que “colocava no centro a matriz do neocolonialismo. Entendia-se a relação entre países avançados e subdesenvolvidos em termos da herança colonial assumida e reposta em novas bases técnicas e econômicas” (XAVIER, 2001, p. 25). A construção desta ideia se traduziu na organização de uma tentativa de unidade política de esquerda que articulava uma organização através de segmentos sociais distintos com o objetivo de realizar a revolução anti-imperialista de caráter nacional e democrático.
O CPC, Centro Popular de Cultura, era um braço da UNE, criado para se discutir e produzir arte com um viés popular. Tendo como ponto comum entre seus integrantes a defesa do nacionalpopular,1 cuja representação de temas da classe trabalhadora brasileira, com um forte apelo da cultura popular, “se viam como primordiais para a edificação de uma cultura genuinamente nacional em prol da conscientização das massas, considerada a base da libertação nacional.” (BARBEDO, 2011, p. 4) Sua importância, apesar de ter sido uma breve experiência, interrompida pelo golpe de 1964, é ponto focal na formação
1 A busca do nacional-popular sem influências externas teve início em Mário de Andrade, em seu Ensaio sobre a música brasileira (1928), quando se referia às virtudes “autóctones” e “tradicionalmente nacionais” da música nacional que serviriam de base à pesquisa da expressão artística brasileira. No entanto, contemporaneamente, ao tratar do mesmo tema, José Miguel Wisnik aponta problemas no que se refere à busca do nacional-popular modernista. Destaca que o popular poderia ser admitido na esfera da arte quando, olhado à distância pela lente da estetização “passa a caber no estojo museológico das correntes nacionalistas, mas não quando, rebelde à classificação imediata, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural” (WISNIK, 1982, p. 133).
GNARUS - 95 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
dessa primeira fase da produção de um cinema brasileiro moderno. Pois foi através dele que se permitiu que vários realizadores filmassem suas primeiras experiências profissionais. Momento em que jovens cineastas brasileiros apresentavam novos sujeitos históricos em um movimento político para a esquerda. 2
O filme de episódios 5 x favela (BORGES et al., 1962) e Cabra marcado para morrer (COUTINHO, 1964-1984), longa-metragem de ficção que teve suas filmagens interrompidas na Zona da Mata pernambucana pelo Golpe de 1964, foram as experiências cinematográficas mais marcantes dos Centros de Cultura Popular da UNE do Rio de Janeiro e de Recife, pois o golpe marca o fim do CPC,3 como também uma nova relação dos cineastas com a sua realidade
Couro de gato havia sido realizado por Joaquim Pedro fora do CPC, por uma equipe independente do GT de Cinema coordenado por Leon Hirszman. O curta, composto de imagens de câmera, música e ruídos, tem apenas uma intervenção de voz over, sobre as primeiras imagens - escolas de samba desfilando na avenida - diz: “Quando o carnaval se aproxima, os tamborins não têm preço. Na impossibilidade de melhor material, os tamborins são feitos com couro de gato.” Estabelecida essa condição, o filme narra a história de um grupo
2 Como percebeu Eric Hobsbawm (1995), nesse período conturbado, o jovem passou a ser um sujeito histórico que produziu uma revolução cultural. Um panorama que não garantia a permanência do capitalismo mundial e suas práticas liberais pelo mundo, em que ideias revolucionárias e políticas incompatíveis com a ideia de livre mercado assombravam o grande capital. Em particular, na América Latina, o exemplo de Cuba e sua revolução socialista era visto com bons olhos por boa parte da esquerda, por ser tudo “romance, heroísmo nas montanhas, ex-líderes estudantis com a desprendida generosidade de sua juventude, um povo exultante, num paraíso turístico tropical pulsando com os ritmos da rumba” (HOBSBAWM, 1995, p. 421-426).
3 O CPC acabou, oficialmente, com o golpe de 1º de abril de 1964. A sede da UNE na Praia do Flamengo foi invadida e incendiada.
de cinco crianças, moradores de duas favelas cariocas, que se reúnem para capturar gatos e vendê-los a um morador que utiliza o couro dos animais para confeccionar tamborins. Na primeira parte do filme as crianças caçam gatos; na segunda, são perseguidas pelos adultos que tentam resgatar os animais. A última sequência mostra que, afeiçoado ao gato angorá que havia capturado no gramado da madame, após receber o dinheiro de sua venda o menino desce o morro enxugando lágrimas.
Nessa sua primeira obra de ficção, Joaquim mostra-se visivelmente influenciado pela estética neorrealista de Rio, 40 graus (SANTOS, 1955), lançado alguns anos antes. Ambos foram filmados em exteriores, com predomínio de atores não profissionais, e mostram a infância no cotidiano da favela - latas d´água na cabeça, miséria e luta pela sobrevivência.
Após os créditos do final do filme aparece uma cartela com os dizeres: “o curta Couro de Gato foi incorporado em 1962 ao longa-metragem 5x favela”. Essa datação ajuda a esclarecer por que essa segunda obra de Joaquim Pedro de Andrade por vezes parece uma espécie de corpo estranho entre seus pares. O tom poético, o profissionalismo da montagem e finalização feitas na França e a refinada fotografia do artista visual e fotógrafo Mário Carneiro contribuem para tornar o curta mais próximo de uma estilística cinemanovista do que da rusticidade estética e narrativa dos outros episódios.
Aqueles jovens cineastas tateavam a sintaxe cinematográfica, aprendiam a se expressar em um meio que ainda estavam longe de dominar. Joaquim estava em um patamar diferente. Àquela altura da juventude, sua trajetória já o havia permitido acumular uma bagagem técnica e artística que o singularizava no ambiente de
GNARUS - 96 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
sua geração. Ele tinha frequentado os bancos do IDHEC, em Paris e, antes de voltar ao Brasil, foi beneficiado com uma bolsa da Fundação Rockfeller, que lhe permitiu dedicar-se ao aperfeiçoamento técnico em duas instituições de ensino no exterior: a Slade School of Fine Arts, em Londres e, mais importante, um estágio na produtora dos irmãos David e Albert Maysles, em Nova Iorque. Nesse estágio travou contato com as técnicas e os equipamentos do cinema direto, baseados em um par de dispositivos que, depois de demoradas pesquisas financiadas por emissoras de televisão norte-americanas, francesas e canadenses, vinham revolucionando o trabalho dos documentaristas dos dois lados do Atlântico: uma câmera leve e silenciosa acompanhada de gravador de som portátil capaz de recuperar o sincronismo com a imagem filmada.
Antes disso, nos anos em que cursou física na Faculdade Nacional de Filosofia, tendo como mestre Plínio Sussekind Rocha, cinéfilo inveterado e fundador, em 1954, do Grupo de Estudos Cinematográficos, Joaquim havia forjado uma refinada formação no campo da estética e da linguagem do cinema. Plínio, que exerceu notável influência intelectual não só sobre Joaquim, como também seus colegas de FNFi, foi o idealizador e principal dirigente do Chaplin Clube, que publicava regularmente a revista O Fan, onde se debatia o cinema como forma de expressão artística.
Nos seus anos de universidade, Joaquim já manifestou o desejo de partir para a realização, como mostra esse seu depoimento a Saulo Pereira de Mello:
Um dia nós estávamos no restaurante da faculdade – isso eu me lembro muito bem, para você ver que a alma do fazer foi o Joaquim – e ele disse: “Você não acha que a gente deveria fazer? Vamos fazer uns ensaios, vamos filmar. (ARAÚJO, 2013, p.35)
O desejo de partir para a realização precisou esperar alguns anos, até que Joaquim encaminhasse ao Instituto Nacional do Livro o projeto de um curta centrado em episódios da vida cotidiana de dois escritores. A proposta, apresentada com respaldo técnico da Saga Filmes produtora fundada por Marcos Farias e Gerson Tavares, que viria a se ampliar com a participação de Joaquim Pedro e, mais tarde, Leon Hirszman, intitulava-se O mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo, focalizando em um único filme dois escritores pernambucano, o sociólogo Gilberto Freyre e o poeta Manuel Bandeira. Após seu lançamento, em novembro de 1959, no auditório do Palácio Capanema, sede do MEC, o documentário foi desmembrado para permitir exibição em separado, inclusive em salas de cinema, como complemento.
Esse breve percursos do início da carreira de Joaquim assinala que ela já estava desenvolvendo uma linguagem particular para seus filmes, coisa que os outros cineastas que compunham o longa 5 vezes favela ainda buscavam, ou seja, seu filme tem uma poética que escapa à ortodoxia do CPC. Diretores como Glauber Rocha e Cacá Diegues vão logo reclamar da impossibilidade de um fazer cinematográfico preso a ditames ideológicos rígidos, com uma visão tática do movimento de cultura popular, pensando-a como instrumento político. Diegues relata que nunca gostou da ideia de “ser ‘intelectual orgânico’, membro disciplinado de um partido ou porta-voz de uma política partidária na cultura.” (DIEGUES 2014, p.118) O que se percebe no curta de Joaquim é a sua independência dos outros filmes e do próprio CPC, mostrando que seu curta já estava além dessas conceituações ceptistas.
