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A MOBILIZAÇÃO DAS IMAGENS MENTAIS PELO CINEMA

NA VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX

RESUMO: A presença da imagem no processo de reconstrução do passado não se limita aos indícios materiais, como fotos, pinturas, filmes etc. A construção de narrativas históricas a partir do emprego das mais variadas fontes, incluindo também as não imagéticas, permite formar imagens mentais do passado. O cinema notabilizou-se por mobilizar e expor aos grandes públicos um arcabouço imagético que remete as imagens mentais das coletividades, estejam elas ancoradas em visões históricas ou míticas. As imagens em movimento, fruto das inovações tecnológicas da modernidade, representam um novo ponto de desenvolvimento do imaginário coletivo bem como da percepção do público, que passa a mudar diante do assombro das imagens que ganham vida e passam a fluir tal como os movimentos históricos advindos dos processos da modernidade. O presente artigo tem como objetivo tecer considerações acerca do impacto do cinema no campo imagético das coletividades na virada do século XIX para o XX e como ele assume o papel de agente histórico capaz de influenciar e redefinir processos históricos.

Palavras-chave: Modernidade, Cinema, Imagens Mentais

Introdução

Recursos imagéticos estão entre os principais meios pelos quais o ser humano constrói e transmite conhecimentos e experiências. Por meio das imagens legadas por diversas sociedades gerações posteriores tiveram acesso a um conhecimento indiciário que passa a ser aplicado no estudo e na representação de

outras culturas. No presente artigo adotamos a definição de indiciário tal como exposta pelo historiador italiano Carlo Ginzburg. Em sua abordagem do paradigma indiciário, conjunto de procedimentos e princípios por meio dos quais o pesquisador se detém em vestígios, sinais, indícios que fogem à regra mais ampla e generalizante de classificação, Ginzburg defende uma metodologia de pesquisa em história que busque, naquilo que

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é negligenciado por uma metodologia que anula qualquer possibilidade de uma análise heurística, fenômenos muito mais profundos em termos de alcance e compreensão. Na micro-história, prática historiográfica da qual Ginzburg é uma referência, o paradigma indiciário é fundamental para ir além daquilo exposto nos documentos oficiais, buscando nos vestígios quase inconscientes, que insistem em figurar nos documentos oficiais, o estudo de práticas discursivas e subjetividades que acabam por dar voz aos excluídos da história (GINZBURG, 1991)

A partir das crises geradas pelas aceleradas e dramáticas rupturas da modernidade as manifestações artísticas de caráter pictórico passam a se orientar pela busca de formas capazes de apreender o tempo presente que se esvaí em um instante efêmero e necessita ser redefinido a todo momento. Primeiramente, a pintura “na transição entre os séculos XVIII e XIX” deixa de se limitar a “um esboço, realizado a partir de modelos preestabelecidos da realidade” e passa a ser uma “tentativa de registro da realidade visual tal como ela era percebida pelo olhar do pintor no decorrer de um instante efêmero de observação da natureza viva” (GERVAISEAU, 2012, p.39). Com a emergência da fotografia as imagens passam a ser reproduzidas e difundidas em larga escala, trazendo consigo a marca da atualidade, do momento em seu instante de acontecimento, diferindo, por exemplo, de uma pintura, cuja reprodução a alcance eram muito mais limitados.

O avanço técnico seguinte ocorre quando as imagens fotográficas são postas em movimento, dando origem, pelo menos em termos técnicos, ao que viria ser o cinema. Junto com a imagem em movimento o cinema restitui o tempo do fato registrado em sua duração integral. Do

quinetoscópio1 criado por Thomas Edison, ao cinematógrafo2 dos irmãos Lumière, a imagem em movimento ocupa o imaginário da coletividade na sociedade da virada do século XIX para o XX. O cinema na modernidade assume um claro papel político e ideológico, não só no sentido de doutrinar uma nova forma de olhar, mas como vetor da ideologia que está no cerne da consolidação dos Estados Nacionais, sobre as novas etapas do processo produtivo em torno do qual as cidades modernas se organizam, cidades essas que abrigam a grande massa dos trabalhadores que formam o exército de mão de obra da indústria e do comércio.