GNARUS - 97 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
O olhar opositor de Milton Gonçalves.
Em Olhares negros, raça e representação (2019) a pensadora feminista negra norte-americana bell hooks trabalha o conceito de “olhar opositor” para caracterizar um olhar crítico de negras e negros subordinados ao supremacismo racial.4 Partindo do pressuposto de que “existe um poder em olhar”, a autora reflete sobre formas de reação ao racismo por meio do olhar, que contribuem para formar uma subjetividade negra altiva: O olhar negro tem sido, e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado. Subordinados nas relações de poder aprendem pela experiência que existe um olhar crítico, aquele que olha para registrar, aquele que é opositor. Ao olhar corajosamente, declaramos um desafio: “Eu não só vou olhar, eu quero que meu olhar mude a realidade.” (HOOKS, 219, p.184)
mapear o progresso de movimentos políticos pela igualdade racial através das construções de imagens, e assim fizeram. (HOOKS, 2019, p.185)
A originalidade do conceito nos motivou a aplicá-lo na análise de Couro de gato, para qualificar um momento altamente significativo do filme, quando o personagem vivido por Milton Gonçalves interrompe a descida do morro e, a uma certa distância da rua, encara fixa e demoradamente o grupo que ameaçava entrar na favela para resgatar o gato angorá da madame – o policial, o garçom, o motorista e a própria madame.
Hooks apresenta fundamentos atávicos para justificar seu pensamento: “Todas as tentativas de reprimir o direito das pessoas negras de olhar produziram em nós um desejo avassalador de ver, um anseio rebelde `` (HOOKS, 2019, p.183).
A autora produz essa reflexão ao analisar o comportamento de espectadoras negras em salas de cinema ou frente à mídia de massa.
Quando a maioria das pessoas negras nos Estados Unidos teve a primeira oportunidade de assistir a filmes e à televisão, fez isso totalmente consciente de que a mídia de massa era um sistema de conhecimento e poder que reproduzia e mantinha a supremacia branca. Encarar a televisão, ou filmes comerciais, envolver-se com suas imagens, era se envolver com sua negação da representação negra. Foi o olhar opositor negro que reagiu a essas relações de olhar criando o cinema negro independente. Espectadores negros do cinema comercial e da televisão podiam
4 Nos Estados Unidos, cidadãos negros frequentemente são punidos apenas por olhar fixamente para brancos em ou brancas em espaços públicos.
O filme não mostra só os meninos que tentam roubar os gatos fora da favela, como também um deles que se arrisca tentando capturar um gato dentro da sua própria comunidade. Ele não consegue, mas é perseguido pelo personagem de Milton Gonçalves no sentido contrário ao dos outros, descendo o morro. Essa dinâmica é percebida em uma montagem paralela de cortes rápidos e de oposição entre os diversos contextos. Principalmente marcando a movimentação entre os personagens que seguiam do asfalto para o morro (Figura 1), contra a direção de Milton Gonçalves, do morro para o asfalto (Figura 2).
Figura 1: Menino foge. Fonte: Filme Couro de Gato
GNARUS - 98 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Todos os meninos se encontram na entrada da favela. Os que fugiam do asfalto sobem e se perdem na comunidade. O que descia o morro passa pelos personagens da madame, do garçom, do policial, do motorista e não é mais visto. (Figura 3)
É neste momento que o personagem de Milton encara o grupo do asfalto. (Figura 4) Diferentemente deles, ele é um negro morador da favela e entende a dinamica de forças ali presente. Esquece, então, o garoto que perseguia e encara os invasores através de um olhar de oposição. (figura 5)
No fim do filme, um dos garotos acaba vendendo o gato que conseguiu roubar. Em uma cena que individualiza a representação das crianças em um único personagem, como se demonstrasse a necessidade de romper com olhar inocente sobre a realidade. Mas a imagem de Milton do alto, imponente, olhando os perseguidores que vinham do asfalto é marcante para os significados revolucionários do período em que a obra é produzida, pois é ele o indivíduo que se desaliena.
GNARUS - 99 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Figura 2: Milton Gonçalves persegue menino. Fonte: Filme Couro de Gato
Figura 3: personagens da madame, do garçom, do policial, do motorista. Fonte: Filme Couro de Gato
Figura 4: Milton surge na direção contrária dos outros perseguidores. Fonte: Filme Couro de Gato
Figura 5: Milton encara os outros perseguidores em um olhar de oposição. Fonte: Filme Couro de Gato
Sempre existiu um questionamento por parte da intelectualidade e dos artistas negros feito ao cinema brasileiro, principalmente aos filmes do movimento do Cinema Novo, de que os personagens negros não são representados de forma real e individualizados, mas apenas em “arquétipos e/ou caricaturas: o escravo, o sambista, a mulata boazuda” (RODRIGUES, 2011, p. 21). É uma acusação pertinente, embora o “cinema moderno preferisse em geral personagens desse tipo, esquemáticos e simbólicos, negros ou não” (RODRIGUES, 2011, p. 21), pois eles eram elementos metafóricos, e se apresentavam na trama com ideias a serem representadas, ou melhor, portadores da consciência do autor.
A preocupação com a construção de uma estética genuinamente brasileira cinemanovistas não refletira sobre as problemáticas étnico-raciais do negro no contexto nacionalista da época. De acordo com Orlando Senna (1979) o cinema novo denunciava a exploração de que o negro era vítima sem uma análise racial. Como acontece com o personagem de Milton Gonçalves, seu corpo e seus olhos servem para uma crítica política. Longe de uma perspectiva da representação do negro na sociedade, Joaquim Pedro estava partindo de um ponto de vista de um branco, olhando a realidade a partir de um viés crítico.
Porém existe no olhar de Milton Gonçalves essa perspectiva que Hooks torna potente em sua análise. No negro que se reconhece como excluído, mesmo sendo esse personagem um conceito produzido para dialogar como o período de 1960 e as possíveis mudanças sociais no Brasil daquele momento. O corpo negro traz outras relações silenciadas nesse momento, a perspectiva racial.
Por tanto, em uma análise perpassada pelas perspectivas contemporâneas como as de Bel Hooks, esse corpo negro tem também que ser
ressignificado. Tendo o olhar de Milton Gonçalves neste momento, como em muitos outros de sua carreira, essa potência.
Uma homenagem especial como conclusão.
Gostaríamos que nossa escolha de uma sequência de Couro de Gato em que um ator negro exibe seu olhar afirmativo fosse considerada uma homenagem a Milton Gonçalves, recentemente falecido. Milton foi um dos mais destacados atores brasileiros de teatro, cinema e televisão, tendo sido também dramaturgo e diretor. Foi homenageado em 2003 pelo Festival de Gramado por ter atuado em mais de cem filmes de nosso cinema, ao longo de uma carreira exitosa que teve início em 1957, quando abandonou a profissão de gráfico e ingressou em um clube paulistano de teatro amador.
Sua estreia cinematográfica se deu em 1958, dirigido por Roberto Santos em O grande momento, três anos antes de atuar em Couro de gato. Também trabalhou em Cidade ameaçada (FARIAS, 1958) e muitos outros longas, como Macunaíma (1969) do mesmo Joaquim Pedro de Andrade, antes de protagonizar Rainha diaba (FONTOURA, 1973), que lhe valeu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília por sua interpretação de Madame Satã.
Milton participou do Teatro Experimental do Negro e foi autor de A sucata e de outros textos dramáticos. No Teatro de Arena, na década de 1950, trabalhou junto a Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Oduvaldo Viana Filho e Flávio Migliaccio. Na televisão brasileira foi um protagonista negro pioneiro e atuou em mais de 40 novelas, além de minisséries e programas humorísticos.
Nossa singela homenagem soma-se a tantas
GNARUS - 100 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
outras que Milton Gonçalves recebeu após o falecimento, em 30 de maio de 2022, aos 88 anos. Milton não só viveu uma gloriosa carreira nos palcos como também desempenhou um dos mais importantes papéis na defesa dos atores e atrizes negros e na luta contra o preconceito racial em nosso país Seu olhar surge como o proprio olhar opositor, que através do cinema não se fecha, apesar de sua recente morte.
Silvio Da-Rin é Doutorando PPGCine - UFF.
FIdelys Fraga da Costa é Mestrando PPGCineUFF.
Rafael Garcia Madalen Eiras é Doutorando PPGCine – UFF e colunista da Gnarus Revista de História
Referências
ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda Editorial, 2013,
BARBEDO. Mariana. A arte de Carlos Diegues no projeto nacional-popular do Cinema Novo (1962-1969) 2016. Disponível em :<https:// tede2.pucsp.br/handle/handle/19022 > Acesso em: 25 de junho de 2018
BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1994.
DIEGUES, Carlos. Vida de cinema: antes, durante e depois do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.
PENAFRIA, Manuela. (2009). Análise de filmes – conceitos e metodologia(s): VI Congresso SOPCOM, Anais.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
SENNA, Orlando. Preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro. Revista de Cultura Vozes, v. LXXIII, n. 3, ano 73, p. 211–26, 1979.
WISNIK, José Miguel. Música. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. Coleção O nacional e o popular na cultura brasileira.
XAVIER, Ismail. Sertão mar. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Filmografia
COUTINHO, Eduardo. (Diretor) (1984) Cabra marcado para morrer[filme]. Mapa.
BORGES, Miguel; DIEGUES, Carlos; HIRSZMN, Leon; FARIAS, Marcos; PEDRO, Joaquim. (Diretores) (1962) 5 x favela [filme em episódios]. CPC.
FARIAS, Roberto (Diretor) (1959) Cidade Ameaçada [filme]. Cinematografia Inconfidência Ltda, Unida Filmes S.A.
FOUNTANA, Antônio Carlos da Fontoura (1973) Rainha diaba [filme]. R. F. Farias; Lanterna Mágica Produções Cinematográficas Ltda.; Ventania Produções; Cinematográficas Ltda.; Lírio.
PEDRO, Joaquim. (Diretor) (1969) Macunaíma [filme]. Difilmes.
PEDRO, Joaquim. (Diretor) (1960) Couro de Gato. [curta-metragem]. Saga Filmes.
SANTOS, Nelson Pereira dos (Diretor) (1955) Rio, 40 graus [filme]. Equipe Moacyr Fenelon.
SANTOS, Roberto (Diretor) (1958) O Grande Momento [filme]. Nelson Pereira dos Santos.
GNARUS - 101 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
A MOBILIZAÇÃO DAS IMAGENS MENTAIS PELO CINEMA
NA VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX
Por Renato Pessanha
RESUMO: A presença da imagem no processo de reconstrução do passado não se limita aos indícios materiais, como fotos, pinturas, filmes etc. A construção de narrativas históricas a partir do emprego das mais variadas fontes, incluindo também as não imagéticas, permite formar imagens mentais do passado. O cinema notabilizou-se por mobilizar e expor aos grandes públicos um arcabouço imagético que remete as imagens mentais das coletividades, estejam elas ancoradas em visões históricas ou míticas. As imagens em movimento, fruto das inovações tecnológicas da modernidade, representam um novo ponto de desenvolvimento do imaginário coletivo bem como da percepção do público, que passa a mudar diante do assombro das imagens que ganham vida e passam a fluir tal como os movimentos históricos advindos dos processos da modernidade. O presente artigo tem como objetivo tecer considerações acerca do impacto do cinema no campo imagético das coletividades na virada do século XIX para o XX e como ele assume o papel de agente histórico capaz de influenciar e redefinir processos históricos.
Palavras-chave: Modernidade, Cinema, Imagens Mentais
Introdução
Recursos imagéticos estão entre os principais meios pelos quais o ser humano constrói e transmite conhecimentos e experiências. Por meio das imagens legadas por diversas sociedades gerações posteriores tiveram acesso a um conhecimento indiciário que passa a ser aplicado no estudo e na representação de
outras culturas. No presente artigo adotamos a definição de indiciário tal como exposta pelo historiador italiano Carlo Ginzburg. Em sua abordagem do paradigma indiciário, conjunto de procedimentos e princípios por meio dos quais o pesquisador se detém em vestígios, sinais, indícios que fogem à regra mais ampla e generalizante de classificação, Ginzburg defende uma metodologia de pesquisa em história que busque, naquilo que
GNARUS - 102 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022 Coluna
é negligenciado por uma metodologia que anula qualquer possibilidade de uma análise heurística, fenômenos muito mais profundos em termos de alcance e compreensão. Na micro-história, prática historiográfica da qual Ginzburg é uma referência, o paradigma indiciário é fundamental para ir além daquilo exposto nos documentos oficiais, buscando nos vestígios quase inconscientes, que insistem em figurar nos documentos oficiais, o estudo de práticas discursivas e subjetividades que acabam por dar voz aos excluídos da história (GINZBURG, 1991)
A partir das crises geradas pelas aceleradas e dramáticas rupturas da modernidade as manifestações artísticas de caráter pictórico passam a se orientar pela busca de formas capazes de apreender o tempo presente que se esvaí em um instante efêmero e necessita ser redefinido a todo momento. Primeiramente, a pintura “na transição entre os séculos XVIII e XIX” deixa de se limitar a “um esboço, realizado a partir de modelos preestabelecidos da realidade” e passa a ser uma “tentativa de registro da realidade visual tal como ela era percebida pelo olhar do pintor no decorrer de um instante efêmero de observação da natureza viva” (GERVAISEAU, 2012, p.39). Com a emergência da fotografia as imagens passam a ser reproduzidas e difundidas em larga escala, trazendo consigo a marca da atualidade, do momento em seu instante de acontecimento, diferindo, por exemplo, de uma pintura, cuja reprodução a alcance eram muito mais limitados.
O avanço técnico seguinte ocorre quando as imagens fotográficas são postas em movimento, dando origem, pelo menos em termos técnicos, ao que viria ser o cinema. Junto com a imagem em movimento o cinema restitui o tempo do fato registrado em sua duração integral. Do
quinetoscópio1 criado por Thomas Edison, ao cinematógrafo2 dos irmãos Lumière, a imagem em movimento ocupa o imaginário da coletividade na sociedade da virada do século XIX para o XX. O cinema na modernidade assume um claro papel político e ideológico, não só no sentido de doutrinar uma nova forma de olhar, mas como vetor da ideologia que está no cerne da consolidação dos Estados Nacionais, sobre as novas etapas do processo produtivo em torno do qual as cidades modernas se organizam, cidades essas que abrigam a grande massa dos trabalhadores que formam o exército de mão de obra da indústria e do comércio.
O cinema, seja enquanto expressão, representação e dispositivo tecnológico, mexe diretamente com a lógica temporal e impacta na forma como percebemos o tempo. Seus efeitos se fazem sentir em diversos campos do saber, como a própria História. O passado, na totalidade de sua duração, é restituído no instante da projeção do filme, abrindo um precedente para uma prática social que não está limitada a produção de conhecimento, pois desde seus primórdios o cinema atua de modo a dizer ou definir algo acerca
1 O quinetoscópio (ou cinetoscópio) de Edison projetava uma tira de filme em looping, geralmente retratando um episódio cômico, mas cujo registro era realizado por outro equipamento. Contudo, o quinetoscópio se limitava a um uso individual, a partir de inserção de uma moeda a pessoa podia observar por meio de uma lente a sucessão de imagens, era um item muito popular nas feiras e eventos científicos. Fisicamente era um objeto grande e pesado, pouco prático em seu manuseio
2 O cinematógrafo dos irmãos Lumière, além de fazer o registro, ele também projetava em uma tela ou em uma superfície plana a sequência de imagens captadas. A sua velocidade de captação e projeção dos fotogramas dava a ilusão de imagens em movimento mais bem-acabadas. Entre seus principais atrativos estavam suas características físicas: leve, portátil, de fácil posicionamento e manuseio; e que dispensava o uso de energia elétrica, passando a ser utilizado para o registro de shows de variedades, popularmente conhecidos por vaudevilles, shows burlescos, circos itinerantes, atualidades cotidianas, além de peças teatrais.
GNARUS - 103 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
das condições históricas, seja as que envolvem sua produção, ou sua recepção (FERRO, 2010, p. 33).
No próximo tópico analisaremos a forma como o cinema foi capaz de mobilizar as imagens mentais das coletividades em seu processo de transição de instrumento técnico para manifestação artística mais difundida da história.
Cinema e o impacto das imagens mentais
Antes de ser considerado arte, o cinematógrafo era um dispositivo técnico que vinha na esteira do processo fotográfico, fruto de inovações técnicas que almejavam dar movimento as imagens registradas em fotogramas (XAVIER, 2017, p. 27).
Com as novas formas de manuseio dos avanços técnicos proporcionados pelo cinema, ocorreu a ascensão do que chamamos até hoje de linguagem clássica do cinema, baseada no processo por meio do qual o cinema emprega recursos que implicam em manipulação temporal e espacial por meio de movimentos de câmera, tais como enquadramento, trucagens, edição, montagem, cenário, iluminação, criando a sensação, por parte do espectador, de uma ambientação. Por meio da linguagem clássica do cinema outros estilos, ou escolas cinematográficas surgiram longo das décadas. No âmbito dessa nova forma de fazer cinema um dos principais desdobramentos foi a manipulação do tempo por meio de planos, sequências, montagem, edição, encenações, e não só a preocupação em restituir o tempo da duração do fato (GERVAISEAU, 2012, p.39 e 42).
Os usos da imagem, no que concerne ao processo de representação do passado, não se limita a ser uma ilustração de informações já presentes em textos escritos e nem tão pouco se refere somente as representações pictóricas
de caráter material, como filmes, fotografias, pinturas, etc. A construção imagética sobre o passado também se dá por meio das imagens mentais responsáveis por evocar períodos históricos, fatos, personagens bem como mitos e lendas comuns a diversas culturas e que estão entranhados no imaginário popular. Por imagens mentais entende-se o repertório imagético presente no imaginário coletivo que o cinema passa a mobilizar no intuito de estabelecer uma relação de identificação com o público para além do simples registro factual de uma atualidade. Como nos diz Da-Rin sobre os enredos presentes nos primeiros filmes Para tornar os enredos compreensíveis, era preciso recorrer a recursos externos à imagem projetada, a começar pela memória do espectador, que pressupunha o conteúdo do filme através do título e da alusão a algum fato corrente ou enredo conhecido (DA-RIN, 2004, p. 30).