O cinema, seja enquanto expressão, representação e dispositivo tecnológico, mexe diretamente com a lógica temporal e impacta na forma como percebemos o tempo. Seus efeitos se fazem sentir em diversos campos do saber, como a própria História. O passado, na totalidade de sua duração, é restituído no instante da projeção do filme, abrindo um precedente para uma prática social que não está limitada a produção de conhecimento, pois desde seus primórdios o cinema atua de modo a dizer ou definir algo acerca

1 O quinetoscópio (ou cinetoscópio) de Edison projetava uma tira de filme em looping, geralmente retratando um episódio cômico, mas cujo registro era realizado por outro equipamento. Contudo, o quinetoscópio se limitava a um uso individual, a partir de inserção de uma moeda a pessoa podia observar por meio de uma lente a sucessão de imagens, era um item muito popular nas feiras e eventos científicos. Fisicamente era um objeto grande e pesado, pouco prático em seu manuseio

2 O cinematógrafo dos irmãos Lumière, além de fazer o registro, ele também projetava em uma tela ou em uma superfície plana a sequência de imagens captadas. A sua velocidade de captação e projeção dos fotogramas dava a ilusão de imagens em movimento mais bem-acabadas. Entre seus principais atrativos estavam suas características físicas: leve, portátil, de fácil posicionamento e manuseio; e que dispensava o uso de energia elétrica, passando a ser utilizado para o registro de shows de variedades, popularmente conhecidos por vaudevilles, shows burlescos, circos itinerantes, atualidades cotidianas, além de peças teatrais.

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das condições históricas, seja as que envolvem sua produção, ou sua recepção (FERRO, 2010, p. 33).

No próximo tópico analisaremos a forma como o cinema foi capaz de mobilizar as imagens mentais das coletividades em seu processo de transição de instrumento técnico para manifestação artística mais difundida da história.

Cinema e o impacto das imagens mentais

Antes de ser considerado arte, o cinematógrafo era um dispositivo técnico que vinha na esteira do processo fotográfico, fruto de inovações técnicas que almejavam dar movimento as imagens registradas em fotogramas (XAVIER, 2017, p. 27).

Com as novas formas de manuseio dos avanços técnicos proporcionados pelo cinema, ocorreu a ascensão do que chamamos até hoje de linguagem clássica do cinema, baseada no processo por meio do qual o cinema emprega recursos que implicam em manipulação temporal e espacial por meio de movimentos de câmera, tais como enquadramento, trucagens, edição, montagem, cenário, iluminação, criando a sensação, por parte do espectador, de uma ambientação. Por meio da linguagem clássica do cinema outros estilos, ou escolas cinematográficas surgiram longo das décadas. No âmbito dessa nova forma de fazer cinema um dos principais desdobramentos foi a manipulação do tempo por meio de planos, sequências, montagem, edição, encenações, e não só a preocupação em restituir o tempo da duração do fato (GERVAISEAU, 2012, p.39 e 42).

Os usos da imagem, no que concerne ao processo de representação do passado, não se limita a ser uma ilustração de informações já presentes em textos escritos e nem tão pouco se refere somente as representações pictóricas

de caráter material, como filmes, fotografias, pinturas, etc. A construção imagética sobre o passado também se dá por meio das imagens mentais responsáveis por evocar períodos históricos, fatos, personagens bem como mitos e lendas comuns a diversas culturas e que estão entranhados no imaginário popular. Por imagens mentais entende-se o repertório imagético presente no imaginário coletivo que o cinema passa a mobilizar no intuito de estabelecer uma relação de identificação com o público para além do simples registro factual de uma atualidade. Como nos diz Da-Rin sobre os enredos presentes nos primeiros filmes Para tornar os enredos compreensíveis, era preciso recorrer a recursos externos à imagem projetada, a começar pela memória do espectador, que pressupunha o conteúdo do filme através do título e da alusão a algum fato corrente ou enredo conhecido (DA-RIN, 2004, p. 30).