A história foi um campo fértil em imagens mentais que ajudaram a moldar a estética cinematográfica. Aquele que é considerado o filme inaugural da linguagem clássica do cinema, “O nascimento de uma nação”, de D.W Griffith, lançado em 1915, mobilizou um tema histórico, a Guerra de Secessão nos EUA (18611865), um conflito civil que opôs os estados do Sul (separatistas) e os do Norte (unionistas), ao mesmo tempo que incorpora a sua narrativa estereótipos racistas e revisa a história dos EUA, atribuindo aos estados sul, também conhecidos como Confederados, a alcunha de vencedores morais do conflito. “O nascimento...” foi o filme que ajudou a dar forma a organização terrorista Ku Klux Klan, inclusive no vestuário, pois a roupa que os membros da KKK geralmente usam (roupas brancas com um capuz pontudo), foi usado pela primeira vez no filme de Griffith. Temos um típico caso onde o cinema não só se
GNARUS - 104 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
apropriou das imagens mentais do imaginário coletivo estadunidense como também ajudou a ressignificá-lo, criando assim um novo imaginário. O filme de Griffith também é conhecido pela estética que inaugura, com uma nova forma de posicionar câmeras, explorar transições de cenas, montagem, figurinos, sons, aspectos que passariam a compor a cartilha dos pressupostos estéticos básicos do cinema.
Em “O encouraçado Potenkim”, o diretor soviético Sergei Einsenstein, lançado em 1926, implementa uma nova forma de montagem3 baseada na contraposição de planos (reação de um personagem seguida de uma imagem que mostra a causa de sua reação, o inverso também pode ocorrer), e também na criação de paralelos narrativos, com dois ou mais fatos ocorrendo o mesmo tempo e montagem criando o ritmo, o ponto em tais fatos culminariam. O filme é baseado no levante de marinheiros que ocorreu no navio homônimo em junho de 1905, logo após o episódio conhecido como Domingo Sangrento, no qual trabalhadores russos foram massacrados após uma marcha pacifica até o Palácio de Inverno do Czar para apresentarem uma petição por melhores condições de trabalho, mas foram atacados pela Guarda Imperial Russa. A proposta de Einsenstein era fazer uma analogia da revolta original do encouraçado Potemkin com Revolução de Outubro de 1917, juntando assim um episódio
3 Kuleshov, um jovem pintor, responsável por fundar a primeira escola de cinema do mundo, também dá nome ao primeiro experimento de montagem cinematográfica conduzido com fins de construir uma forma de controle sobre os processos cognitivos do espectador, o efeito Kuleshov. Esse experimento alternava a mesma imagem de um rosto de um ator, com uma determinada expressão, justapondo-a a imagens de outros objetos (um prato de sopa, uma cama, um bebê, um caixão, etc). O objetivo desse experimento era provar como o processo de montagem pode gerir as reações emocionais dos espectadores a partir de uma associação de imagens em uma sequência rítmica, criando assim sentido
que povoava a imaginação do povo russo com um outro acontecimento histórico de grandes proporções que derrubou o regime czarista e colocou os bolcheviques a marca a consolidação que está no cerne da formação política da URSS União Soviética.
Como podemos observar, o encontro entre a técnica e uma certa dose de imaginação, viabilizou o surgimento da arte cinematográfica que norteou sua estética em não só dar movimento as imagens, como também dar forma e ressignificar as imagens mentais dos repertórios imagéticos da coletividade.
Imagens mentais na modernidade
As imagens mentais do passado, tal como as mobilizadas pelo cinema, é um conceito recorrente dentro de uma visão filosófica e historiográfica muito presente nas mudanças de paradigmas do início do século XX. Em suas teses “Sobre o conceito de história”, filósofo alemão Walter Benjamin emprega de forma recorrente o conceito de imagem como um “lampejo” que capta o passado quanto mais longe ele se encontra no tempo e no espaço. A imagem do passado que emerge diante do lampejo são alegorias que Benjamin emprega para tecer uma mordaz crítica as pretensões historicistas que concebe a história como uma crônica dos acontecimentos “tal como ocorreram”. Por trás dessa premissa, Benjamin postula uma ausência de dialética que faz a história se limitar aos estratos oficiais, sem levar conta as contradições do processo histórico, os excluídos e a luta de classe, em detrimento de um registro que se limita ao “cortejo dos vencedores”. O presente, em seu diálogo com o passado é o flash da câmera é a projeção do
GNARUS - 105 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
cinematógrafo, captado como uma efemeridade que ganha sua vida e seu movimento na imagem gerada por esse lampejo, que traz a luz um novo conhecimento ancorado naquilo que o presente os revela (BENJAMIN, 2012).
Por sua vez a filosofia benjaminiana é tributária da concepção estética proposta pelos surrealistas europeus que vêm na imagem “uma capacidade expressiva transformadora para além da fala, acreditando numa escrita imagética”. As imagens históricas são construídas a partir de atos voluntários (objetivos) com atos subjetivos que remetem ao nosso inconsciente, a imagem em lampejo, conforme proposta de Benjamin, representam a reação dialética do presente com esse passado fluído e inapreensível.
A fotografia e o cinema podem ser encarados não só como paradigmas no qual se projetam novas visões da história, eles próprios são forças históricas que precisam ser pensadas a partir de novos padrões, novas correntes de pensamento, eles são a própria Schockerlebnis (experiência de choque) conforme formulada por Benjamin, uma percepção transformadora no que tange a massificação da imagem e seus impactos das imagens mentais do passado, alterando a forma como as coletividades imaginam, seja até mesmo por aquilo que não dizível em termos de linguagem e que remete a experiência dos combatentes que retornam silenciosos dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Walter Benjamin parecia prever um tipo de experiência que alcançaria seu paroxismo máximo com a Segunda Guerra Mundial, principalmente no que tange aos sobreviventes da Shoah. O choque do inenarrável seria uma constante no século XX por diversos outros massacres e rupturas violentas que ocorreriam pelo mundo.
O olhar precisava ser reeducado pela nova
percepção advinda do processo de reprodução massiva das imagens. Novamente em Benjamin, mas em seu ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, o filósofo chama atenção para o impacto da reprodução massiva de imagens nas formas de olhar e de conceber imagens (BENJAMIN, 2012, p. 181). O grande acervo de imagens mentais e do imaginário coletivo que as narrativas cinematográficas mobilizam são extraídas justamente das passagens escritas, sejam elas oriundas da ficção, relatos míticos, contos populares, passagens religiosas ou textos históricos (estes últimos independentemente de serem parciais ou críticos). O cinema na modernidade passa a ser o veículo privilegiado para que o ser humano reconheça e reinterprete os signos de acordo com sua condição existencial, ou como produtos do contexto histórico no qual esses signos estão sendo veiculados. Não há mais uma imanência na relação signo, significante e significado, porque a representação histórica e o discurso historiográfico passam a formar uma nova hermenêutica.
O grande acervo de imagens mentais é oriundo do imaginário coletivo, um empreendimento humano para superar a finitude da morte a partir da criação de estruturas imaginativas. O ser humano formaria um arcabouço de símbolos, imagens mentais, figuras míticas e arquétipos, formando um imaginário que garantiria o equilíbrio psicossocial do ser humano. (DURAND, 1988).
A imagem em movimento e, posteriormente, a imagem sonorizada, complexificam, ainda mais, a psicologia humana em relação ao repertório imagético da coletividade pois adicionam a textura do som, seja pelos sons diegéticos ou pela possibilidade do diálogo síncrono. André Bazin, importante teórico do cinema e influência
GNARUS - 106 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
marcante para diversos diretores, pontua o cinema como um desdobramento de práticas milenares, organizadas sob a rubrica das artes plásticas, que remetem desde o embalsamamento dos mortos no Egito, passando pelas esculturas até a pintura, baseada em esforços para vencer o tempo, uma vez que a morte “não é senão a vitória do tempo” (BAZIN, 2018, p. 101). As imagens mentais, sejam aquelas concretas ou as que fazem parte do imaginário coletivo, persistem sobre o tempo e fazem dele sua principal esteira, sendo integradas a um repertório de práticas significadoras conforme aquelas expressas nas relações de representações históricas. Corpos embalsamados, esculturas, féretros reais, pinturas, fotografias e, como parte fundamental desse processo de desenvolvimento da imagem, o cinema, colocam as imagens mentais do imaginário coletivos em uma função que traz possibilidades para além daquelas que lhe são inerentes. Bazin assim explica a formação dessa nova relação de proposições históricas na psicologia da arte:
Não se acredita mais na identidade ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual. A fabricação da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocêntrico. O que conta não é mais a sobrevivência do homem e sim, em escala mais ampla, a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo (BAZIN, 2018, p. 101).
experiência histórica, gradativamente, adquire um novo sentido advindo das novas formas de percepção temporal que emergem da imagem, ou seja, temos visões historiográficas que passam a ser embutidas por meio do entretenimento, alcançando contingentes populacionais cada vez maiores (BURKE, 2004, p. 16 e 17).