A história foi um campo fértil em imagens mentais que ajudaram a moldar a estética cinematográfica. Aquele que é considerado o filme inaugural da linguagem clássica do cinema, “O nascimento de uma nação”, de D.W Griffith, lançado em 1915, mobilizou um tema histórico, a Guerra de Secessão nos EUA (18611865), um conflito civil que opôs os estados do Sul (separatistas) e os do Norte (unionistas), ao mesmo tempo que incorpora a sua narrativa estereótipos racistas e revisa a história dos EUA, atribuindo aos estados sul, também conhecidos como Confederados, a alcunha de vencedores morais do conflito. “O nascimento...” foi o filme que ajudou a dar forma a organização terrorista Ku Klux Klan, inclusive no vestuário, pois a roupa que os membros da KKK geralmente usam (roupas brancas com um capuz pontudo), foi usado pela primeira vez no filme de Griffith. Temos um típico caso onde o cinema não só se

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apropriou das imagens mentais do imaginário coletivo estadunidense como também ajudou a ressignificá-lo, criando assim um novo imaginário. O filme de Griffith também é conhecido pela estética que inaugura, com uma nova forma de posicionar câmeras, explorar transições de cenas, montagem, figurinos, sons, aspectos que passariam a compor a cartilha dos pressupostos estéticos básicos do cinema.

Em “O encouraçado Potenkim”, o diretor soviético Sergei Einsenstein, lançado em 1926, implementa uma nova forma de montagem3 baseada na contraposição de planos (reação de um personagem seguida de uma imagem que mostra a causa de sua reação, o inverso também pode ocorrer), e também na criação de paralelos narrativos, com dois ou mais fatos ocorrendo o mesmo tempo e montagem criando o ritmo, o ponto em tais fatos culminariam. O filme é baseado no levante de marinheiros que ocorreu no navio homônimo em junho de 1905, logo após o episódio conhecido como Domingo Sangrento, no qual trabalhadores russos foram massacrados após uma marcha pacifica até o Palácio de Inverno do Czar para apresentarem uma petição por melhores condições de trabalho, mas foram atacados pela Guarda Imperial Russa. A proposta de Einsenstein era fazer uma analogia da revolta original do encouraçado Potemkin com Revolução de Outubro de 1917, juntando assim um episódio

3 Kuleshov, um jovem pintor, responsável por fundar a primeira escola de cinema do mundo, também dá nome ao primeiro experimento de montagem cinematográfica conduzido com fins de construir uma forma de controle sobre os processos cognitivos do espectador, o efeito Kuleshov. Esse experimento alternava a mesma imagem de um rosto de um ator, com uma determinada expressão, justapondo-a a imagens de outros objetos (um prato de sopa, uma cama, um bebê, um caixão, etc). O objetivo desse experimento era provar como o processo de montagem pode gerir as reações emocionais dos espectadores a partir de uma associação de imagens em uma sequência rítmica, criando assim sentido

que povoava a imaginação do povo russo com um outro acontecimento histórico de grandes proporções que derrubou o regime czarista e colocou os bolcheviques a marca a consolidação que está no cerne da formação política da URSS União Soviética.

Como podemos observar, o encontro entre a técnica e uma certa dose de imaginação, viabilizou o surgimento da arte cinematográfica que norteou sua estética em não só dar movimento as imagens, como também dar forma e ressignificar as imagens mentais dos repertórios imagéticos da coletividade.