A profusão de imagens encadeada pelo cinema na modernidade colabora para a formação de imagens mentais que afetam não só a percepção e conhecimento do passado, como também influenciam no presente, criando novas formas de diálogo entre passado e presente, bem como novas perguntas e novas demandas. A
As imagens mentais congregam em si aspectos que são inerentemente estéticos, capazes de despertar sensações ao entrarem em contato com a visão humana. A construção do conhecimento histórico por meio das imagens mentais implica igualmente em uma relação estética, na qual o conhecimento ou percepção da história por meio das imagens advém igualmente do impacto que elas causam no espectador (CABRERA, 2006, p.17 e 18). Parte desse entendimento ajuda a explicar a forma como o cinema de propaganda ganha destaque na primeira metade do século XX, pela sua capacidade de arregimentar imagens mentais que remetem, principalmente, ao preconceito em relação ao outro, empreendendo um processo de desumanização. Os soviéticos, nazistas, os países Aliados da Segunda Guerra, cada um aplicou o cinema a seus propósitos, ressignificando símbolos, fazendo a apologia histórica de sua ideologia, enfraquecendo moralmente o adversário em conflito, todas as grandes correntes de pensamento histórico do século XX transbordaram para o cinema, criando impactos também no campo psicológico (FURHAMMAR, ISAKSSON, 1976, p. 145,146). Aquilo que não era imagem mental, passou a ser com a massificação do cinema.
Por mais abstrato que possa parecer, as imagens mentais também podem ser consideradas indícios que testemunham acerca de uma determinada cultura ou tempo histórico, sendo assim possível fazer uma historiografia a partir
GNARUS - 107 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
daquilo que as imagens mentais nos fornecem em termos de narrativa e estética. O passado, tanto quanto um dado, uma informação, e como já esboçado por Walter Benjamin, também é uma experiência, ou um itinerário de experiências que colaboram para constituir um fato como histórico (VEYNE, 1971). Quanto temos contatos com os vestígios que nos são passados pela experiência das imagens mentais, não podemos limitar sua contextualização a algo que a faça ser somente um objeto ou percepção em si, é necessário apreender também um “não-saber quando ele se desvencilha das malhas do saber”. No campo das sensações proporcionadas pela estética da imagem na construção do discurso histórico, a partir das imagens do passado, entende-se que este também deve ser perpassado pelo “elemento do não-saber que nos deslumbra toda vez que pousamos nosso olhar sobre uma imagem da arte” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 15 e 16).
Ao adotar a postura do “não-saber”, o historiador analisa as imagens mentais em uma postura dialética, tentando captar as nuances que formam essa imagem mental a partir das coletividades que a transmitiram ou a ressignificaram, das relações que essa imagem mental capitalizou em determinados meios sociais e em diferentes tempos históricos. Assim, a imagem mental deixa de ser somente uma característica discursiva em si mesma, uma resposta a uma proposta de representação, mas a indicar uma postura ético-estética que nos descortina a relação que há entre as possíveis leituras das subjetividades em função da sua compreensão em um quadro historiográfico mais amplo.
Pensar as imagens mentais enquanto formas de representação de aspectos da memória coletiva colabora de sobremaneira para se
evitar os equívocos de atribuir-lhes discursos inequívocos quase a-históricos. Enquanto formas de representação, as imagens mentais concorrem como mais um elemento que agrega ao imaginário coletivo seu caráter de construção social. Por representação da memória entendemos o processo de valoração que pode advir da representação de uma dada realidade social, definindo um trajeto e um projeto que irão resultar na interação entre um sujeito e um objeto, como peça de reapresentação dessa realidade (LEFEBVRE, 1980, p.54). Em Chartier, encontramos o conceito de representação em oposição à noção de mentalités. Essa oposição advém da percepção das mentalidades como o último nível a se alterar em uma sociedade, associadas às suas causas estruturais. Já a representação constitui-se em um determinante básico da realidade histórica, fazendo com que a cultura não seja somente fruto das relações materiais, sendo também o âmbito a partir do qual essas condições materiais são pensadas e refletidas através da ação do homem na sociedade, interferindo em seu mundo e em suas condições materiais diretamente (CHARTIER, 1988, p.27 e 28). A partir dessa abordagem temse um escopo que pensa as relações sociais e culturais como algo que não é transcendental ou universal e sim discursivo.
Quando Chartier nos expõe o conceito de representação, em certa medida nos informa que o discurso usado está promovendo uma reapresentação da realidade por meio dos códigos, convenções, valores e ideias presentes em uma cultura e manifestas em sua linguagem. A partir desse conjunto de associações, que não se aplicam cartesianamente em uma relação de causa-efeito unilateral, a representação, em nosso caso da memória, estabelece-se como a representação de uma ideia ausente ou a representação de algo ou alguém, que está ausente. Sendo assim, as
GNARUS - 108 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
imagens mentais emergem do amplo repertório imagético das coletividades como formas de reapresentar uma realidade, um indicio que está sendo moldado pelo fenômeno da materialidade e da técnica do cinema. A representação nos permite pensar imagens mentais para além de contextos e sondar dimensões mais abrangentes de suas concepções e influências.
É importante deixar claro que as imagens mentais não são acabadas em si mesmo, ou seja, seus significados precisam ser analisados em função de novas expressões e da relação dialética que estabelecem com o presente, não sendo somente algo a ser resgatado do imaginário ou da memória coletiva. Henri Lefebvre consagrou importantes páginas que problematizam a noção de memória enquanto algo a ser resgatado, bem como o próprio consenso em torno da memória como fruto de uma mediação sem disparidades. À memória é atribuído um valor de verdade que por sua vez lhe confere validade. Os instrumentos que geram essa validação, tais como o discurso e o binômio capital/criação de produtos, influi na própria forma de difusão do processo psicossocial dessas memórias (LEFEBVRE, 1980, p.24). Imagens mentais não devem ser tratadas como resgate e sim como referenciais por meio dos quais indivíduos e coletividades estabelecem suas relações com a memória história e sua relação com o passado.
À guisa de conclusão
A imagem em movimento, mais do que um aspecto técnico, exprime um pressuposto ideológico em torno da “finalidade da representação e parâmetro de medida da figuração visual dos objetos”. Não bastava a imagem estar
em movimento, era igualmente necessário estabelecer um sentido no qual a representação imagética colaborasse para influenciar a visão e o efeito das imagens, pictóricas ou mentais, da sociedade moderna. A concepção de imagens mentais encerra uma possibilidade de leitura histórica que torna indicio e fonte a própria forma como as sociedades imaginam, transmitem, cristalizam ou tornam fluídas suas formas de imaginar, que por sua vez depõem a forma como subjetividades e processos históricos se relacional e influenciam um ao outro.
Renato Pessanha é doutor em História pela UNIRIO e colunista da Gnarus Revista de História Referências
BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica In In XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018, p.101-106
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica In Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.179-212
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza técnica In Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.123-128
BENJAMIN, Walter. O narrador In Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.213-240
BENJAMIN, Walter. O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia In Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 21-36
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire In Walter Benjamin. Obras escolhidas II: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2010, p. 103-149
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. SP: EDUSC, 2004.
CABRERA, Julio. O Cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes.
GNARUS - 109 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2006
CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. DIFEL. Lisboa, 1988
DA-RIN, Silvio. Espelho partido. Rio de Janeiro. Azougue Editorial, 2004
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010
FURHAMMAR, Leif. ISAKSSON, Folke. Cinema e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976
GERVAISEAU, Henri Arraes. O abrigo do tempo: abordagens cinematográficas da passagem do tempo. São Paulo: Alameda, 2012.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.143-179.
GNARUS - 110 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Coluna
Fotografias da História
Visualidade, cultura pública e cidadania
Por Fernando Gralha
A fotografia e o poder da imagem
Desde o século XIX que o advento da máquina de fotografar e seu produto, a fotografia, conformam um novo equipamento/elemento tecnológico que possibilita registrar o cotidiano de uma sociedade em processo de transformação, estes são basilares para a construção das memórias desde indivíduos e grupos sociais até cidades e nações inteiras. A nova tecnologia expôs para o mundo um novo modo de vida e uma nova concepção de visualidade. Registrou e contribuiu
fortemente na transformação do mundo, fez com que avaliadores e críticos e de qualquer período posterior os tomassem (técnica e produto) como referência para a interpretação de qualquer fenômeno visual.
Walter Benjamin, inspirado nas caminhadas de Baudelaire por Paris, assentou a fotografia num primeiro plano, como um dos mais respeitáveis elementos da modernidade por esta se consistir, concomitantemente, em testemunha do novo tempo e consequência do processo de incremento técnico. 1
1 BENJAMIN, 1989.
GNARUS - 111 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Iniciada pelos daguerreótipos, ampliada pelos carte-de-visite2 e definitivamente conquistada pelos cartões postais, o uso da fotografia não se restringiu apenas ao prazer da contemplação de imagens, uma ampla diversificação de serviços ofertados, como a fotografia de aspectos da natureza, cidades, construções (prédios, escolas, estradas de ferro, pontes, etc.), documentação de empresas e governos, expedições militares e científicas, etc. aferiram à imagem fotográfica o caráter prático e documental que colaboraram para a popularização da imagem fotográfica.
Antes privilégio das elites,3 a fotografia na
2 “Tratava-se uma fotografia copiada sobre papel albuminado e colada sobre cartão-suporte no formato de um cartão de visita. (...) eram oferecidas como sinal de amizade e afeto a amigos, parentes e amadas e colecionadas em álbuns”. Apud. KOSSOY, 2002, p. 34.
3 O que entendemos aqui por elite é uma referência genérica aos grupos posicionados em locais hierárquicos de instituições públicas, partidos ou organizações de classe da sociedade, ou seja, entendemos elite como aqueles que na sociedade tinham a capacidade de tomar decisões políticas ou econômicas, além daquelas pessoas ou grupos capazes de formar e difundir opiniões que serviam como referência para
passagem do século XIX para o XX, passou por um processo de expansão de seu alcance com a chegada no mercado de novas e mais simples técnicas fotográficas, baseadas no princípio do negativo-positivo, que ao suavizar os custos de produção, tornaram a fotografia aberta a um público maior.4 O novo modo de expressão e registro chegou ao alcance de novos usuários, como artistas, comerciantes, profissionais liberais, professores, funcionários públicos, entre outros que almejavam ter sua figura perpetuada pela fotografia. Assim sendo, o perfil da clientela passou por uma transformação que a diferiu da dos tempos do daguerreótipo, quando o fotografado era, quase sempre, um representante da fina flor agrária ou da nobreza oficial. 5
Este alargamento da aquisição das técnicas de reprodutibilidade estimulou especialmente o fotoamadorismo, cujo símbolo inicial foi a introdução, em 1888 pela Eastman Kodak da câmera portátil, seu slogan publicitário – “You press the Button, we do the rest” - em último caso, alude que a produção de imagens prescindia de uma formação profissional nos registros mais corriqueiros, segundo George Eastman “qualquer pessoa com mediana inteligência pode aprender a tirar boas fotos em dez minutos.” 6
Com a popularização da fotografia a imprensa a congregou aos principais almanaques, revistas e jornais. Seu uso, de início, tinha como papel
os demais membros da sociedade. Neste caso, elite seria um sinônimo tanto para liderança quanto para formadores de opinião.
4 BOSSY, 2002, p.12.
5 Idem.
6 Após utilizar o rolo de filme com até cem fotos que vinha junto com a câmera, o fotógrafo amador enviava pelo correio a máquina para a fábrica (em Nova York) onde o filme era revelado e copiado. Em seguida o cliente recebia em casa as fotos montadas e a câmera municiada com um novo filme pronto para ser usado. Ibidem, p. 42.
GNARUS - 112 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Cartes de Visite do Século XIX (Diversos Estúdios),
ilustrar artigos e reportagens corroborando o acontecimento descrito, ou mesmo de forma casual, sem nenhuma vinculação com o texto publicado. Logo, é importante atentar ao moderno papel da fotografia no princípio do século XX, o de se constituir como um elemento do dia-a-dia da população, continuamente associado não somente ao desenvolvimento científico e à verdade da reprodução dos fatos, mas, ao mesmo tempo, à documentação do momento específico vivido.
O novo aparelhamento e o olhar do fotógrafo transformaram o cotidiano em nova expressão estética, ao registrar tipos, costumes e hábitos, moda e ao atribuir à imagem fotográfica a condição de representação das inovações e da curiosidade do homem moderno.
Equivalente a seu caráter de novidade tecnológica, a fotografia traz em sua história a marca da polêmica em relação aos seus usos e funções.7 Desde o sobressalto provocado no meio artístico, que em um primeiro momento compreendeu a fotografia como um elemento que tornaria obsoleto qualquer outro tipo de ilustração, até seu caráter de prova indiscutível dos fatos, a fotografia foi, e é, alvo de contendas entre aqueles que empregam este recurso para refletir acerca de seus objetos de análise.
No caso particular da sua relação com a História, podemos dizer que esta contenda deuse, dentre outros aspectos, sobre a importância do papel exercido pela cultura nos diferentes campos da conjuntura social.
Segundo Lastra,8 mais importante do que a simples invenção do mecanismo – a câmera – o século XIX presenciou e respondeu a manifestação
7 MAUAD, 2004, P.119.
8 LASTRA, 1997.
de um modo alternativo de figuração no qual a fotografia e o filme se amoldaram muito bem, mas do qual não se mantêm alguma raiz ontológica ou essencialista. É precisamente no campo da “figura” como uma categoria cultural, mais do que como tecnologia que a fotografia se inscreveria na cultura Americana oitocentista disputando poder e relevância em meio as imagens do século XIX e início do XX. Propõe ultrapassar a posição tradicional segundo a qual se atribuía a emergência da fotografia como central na reconfiguração dos modos de ver e das novas formas de representar, produzir, circular e trocar imagens, ao mesmo tempo em que, se configurou novas formas de disciplina vigilância. Ressalta que, no entanto, apesar de ser esse um fenômeno historicamente específico, a disputa em torno da coerência e unidade das figuras não é totalmente novo, teria procedência nos debates sobre imagem no renascimento.
Toda a fotografia é acima de tudo o signo de um investimento de alguém para enviar uma mensagem, a função precípua do discurso fotográfico é reforçar a transparência do meio, porém “o sentido da fotografia como qualquer outra entidade, está inevitavelmente sujeito a uma definição cultural”. 9
Todo este contexto nos leva, entre outras possíveis abordagens, a possibilidade de pensar a fotografia no campo pedagogia do comportamento e da aparência, no que a fotografia comporta um grande potencial de capacidade comunicativa de conhecimento social, de modelos performativos para a cidadania, ou seja, o papel político das imagens.10
9 SEKULA, 1982.
10 HARIMAN & LUCAITES, 2007.
GNARUS - 113 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Fotografia, fotojornalismo e Cultura pública:
Podemos entender “cultura pública” como um conjunto de símbolos que operam por meio da comunicação, orientados por interesses desenvolvidos no âmbito das relações sociais –um conjunto de práticas sociais que orientam a vida social. Desta forma são na prática, textos, imagens, discursos e artes, como oratória, pôsteres, jornalismo impresso, literatura, filmes, e outros trabalhos artísticos que se desenvolveram historicamente por meio do uso dos meios modernos de comunicação para definir a relação entre cidadão e estado, utilizados para definir cidadania como audiência, apoiam normas de representação política e transparência institucional e promovem o bem estar geral. 11
Para Sekula12 a noção de sentido apoia-se na relação que a fotografia estabelece com os discursos que a fundamentam como prática. Nesse sentido, propõe que toda crítica fotográfica se apoie numa sociologia histórica do discurso sobre a fotografia, em que as condições de enunciação sejam parte fundamental da atribuição de sentido.
O autor define o discurso como arena de troca de informações, um sistema de relação entre partes envolvidas em uma atividade comunicativa, desta forma destaca o caráter convencional do signo fotográfico e propõe um projeto histórico sociológico para identificar os usos e funções da fotografia na sua condição de mensagem, um discurso comunicativo. Atribui a esta condição uma importante função que é a de ser um limite, e este limite que determina a possibilidade de produzir sentido, ao mesmo tempo em que diz que “o sentido da fotografia como qualquer outra entidade, está inevitavelmente sujeito a uma 11 Idem. 12 SEKULA, 1982.
definição cultural”. Associa o debate a sociedade industrial avançada e a significativa quantidade de mensagens endereçadas ao domínio público que é enunciada pela voz de uma anônima autoridade que enseja somente a afirmação. Destaca que essa característica é importante, pois está associada a forma como a fotografia é endereçada tanto no mundo das artes quanto da cultura popular. 13
Dialogando com Sekula, Tagg (2009) busca identificar que formação discursiva não é produção de contexto, não é moldura, mas um sistema de poder que se fia na transparência do meio fotográfico para instituir um novo regime de representação com base na convenção, códigos e limites interpretativos.
Assim, o lugar fotografia neste conjunto e condição perpassa pela sua qualidade de meio, no qual os valores estéticos atribuídos a fotografia e o mito da objetividade fotográfica são colocados em perspectiva desde o ponto de vista das novas configurações culturais do pós-guerra, nelas a fotografia pode vir a ser o espaço de que consolidaria identidades sociais.14 O espaço seria o de, dentro de determinados projetos de sociedade e cultura, imaginar a fotografia como meio para se trabalhar a de conteúdos afetivos para uma tal mudança em relação ao mundo e explorar novas formas de subjetividade, novos caminhos para configurar identificação individual como uma força que pudesse fornecer novas e significativas formas psicossociais para a existência política e cultural no mundo.
A fotografia ao apresentar o encontro entre a objetividade e a subjetividade, na experiência estética que esta constitui, nos justifica avaliar as condições pelas quais a percepção em relação 13 Idem 14 STIMSON, 2007.
GNARUS - 114 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ao mundo sensível muda, e como nesta dinâmica indivíduos experimentam seu pertencimento a comunidades mais amplas. Ocorrem renegociações ao, através da imagem, articular novas relações para com a identidade, nelas a experiência da beleza serve como um campo de treinamento para a reflexão pública crítica, beleza esta experimentada como um ideal contra a realidade vivida e criticada.