Imagens mentais na modernidade

As imagens mentais do passado, tal como as mobilizadas pelo cinema, é um conceito recorrente dentro de uma visão filosófica e historiográfica muito presente nas mudanças de paradigmas do início do século XX. Em suas teses “Sobre o conceito de história”, filósofo alemão Walter Benjamin emprega de forma recorrente o conceito de imagem como um “lampejo” que capta o passado quanto mais longe ele se encontra no tempo e no espaço. A imagem do passado que emerge diante do lampejo são alegorias que Benjamin emprega para tecer uma mordaz crítica as pretensões historicistas que concebe a história como uma crônica dos acontecimentos “tal como ocorreram”. Por trás dessa premissa, Benjamin postula uma ausência de dialética que faz a história se limitar aos estratos oficiais, sem levar conta as contradições do processo histórico, os excluídos e a luta de classe, em detrimento de um registro que se limita ao “cortejo dos vencedores”. O presente, em seu diálogo com o passado é o flash da câmera é a projeção do

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cinematógrafo, captado como uma efemeridade que ganha sua vida e seu movimento na imagem gerada por esse lampejo, que traz a luz um novo conhecimento ancorado naquilo que o presente os revela (BENJAMIN, 2012).

Por sua vez a filosofia benjaminiana é tributária da concepção estética proposta pelos surrealistas europeus que vêm na imagem “uma capacidade expressiva transformadora para além da fala, acreditando numa escrita imagética”. As imagens históricas são construídas a partir de atos voluntários (objetivos) com atos subjetivos que remetem ao nosso inconsciente, a imagem em lampejo, conforme proposta de Benjamin, representam a reação dialética do presente com esse passado fluído e inapreensível.

A fotografia e o cinema podem ser encarados não só como paradigmas no qual se projetam novas visões da história, eles próprios são forças históricas que precisam ser pensadas a partir de novos padrões, novas correntes de pensamento, eles são a própria Schockerlebnis (experiência de choque) conforme formulada por Benjamin, uma percepção transformadora no que tange a massificação da imagem e seus impactos das imagens mentais do passado, alterando a forma como as coletividades imaginam, seja até mesmo por aquilo que não dizível em termos de linguagem e que remete a experiência dos combatentes que retornam silenciosos dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Walter Benjamin parecia prever um tipo de experiência que alcançaria seu paroxismo máximo com a Segunda Guerra Mundial, principalmente no que tange aos sobreviventes da Shoah. O choque do inenarrável seria uma constante no século XX por diversos outros massacres e rupturas violentas que ocorreriam pelo mundo.

O olhar precisava ser reeducado pela nova

percepção advinda do processo de reprodução massiva das imagens. Novamente em Benjamin, mas em seu ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, o filósofo chama atenção para o impacto da reprodução massiva de imagens nas formas de olhar e de conceber imagens (BENJAMIN, 2012, p. 181). O grande acervo de imagens mentais e do imaginário coletivo que as narrativas cinematográficas mobilizam são extraídas justamente das passagens escritas, sejam elas oriundas da ficção, relatos míticos, contos populares, passagens religiosas ou textos históricos (estes últimos independentemente de serem parciais ou críticos). O cinema na modernidade passa a ser o veículo privilegiado para que o ser humano reconheça e reinterprete os signos de acordo com sua condição existencial, ou como produtos do contexto histórico no qual esses signos estão sendo veiculados. Não há mais uma imanência na relação signo, significante e significado, porque a representação histórica e o discurso historiográfico passam a formar uma nova hermenêutica.

O grande acervo de imagens mentais é oriundo do imaginário coletivo, um empreendimento humano para superar a finitude da morte a partir da criação de estruturas imaginativas. O ser humano formaria um arcabouço de símbolos, imagens mentais, figuras míticas e arquétipos, formando um imaginário que garantiria o equilíbrio psicossocial do ser humano. (DURAND, 1988).

A imagem em movimento e, posteriormente, a imagem sonorizada, complexificam, ainda mais, a psicologia humana em relação ao repertório imagético da coletividade pois adicionam a textura do som, seja pelos sons diegéticos ou pela possibilidade do diálogo síncrono. André Bazin, importante teórico do cinema e influência