Partindo desta linha de raciocínio, destacamos dentre outros elementos de circulação das imagens o fotojornalismo que, juntamente com a arte pública e as fotografias icônicas, é importante artefato da cultura pública. É no fotojornalismo que enxergamos as possibilidades de perceber a mídia como portadora de um discurso, que por estar voltado a um público, estabelece formas expressivas reconhecidas como portadoras de autoridade ao refletirem a riqueza e a beleza das sociedades modernas. Uma espécie de realidade virtual que se apoia no espaço público.
Destas imagens que aparecem na imprensa os fotoícones são amplamente reconhecidos por representarem eventos historicamente significativos, pois ativam respostas e proporcionam identificação fortemente
emocionais. Quando divulgados através do fotojornalismo são capazes de disseminar cidadania, meios de viver modernamente a política, de se adquirir direitos iguais, obrigações coletivas e de criarem princípios comuns para a identidade pública, seriam ícones da cultura pública. 15
Ao associarmos este debate à sociedade industrial avançada e a significativa quantidade de mensagens endereçadas ao domínio público que é enunciada pela voz de uma anônima autoridade que enseja somente a afirmação de determinados valores estéticos e sociais, percebemos desta forma que uma das características mais importantes da fotografia é o fato de estar associada a um endereçamento tanto das artes quanto da cultura popular.16
Este endereçamento se dá na certeza de que o sujeito é resultado de relações sociais, que se dão através de linguagens entendidas e decodificadas por cada cultura, assim sendo a noção de texto é central para uma abordagem semiótica na qual a instituição fotográfica implica numa ordem simbólica que se relaciona a performance da
15 HARIMAN & LUCAITES, 2007, p. 25-26.
16 SEKULA, 1982.
GNARUS - 115 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
expressão que envolve o ponto de vista, mas não se reduz à ideologia, pois inclui elementos de imaginação – a imagem fotográfica começa a fazer sentido quando decodificamos elementos expressivos em algo que pelo sentimento de identidade passa a ser, ou a ter existência. 17
O decodificar da imagem se dá através do olhar, para Alfredo Bosi, olhar, ver e pensar são ações intrinsicamente inseparáveis,18 Pinney chama a atenção para como os olhos do sujeito tornam-se marcas cruciais para a habilidade da imagem em retornar o olhar ao expectador: os olhos tornamse o fulcro da relação entre a imagem e o mundo fora dela.19
Há uma identificação automática com o objeto-mundo com o objeto-imagem. A dinâmica imagem-meio-espectador (olhar) revelam a forma de intervenção visual no espaço público. O meio unido a imagem cria a materialidade da imagemartefato que é histórica e objeto de práticas sociais e experiências vivenciais e existenciais. O olhar do espectador afetado pela presença das imagens na foto percorre o trajeto que parte das imagens apresentadas e ruma para imagens imaginadas, projetadas, age num jogo de semelhanças difusas com outras imagens.20 Os fotógrafos e os meios de divulgação das imagens fotográficas promovem um ideal e uma visão de aspiração que o corpo desses modelos aspiram para si próprios.21
A imagem visual passa a ser imaginada como uma série conectada de potenciais figuras que precisam ser enquadradas de forma correta. O próprio ato de ver e enquadrar um mundo pré-
17 BURGIN, 1982. P. 147
18 BOSI, 1988.
19 PINNEY, 2003.
20 STIMSON, 2007.
21 PINNEY, 2003, p. 214.
existente agrega um valor que este não possuía. A fotografia como forma social imaginada passa assim a as possibilidades de tanto atribuir humanidade como a de alienar o sujeito de sua própria subjetividade,22 onde o processo e a reciprocidade do olhar marcam a ação de recepção do moderno.
Concluindo, a mudança no modo de representar inclui o fato de que visão e experiência passam a ser um prodígio artístico de uma ordem própria e que a ordem pictórica e sua significação não provém diretamente do objeto representado nem por outra força ou condição intrínseca a esse objeto. Uma imagem esteticamente significante fornecia a dramatização da experiência de ver.23
A constituição da visualidade determinada pela fotografia perfaz-se ao mesmo tempo, por sua geração automática assim como pelas subordinações socioculturais que orientam o olhar e as escolhas do fotógrafo, pelos intermediadores culturais responsáveis pela circulação das imagens além do gosto e intenções dos consumidores.
Assim sendo, podemos dizer que fotógrafos, suas câmeras, a paisagem e seus habitantes e, por fim, nós espectadores, fazemos parte do processo de significação. Entendemos então as fotografias dispostas e publicadas em periódicos como um sistema de comunicação e, portanto, portadoras de uma mensagem e de um emissor com intenção de transmitir algo. Os códigos de representação e comportamento de um grupo ou indivíduo estão presentes na imagem fotográfica, e como esta é passível a processos de manipulação, é comum que este tipo de conduta ocorra em valores que procuram legitimar-se.
A fotografia pública é aquela que na cultura
22 STIMSON, 2007.
23 LASTRA, 1997.
GNARUS - 116 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
dos meios torna público o mundo visível por meio dos veículos de sua publicação. As imagens, as representações elaboradas, apresentam a sociedade tal como pensam que ela é ou, como gostariam que ela fosse. Estas efígies descrevem a realidade não como um espelho, mas como uma “visão de mundo” entre outras possíveis, como uma interpretação daquilo que a sociedade era no instante do click do fotógrafo ou, daquilo que ela poderia vir a ser. A fotografia revela o que é no que já foi e o que é no que ainda será.24
Desta forma, a fotografia é mais do que a consequência de um procedimento físico-químico entre imagem e referente, alcançada mediante o desenvolvimento técnico, é uma construção histórica. A verdade empírica do processo fotográfico sobrevém, principalmente, a partir de estratégias e convenções que regulam a produção e a recepção da imagem, por meio de formas de diálogo e de estética, codificadas social e historicamente.
Consideradas suas especificidades, podemos articular que nos trabalhos dos autores acima citados, estes proclamam a fotografia não apenas como uma expressão da realidade, mas além disso uma interpretação deste mesmo real, que deve ser procurada nas imagens através da leitura atenta e subjetiva, neles a fotografia expõe suas múltiplas faces; ostenta seu status de técnica, arte e documento sociocultural.
Estas ideias nos permitem observar e pensar na “teatralização” e a “realidade” do já vivido de uma sociedade, alcançar a distinção entre representação e representado, entre signo e significado. Permite “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada
DURAND, 1995.
a ler”,25 nos agrega ao objetivo do trabalho, de perceber o modo a ideia de “belo” e de “feio”, de modernidade e seus contrapontos sãoconstruídos, pensados, dados a ver através da fotografia de um determinado período.
Fernando Gralha é mestre em História pela UFJF, colunista e editor da Gnarus Revista de História.
Bibliografia:
AZOULAY, Ariella. “The Civil Contract of Photography”. In: The Civil Contract of Photography. Cambridge: MIT Press, 2008.
AZOULAY, Ariella. “What is photography?”. In: Civil Imagination. London: Verso, 2012.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política in Obras Escolhidas, Volume 1. São Paulo: Brasiliense, 7a edição. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985b. p. 165-196. v. 1.
BELTING, Hans. “La transparencia del medio: la imagen fotográfica”. In: Antropologia de la Imagen. Buenos Aires: Katz, 2007.
BELTING, H. Antropologia de la Imagen. Buenos Aires: Katz, 2009. Capítulos: “La Transparencia del Medio : la imagen fotografica” (pg. 264-295)
BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, Adauto (org.) O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis - O enigma do olhar. São Paulo, Editor Ática, 1999.
BURGIN, Victor. “Looking at Photographs”. In: BURGIN, Victor. Thinking Photography. Londres: MacMillan Press, 1982.
25 CHARTIER, 1990, p. 76.
GNARUS - 117 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
24
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel. 1990.
DURAND, Régis. “How to see (photographically)”. In: PETRO, Patrice (ed.). Fugitive Images. Indiana: Indiana University Press, 1995.
EDWARDS, Elizabeth; HART, Janice. “Introduction: photographs as objects”. In: Photographs Objects Histories. New York: Routledge, 2004.
GREEN, David; LOWRY, Joanna. “De lo presencial a lo performativo: nueva revisión de la indicialidad fotográfica”. In: GREEN, D. Que ha sido la fotografia? Barcelona: Gustavo Gilli, 2007.
HARIMAN, Robert; LUCAITES, John Louis. “Public Culture Icons and Iconoclasts”. In: No Caption Needed. Chicago: University of Chicago Press, 2007.
IVERSEN, Margaret. “Following Pieces: on performative photography”. In: ELKINS, J. (ed.). Photography Theory. New York: Routledge, 2007.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3ª ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História, 2ª ed. rev. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Ateliê Editorial, 2007.
LASTRA, James. “From the captured moment to the cinematic Image”. In: ANDREW, Dudley (ed.) The Image in Dispute. Austin: University of Texas Press, 1997.
MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da Imagem: a fotografia e a produção dos códigos de representação social da classe dominante na primeira metade do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 1990.