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marcante para diversos diretores, pontua o cinema como um desdobramento de práticas milenares, organizadas sob a rubrica das artes plásticas, que remetem desde o embalsamamento dos mortos no Egito, passando pelas esculturas até a pintura, baseada em esforços para vencer o tempo, uma vez que a morte “não é senão a vitória do tempo” (BAZIN, 2018, p. 101). As imagens mentais, sejam aquelas concretas ou as que fazem parte do imaginário coletivo, persistem sobre o tempo e fazem dele sua principal esteira, sendo integradas a um repertório de práticas significadoras conforme aquelas expressas nas relações de representações históricas. Corpos embalsamados, esculturas, féretros reais, pinturas, fotografias e, como parte fundamental desse processo de desenvolvimento da imagem, o cinema, colocam as imagens mentais do imaginário coletivos em uma função que traz possibilidades para além daquelas que lhe são inerentes. Bazin assim explica a formação dessa nova relação de proposições históricas na psicologia da arte:

Não se acredita mais na identidade ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual. A fabricação da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocêntrico. O que conta não é mais a sobrevivência do homem e sim, em escala mais ampla, a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo (BAZIN, 2018, p. 101).

experiência histórica, gradativamente, adquire um novo sentido advindo das novas formas de percepção temporal que emergem da imagem, ou seja, temos visões historiográficas que passam a ser embutidas por meio do entretenimento, alcançando contingentes populacionais cada vez maiores (BURKE, 2004, p. 16 e 17).

A profusão de imagens encadeada pelo cinema na modernidade colabora para a formação de imagens mentais que afetam não só a percepção e conhecimento do passado, como também influenciam no presente, criando novas formas de diálogo entre passado e presente, bem como novas perguntas e novas demandas. A

As imagens mentais congregam em si aspectos que são inerentemente estéticos, capazes de despertar sensações ao entrarem em contato com a visão humana. A construção do conhecimento histórico por meio das imagens mentais implica igualmente em uma relação estética, na qual o conhecimento ou percepção da história por meio das imagens advém igualmente do impacto que elas causam no espectador (CABRERA, 2006, p.17 e 18). Parte desse entendimento ajuda a explicar a forma como o cinema de propaganda ganha destaque na primeira metade do século XX, pela sua capacidade de arregimentar imagens mentais que remetem, principalmente, ao preconceito em relação ao outro, empreendendo um processo de desumanização. Os soviéticos, nazistas, os países Aliados da Segunda Guerra, cada um aplicou o cinema a seus propósitos, ressignificando símbolos, fazendo a apologia histórica de sua ideologia, enfraquecendo moralmente o adversário em conflito, todas as grandes correntes de pensamento histórico do século XX transbordaram para o cinema, criando impactos também no campo psicológico (FURHAMMAR, ISAKSSON, 1976, p. 145,146). Aquilo que não era imagem mental, passou a ser com a massificação do cinema.

Por mais abstrato que possa parecer, as imagens mentais também podem ser consideradas indícios que testemunham acerca de uma determinada cultura ou tempo histórico, sendo assim possível fazer uma historiografia a partir

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daquilo que as imagens mentais nos fornecem em termos de narrativa e estética. O passado, tanto quanto um dado, uma informação, e como já esboçado por Walter Benjamin, também é uma experiência, ou um itinerário de experiências que colaboram para constituir um fato como histórico (VEYNE, 1971). Quanto temos contatos com os vestígios que nos são passados pela experiência das imagens mentais, não podemos limitar sua contextualização a algo que a faça ser somente um objeto ou percepção em si, é necessário apreender também um “não-saber quando ele se desvencilha das malhas do saber”. No campo das sensações proporcionadas pela estética da imagem na construção do discurso histórico, a partir das imagens do passado, entende-se que este também deve ser perpassado pelo “elemento do não-saber que nos deslumbra toda vez que pousamos nosso olhar sobre uma imagem da arte” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 15 e 16).

Ao adotar a postura do “não-saber”, o historiador analisa as imagens mentais em uma postura dialética, tentando captar as nuances que formam essa imagem mental a partir das coletividades que a transmitiram ou a ressignificaram, das relações que essa imagem mental capitalizou em determinados meios sociais e em diferentes tempos históricos. Assim, a imagem mental deixa de ser somente uma característica discursiva em si mesma, uma resposta a uma proposta de representação, mas a indicar uma postura ético-estética que nos descortina a relação que há entre as possíveis leituras das subjetividades em função da sua compreensão em um quadro historiográfico mais amplo.

Pensar as imagens mentais enquanto formas de representação de aspectos da memória coletiva colabora de sobremaneira para se

evitar os equívocos de atribuir-lhes discursos inequívocos quase a-históricos. Enquanto formas de representação, as imagens mentais concorrem como mais um elemento que agrega ao imaginário coletivo seu caráter de construção social. Por representação da memória entendemos o processo de valoração que pode advir da representação de uma dada realidade social, definindo um trajeto e um projeto que irão resultar na interação entre um sujeito e um objeto, como peça de reapresentação dessa realidade (LEFEBVRE, 1980, p.54). Em Chartier, encontramos o conceito de representação em oposição à noção de mentalités. Essa oposição advém da percepção das mentalidades como o último nível a se alterar em uma sociedade, associadas às suas causas estruturais. Já a representação constitui-se em um determinante básico da realidade histórica, fazendo com que a cultura não seja somente fruto das relações materiais, sendo também o âmbito a partir do qual essas condições materiais são pensadas e refletidas através da ação do homem na sociedade, interferindo em seu mundo e em suas condições materiais diretamente (CHARTIER, 1988, p.27 e 28). A partir dessa abordagem temse um escopo que pensa as relações sociais e culturais como algo que não é transcendental ou universal e sim discursivo.

Quando Chartier nos expõe o conceito de representação, em certa medida nos informa que o discurso usado está promovendo uma reapresentação da realidade por meio dos códigos, convenções, valores e ideias presentes em uma cultura e manifestas em sua linguagem. A partir desse conjunto de associações, que não se aplicam cartesianamente em uma relação de causa-efeito unilateral, a representação, em nosso caso da memória, estabelece-se como a representação de uma ideia ausente ou a representação de algo ou alguém, que está ausente. Sendo assim, as

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imagens mentais emergem do amplo repertório imagético das coletividades como formas de reapresentar uma realidade, um indicio que está sendo moldado pelo fenômeno da materialidade e da técnica do cinema. A representação nos permite pensar imagens mentais para além de contextos e sondar dimensões mais abrangentes de suas concepções e influências.

É importante deixar claro que as imagens mentais não são acabadas em si mesmo, ou seja, seus significados precisam ser analisados em função de novas expressões e da relação dialética que estabelecem com o presente, não sendo somente algo a ser resgatado do imaginário ou da memória coletiva. Henri Lefebvre consagrou importantes páginas que problematizam a noção de memória enquanto algo a ser resgatado, bem como o próprio consenso em torno da memória como fruto de uma mediação sem disparidades. À memória é atribuído um valor de verdade que por sua vez lhe confere validade. Os instrumentos que geram essa validação, tais como o discurso e o binômio capital/criação de produtos, influi na própria forma de difusão do processo psicossocial dessas memórias (LEFEBVRE, 1980, p.24). Imagens mentais não devem ser tratadas como resgate e sim como referenciais por meio dos quais indivíduos e coletividades estabelecem suas relações com a memória história e sua relação com o passado.

À guisa de conclusão

A imagem em movimento, mais do que um aspecto técnico, exprime um pressuposto ideológico em torno da “finalidade da representação e parâmetro de medida da figuração visual dos objetos”. Não bastava a imagem estar

em movimento, era igualmente necessário estabelecer um sentido no qual a representação imagética colaborasse para influenciar a visão e o efeito das imagens, pictóricas ou mentais, da sociedade moderna. A concepção de imagens mentais encerra uma possibilidade de leitura histórica que torna indicio e fonte a própria forma como as sociedades imaginam, transmitem, cristalizam ou tornam fluídas suas formas de imaginar, que por sua vez depõem a forma como subjetividades e processos históricos se relacional e influenciam um ao outro.

Renato Pessanha é doutor em História pela UNIRIO e colunista da Gnarus Revista de História Referências

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