MAUAD, Ana Maria Através da Imagem: fotografia e História – interfaces. In: Revista Tempo. nº 2. Deptº de História. Niterói. UFF. 1996.
MAUAD, Ana Maria Imagens da terra: fotografia, estética e história. LOCUS: Revista de História. Juiz de Fora: Núcleo
de História Regional / Departamento de História / Arquivo Histórico / EDUFJF, 2002. v. 8, n. 2.
MAUAD, Ana Maria Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. Anais do museu paulista: história e cultura material, v. 13, n.1, jan.-jun., 2005.
PINNEY, Christopher. “Notes from the surface of the image: photography post-colonialism and vernacular modernism”. In: PINNEY, C.; PETERSON, N. Photography`s other histories. Durnham: Duke University Press, 2003.
SEKULLA, Allan. “On the Invention of Photographic Meaning”. In: BURGIN, Victor. Thinking Photography. Londres: MacMillan Press, 1982.
STIMSON, Blake. The Pivot of the World: Photography and its Nation. Massachusetts: MIT Press, 2007, Introduction, p. 1-58
TAGG, John. The Violence of meaning. In: The Disciplinary Frame. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
GNARUS - 118 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
ENSINANDO FÍSICA: O MOVIMENTO RETILÍNEO UNIFORME (MRU) EM EXPERIMENTO DE BAIXO CUSTO
Por Adílio Jorge Marques
RESUMO: O Movimento Retilíneo Uniforme (MRU) faz parte do currículo nacional e está contemplado como parte inicial da Cinemática. Esta, por si, adapta-se bem à BNCC e às propostas conceituais ou matemáticas do ensino da Física básica, tanto no Brasil quanto em países como os EUA e outros da Europa. O presente artigo visa propor uma prática simples para o 9º ano do Ensino Fundamental, ou algum dos anos do Ensino Médio. Tal experimento utiliza-se de materiais muito simples, e mesmo em locais com poucas condições materiais e sem laboratórios de Física pode ser reproduzida, contemplando o que chamamos de ou espaços não formais.
Objetivos
Os principais objetivos, específicos e gerais, foram incentivar os estudantes a identificar as relações entre os fenômenos naturais e os seus conceitos fundamentais, promovendo a compreensão dessas relações e da linguagem da Física usada para descrever a realidade. Assim como discutir os conteúdos básicos da disciplina a partir de estratégias atraentes, tentando atender aos diferentes estilos de aprendizagem e interesses dos estudantes, utilizando, para isso, diferentes ambientes. Podemos indicar a sala de aula, um laboratório de física se existir na escola, ou ambientes não formais como uma quadra de esportes ou um jardim da escola (ALMEIDA,
MEDEIROS & ARAÚJO, 2020). Contribuir para o desenvolvimento de habilidades na manipulação de instrumentos e de aparelhos para realização de medidas, leitura e interpretação de dados, além de informações diversas como tabelas e gráficos. Como nos diz Jacobucci (2008), “Posto que espaço formal de Educação é um espaço escolar, é possível inferir que espaço não-formal é qualquer espaço diferente da escola onde pode ocorrer uma ação educativa”.
Recorrendo a Vygotski (1991, p. 56), De acordo com esse ponto de vista, um treino especial afeta o desenvolvimento global somente quando seus elementos, seus materiais e seus processos são similares nos vários campos específicos; o hábito nos governa.
Isso leva à conclusão de que, pelo fato de cada
GNARUS - 119 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
Interdisciplinar
atividade depender do material com o qual opera, o desenvolvimento da consciência é o desenvolvimento de um conjunto de determinadas capacidades independentes ou de um conjunto de hábitos específicos. A melhora de uma função da consciência ou de um aspecto da sua atividade só pode afetar o desenvolvimento de outra na medida em que haja elementos comuns a ambas as funções ou atividades.
Metodologia
Este artigo trata do ensino de ciências com enfoque CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), com particular recorte para o Ensino de Física. Buscamos aproximar a Física do mundo real, fazendo simulações e experimentos no laboratório de informática, o que permite a obtenção de dados experimentais de maneira fácil e precisa, contribuindo para a construção de modelos científicos (ELIAS, MARQUES & Ferreira, 2010). Sem contar o incentivo no trabalho coletivo e integrado entre discentes. Buscamos, para a metodologia, pensar em um projeto que pudesse ser realizado com estudantes a partir do 9º ano até as turmas do Ensino Médio de escolas públicas e privadas.
Durante nove anos esta prática foi realizada em uma escola privada do Rio de Janeiro com aproximadamente 170 alunos/ano do Ensino Médio. A proposta consistiu de os estudantes participarem de algumas aulas teóricas para entender o MRU conceitualmente, e depois da prática em si em um espaço não formal. A turma era dividida em grupos de até quatro componentes. Em sala de aula foram ministrados os conceitos básicos da Cinemática e os tipos de movimentos. Com isso, era solicitado aos discentes que fizessem medidas de tempo e comprimento, para que a velocidade média (com algarismos significativos)
de uma bolha de ar em um líquido pouco viscoso (água filtrada) fosse calculada.
A velocidade média (Vm) de um ponto ou objeto em MRU é dada por: Vm = (Espaço S) / (tempo t) (1)
Sendo o espaço em metros (m) e o tempo em segundos (s), usando-se o Sistema Internacional de Unidades (SI).
Utilizamos material de baixo custo. Algumas mangueiras de 100 centímetros (1 metro) de comprimento (com as extremidades fechadas) continham água dentro e uma pequena bolha. Elas ficavam na vertical e eram viradas rapidamente por um dos alunos. Quando a bolha passava pelo ponto So (posição inicial) um cronômetro era acionado por outro membro do grupo, até que a bolha cruzasse o ponto S (posição final). Este intervalo de tempo era o tempo T1 de deslocamento da bolha de ar. Após cinco medidas desse tempo, a média aritmética originava o tempo médio. Com a aplicação na tabela abaixo, e o uso da equação (1), a velocidade média (Vm) era calculada para cada trecho.
Após, um gráfico deslocamento (eixo horizontal) versus tempo (eixo vertical) era feito pelo grupo, e deveria ser o mais próximo possível de uma reta, já que o movimento deveria ser o mais constante possível.
GNARUS - 120 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
GNARUS - 121 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022
QUESTÕES:
1. Ao fazer a razão entre cada deslocamento realizado pela bolha e o referido tempo gasto no respectivo deslocamento, você obteve um resultado sempre constante?
2. Você pode dizer que os valores das velocidades médias em cada um dos deslocamentos realizados, foram iguais? Considerando esses resultados como podemos classificar o movimento da bolha de ar dentro da mangueira com água ?
3. Após marcar os pontos referentes ao deslocamento e ao tempo gasto pela bolha ao longo de cada um dos trechos, você obteve um conjunto de pontos alinhados entre si? Caso afirmativo, trace uma reta passando por esses pontos. Caso negativo, tente encontrar uma reta que tangencie a maioria dos pontos. Identifique o ponto onde a reta corta o eixo vertical (y) e o horizontal(x).
4. A partir do gráfico obtido, você seria capaz de dizer quanto tempo aproximadamente a bolha de ar levou para se deslocar 30 cm?
5. A partir do gráfico obtido, você seria capaz de dizer o valor do deslocamento da bolha que durou aproximadamente 4,0 s?
6. Considerando a reta obtida, podemos dizer que a função que representa o movimento descrito pela bolha de ar dentro da mangueira é de que grau?
7. Sabendo o tipo de função que representa o movimento descrito, escreva-a substituindo os coeficientes encontrados a partir do gráfico.
Conclusão
Este trabalho foi construído a partir das necessidades dos estudantes, com ações que se incorporam àquelas já realizadas para fixar o modelo e o conceito de MRU em sala de aula. Foram, assim, respeitados os diferentes estilos de aprendizagem, provocando o reforço necessário para a fixação. O índice de notas positivas nas avaliações deste tópico da Física foi maior nas turmas em que tal prática foi implementada. Esta foi uma prática simples de ser realizada, e assim a recomendamos para a temática do MRU no Brasil.
Adílio Jorge Marques é Prof. Adjunto da UFVJM, Membro da Academia Brasileira de Filosofia e colunista da Gnarus Revista de História
Referências
ALMEIDA, W. A.; MEDEIROS, A. S.; ARAÚJO, V. L. ENSINO DE FÍSICA EM ESPAÇOS NÃO-FORMAIS: VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA. REAMEC - Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, [S. l.], v. 8, n. 3, p. 173-188, 2020. DOI: 10.26571/reamec.v8i3.10623. Disponível em: https://periodicoscientificos. ufmt.br/ojs/index.php/reamec/article/view/10623. Acesso em: 21 maio 2021.
ELIAS, Cláudio; MARQUES, Adílio Jorge; FERREIRA, Fábio. A física e o meio ambiente. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.
JACOBUCCI, Daniela Francisco Carvalho. Contribuições dos espaços não-formais de educação para a formação da cultura científica. Revista Em Extensão, v. 7, n. 1, 5 nov. 2008.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GNARUS - 122 Gnarus Revista de História - VOLUME XIII - Nº 13 - DEZEMBRO - 2022